Informes de viagem



Os primeiros Informes de Viagem datam de 2002. 
Surgiram de um esforço terapêutico, recomendação da psicanalista, sem intenção literária. Eu deveria fazer registros diários de minhas impressões durante a viagem que estava prestes a fazer, de mochilão nas costas, sozinho. Tendo iniciado o exercício de escrever diariamente, resolvi compartilhar por e-mail uma síntese semanal desses relatos com entes queridos. As redes sociais digitais estavam engatinhando no Brasil. O retorno positivo de mensagens estimulou-me a continuar e a aprimorar a empreitada dos informes em viagens posteriores, parte delas partindo solitariamente, aberto para conhecer gente nova, e parte com minha querida companheira de vida, a Karen. 
Crônicas de viagem, correspondências, literatura de rodoviária, ferroviária, porto, aeroporto? Seja qual for o gênero, o compromisso foi com o registro de memórias, desde as saborosas, ébrias, até as inusitadas, surreais e, mesmo, indesejáveis, perfazendo registros periódicos de ricas experiências pessoais vividas ao longo de uma década, que impactaram a formação daquele jovem curioso
Os informes mantiveram sempre a característica de serem curtos e em linguagem descritiva. O registro escrito traz substância distinta daquela das imagens. Quando se escreve com frequência e logo no calor da vivência, o conteúdo tende a ganhar mais ritmo e força sensorial e emocional, além de se evitar a inevitável perda de informações e impressões preciosas nos labirintos nebulosos das sinapses. 
Desejo a quem se dispuser a ler uma boa viagem!

Otávio 
 



SUMÁRIO
México e Cuba (2002)
Bolívia e Perú (2004)
Buenos Aires (2006)
Patagônia (2010-2011)
Europa (2011-2012)
Serras Gaúchas (2012)
Mendoza e Santiago (2012-2013)

 



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México e Cuba – 2002

 

 

INFORME DE VIAGEM 1 – JAN/FEV 2002


Olá! Escrevo de Valadorid, no México. São 18h20, já é noite, faz 35 graus e o céu está estrelado. Retornei pra cá 1h da manha, depois de visitar as ruínas da antiga cidade maia de Uxmal, por toda a tarde e início da noite. Escrevo do computador da recepção do albergue onde me hospedo. 
Vindo do Brasil, aterrissei na Cidade do México, onde passeei por um par de dias. Andei muito pela região central, apreciei um circuito de murais formidáveis em edificações públicas e privadas diversas. Conheci o Zócalo, a catedral, algumas praças e até comi uns salgados no mercado. Ainda passeei pela bela Universidade Autônoma até a área da biblioteca e do famoso Mural de Siqueros.
Segui de avião para Mérida. Na hora em que cheguei, tarde da noite, a cidade parecia absolutamente deserta. Tive que acordar um hóspede do albergue para que o dono abrisse a porta. Acordei já pelas 7h no intuito de chegar cedo às ruínas de Chichen Itza, antes dos milhares de gringos de Can Cun. Quando a frota de ônibus chegou, perto das 11h, eu já estava de saída, satisfeito pela visita no ambiente tranquilo. 
De Mérida até aqui, Valadorid, a viagem foi curta. Essas duas cidades da Península de Yucatán são estratégicas para conhecer sítios arqueológicos sensacionais dos maias: Chichen Itza e Uxmal.

 

Mapa Político do México. Fonte: Dreamstime.com.

 

Cada Parque funciona como um grande museu a céu aberto em meio à  natureza semi-árida, com um circuito extenso de atrações e surpresas, pirâmides, esculturas, pátios para jogos sangrentos e muita história. Chichen Itza tem como destaque El Castillo, uma pirâmide muito grande de quatro lados, projetada em sintonia com as luzes dos equinócios; Uxmal oferece a Pirâmide do Mágico, um templo elevado com singular construção e as laterais curvilíneas. 
Valadorid e Merida são pequenas cidades encantadoras, apenas de casas, muitas de estilo mais rústico e colonial, ruas tranquilas. A sopa de lima, típica da região, com frango desfiado, verduras e grandes nacos crocantes de tortilha de milho submersos no caldo cítrico e levemente picante foi uma sensação! Numa praça, apreciei um festejo pela noite, ao som de simpáticas músicas tradicionais, tocadas por uma banda grande, afinada. As pessoas dançavam sob o luar, solitárias ou em casais, velhos, jovens e crianças. 
Na saída de Chitchen Itza, perto do meio dia, visitei um cenote maravilhoso, um lago subterrâneo que perfaz uma formação geológica típica da península. Situado numa espécie de gruta repleta de formações de estalactites de cores variadas, tinha águas cristalinas. Fui para o passeio preparado para o banho, carregando comigo calção de banho e toalha. Foi fascinante mergulhar naquelas águas geladas, na gruta vazia, parcialmente iluminada. Foi providencial se refrescar diante do calor escaldante de Yucatan.
A visita a Uxmal deu-se propositalmente no final da tarde. Ao cair do Sol no horizonte, realizam uma performance de luzes e sons dentro do parque arqueológico, produzindo um sinistro ambiente em meio às pirâmides.
Pena que minha máquina de fotografia quebrou subitamente ao chegar a Yucatán! Não levarei imagens dessa primeira parte da viagem. Vou amanhã para Cancún, onde pegarei um vôo para Cuba, e lá pretendo adquirir uma câmera nova. 
Tudo vai seguindo bem!
Não me estenderei mais.
Abraços, beijos!
Otávio


INFORME DE VIAGEM 2 – JAN/FEV 2002

 

Fui a Cuba por uma semana e agora escrevo de Tulum, no litoral do México, no Caribe, local cheio de belas praias e cenotes – aquelas lagoas singulares do subterrâneo da Península de Yucatan –, e de ruínas maias. Soma-se a isso um Parque Nacional de proteção ambiental um pouco mais ao sul, diante do mar. 
O sol ainda continua a dar as caras incansavelmente desde que saí do Brasil. Até já despachei 5 kgs de bagagem desnecessária (livros e roupas de frio) na casa de Citlali, uma amiga que vive na Cidade do México.
Visitar Cuba, assim sozinho, foi uma experiência muito interessante! Há ainda muito a se processar sobre a situação que testemunhei, de modo que prefiro esperar um pouco. Talvez mais adiante escreva algum texto mais elaborado sobre as minhas impressões. Posso, entretanto, esboçar aqui alguns fragmentos...
Gostei muito. A vida social é muito diferente de todos os lugares que fui. 
A crise econômica é dura! Ouvi relatos e vi a carência de produtos em prateleiras de mercados e na despensa de moradores. Nas zonas mais turísticas de Havana o turista se depara com muitos malandros de plantão, golpistas, vendedores de contrabando, gigolôs, prostitutas, interessados nos seus dólares, oferecendo de tudo, legal e ilegal. Depois das primeiras abordagens e de sacar um pouco desse movimento recorrente, passei a evitá-los, esquivando-me de suas abordagens. Nas oportunidades que criei para me afastar desse circuito, percebi as pessoas agindo com mais naturalidade, respeito e simpatia e pude estabelecer alguns bons contatos. 
Numa grande cidade há muita dificuldade para a distribuição igual de suprimentos. Segundo alguns cubanos e turistas que tiveram experiência em cidades do interior, haveria mais justiça social fora de Havana, justamente onde chegam menos turistas e o assédio aos seus dólares é menor. 
Viajando sozinho pude caminhar muito, atravessar incontáveis vezes o belo Malecón. Conheci gente diversa, de estudantes e aposentados até um professor e uma prostituta. A restrição a algumas liberdades faz com que determinados temas se tornem tabus. Afinal não estamos falando de um governo democrático. Mais do que ler e conversar, numa viagem dessas, agente vê e sente muitas coisas. 
Identifiquei o respeito, a humildade e uma extroversão incomum como características da maioria das pessoas com quem tive oportunidade de falar.  Dizem que não há armas de fogo em posse da população civil e que a violência física e a criminalidade na vida cotidiana são diminutas. Pelo conhecimento variado de história e política e de curiosidade sobre cultura nacional e estrangeira de várias pessoas de diversas origens e ocupações com quem conversei, parecem ter boa capacidade de leitura e boa educação em ciências humanas.
São indefensáveis a censura, a falta de liberdade de expressão e as violações a vários direitos humanos. Mas há que se comparar Cuba com seus países vizinhos Haiti, Jamaica, Porto Rico, Trinidad e Tobago, pois aí é possível dimensionar as enormes conquistas que ela atingiu. E há de se considerar o bloqueio econômico dos Estados Unidos e uma guerra velada que ainda persiste, a triplicar as dificuldades da Ilha. 
Um dos destaques de minha viagem a Cuba foi ter vivenciado a mobilização popular em torno da “Marcha de las Antorchas”. Trata-se de um evento anual que reúne milhares de cubanos, principalmente estudantes, numa homenagem a José Martí, herói da independência do país em relação à Espanha. Tudo começa no final da tarde, com uma longa e animada concentração de milhares de jovens nos pátios dos belos edifícios da Universidade de Havana, na parte alta da cidade, ao som de discursos ufanistas e de canções revolucionárias, com a bela vista da cidade e do mar, ao fundo. Além da população de Havana, muita gente é trazida do interior de ônibus, visando aumentar os contingentes de participantes. Muitas pessoas ostentam pequenas bandeiras do país. A luz do sol baixa e aos poucos as velas vão se se ascendendo. Em determinado momento ao escurecer, todos descem o percurso pela cidade em direção ao Malecón. Essa travessia de milhares de pessoas carregando velas e bandeiras é emocionante, com um singular espetáculo de luzes, quando a própria arquitetura colonial da cidade ganha uma atmosfera especial, o que de algum modo contagia as pessoas com um deslumbramento peculiar. A celebração termina na chegada à grande avenida beira-mar. As velas se apagam e o povo dispersa. [Gracias, Nestor, por tu consejo.] 
Marcha de Las Antorchas de 2002, Havana/CUB. Foto: Otávio D. S. Ferreira

