quinta-feira, 31 de março de 2011

O que é ser de esquerda, hoje?


O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à desconcentração das terras e à socialização do poder político e econômico.


Luiz Marques
A “modernidade” nasceu com o Renascimento, a Reforma e a conquista das Américas. Encerrou-se com os horrores das duas Guerras Mundiais. Começou então a gincana intelectual para achar uma expressão adequada à sociedade que sobreveio. “Pós-industrial”, arriscou-se nos anos 50. “Pós-moderna”, insinuou-se nos 80. “Era nova”, comemorou-se no auge da globalização teleguiada pelo capital financeiro, nos 90. Esses termos suscitaram discussões e confusões semânticas na academia e nos cafés, o que esvaziou o potencial analítico de cada um. Mas ajudaram a compreender a crise dos paradigmas modernos e suas negatividades intrínsecas.
Que paradigmas? 1) a economia de mercado, que acelerou a urbanização do ser humano, desembocando no neoliberalismo e na violência no cotidiano das metrópoles; 2) o progresso nas ciências e nas técnicas de manipulação da matéria não-viva (exploração da energia atômica) e viva (descoberta do DNA, práticas de clonagem), com desenlaces imprevisíveis, indo de uma possível hecatombe a servidões jamais imaginadas; 3) os esforços seculares da opinião pública para controlar o poder político, que não consideraram o fato de a mídia induzir em larga escala o juízo da cidadania, através da radiofonia, da televisão e dos jornais, que a propriedade cruzada agrava; 4) a conversão do indivíduo em vértice social e moral da sociedade, que não levou em conta que a massificação (heteronomia) corrói a livre consciência (autonomia) e; 5) a preeminência do eurocentrismo na avaliação de outras culturas, que conduziu ao colonialismo.
A lição a ser tirada, conforme o filósofo francês Pierre Fougeyrollas (A crise dos paradigmas modernos e o novo pensamento, 2007), remete a uma forma de pensar comprometida com a espécie e o planeta. “Cósmica”, para reintegrar a humanidade no cosmos. “Lúdica”, para estampar a criatividade poética e artística na abordagem do real. “Demiúrgica”, para apropriar-se do existente e promover uma recriação de tudo, com espírito ecumênico. “Interativa”, para subverter as hierarquias clássicas do conhecimento, conectando intuições e conceitos, ideias e imagens. Os eixos estratégicos do “novo pensamento” decorrem de um olhar realista sobre o presente.
Esse programa traduz a luta dos movimentos sociais e ambientalistas que reúnem-se nas edições do Fórum Social Mundial e, para 2012, já preparam um rol de intervenções visando a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, que marcará duas décadas da Eco-92. O modelo de desenvolvimento ocidental (o modo de produção e de consumo), baseado na dominação da natureza, sem nenhum planejamento democrático, esgotou-se. Urge um mundo de fraternidade. Como pregou São Francisco de Assis, ao celebrar o Irmão Sol (Fratello Sole) e a Irmã Lua (Sorella Luna). Ou como indicou Marx, no terceiro volume d'O Capital, ao definir o socialismo como a sociedade onde “os produtores associados organizam racionalmente as suas trocas com a natureza”. No caso, a emotiva prece cristã e o prognóstico ateu coincidem.
Ecossocialismo
Publicado em 2002, o “Manifesto Ecossocialista Internacional” conjuga o socialismo e o ecologismo, de maneira orgânica. “Na nossa visão, as crises ecológicas e o colapso social estão relacionados e deveriam ser encarados como manifestações diferentes das mesmas forças estruturais”, lê-se no documento. Os desequilíbrios são o preço pago pela incontrolável dinâmica da acumulação, da ânsia de rentabilidade que não pode ser cancelada, da suposição de que os recursos naturais são infinitos, do ideal de enriquecimento pessoal. “Cresça ou morra”, é o lema do capitalismo. Seja “vencedor”, não “perdedor”, é o imperativo do mercado. No entanto, a lógica do produtivismo é insuportável. Orientada pelo valor de troca em detrimento do valor de uso, a produção ilimitada causa danos ambientais de proporções irreparáveis.
“Não se trata de opor os 'maus' capitalistas ecocidas aos 'bons' capitalistas verdes: é o próprio sistema, ancorado na concorrência impiedosa, nas exigências de lucro rápido, que é o destruidor do meio ambiente”, sublinha Michael Löwy. Sob certo aspecto, a falsa subdivisão apareceu no Protocolo de Kyoto (1997), que empregou dois mecanismos na tentativa de conter as emissões de carbono na atmosfera, o Cap and Trade: um teto máximo de emissões e um mercado de troca de títulos de direito de emissão de carbono no hemisfério Sul, para compensar a poluição provocada pelas nações industrializadas do Norte. Com o que o carbono atmosférico virou uma commodity.Forjado nas leis do mercado, o artifício para sensibilizar (a rigor, chantagear) o “empreendorismo” fracassou e as emissões aumentaram três vezes mais. A autonomização da economia não permite a sua subordinação a um controle social, político ou ético-ambiental.