 

Cheguei ao México demasiadamente confuso com tantas informações a se processar. De Cancún corri pra Tulum. Tive, logo ao chegar, longa conversa com um cientista social argentino que acabara de fazer viagem parecida com a minha. Ele também enfrentava várias das angústias que me afligem. Ainda há muito para refletir.
Agora estou aproveitando bastante essa costa caribenha mexicana de águas claríssimas, praias com areia muito branca com seus grãos densos entremeados por minúsculas conchinhas, protegidas por um extenso escudo de corais, numa região do planeta singularmente abençoada. Completam o pacote de excentricidades: os numerosos cenotes dos subterrâneos, as ruínas maias e a população endêmica de iguanas. 
Na noite estrelada em que cheguei tive uma companhia muito agradável de uma nova-iorquina que estava hospedada no mesmo albergue que o meu, adiante da praia. Uma artista plástica, uma boa e efêmera amizade, quebrando os estereótipos dos "gringos" toscos! Comemos, tomamos umas "negras modelos" e conversamos bastante. Terminamos a noite na areia, contemplando aquele céu e aquele mar. Retornou para os Estados Unidos na madrugada seguinte. Sobrou-me um bilhete de despedida no assoalho da cabana!
Ontem percorri cerca de 30 km de bicicleta, adentrando a Reserva Nacional ambiental de Sian Kaan (ou algo próximo disso), para visitar praias, um lago e um cenote (onde tomei um susto com umas iguanas). Voltei todo o percurso sonhando com uma refeição que faria no Pueblo. 
Hoje, já fui até ruínas impressionantes do Parque Arqueológico de Tulum, pedalando por uma via tranquila por cerca de cinco quilômetros, no início da manhã. Pirâmides de médio porte dos maias dispõem-se  sobre falésias na beira do mar do Caribe e suas areias brancas. Aproveitei para tomar um banho bem refrescante numa praia bela abaixo das ruínas, junto aos rochedos, quando o calor apertou. O mar é bem calmo por ali, graças ao escudo de corais situado a algumas dezenas de metros da praia. A temperatura da água estava agradável. A vista de edifícios da antiga cidade desde o oceano ganha contornos peculiares, na sua curiosa simbiose com as formas da natureza.
Reparto com vocês uma dúvida cruel que enfrento, no que diz respeito à continuação de minha viagem: ou ir para Tikal, conhecida cidade Maia, numa selva da Guatemala e ver mais ruínas impressionantes; ou chegar ao Pacífico para conhecer um parque ecológico no litoral, que me foi muito bem recomendado? Como o planejamento do futuro da viagem, até o voo de retorno, da Cidade do México, está apertado, não poderei visitar a ambos os locais. Decidirei provavelmente daqui a poucos minutos, quando for, com a bicicleta alugada, comprar uma passagem, na rodoviária de Tulum. 
Pretendo relaxar depois, banhando-me em outros dois Cenotes próximos dali, que ainda não tive oportunidade de conhecer. Não estranhem se eu emagrecer ainda mais com tantos exercícios. Acho que já fiz a digestão aqui, escrevendo. Posso continuar a jornada.
Abraços, beijos!
Otávio






INFORME DE VIAGEM 3 – JAN/FEV 2002 


Primeiramente, gostaria que soubessem que tenho lido suas mensagens e tenho me divertido com elas (a sobre uma tal “Consuelo” também), embora não tenha tido tempo para respondê-las como gostaria. 
Minha decisão depois do suspense do segundo informe foi ir direto para os Chiapas, para poder chegar ao Pacífico. Lembrei dos conselhos de mestre Nenê com respeitável bagagem de tantas viagens e vou seguindo no México, pois há muito que conhecer por aqui mesmo.
Fui a Palenque, onde as ruínas pré-colombianas encontram-se em meio a uma densa floresta tropical cheia de morros, formando um raro espetáculo de natureza e historia. A umidade da região impressiona! Bem como as frequentes pancadas de chuva!

 

Palenque/MEX. Foto: Otávio D. S. Ferreira. 

 

Segui para esta cidade formidável onde me encontro agora na terceira noite: São Cristobal de las Casas. Cheia de ruelas charmosas, igrejas, colinas e até montanhas, sua história seria manchada por corrupção, fraudes eleitorais, exploração e pintada por importantes revoltas populares. Estadia e alimentação parecem muito baratas e há ótima infra-estrutura para turismo.
Saíra em poucas horas de uma altitude próxima do nível do mar para os atuais 2300m. O clima mudou. Enfrentei chuvas torrenciais, sempre breves, nada que me atrapalhasse os planos. Mas o frio chegou. Na rua, vi por momentos as gotículas flutuarem à luz dos faróis dos automóveis, antevendo a geada que deve voltar hoje. Não parece longe de nevar. 
Mas não se preocupem, porque apesar de ter despachado parte de minhas roupas para a Cidade do México, ainda mantive comigo algo para me agasalhar. Além disso, comprei numa feira uma malha linda e muito barata feita por índios lacandones de alguma lã distinta. 
Ainda não encontrei a tal Comissão Internacional dos Direitos Humanos nos Chiapas, contato da Júlia, minha prima, que tenho buscado, sem sucesso. 
Tenho conhecido coisas interessantes sobre a vida política daqui e especialmente sobre os zapatistas. Vi ontem um filme no cinema sobre a história recente do movimento zapatista e estou terminando um ótimo livro, romance, em espanhol, que também trata do tema - "Lo que está en mi Corazon", da chilena Marcela Serrano. Posso dizer que ainda sei pouco, mas o movimento parece apaixonante. Há muito sigilo e receio dos membros a assumir suas posições no movimento. Usam passa-montanhas para esconder as identidades, o que seria realmente necessário, pois existe o temor da violência por parte dos agentes do governo e, sobretudo, por parte de paramilitares que perseguem a esquerda. Por seu lado, desde a tomada do governo regional em 1994, quando apareceram para o mundo, não consta outro episódio de uso da força por parte dos zapatistas. Surgiram subitamente, despertaram a atenção de todos para sua causa e recuaram sorrateiramente para as florestas, vilarejos e demais zonas rurais. Mas não abandonaram o uso da palavra e criaram estruturas para difundir suas crenças pela dignidade dos povos nativos e valorização e preservação de suas culturas. 
É outro tema que talvez mereça um texto especial futuro, após leituras, mais informações e reflexões. 
Visitarei amanhã duas vilas de índios de diferentes etnias ligadas ao movimento zapatista. Não sei quanto a festas de carnaval, apenas ouvi que haverá numa delas, amanhã, procissões relacionadas à data católica. Vamos ver... o que será que será?
Abraços, beijos!
Otávio 







INFORME DE VIAGEM 4 – JAN/FEV 2002 

Em pleno carnaval brasileiro creio que ninguém por aí deva ter acessado a web nesses dias. Só agora voltei para a civilização tecnológica com acesso à internet. Estive distante nesses últimos dias. 
Fui a povoados perto de San Cristobal e o que me agradou mais foi San Juan Chamula. 
Informaram-me que sacar uma foto ali poderia ocasionar brigas, pois os índios dali acreditariam que tais registros poderiam lhes quitar a alma. Talvez o motivo seja menos esotérico e mais político, pelo compreensível medo dos zapatistas da vigilância por parte dos agentes do Estado. Respeitei a orientação e fui cauteloso nos poucos momentos que usei minha máquina. Registrei apenas paisagens e edifícios. 
As tensões no campo político religioso eram patentes. O bispo da região foi proibido de ministrar uma missa do Carnaval. Sacerdotes indígenas da região tomaram seu lugar e celebraram as festividades com rituais peculiares na igreja católica. Deram as costas para as orientações e hierarquias do Vaticano. A repercussão do conflito foi grande na mídia, mas os motivos não ficaram evidentes pra mim.
Vivenciei uma experiência ímpar nesse contexto, presenciando rituais sacros pré-carnavalescos no templo católico. Fazia um dia cinzento muito frio. A chuva flutuava e parecia brotar da terra. Molhava mesmo quem usasse o maior dos guarda-chuvas. Havia apenas os nativos por ali, alguns chegavam em procissões de cantos diferentes da vila e dos arredores. Forraram o chão da igreja com uma espécie de capim. Sacaram dali os bancos e quaisquer móveis. Delxaram o espaço todo livre para circulação. Espalharam velas e mais velas diante dos altares laterais. Recitavam mantras em idiomas nativos, numa harmonia contínua, lembrando práticas de meditação dos orientais. O odor do incenso impregnava o ambiente. A atmosfera era singular e serena. As pessoas percorriam lentamente os altares, a vociferar os mantras. Alguns se ajoelhavam e se detinham por instantes a orar. Tudo ali constituía um sincretismo cultural fascinante! 
Deixei os Chiapas em direção ao Pacífico, com direito a uma breve parada especial no percurso: um passeio de barco através do Canyon del Sumidero. Constitui um dos poucos locais para onde nenhum mexicano lúcido se atreveria colocar o recorrente diminutivo “ito”. Paredes colossais de até mais de mil metros de altura erguem-se nas beiras de um rio caudaloso por um longo trecho sinuoso que desemboca em um imenso lago. O turista percorre o circuito em velozes lanchas adaptadas para até uma dezena de pessoas. Vislumbrei a riqueza deslumbrante da fauna e flora, com direito a paradas estratégicas no trajeto, onde avistei crocodilos, micos-aranha e garças e curiosas formações rochosas que se desenhavam nos penhascos. Vi paisagens de perder o fôlego! 
Desde esse dia, o Sol voltou a despontar forte e não estancou mais seu brilho e calor.
De novo na estrada, cheguei a Puerto Escondido, no Pacífico, após 11hs de viagem. Mas ainda não era ali meu destino. Tomei um café simples e embarquei logo noutro ônibus, depois num taxi coletivo, que me deixou num píer pra pegar um barco. Cruzei um percurso de magues até outro píer onde um caminhão adaptado aguardava. O percurso derradeiro era de terra batida, conduzindo-me a um local mágico bem além daquele cujo nome composto terminava com “escondido”. Cheguei a Chacagua!
O Parque Nacional Chacagua conforma um paraíso de praias, rios, lagunas. Milhares de tartarugas, iguanas, crocodilos e muitas espécies de aves habitam a região. O comércio é rústico, a maioria das pessoas dorme em redes, não há asfalto, até mesmo os banheiros são rudimentares. A vila ao redor da praia é tranquila, as construções são de madeira com telhado de sapê. Nada parecia ter luxo ou sofisticação. A população nativa é pequena e muito simpática. 
As ondas daquela praia não são as maiores em altura, mas seguramente as mais compridas que já vi. Pessoas vêm de longe para surfá-las. Parecem paredes que caminham por dezenas e talvez centenas de metros sem se desconfigurar. Era fácil de chegar ao local onde elas quebravam. Bastava nadar por um canal no canto da praia, onde até crianças pequenas se arriscavam a nadar.
Para além de um farol e de um braço de rio, pode-se chegar de barco até outra praia linda, bem distinta e menos amigável, praticamente sem edificações, onde ondas enormes arrebentam com potência estrondosa bem na beira da areia seca, num espetáculo violento e raro. Não vi ninguém se aventurar a ingressar naquele mar nervoso. No meio da praia avista-se uma curiosa formação rochosa esculpida pelos ventos que avançava um pouco para o mar, com um buraco que lembra a Pedra Furada de Jericoacoara. No passeio pode-se aproximar de um velho farol e conhecer as instalações de um projeto de biólogos que auxilia a reprodução e preservação de imensos crocodilos que habitam as lagunas do parque. Vi bem de perto dois enormes exemplares desses repteis pré-históricos.
Fiz amizade com três simpáticos americanos de Seatle que vieram de caminhonete passar o mês surfando nestes mares daqui. Pagaram uma boa hospedagem deixando o automóvel com o dono de um dos bares da praia. 
Outra amizade digna de nota foi com um costarriquenho que vive há tempos com sua família em um trailler viajando meio sem destino e sem pressa pelo continente e que me presenteou com um saboroso desayuno com picantes “huevos rancheros”. O rapaz tinha estacionado em Chacahua há vários dias e não tinha planos para ir embora. Era divertido e tinha boas histórias pra contar de suas peripécias pelo continente!
Colaborei, bem sem querer, no salvamento da vida de alguns filhotes de tartarugas marinhas. Os ovos da ninhada se romperam antes do momento previsto. Encontrei ao acaso uma filhote de tartaruga que rastejava na praia e resolvi tirar uma fotografia. Ela recém escapara de um cercadinho erguido para preservar o local da desova. Meu movimento alertou um dos responsáveis, que não tinham se dado conta ainda do fenômeno. Sob orientação do biólogo, ajudei a recolher os filhotes que se esforçavam para sair da areia sob aquele sol escaldante. Guardamos todas elas numa grande caixa térmica. Esperamos até o resto do dia, em sua casa, com sua família, papeando. De noite, levamos as tartaruguinhas numa espécie de triciclo motorizado com três pneus gordos até um canto mais isolado e escuro da praia, para libertá-las onde fosse mais seguro o ingresso no oceano. As chances de sobrevivência delas aumentariam consideravelmente nessas condições, pois de dia, o calor da areia as fragiliza bastante e a luz solar torna-as vulneráveis a uma quantidade maior de predadores. Esse momento inicial até o cruzamento da arrebentação parece crucial para a sobrevivência da espécie. Ao final, restou emocionante o contato com esse projeto de preservação das tartarugas e foi um prazer conhecer aquelas pessoas.
Graças ao El Niño as águas do Pacífico estão a uma temperatura agradável mesmo no inverno. Passei uns três dias de muito sossego e curtição banhando-me diariamente por horas a fio. Só não me aventurei pelos lados do rio, temendo a aparição de algum daqueles grandes répteis.
Presenciei os primeiros raios das duas últimas alvoradas despontarem no horizonte do mar, deitado numa rede de descanso onde pernoitei, na praia, sobre a areia. Paguei um valor simbólico ao dono de uma barraca da praia para dormir em uma rede de descanso estendida nas varandas do estabelecimento, pelo uso de um de seus banheiros e pela segurança de minha bagagem. As madrugadas exigiram um agasalho, pois esfriou um pouco. No fim das contas, valeu!

Chacahua/MEX. Foto: Otávio D. S. Ferreira.

 

Vim no inicio da tarde de hoje para o centro de Puerto Escondido, para pegar o ônibus que sairá às 22hs com destino à cidade de Oaxaca. Espero chegar lá ao nascer do Sol. 
Vi por aqui, há alguns minutos, carros alegóricos desfilando. E lembrei que é carnaval! Mas as músicas daqui me soaram estranhas e não senti uma animação contagiante no ambiente.
Lá vou eu, que o motorista do ônibus não vai me esperar.
!Hasta  luego!
Otávio