O resultado é a profusão de bens desnecessários, e a escassez daqueles necessários às demandas sociais e ao equilíbrio ecológico. A política econômica capitalista é alinhavada por valores monetários. Não se rege por nenhuma consciência de espécie e tampouco planetária. Por isso, acarreta riscos iminentes para o futuro. “Se a primeira contradição do capitalismo se dá entre as forças produtivas e as relações de produção, a segunda ocorre entre as forças produtivas e as condições de produção (trabalhadores, espaço urbano, natureza)”, observou James O'Connor, editor da revista norte-americana Capitalism, Nature and Socialism. Hoje, não existe a contradição principal e a secundária, elas apresentam-se imbricadas. O ecossocialismo pugna em ambas as frentes.
O marxismo renovou-se ao encontrar a ecologia, a problemática de gênero e raça. Não se confirmou a assertiva de que suas categorias teóricas (os modos de produção e a formação econômico-social) seriam demasiado esquemáticas para apreender a sobreposição das esferas ideológica, política e econômica, e a articulação dos processos ecológicos, tecnológicos e culturais que constituem os suportes de sustentabilidade da produção. O marxismo revelou-se aberto às oposições não-classistas e comedido em relação à noção de “progresso”. Atento às forças destrutivas do capitalismo. Reside aí a contribuição do ecologismo à práxismarxista. Em contrapartida, os movimentos ecologistas que estenderam as mãos ao marxismo somaram, à denúncia do produtivismo, a percepção crítica sobre as estruturas sócio-econômicas que impulsionam a ganância.
Ecologia de mercado
Não raros, circunscrevem as mobilizações ecológicas aos temas pontuais, sem contextualizá-las em uma totalidade significativa. Apostam em um “capitalismo limpo”, que combine a “responsabilidade social”, apregoada pelos que elidiram do Estado a obrigação de políticas para erradicar a pobreza, e a “responsabilidade verde”, destacada com ridículas medalhas ao mérito para as empresas que adotam uma praça ou um canteiro de plantas. Abstêm-se de pressionar o aparelho estatal para que tome iniciativas em prol dos setores sociais desfavorecidos e do combalido meio ambiente. Propõem “ecotaxas” aos infratores da legalidade, se tanto. Preocupam-se com os “excessos”, não com o que rotiniza a predação. Tais inhapas são absorvidas pelo status quo, passando a impressão que a ameaça sobre a Terra (Gaia, no dizer de um pioneiro, José Lutzenberger) pode ser revertida com um marketingde “varejo”, prescindindo das políticas de “atacado”.
Se essa parcela de ativistas exprime um discernimento precário ao agir, o mesmo ocorre quando o movimento operário alia-se ao lobby da indústria automobilística para forçar vantagens fiscais. O automóvel, glamourizado e erotizado pela publicidade, é um símbolo do american way of life, da incitação ao consumo individual. Calcula-se que 45% do território de Los Angeles esteja reservado aos carros, incluindo a área viária e os estacionamentos. Em São Paulo, chega-se a algo em torno de 35%. Politicamente correto é investir no transporte coletivo de qualidade, em faixas segregadas para ônibus, trens de superfície, metrôs e bicicletas nas cidades para evitar os congestionamentos, bem como pleitear ferrovias para desafogo dos pesados caminhões de carga nas estradas, que engordam as estatísticas de acidentes com vítimas. Tragédias, aliás, que não se resolvem em mesas redondas com as associações de construtores de veículos automotivos e os consumidores para estudar os dispositivos de freios, o raiado dos pneus, etc. Resolvem-se com o participacionismo social, desde que este postule um outro modo de vida, sob um horizonte civilizacional que supere o fetichismo da mercadoria de rodas.
Os verdes tendem a abstrair da história a defesa ambiental, tecendo uma responsabilização genérica, como se um ascensorista de elevador tivesse idêntica parcela de envolvimento que o proprietário de uma fábrica de celulose. “A culpa é do homem”, são as manchetes jornalísticas nos cadernos especiaissobrea agenda do crescimento sustentável. Vale salientar, contudo, que os ambientalistas europeus fizeram a leitura correta das eleições presidenciais brasileiras. Declararam apoio a Dilma Rousseff, no segundo turno, para que “o voto libertário em Marina Silva paradoxalmente não se transformasse em uma catástrofe para as mulheres, para os direitos humanos e para os direitos da natureza... José Serra não é um socialdemocrata de centro... Por trás dele, a direita mobiliza o que há de pior... preconceitos sexistas, machistas e homofóbicos, junto com interesses econômicos escusos e míopes”. Entre os signatários, Dany Cohn Bendit (Alemanha), Alain Lipietz (França), Philippe Lamberts (Bélgica), Monica Frassoni (Itália).