INFORME DE VIAGEM 5 – JAN/FEV 2002 


Minha viagem a Oaxaca foi curta e agradável. 
Na cidade, a principal atração foi o complexo em torno da Igreja Santo Domingos. Em estilo barroco, é o local onde vi mais ouro em toda minha vida. Seu rico museu tem como destaque o tesouro da tumba sete de Montalbán. 
O sítio arqueológico de Montalban foi meu destino do dia seguinte de estadia em Oaxaca. Construída há cerca de 2600 anos, a cidade foi a capital da civilização Zapoteca. Situa-se no cume de uma montanha alta, na beirada de um vale gigante. Abriga ruínas bem conservadas de pirâmides e de diversos edifícios, com desenhos arquitetônicos distintos daqueles maias que vira até então. E um observatório astronômico datado daqueles tempos!
A cidade é simpática e agitada culturalmente. No Zócalo de de Oaxaca assisti a três bons shows, apenas em duas noites. 
Cheguei agora aqui na Cidade do México a tempo de desfrutar de baladas  num fim de semana na maior cidade do mundo. Imaginem São Paulo sem os arredores, dobrar sua população e talvez seu tamanho, quem sabe? Seria o tamanho daqui, também sem os arredores. 
As belezas são infindáveis! Preciosos museus, praças, parques, murais, ruínas e muitos bairros distintos, dos mais tranqüilos aos mais agitados. Construções coloniais antigas dividem espaço com zonas arqueológicas astecas. Há encantos nos locais mais inesperados!
Fui á feira do bairro de San Angel, uma área nobre, arborizada, cheia de jardins e  casas antigas, habitadas por numerosos artistas (que parecem talentosos), que aos sábados expõem muitos trabalhos para venda em praças e mais praças contínuas ao ar livre. Na ocasião encontram amigos, colegas e clientes, bebem, fumam, beliscam. O clima todo resulta super agradável! É tão grande o espaço. Todos os gostos e bolsos podem ser contemplados. 
Vi mais murais maravilhosos espalhados pela cidade, da autoria dos maiores muralistas quiçá do mundo, destacando-se Rivera, Orozco, Tamayo e Siqueros. 
Visitei o Museu de Antropologia, de dimensões louvreanas, que abriga milhares de pinturas, esculturas e artigos fabulosos de diversas civilizações que habitaram e ainda habitam o México.
Hoje fui a Teothiuacan, perto da cidade, onde repousam as famosas pirâmides da Lua e do Sol, esta cuja base mede o mesmo do que a Grande Pirâmide egípcia. O local é  “incrível”!; ou melhor, “increíble”!, tal como se fala no espanhol e tal como, a meu ver, exprime-se melhor o significado que o vocábulo representa. 
As noites de sexta e sábado foram divertidas. Saí com mexicanos, a maioria nascida nesta capital e estudantes da UNAM. Todos foram muito simpáticos comigo. Conheci-os apresentado por uma amiga de uma amiga do Brasil (Valeu, novamente, Júlia. A Citlalli é muito legal!!). 
Preferi a primeira noite, quando fomos a uma animada festa muito longe de onde estou hospedado, organizada em uma espécie de galpão num bairro residencial do extremo sul. As pessoas eram animadas e simpáticas, o repertório musical era eclético e dançante, cervejas geladas...
Na segunda noite acabei me perdendo para achar a casa que sediaria a festa. Poucas cidades do mundo possuem duas ruas com o mesmo nome numa distância relativamente pequena uma da outra. Acontece. Aconteceu! Cheguei à rua indicada e no número certo e não havia nada nem ninguém por lá. Custou-me descobrir que o endereço estava certo, mas que existia outra rua de mesmo nome. Quando achei finalmente o local já era bem mais tarde, estava cansado e o humor já não era o melhor.
Estou hospedado em um albergue com bastante conforto, fazendo amizades com viajantes de todo mundo, sobretudo argentinos. Segue toda a crise de sucessão de presidentes por lá e o clima de grande desilusão. Dois desses amigos perderam seus empregos durante essas férias. O aviso veio por telefone, a distância. Conversamos bastante e algumas vezes saímos juntos em grupo nas andanças turísticas.
Vale constar também o fato singular de termos conhecido o Silvéster Stallone, em sua versão hilária mexicana. Um ator, figura rara e engraçada, com o tipo físico e todos os trejeitos de Rambo, fazia números cômicos numa das vias do imenso parque Chapultepec. Ao final, deixava-se fotografar junto aos turistas.
“Abrazos” a todos!
Otávio



INFORME DE VIAGEM 6 – EL POSTRER – JAN/FEV 2002  


Não ia durar para sempre! Após cinco semanas fora, já bate saudade das pessoas queridas, da minha própria cama, do meu banheiro, da comidinha caseira...  por melhor que esteja a viagem (e estava muito boa, posso lhes assegurar!).
Aproveitei bem os últimos dias no México. Conheci espaços fascinantes como a Casa Azul de Frida Kahlo e Diego Rivera, o curioso edifício ateliê dos dois artistas, e a casa de Leon Trotsky. Os três permitem uma imersão histórica incrível na vida recente política e cultural do país - e do mundo, no caso do Russo - e na biografia desses personagens. 
Teve também o museu Dolores Olmedo, reunindo grande acervo de Frida Kahlo e de Diego  Rivera, sem falar em muitas outras obras e objetos interessantes de autores diversos. 
Visitei também o antigo Colégio San Idelfonso, com seus murais, exposições de arqueologia e de fotos do México e da Índia, incluindo trabalhos de nosso conterrâneo Sebastião Salgado.  
Um dia, viajei para Tepotzotlan, nos arredores do Distrito Federal Mexicano, para conhecer a imensa igreja e a antiga escola de jesuítas. Um tesouro barroco e de um acervo riquíssimo! O museu conta toda história colonial mexicana. Foi bem difícil de chegar lá, pois há um lugar quase homônimo – cujo nome apresenta apenas uma letra diferente – do outro lado da gigante Cidade do México, o que causou grande confusão para chegar. No caminho, pela malha da extensa rede de metrôs e trens do Distrito Federal, recebi várias dicas contraditórias de mexicanos solícitos que tentaram me ajudar, mas que acabariam atrapalhando. Superando contratempos, a jornada compensou demais.
No último dia viajei para Taxco, um pouco mais distante, uma cidade pequena charmosa, incrustada nas encostas de montanhas da Sierra Madre Ocidental. Com suas ladeiras íngremes e estreitas de pedra, edifícios do século XVII e XVIII, clima frio, perfez um passeio magistral de encerramento da viagem.  
Teve ainda a cervejada na noite derradeira, no bar estilo pub anexo ao albergue da juventude da Zona Rosa. Mais parecia uma recepção diplomática da Organização das Nações Unidas, com estrangeiros de tantas origens distintas confraternizando, mas que não foi nada enfadonha. Depois de algumas cervejas, até arranhei um Beatles no violão e voz, no microfone do palco. E olha que as pessoas gostaram!
Pois bem, escrevo-lhes já da "Pátria Amada Idolatrada", uma dentre tantas Frátrias queridas. Mesmo que não tenham me proporcionado laços mais profundos de cidadania e pertencimento, México e Cuba originaram-se no seio de um ente maior, uma madre comum, concebida sem recortes ou limites fronteiriços - e um certo vizinho monstruoso - fomentadores de tanta diferença e desencontro. Percorreram caminhos próprios de evolução histórico-política, sincretismos culturais, vivenciaram guerras e revoluções. Conduziram países próximos, com tantos aspectos em comum, a direções tão distantes entre si. Mantiveram-se, de certa forma, enquanto irmãs pobres, com graus distintos de justiça social e de direitos efetivos para suas populações. Em muitos aspectos podem nos ensinar e inspirar! 
Abrazos, gracias por tu paciencia y hasta luego!
  
Otávio









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Bolívia e Peru – 2004


INFORME DE VIAGEM 1 – 08.07.2004


Depois de dois anos e meio da última viagem (para Cuba e México) e daquele Postrer Informe de Viage, estou novamente sozinho na estrada, agora nas montanhas andinas, na cidade de Huaraz, na Cordillera Blanca, Peru, a 3.100 metros de altitude. 
Cheguei, na segunda-feira de manhã, em Lima, onde passei os primeiros dias. 
Caminhei incansavelmente pela capital peruana. Gostei bastante da Zona Costeira de Barranco e Miraflores, bairros mais ricos na costa do Pacífico. Há grandes barrancos próximos ao Pacífico, de onde se vê avenidas costeiras lá embaixo e pequenas faixas de areia na beira-mar. O tempo estava bastante frio e os dias, nublados. Mal dava para avistar o horizonte no oceano. Ainda assim, haviam surfistas no mar; e não eram poucos.
O Museu Nacional de Antropologia e Arqueologia deu-me uma base para o que devo encontrar pela frente nesse mês de viagem, em parte dos passeios. Muitas culturas diferentes habitaram esse país antes de os espanhóis chegarem. Cada qual trouxe importantes contribuições e conhecimentos nas mais diversas áreas. A civilização Inca é a mais conhecida e a que mais se expandiu, sendo resultado de um sincretismo de outras culturas anteriores e contemporâneas a eles.
Das comidas que provei, gostei do ceviche, prato típico que constitui peixe fresco cru temperado com limão e ingredientes picantes, acompanhado de saborosos vegetais cozidos. Por sinal, quase comi uma pimenta brava, achando que era um tomate. Coloquei o pedaço inteiro na boca e comecei a cuspir no prato e a tentar limpar meus lábios, que ficaram fumegantes. O garçom flagrou a cena e deu risada. Disse que aquilo era só para enfeitar o prato.
Viajei de noite para a Cordilheira Branca. Huaraz é a cidade com maior estrutura turística dessa região fantástica que reúne mais de 600 picos nevados, sendo que 35 deles ultrapassam os 6.000 m de altitude. Trata-se da região mais elevada do planeta próxima ao Equador. O principal monte, que dá nome ao parque nacional, é o Huascarán, o terceiro mais alto dos Andes. 