O bom senso (que veio do frio) não contagiou Marina que, ao invés de dramatizar o momento em que decidia-se a continuidade do projeto representado pelo governo Lula (avanços sociais, participação cidadã, política externa soberana) ou a volta ao neoliberalismo (privatizações, desemprego, corrupção, submissão à Alca e aos EUA), optaram pela neutralidade. Com o que, dois terços dos eleitores do PV penderam para o candidato do atraso, sem um gesto sequer da dirigente-mor para impedir o deslizamento político. A pequenez tirou do partido o papel de educador das massas, despolitizou as escolhas e fez tábua rasa das duras batalhas contra as desigualdades sociais e regionais. Ao contrário de situar os verdes nativos como uma pretensa alternativa, o vergonhoso silêncio erigiu-os em tristes bengalas auxiliares da reação nas urnas.
Esquerda versus Direita
Anthony Giddens (Para além da esquerda e da direita, 1994), mentor da “Terceira Via”, tentou uma síntese superior entre o conservadorismo e o socialismo, os quais teriam sido abatidos pela marcha da globalização e a expansão da reflexividade social. O campo da política, assim, haveria se alterado e cedido terreno aos paradoxos do neoliberalismo. Sua sugestão para “repensar” o Welfare State (o Estado de bem-estar social) foi acolhida pelo primeiro-ministro britânico, e em nada diferenciou-se do receituário de Thatcher/Major. Tony Blair manteve a legislação que flexibilizava e desregulamentava o contrato de trabalho e, com cinismo, explicitou em um discurso a essência da Third Way: “flexibilização sim, mas com fair play”. O livro do sociólogo inglês mostra o quanto a esquerda desceu ao inferno no período, rendendo-se ao Consenso de Washington.
Coube a Norberto Bobbio (Direita e esquerda, 1994) defender a atualidade da díade política que remonta à Revolução Francesa. A esquerda teria como epicentro o valor da “igualdade” (as pessoas são mais iguais que desiguais, socialmente). A direita, o valor da “liberdade” (as pessoas são mais desiguais que iguais, naturalmente). A importância da reflexão, lançada numa época em que o capitalismo triunfante trombeteava o “fim das ideologias”, esteve em (re)legitimar a dualidade político-ideológica. O opúsculo do jurista italiano teve 200 mil exemplares vendidos e 19 traduções em um curto prazo. Como Fênix, o pássaro da mitologia grega, a esquerda renascia depois de assassinada pelas agências internacionais de notícias, que viram na queda do Muro de Berlim (1989) a domesticação da utopia e o desaparecimento da rebeldia e da esperança.
Mas o princípio da igualdade não exaure a conceituação sobre o que significa externar uma atitude anticapitalista. No final do século 19, ser de esquerda era lutar pelos direitos políticos e pelo sufrágio universal. Não mais que isso. Ao longo do século 20, outras bandeiras incorporaram-se ao (nosso) prontuário de lutas identitárias: as ações pelos direitos civis e sociais, contra o colonialismo e pela independência nacional, o combate à hegemonia imperial estadunidense, a equanimidade de gênero, as afirmações étnicas, o respeito às diferenças, a integração dos países latino-americanos, a inversão de prioridades na administração pública e, ainda, a democracia participativa, cuja inspiração acha-se condensada na máxima de que “a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”. A partir dos anos 70, surgiu a questão ecológica.
O perfil da esquerda sofreu uma mutação com o tempo, abrindo um leque complexo de temáticas, antes, desapercebidas. Quem nunca mudou foi a burguesia continental, que sempre opôs-se à distribuição de renda, à desconcentração das terras e à socialização do poder político e econômico. Aquela, desde priscas eras, reitera uma contrariedade ao pagamento de impostos. Não porque sejam regressivos ou recolhidos com critérios tributários que penalizam as classes trabalhadoras. Mas porque, com a ascensão de governos democrático-populares na América Latina, os fundos públicos são redirecionados por políticas republicanas à dignificação da vida da população. “Prefiro ser essa metamorfose ambulante / Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”, cantava Raul Seixas. Isso, para preservar a coerência com a “justiça social” no enfrentamento à “ordem estabelecida”. Acrescente-se, no metafórico aniversário de 31 anos do PT.


Luiz Marques – Professor de ciência política – 16.02.2011

terça-feira, 29 de março de 2011

Culpados até que provem o contrário


Como uma pessoa sem antecedente criminal acaba presa com base em um só - e controverso - depoimento; para especialista, Lei de Drogas criou excessos.

Bruno Paes Manso
Vestido todo de branco, Wagner Lopes de Oliveira foi batizado há nove anos nas águas de uma piscina da Assembleia de Deus, de onde saiu praticante fiel. Seis anos depois, quando o sogro sofreu um derrame, foi ele quem se ofereceu para dar comida e trocar as fraldas do doente até que morresse. Há dois anos, foi a vez do pai. Para ajudar nos cuidados do derrame, voltou a morar com a mãe, levando a mulher e a filha de 3 anos.
Família Souza. Jovem foi presa ao ir à delegacia; para parentes, o comparecimento ao DP e o fato de ter a casa inundada no mesmo dia já serviriam como prova para que não fosse detida.
O trabalhador admirado pelo patrão, respeitado pelos vizinhos em Cocaia do Alto, bairro onde mora na cidade de Cotia, em São Paulo, sete anos atuando como soldador na mesma empresa, 29 anos e nenhuma passagem pela polícia, foi parado em uma blitz no Natal do ano passado. Desprevenido, ingressava na primeira etapa do processo industrial paulista de colocar gente na prisão.
Atualmente, há 170.916 presos no sistema penitenciário estadual. Considerando os familiares dos detentos, pode-se dizer que mais de 1 milhão em São Paulo gravitam em torno da rotina penitenciária. Se ninguém duvida da importância das prisões, que segundo analistas ajudam a explicar a queda nos índices criminais do Estado, o problema ocorre quando se perde o controle dos efeitos colaterais produzidos pelo sistema, resultados de um processo cheio de defeitos e com grande potencial para injustiças.
Preso há três meses, acusado de tráfico, com perspectivas de continuar o restante do ano no Centro de Detenção Provisória de Itapecerica da Serra, Wagner foi parar atrás das grades a partir de um único depoimento que o incrimina. No Natal, depois de participar de um churrasco na casa da irmã, ele se ofereceu para dar carona a quatro amigos. Deixou dois em casa e parou na praça do bairro. Três meninas - uma delas havia sido inquilina na casa dos fundos da família - pediram carona. Iam para uma festa. No caminho, foram parados em uma blitze da Polícia Militar.
Uma das meninas tinha 17 pedras de crack e 5,8 gramas de cocaína na bolsa. Na delegacia, manteve-se calada. A filha da antiga inquilina da família afirmou que Wagner é que era o fornecedor. A outra disse que o traficante era o Bola. Foi o suficiente para que se decretasse a prisão em flagrante. "Não cruzaram ligações para saber se havia telefonemas das acusadas para o Wagner. Não foram investigar a existência do tal de Bola. Não houve nenhum tipo de investigação e mesmo assim ele permanece preso", diz o advogado Thiago Gomes Anastácio, que atua no caso pelo Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).
A irmã de Wagner, Jaqueline Aparecida de Oliveira, desesperada com as condições do caçula de nove irmãos, foi conversar com a menina que acusou Wagner, antiga conhecida da família. Ela e a mãe choraram e pediram desculpas pelas mentiras, disseram que foram ameaçadas, em conversa gravada, a qual o Estado teve acesso. "Eu precisava provar que ele era inocente e por isso gravei. Tenho pena delas. E realmente não entendo como ainda não conseguimos tirá-lo da cadeia", diz Jaqueline.