 

Mapa da Cordillera Blanca/PER. Fonte: Upload do perfil do Research Gate do geógrafo Anderson Ribeiro de Figueiredo.

 

Fui no meu primeiro dia aqui até às ruínas de Wilcahuain, dos anos mil depois de Cristo, edificadas com tecnologia capaz de resistir a potentes terremotos. Mesmo os abalos sísmicos dos anos setenta, que chegaram a quase oito pontos na escala Richter e mataram cerca de 70.000 pessoas da região, não derrubaram o templo, a pequena fortaleza, seus muros e suas tumbas, onde jaziam múmias. Não recomendo esse passeio pelas ruínas, pois são pequenas ruínas e muito rudimentares em relação às demais. O mais interessante foi o deslocamento e o que estava por vir. Fui num veículo "lotação" entupido de gente, levando, no teto dela, uma bicicleta que a família Dias Mendoza, proprietária da casa onde estou hospedado, me emprestou. Desci a montanha pedalando depois os 8 km da volta, desde mais de 3500 ms de altitude. Empolgado, segui adiante mais 7 km até uns banhos termais quentes revigorastes. Banhei-me ao ar livre, sob o sol intenso, numa grande piscina artificial com estilo meio rústico, sob frondosas árvores. 
Mas o tempo virou subitamente. No retorno para Huaraz fui surpreendido por um temporal de água gelada. O percurso tinha um pouco de subida e senti por uma leve falta de ar, que atribuo à aclimatação de meu organismo à altitude. Encharcado, tomei um agradável banho quente, vitamina de frutas, chá de coca e limonada, tudo oferecido pela generosidade dos meus anfitriões para que estivesse inteiro no dia seguinte. 
O passeio seguinte, logo pela manhã, foi em direção à entrada do Parque Nacional de Huascaran. O veículo beirou o Rio Santa, que separa a Cordillera Negra da Cordillera Blanca, ingressando em vales lindos, amplos, forrados de pastos verdes, cercados de montes altíssimos, dos quais volta e meia vi descerem cascatas das geleiras, para alimentar lagos e rios. Até o imenso Amazonas deve muito de seu tamanho à parte oriental destes glaciais nevados. 
Foi um desafio atingir o topo do monte Pastoruri, a 5250 ms de altitude. Um ônibus pequeno conduziu-me junto a um grupo de turistas por um tour de um dia inteiro. Paramos em atrações interessantes no caminho, onde íamos nos adaptando melhor ao aumento progressivo de altitude, antes da chegada á base final para atingirmos o cume do tal monte. Finalmente paramos a 4800 ms e tivemos de enfrentar uma subida de cerca de 3kms. Na metade desse caminho nos deparamos com uma imponente geleira, para a qual as minhas botas impermeáveis mostraram boa utilidade. O ar não vinha e tíve de parar de poucos em poucos metros para retomar o ar, respirando profundamente. O coração parecia muito acelerado e em alguns momentos eu tive a curiosa impressão de ouvi-lo: uma sensação doida! Mas devagar e sempre atingi o cume.
Até dois dias atrás eu nunca estivera sequer a 3000 ms de altitude. Antes desse passeio mastigara umas folhas de coca, tomara uma pílula indicada para males de altitude e até o mate de coca. A vista toda ao redor era fabulosa e o fato de ter superado a dificuldade da subida e caminhar sobre toda aquela brancura da geleira tornava mais especial o momento.  
Avalio que reagi bem à altitude, melhor do que a maioria dos demais, ali. Muitos turistas não agüentaram a subida e houve quem passasse mal. Senti um pouco de dor de cabeça depois, quando já estávamos por volta dos 4000ms, retornando, mas foi algo fraco e plenamente suportável. 
Há pouco, em um bar próximo daqui, vi o jogo do Brasil na Copa América realizada aqui neste país com uns peruanos simpáticos que fizeram comigo o passeio ao Pastoruri. Os peruanos estão bastante empolgados com a competição, mas decepcionados com os brasileiros, por não termos trazido as principais estrelas de nosso futebol penta campeão do mundo, meio que a menosprezar o torneio.
Amanhã sairei a uma grande aventura de quatro dias, dormindo três noites em barraca, no vale ao redor dos maiores picos do Peru, mas será assunto para outro Informe.
Beijos, abraços!
Otávio


INFORME DE VIAGEM 2 – 12.07.2004


Escrevo-lhes direto de Nazca, perto do litoral do Pacífico, a umas 6hs de Lima, caminho que percorri por um trajeto seco composto por desertos amplos, uns mais escuros, outros mais claros repletos de muitas dunas enormes e algumas ilhas de terrenos irrigados e várias praias vazias na beira do Oceano Pacífico. Fica, no total, há umas 13h de Huaraz. Fiz todo este percurso nesta noite e nesta manhã. 
Nazca é famosa pelas centenas de misteriosos desenhos gigantescos confeccionados sobre um imenso deserto de pedras e areia entre 300 a.C. e 700 d.C., que só podem ser bem visualizados de muito alto, a centenas ou milhares de pés de altura. Só que a região não conta com nenhuma formação geológica elevada próxima. Foram feitos pela civilização que aqui vivia para seus Deuses. Predominam figuras de animais, mas há outros disformes. Um desenho curioso foi chamado de “Astronauta” pois parece um hominídeo dentro de uma roupa espacial. Não faltam as teorias de que esses povos tiveram contatos com extra-terrestres. Mas o mistério em torno da realização dessas obras permanece. Fiz, há pouco, um recorrido emocionante em um pequeno avião por cima desse deserto. 
Vale constar ainda, que nessa mesma região, os incas construíram engenhosas formas de irrigação em canais subterrâneos que desafia até hoje os especialistas. 
Antes de chegar aqui, ainda na Cordillera Blanca, tive problemas com a agência de turismo e não consegui realizar o passeio "trecking" a pé sobre o qual tinha falado no último informe. Alegaram que não lograram fechar um grupo e queriam adiar o passeio até juntarem um número de pessoas para o recorrido se tornar rentável. Só que eu tenho uma programação e soube que há greve geral nacional prevista para dia 14 que deve parar as estradas. Ainda assim, quiseram ficar com o dinheiro do adiantamento. Recorri à agência de mediação da polícia de turismo. Argumentei sobre direito do consumidor, teoria dos contratos e consegui sair até um ressarcimento financeiro. Perdi a oportunidade de fazer um determinado passeio que prometia bastante, mas restaram-me outros interessantes. 
Visitei uma sauna natural, situada em uma mini-caverna de uma montanha onde fora outrora um vulcão. O local era escuro e havia um forte odor de enxofre. Embora a estrutura construída em torno da sauna seja bem cafona, a experiência foi revigorante. 
Belo passeio foi o que fiz até as ruínas de Chavin de Huantar, datada de mais de 3.000 anos. Alguns trechos me fizeram lembrar ruínas maias da Península de Yucatán e as "cabezas clavas" me recordaram aquelas de Teotihuacan, no México. O maior destaque foi percorrer o circuito de túneis subterrâneos construídos como um labirinto, para antigos rituais de iniciação de jovens. Sob efeito de entorpecentes, os iniciados eram orientados pelo sacerdote a caminhar às cegas por túneis escuros em busca do salão com a grande pedra sagrada. A construção permanece bem sólida e com um sistema de ventilação funcionando eficientemente.
Conheci também na Cordillera Blanca outras atrações impressionantes, como a grande Laguna de Querococha e o túnel que liga a Cordillera Blanca oriental à ocidental, a 4500 metros de altitude, compondo um cenário sinistro que remeteu à Terra Média, de Tolkien. 
O maior destaque na viagem para Huaraz foi a visita até a laguna de Llanganuco, a 3.800 metros de altitude. Incrustada num estreito vale, sob gigantes paredões formados das encostas de duas das maiores montanhas dos Andes, o Huandoy e o Huascarán, o vale é florido, com vistas de perder o fôlego. 
Na volta de lá, passamos pelo “campo santo” onde está literalmente enterrada a cidade de Yungay, na qual 25.000 pessoas sucumbiram devido a uma grande avalanche do imponente Huascaran, ocorrida em 1977, após um terremoto. 
Deixei Huaraz feliz, emocionado pela despedida calorosa da família Diaz Mendoza que me acolheu tão bem por quase uma semana.
Chegarei a Arequipa amanhã, onde a seleção brasileira está. A propósito, o Peru segue respirando a Copa América. É impressionante como o evento é abordado em todos os locais possíveis, em toda a publicidade e na imprensa. Quando planejei a viagem, nem sequer tinha me dado conta do evento.
Beijos e Abraços!
Otávio

Llanganuco/ PER. Foto: Otávio D. S. Ferreira.