O pai, doente, sabendo da prisão de Wagner, morreu. Além de Wagner não ter ido ao enterro, a família ainda não teve coragem de contar a ele sobre o ocorrido, na cela em que divide hoje com 42 presos.
Se fosse condenado, como é primário, trabalhava e não participava de quadrilha, provavelmente Wagner ficaria menos de dois anos na prisão. Pena que poderia cumprir em liberdade, depois de meses encarcerado.
Lei de Drogas. Ex-secretário Nacional de Justiça, Pedro Abramovay, professor da Fundação Getúlio Vargas no Rio, afirma que a nova Lei de Drogas, de agosto de 2006, tem contribuído para o rápido crescimento da população carcerária nacional. Em estudo ainda inédito, feito com Carolina Dzimidas Haber, da Universidade Federal do Rio (UFRJ), Abramovay aponta o rápido crescimento da quantidade de traficantes presos.
Entre 2007 e 2010, houve um aumento no Brasil da população carcerária de 73.661 pessoas - o que demandaria a construção de um presídio de 500 lugares por semana. Desse total, 40.997 foram acusados de tráfico. A prisão por roubo, crime que mais preocupa por ser violento, diminuiu 3% no mesmo período. "A nova Lei de Drogas, em tese, acabou com a prisão para o usuário. Mas, como não estabelece a diferença entre usuários e traficantes, na prática, estamos vendo um aumento no rigor e na detenção daqueles que são pegos com pequenas quantidades. Quem acaba definindo a diferença são os próprios policiais", diz.
Grande parte dos que são presos é de pequenos traficantes. Em pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, os dados mostram que, entre 2006 e 2008, 66% dos que foram presos acusados de tráfico no Brasil eram primários e 86% não estavam com armas; 50% das sentenças envolviam quantidades de maconha de até 104 gramas, total que muitos consumidores paulistanos estocam para fumar por poucos meses. "O governo tem uma política clara de combate às drogas. Trata com rigor ainda maior de pena traficantes que pertencem ao crime organizado. Mas o governo tem todo um conjunto de políticas de prevenção e de tratamento de drogados que não podem ser ignoradas. Repressão e prevenção nem sempre são antagônicas", disse ao Estado o ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo.
Na falta de competência para fazer investigações, a pobreza reforça as suspeitas das autoridades para determinar a prisão. No dia 20 de janeiro, Rose Meire Rodrigues de Souza, de 20 anos, mãe de uma criança de 5, foi chamada por amigos para ir à delegacia da comunidade onde mora, na zona leste de São Paulo, para levar os documentos do primo que, cinco horas antes, havia sido preso em um assalto. Na delegacia, foi reconhecida pela vítima, que afirmou ser ela a responsável por dar cobertura aos criminosos. Foi para a Penitenciária Feminina de Sant"Ana, onde está até hoje. "Como ela pode ter assaltado se precisou limpar a casa e tirar os móveis por causa da enchente que inundou tudo aqui naquele dia?", questiona a mãe, Francisca Rodrigues da Silva. "Se ela tivesse participado, o que iria fazer na delegacia?" Perguntas que, mesmo sem respostas, mantêm a Justiça convicta da necessidade de manter Rose Meire presa indefinidamente.

Bruno Paes Manso – Jornalista e escritor – 27.03.2011

sábado, 26 de março de 2011

A quem interessa a inelegibilidade do analfabeto?


O mandato de qualquer analfabeto porventura eleito hoje no Brasil, seja pela vontade do povo nas urnas, seja pela vontade do Constituinte de 1988, e, sobretudo, por uma questão de Justiça substancial, é cabalmente legítimo e juridicamente válido.

Otávio Dias de Souza Ferreira
A devastadora vitória do artista Tiririca para a Câmara dos Deputados, seguida por um impasse no Judiciário sobre eventual indevido preenchimento de uma condição de elegibilidade invoca um oportuno debate em torno da eficácia da norma que determina a inelegibilidade do analfabeto, prevista no §4º, art. 14, da Constituição Federal.
José Afonso da Silva ensina que as inelegibilidades devem ter um fundamento ético evidente. São legítimas quando têm por objeto: a proteção da probidade administrativa e da moralidade para exercício de mandato, considerada a vida pregressa do candidato; e a normalidade das eleições contra a influência do poder econômico ou do abuso do exercício de função, cargo ou emprego na Administração (fl. 228, “Comentário Contextual”). O fato de o indivíduo ser iletrado não se enquadra em nenhuma dessas hipóteses. A simples existência de um adulto analfabeto, conseqüência da omissão do Estado em cumprir deveres impostos pela Constituição, é por si só uma imoralidade. O ilustre constitucionalista continua a lição, advertindo que as inelegibilidades se tornam ilegítimas quando estabelecidas com fundamento político, para assegurar o domínio do poder por um grupo que o venha detendo (fl. 228, idem). O caso do analfabeto enquadra-se admiravelmente nesta hipótese.
Há um antigo sentimento arraigado no imaginário da sociedade brasileira que se convencionou a chamar de “cultura do bacharelado”, que se mantêm muito vivo no debate político. Preconiza que apenas os bacharéis ou os eruditos teriam a capacidade de estar no poder e decidir o que é o melhor – o bem – para todos os demais. Essa soberba da erudição, exaustivamente retratada e satirizada na literatura de épocas e procedências tão distintas, de Cervantes a Lima Barreto, de Moliere a Aluízio Azevedo, somente em raríssimas vezes se revelou altruística em relação aos mais necessitados, geralmente analfabetos.
A política é uma esfera da vida social que exige primordialmente o diálogo, o que não se leciona em salas de aula e não se aprende na biblioteca. Demanda o contato com a realidade, a capacidade de ouvir o próximo, muito mais do que o mero conhecimento técnico estéril e do que uma visão romântico-filosófica do mundo. Exige a pluralidade – a busca do entendimento entre diferentes interesses dos representantes de todas as esferas da sociedade. Foi nessa sintonia que Pablo Neruda encerrou uma poesia que ousou chamar “Asi es mi vida” com os versos: “soy el hombre del pan y del pescado y no me encontrarán entre los libros, sino con las mujeres y los hombres: ellos me han enseñado el infinito”.
Max Weber, que mergulhou com maestria na questão, ensina que a “vocação política”, distinta da “vocação científica”, é composta por uma série de ingredientes, como: a paixão, o senso de proporções, a ousadia e a perseverança (fl. 124, “Política como Vocação”); sem, em nenhum momento, apontar para a erudição entre as qualidades indispensáveis ao homem político.
Além do mais, é notória a existência de técnicos multidisciplinares e analistas jurídicos no Legislativo e no Executivo à disposição dos políticos eleitos para instrumentalizar tecnicamente suas decisões.