INFORME DE VIAGEM 3 – 17.07.2004


Desde Nazca, durante dois dias uma terrível dor de barriga passou a me afligir. Em pleno jogo do Brasil e Paraguai, no estádio, fiquei tonto e fui acometido por uma crise de vômitos. Por volta dos 15 minutos da segunda etapa do jogo, saí das arquibancadas a procurar a unidade de saúde da organização da Copa América. Estavam bastante ociosas e fui bem atendido por uma grande equipe. Nem vi o segundo gol paraguaio, responsável por nossa derrota, então não me acusem de pé-frio. 
Melhorei e dia seguinte fiz exames num centro médico. Constatei que se tratava de intoxicação alimentar. Fiquei de molho todo um dia aqui em Arequipa, recebendo uma importante ajuda de uma Senhora idosa muito amável, mãe do dono da hospedagem, que me preparou chás adotados na medicina tradicional inca e até uma espécie de marmita especial para eu levar em um passeio. 
Já me sinto cem por cento, pronto para outra. 
Esta região vulcânica tem muitos atrativos na cidade e nos arredores. O centro dispõe de locais agradáveis para se caminhar, comer e visitar. De quase toda a cidade é possível admirar a majestosa beleza dos vulcões Tcachani, Pichu-Pichu e o Misty, o mais imponente, com seu formato cônico e altura de mais de seis mil metros. 
Fui a um museu muito interessante em um antigo mosteiro de freiras que vem funcionando desde o século XVI. Parece uma cidade à parte, com suas belas ruas internas floridas e numerosas casas antigas coloridas, todas de portas abertas ao visitante. 
Outro museu que visitei trazia registros arqueológicos de múmias de crianças incas sacrificadas para seus deuses, encontradas no topo de vulcões da região, a mais de 6000ms de altitude. Há uma múmia conhecida exposta chamada Juanita, conservada em perfeito estado, numa temperatura muito baixa, exposta atrás de vidros bem fortes. Uma curiosidade é que os incas não retiravam as vísceras de suas múmias, como muitas culturas anteriores faziam. 
Recomposto da crise de dor de barriga, viajei cerca de 4hs em direção ao alto da cordilheira, para conhecer o  Canyon del Colca. O trajeto inteiro foi fascinante, cheio de cores e formas diferentes, montanhas enormes, vales amplos, animais selvagens e algumas paredes de pedra branca moldadas pelo vento e pela água durante os séculos. No início, atravessamos um deserto de pedras sem qualquer vegetação. Dali a pouco, foram aparecendo cactos e mais cactos. Depois de uma curva, surgiu um grande monte nevado, provavelmente outro vulcão. Dali em frente, estendeu-se de nós uma vasta planície com pastos. De repente vicunhas apareceram correndo em bando á nossa direita. Mais adiante, vieram alpacas, depois carneiros. E seguimos subindo, subindo, aproximando-se gradativamente da neve outrora distante. À direita e um pouco abaixo, despontou a cratera de um antigo vulcão. O solo todo tornou-se bem mais escuro, com rochas magnéticas em formatos diversos. Vimos alguns lagos formados pelo degelo. Ao redor dele, llamas e alpacas pastavam.  
Paramos brevemente aos 5,000ms de altitude, em meio a neve e rochas bem escuras. Pudemos sair do veículo por uns instantes para esticar os ossos, tirar fotos e admirar a paisagem. Olhei para o lado e identifiquei espécies de animais pequenos e velozes que pareciam coelhos com rabo de esquilo, meio entocados nuns buracos no rochedo. O motorista explicou que eram umas viscachas. O sol, fiel companheiro naquele percurso, ainda reluzia sobre aquele branco, por vezes ofuscando nossas vistas. 
Daí em diante foi só descida em zigue-zague até Chivay, a 3500 ms de altitude, onde dormi após uma refeição e um banho relaxante numa piscina termal ao ar livre sob muitas estrelas. Sim, porque de noite gelada ainda tivemos oportunidade de desfrutar banhos em piscinas termais, cujas temperatura chegavam a 40oC. O sítio oferecia piscinas em salões cobertos, outras sob as estrelas. Era um complexo que imitava banhos romanos. O céu estava estrelado. A sensação foi de relaxamento e fascínio! 
Dia seguinte, acordei bem disposto às 5hs. Tomei rapidamente o desayuno e segui, com alguma pressa, junto ao grupo para chegarmos cedo ao ponto mais mágico e cobiçado do vale, os mirantes do Canyon del Colca. Duas vezes mais profundo que o Grand Canyon, com nada mais e nada menos que 3.400ms, é o segundo mais alto do mundo, perdendo apenas para o Cotahuasi, ali perto cuja altura é apenas cem metros maior, mas que parece não dispor de similar infraestrutura para turismo. Deram certos os planos! Tive sorte de chegar em uma manhã ensolarada, com o céu aberto e de conseguir ver numerosos gigantes condores andinos de cerca de ampla envergadura deslizando nas correntes quentes do início da manhã. O cenário todo revelou-se magnífico, de perder o fôlego. 
Nesta mesma tarde retornaria para cá. Agora vejo jogos das quartas de final da Copa América, aguardando minha condução para esta noite. Próxima parada: Cuzco.
Beijos, Abraços!
Otávio    



 




INFORME DE VIAGEM 4 – 22.07.2004


Escrevo-lhes desde Cuzco, uma das cidades mais charmosas do mundo [ao menos da minúscula porção dele que conheci]. Foi a capital do Império Inca, cujo apogeu atingiu desde a fronteira sul da Colômbia até o meio da Argentina e do Chile, constituindo provavelmente o mais vasto da América pré-colombiana. Mesmo nas mãos dos colonizadores ibéricos, o Peru (atualmente o 3º maior país da América do Sul), manteve importância, sendo escolhido para sediar a capital política e administrativa das terras do sul.
Vivenciei grande decepção ao chegar aqui e descobrir recente mudança legal, editada há dois meses, que restringiu abruptamente o ingresso de turistas na famosa Trilha Inca até Machu Picchu, que eu pretendia percorrer. Tudo mudou para preservar a natureza e os tesouros arqueológicos diante do volume excessivo de turistas que frequentava os sítios! Formou-se imediatamente imensa fila e só havia vaga para o recorrido na segunda quinzena de agosto. Já há reservas até para 2006. Tal norma restritiva fez os preços dispararem para patamares bem elevados (custa hoje cerca de 300 dólares). Frustrado pela impossibilitado de fazer a trilha a pé, resolvi conhecer a famosa cidade inca através de ônibus e trem. O ponto positivo é que me sobraram dias de viagem pela frente, até meu voo derradeiro em La Paz, e poderei redesenhar os planos incluindo novos sítios, provavelmente no altiplano boliviano.
Fui primeiro de Cuzco até Olantaytambo, no meio do caminho para lá. É um vilarejo bonitinho, com ruas de terra e construções rústicas, no sopé de ruínas incas impressionantes, edificadas em patamares largos nas encostas quase verticais de uma montanha, como se fosse uma escadaria para algum gigante de outrora se elevar aos céus 
De noite, num pequeno e agradável restaurante, vi, num pequeno aparelho de TV, trechos da semifinal da Copa América. Resultado: vitória brasileira contra o Uruguai, nos pênaltis.
Peguei o trem muito cedo até Águas Calientes. O percurso desce a Cordilheira beirando o rio Urubamba até uma altitude de cerca de 2000 ms, adentrando uma vegetação de clima mais tropical. De lá, subi de ônibus a montanha até o cobiçado destino, por a carretera curta repleta de curvas. 
A chegada nas ruínas de Machu Picchu é de perder o fôlego, após a caminhada por um gramado até uma espécie de mirante onde se desenha na nossa frente o sítio histórico. Todos já vimos milhares de imagens daquele visual que proporciona uma paisagem magnífica. Mas estar lá, respirando aquele ar, sentindo a umidade que aflora da terra na manhã e dos rios que serpenteiam o vale, com a visão completa de todo cenário deslumbrante de integração da natureza com a intervenção humana é uma sensação toda especial. São muitas ruínas e caminhos para trilhar na antiga cidadela, com a beleza natural numa simbiose de séculos. Raizes e plantas penetram as rochas, lhamas circulam nas vielas, numerosos pássaros e nuvens baixas flutuam. E lá abaixo da montanha, o belo rio percorre o vale como veias de um grande corpo, abraçando a montanha onde a cidade foi esculpida. O verde da vegetação exuberante divide o cenário com rochas escuras vulcânicas. 
Aquilo tudo perfaz outro patamar de patrimônio histórico, distinto das ruínas das outras antigas cidades do vale que visitaria nos dias seguintes, porque pouco ali foi destruído. Os espanhóis, na busca desesperada por riquezas minerais e em sua política de extirpação das divindades indígenas, destruíram e saquearam a maior parte do que encontraram. Como Machu Pichu só seria encontrada no século XX, pelos povos originários já independentes da metrópole, as construções permaneceram mais íntegras e nisso reside parte da magia. 
Gostaria de ter ficado mais, mas tive de voltar em poucas horas. 
Dispensei o transporte de ônibus e desci até Aguas Calientes correndo. Lembrava de ter visto num especial antigo da TV a diversão de crianças nativas a percorrer o trajeto correndo, por atalhos na mata na descida do morro, e a aparecer e reaparecer antes dos ônibus, surpreendendo os turistas a cada nova curva da carretera sinuosa. Pude experimentar a brincadeira e realmente os atalhos funcionam.
Visitei ainda outros sítios arqueológicos como Puca Pucara, Saqsaiwaman, Quenco e Písac. Quando cheguei neste último lugar, um guia me garantiu que o passeio levava 2hs e que era maior que o sítio arqueológico de Machu Picchu. Achei que só estava querendo vender seu peixe, mas me equivoquei. Saí por ali a andar, subindo e descendo escadas, atravessando estreitos caminhos à beira de barrancos e cada vez encontrava mais ruínas e maiores vistas do vale do Urubamba. Atravessei até uma pequena caverna no trajeto, no alto de uma montanha. 

Os Incas tinham impressionante capacidade e organização para o trabalho. Suas divindades pertenciam à natureza: o Sol, a Lua, o puma, a águia, a serpente, um lago, uma montanha… Suas construções privilegiavam toda a harmonia com o meio ambiente. Absorveram muitos conhecimentos dos povos que iam conquistando e que anexavam ao seu império. Muito do que se atribui a eles são de outras culturas pretéritas. Há tantas curiosidades impressionantes  para aprender sobre essas culturas! 

O vale sagrado ainda proporcionou muitas vistas incríveis! No horizonte foi possível admirar alguns picos nevados da cordilheira.  
O Sol continua bem forte. Desde o início da viagem, só lembro de uma chuva forte, num fim de tarde em Huaraz. Por duas vezes nevou um pouco. Mas de noite, e sobretudo de madrugada, o frio castigou. 
Por aqui em Cuzco, visitei importantes museus como o Inca, o de Coricancha e o novo de arte pré-colombiana.  Caminhei incontáveis passos por praças, ruelas e íngremes ladeiras, subindo e descendo. Minha hospedagem tem sido bem agradável, embora simples. Conta com bela vista, ao custo de subir uma pirambeira íngreme. A saúde, por sinal, anda bem, voltei até a comer coisas diferentes, mas passei a ter mais cuidado com a dieta. 
E não é que os suplentes da seleção brasileira vão fazendo sucesso por aqui na Copa América, hein!? A grande final será contra os hermanos argentinos.
Amanha sigo até o Lago Titicaca.
Abraços e beijos! 
Otávio

(PS: o Word aqui costuma corrigir “beijos” para “viejos”, entre outras mudanças automáticas que podem ter me passado despercebidas).



INFORME DE VIAGEM 5 – 27.07.2004


A última noite em Cuzco foi animada. Saí com um amigo que conheci num dos passeios pelos arredores e alguns de seus camaradas. O rapaz nascera ali, naquela cidade, mudou-se para Arequipa para iniciar a profissão para a qual era vocacionado. Tivemos bons papos sobre existência e profissões pelas ruas daquela cidade. Junto com amigos dele que estava a reencontrar depois de tempos, terminei minha passagem pela antiga capital do Império em um bar "esquisito" (pra usar um adjetivo castelhano), decorado com esculturas e quadros sinistros, mesas com velas, um longo balcão e um palco discreto. A entrada era gratuita e boa parte dos frequentadores parecia de origem peruana, senão propriamente cuzquenhos. Curtimos um show de clássicos do rock, conversamos bebendo no balcão e dançamos sons diversos. Provei a famosa pisco sour, mais algumas cusqueñas e fechei a conta com cuba libre. 
Foi uma divertida noitada; a primeira “balada” da viagem, que tem sido mais solitária e introspectiva. Aproveito bastante os dias, desperto cedo, nos primeiros raios de Sol. 
Na manhã seguinte, viajei de Cuzco até Puno, cidade no lado peruano do Lago Titicaca. Ao chegar, segui para o píer e embarquei imediatamente em viagem de umas 3 horas de barco. Passei por famosas ilhas móveis de “totora” antes de chegar à grande Ilha de Amantani, aonde dormi. 
Passei em Amantani uma noite em uma casa muito simples, com portas de altura baixa. Cada família local recebia um ou dois turistas por casa. Foi o local mais tranqüilo e bucólico que visitei nesta viagem. Meditei, apreciando a ampla vista daquele mar, dos terraços de cultivo, ouvindo o som de galinhas, ovelhas e passarinhos. 
Há dois grandes morros na Ilha de Amantani. Sobre o cume de cada um, construíram templos religiosos, um  dedicado à Pacha-mama (mãe universo) e outro ao Pacha-tata (pai universo). Representam, juntos, a Dualidade do Universo. Ao fim de um dia contemplativo, foi formidável apreciar o Sol descer no horizonte da Península de Puno, desde o Templo do Pacha Tata. 
Ao voltar à hospedagem, de noite, convidaram-me para uma festa apreciar danças e músicas típicas organizada pelas famílias anfitriãs e por uma espécie de associação num edifício que parecia servir como um centro comunitário. Emprestaram-me uma vestimenta quente, espécie de poncho de cobertor, que me encorajou a sair ao vento gelado que soprava do Lago. Todos acabamos bailando juntos, após umas e outras bebidas. Foi divertido! 
Chamou-me atenção as tais ilhas de Totora. Cada uma tem cerca de dez casinhas pequenas dispostas em um círculo. Não consigo imaginar como aquelas pessoas conseguem viver em um espaço tão pequeno, convivendo sempre com seus poucos vizinhos, ainda mais com toda umidade e frio do lago e do inverno naquela altitude. 
Há dois grandes morros lá. Sobre o cume de cada um construíram templos religiosos, um  dedicado à Pacha-mama (mãe universo) e outro ao Pacha-tata (pai universo). Representam, juntos, a Dualidade do Universo. Foi formidável apreciar o Sol se pôr na Península de Puno, desde o Templo do Pacha Tata. 
No dia seguinte, visitei outra ilha no lago do lado peruano, a Taquile. Oferece também paisagens bonitas do lago e dos arredores. Bem mais habitada, dispõe de uma vila simpática e mais movimento turístico que Amantani. 
Voltei no fim da tarde, apressado, querendo ver o jogo do Brasil. O barqueiro voltou num ritmo lento, sem pressa, enquanto só eu parecia ansioso naquele lago. Olhei no relógio e a partida final da Copa América já havia começado, mas nada de chegarmos. Mal desembarcamos no retorno a Puno, saí correndo através do porto em busca de uma televisão. Caminhei um bocado e encontrei um restaurante bem simples com um televisor. Foi lá que a partida a partir do segundo tempo. Perdíamos até os acréscimos que o árbitro designou. O berro que dei quando o Adriano fez aquele golaço aos 45 minutos do segundo tempo sobre a Argentina, levando o jogo para os pênaltis, quando tudo parecia perdido, fez a cozinheira sair do outro recinto para vir ver o que acontecia. Entendeu logo a situação e sorriu para mim. O jogo seguiu para os penaltis. Na derradeira disputa de cobranças alternadas, os clientes, todos com fenótipo de índio, pareciam ter adotado o Brasil para torcer. Resultado: vitória nossa por 4 a 2. Foi especial! Uma boa forma de fechar minha passagem por aquele país: o título da Copa América depois de 25 anos, jogando com o time reserva, derrotando o vizinho e arqui-rival,  num jogo com virada espetacular e pênaltis. 
Dia seguinte, cruzei a fronteira para a Bolívia de ônibus, adiantei meu relógio em uma hora. Na praia de Copacabana, à beira do Titicaca, tomei uma embarcação para a Ilha do Sol. Andei um bocado por essa ilha, subindo seus morros, atravessando suas encostas, deparando-me com várias cabras, visualizando vistas de perder o fôlego daquele belo e imenso lago que mais parece um mar. O tempo foi curto, mas aproveitei o melhor possível!  
Gostaria de ter dormido na simpática e tranqüila vila, que alcancei no alto de um morro alto da Ilha do Sol, mas tive que voltar para o barco. Parecia mais organizada e charmosa que as vilas das ilhas do lado do Peru, mas já tinha comprado minha passagem para uma viagem noturna para La Paz e deixara minha mochila no escritório da Cia de Transportes, em Copacabana.
Já nem sinto cansaço pela altitude. Meu metabolismo parece ter se adaptado bem.  
No percurso até La Paz, vi mais um memorável pôr-do-sol. Conforme as silhuetas da estrada, via-o abaixar ora junto ao Lago, ora junto às montanhas. Dormi ao lado da estação rodoviária e peguei um ônibus até Oruro, onde estou agora, escrevendo-lhes, no aguardo do ônibus para o que deve ser o último grande destino desta viagem: o Salar de Uyuni.
Beijos e Abraços!
Otávio