Numa análise sistemática da Constituição, a inelegibilidade do analfabeto entra em rota de colisão com uma série de normas e tampouco se sustenta. O Estado Democrático de Direito e o pluralismo político – forma e fundamento da República (art. 1º) já se abalam pelo simples absurdo de ainda existirem analfabetos no Brasil após mais de vinte anos da edição de uma Constituição que se pretende “cidadã”. Uma parcela considerável da sociedade é vítima de descaso e negligência do Estado que torna letra morta direitos e garantias fundamentais como a igualdade ( art. 5º), o direito social à educação (art. 6º) e a garantia de educação básica e obrigatória gratuita, assegurada inclusive sua oferta para todos os que não tiveram acesso na idade própria (art. 208). Essa realidade faz sangrarem objetivos fundamentais da República, como a erradicação da pobreza e marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e qualquer outra forma de discriminação (art 3º ), bem como princípios da República nas relações internacionais, como a autodeterminação dos povos e a prevalência dos direitos humanos (art. 4º). Porque o iletrado é excluído de muitas oportunidades de trabalho, geralmente aquelas com melhor remuneração, além de ter acesso restrito a preciosidades da cultura e da ciência. Todos os entes federativos foram omissos: os municípios porque não cumpriram seus deveres de concretizar programas adequados de educação infantil e de ensino fundamental e os Estados e a União porque não prestaram àqueles a cooperação técnica e financeira devida, conforme dispõe o art. 30, VI.
Não bastasse todo o prejuízo social acarretado aos analfabetos pela referida omissão, a aplicação prática do §4º, art. 14, que os torna inelegíveis, significa castigá-los multiplamente ao inviabilizar sua plena participação no Estado Democrático, privando-os da oportunidade de votarem em seus iguais, de se candidatarem e de demandarem diretamente nas discussões políticas por decisões em benefício de sua existência e de seus pares. Desenha-se um indecoroso lapso de soberania popular (art. 14).
E, a se concretizar uma intervenção judicial excluindo o candidato eleito Tiririca da Câmara dos Deputados – obsessão de um determinado membro do Ministério Público, mesmo após a recente aprovação do artista em exame específico perante o Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo –, o que estará sob grave atentado será também a cláusula de separação dos poderes (art. 2º), na medida em que o poder deve emanar do povo (art. 1º) através representantes eleitos com a igualdade de valor de todos os votos (art. 14), enquanto um Tribunal do Poder Judiciário – com membros concursados – determinaria que centenas de milhares de votos em um representante de outro Poder não teriam mais nenhum valor.
A solução técnica e prática mais adequada ao caso, sem excluir do sistema o §4º, do art. 14, e capaz de harmonizar proporcionalmente a colisão de tantas regras, princípios e valores, é a de interpretar tal dispositivo como sendo de eficácia limitada e aplicabilidade mediata, a depender do efetivo esforço do Estado no sentido de cumprir seu dever de proporcionar a alfabetização a todos os brasileiros. Apenas num cenário desejado de oportunidades reais de educação a todos é que poderia ser aplicada a norma, rejeitando-se a candidatura apenas daquele que fosse analfabeto por sua própria desídia. Porque a alfabetização é um dos mais básicos requisitos para a inclusão social, uma vida com dignidade e o exercício da cidadania. E um Estado que se pretende democrático deve envidar todos os esforços para garantir a universalidade desse direito como prioridade absoluta, vedado o retrocesso social.
Portanto, o mandato de qualquer analfabeto porventura eleito hoje no Brasil, seja pela vontade do povo nas urnas, seja pela vontade do Constituinte de 1988, e, sobretudo, por uma questão de Justiça substancial, é cabalmente legítimo e juridicamente válido.




Otávio Dias de Souza Ferreira – 24.11.2010