INFORME DE VIAGEM 6 - UM FIM – 04.08.2004 


Saindo e voltando de Oruro, viajei ao longo de três dias, em dias ensolarados, num grande e antigo (1988) jipe Toyota com problema no freio (pasmem!), por cerca de 900 kms pelo sul da Bolívia. Acompanharam-me no veículo (além de meu anjo da guarda) outros seis turistas e um motorista que nos serviu ainda como guia e cozinheiro. Guiava melhor do que cozinhava!
Logo no primeiro dia atravessamos o gigante deserto branco, forrado de sal, a compor uma interminável rede de milhões de polígonos desenhados pela natureza nos processos de sedimentação do sal. O salar de Uyuni constitui o maior deserto de sal do mundo, com cerca de 12 mil quilômetros quadrados de puro branco. O céu e alguns vulcões ofereciam contrastes de cores. No meio do mar branco, alcançamos uma verdadeira ilha de pedra escura repleta de cactos gigantes. 
Nos dias seguintes atravessamos desertos de areia, formações rochosas curiosas, lagoas com superfícies congeladas com uma singular formação mineral branca nos arredores. Em algumas delas, milhares de flamingos pareciam posar elegantemente. Por vezes pareciam bailar de forma sincronizada. Alguns espelhos de água propiciavam a visualização perfeita do reflexo das montanhas vizinhas. 
Cruzamos um deserto de areia a altitudes de 5000 ms de altura, com muitos pontos de neve esparsa. Dormimos em uma casinha a 4500ms de altitude sem calefação e a temperatura atingiu incríveis 20 graus negativos. Os dedos de minhas mãos, dentro de luvas grossas, doíam, de modo que não podia parar de mexê-los. Acordamos cedo para visitar geisers a quase 5000ms de altitude. Ali vimos líquidos cinzentos com odor de enxofre borbulhando no chão, os quais, segundo o guia, chegariam a 300º C. Chegamos até a fronteira tríplice entre Bolívia, Argentina e Chile. Avistamos um vulcão ativo na fronteira com o Chile, que exalava fumaça do seu cume. 
O passeio longo terminou onde começou, em Oruro. Dali, segui outra vez para La Paz, onde passaria os últimos dias, dias que ainda me reservavam boas histórias e surpresas. 
Caminhei um bocado pela região central de La Paz, onde me hospedei. Fiz um tour por alguns pontos da cidade e  aproveitei para dar boas escapadas até seus arredores. O tráfego de automóveis daquela capital revelou-se um dos mais loucos do mundo. Fiquei com medo de andar naquelas vãs pequenas que funcionam como lotação. Andam cheias para lá e para cá e os motoristas costumam correr demais. E mesmo não havendo sinalização em muitos cruzamentos perigosos, o fato de não haver tantos acidentes quanto seria previsível revela uma estranha organização em meio ao caos.
Em um dos passeios, segui de ônibus até a pista de esqui mais alta do mundo, no monte Chacaltaia. Desci do veículo a 5.300 ms de altitude. Aventurei-me a subir a pé o trecho final, mais algumas centenas de metros de caminhada íngreme até o cume. A vista do altiplano era absolutamente incrível, uma paisagem de picos gelados, lagos do degelo. Num dos horizontes dava para visualizar até as águas do Titicaca.
Adrenalina forte senti em meu último dia na Bolívia, quando desci de bicicleta a "carretera de la muerte". Um furgão levou o grupo de nove turistas, as respectivas bicicletas e dois guias até o alto de uma montanha, numa região inóspita com neve nas beiradas da estrada, a 4.700 metros de altitude (quase a altura do Mont Blanc). Cada um vestiu seu equipamento de proteção, pegou sua bicicleta e saiu estrada a fora, por um percurso de 64 quilômetros, até a altitude de 1.200 metros, chegando em uma região tropical, pros lados da Amazônia boliviana. Saímos num clima seco com céu limpo, atravessamos um nevoeiro intenso e chegamos a uma região muito húmida.  O piso no início era de asfalto, mas logo se tornou terra batida. Um guia "batedor" partiu na frente, no ritmo de dois jovens europeus bem acelerados. Segui num segundo pelotão, parando de vez em quando na beira de um abismo para sacar fotografias. O veículo descia mais lentamente atrás do grupo, no ritmo dos ciclistas mais tranquilos. A estrada é perigosa, merecendo a alcunha de "carretera de la muerte"em face do número de acidentes fatais ocorridos nos penhascos, o que é atestado pelas cruzes fúnebres que vemos pelo percurso. As companhias de turismo são obrigadas pela agência estatal regulatória a trocarem os freios das bicicletas a cada duas descidas, para garantir maior segurança aos usuários. Num certo ponto, a mão da estrada inverte-se ao estilo inglês, para que o motorista que está descendo mantenha-se do lado dos penhascos. Concluí o percurso em 4 horas.  Almoçamos em um vilarejo lá em baixo da serra. O veículo nos trouxe de volta a La Paz em cerca de três horas de viagem. Foi incrível o passeio, com toda a emoção da pedalada, a rápida mudança de ecossistemas e a diversidade de paisagens que foi se sucedendo. 
Parecia que já tinha vivido as mais fortes emoções, mas estava redondamente enganado. Depois de uma refeição, entrei em um estabelecimento em busca de sobremesa. Comecei a namorar uma vitrine com doces vistosos. Antes que me decidisse por algum, fui abordado com muita cortesia por uma jovem simpática, acompanhada por uma freira. Acabei sentando-me numa mesa com as duas e ouvi uma história deveras inusitada que envolvia risco de morte da religiosa. Quem falava era somente a amiga da religiosa, que era descolada. Ambas haviam se conhecido na infância no seminário. A freira era muito tímida, limitando-se a  gestos que referendavam a narrativa da amiga. Apresentaram-me documentos, exames médicos e me solicitaram ajuda, com urgência. Numa das raras permissões para sair do Monastério onde vivia, aquela freira fizera exames de saúde resultando no diagnóstico com uma enfermidade grave.  Seu pai era uma autoridade ligada à Organização das Nações Unidas, tinha ajudado a realização dos exames com médicos estrangeiros e estava disposto a levar a enferma para tratamento nos Estados Unidos. Ocorre que a Madre Superiora era desconfiada, teria interesse em contrapartidas para o Monastério sabendo que a jovem era rica e criava entraves para a liberação da viagem da freira. A menina vivia confinada e aquele dia ela tivera autorização para sair para buscar exames. Pediram-me para representar o papel do médico estadunidense, em final de missão no país, para apenas acompanhada-las na entrega daquele dossiê médico nas mãos da Madre Superiora. Nessas alturas eu estava bem barbudo, com roupas talvez elegantes, mas surradas, e elas acreditavam que minha mera presença, com minha suposta cara de gringo, daria mais força para o pleito de liberação da menina para tratamento. Topei, meio incrédulo. Entramos num taxi e seguimos por uma meia hora até o Monastério, situado numa região rural, nos arredores de La Paz. Fiquei muito tenso! Praticamente nenhum homem tinha autorização para ingressar naquele estabelecimento de reclusão, segundo me garantiram. Parecia realmente uma prisão, havia grades e trancas fortes. Fui logo direcionado para uma espécie de parlatório, disposto numa sala ampla, dividida com grades. De um lado, ficamos eu e as duas jovens, do outro, uma dúzia de freiras de diversas idades, ao menos duas delas idosas, uma das quais era a grande autoridade. Todas estavam devidamente paramentadas. A cena parecia surreal! Quem falou por quase todo tempo foi a jovem que me havia abordado. Mostrou o dossiê, explicava alguns detalhes, falou sobre o tratamento necessário. Em todo momento fiquei sentado, de pernas cruzadas, olhando para as pessoas. Fingi não entender direito o espanhol. Quando fui consultado, concordei mas arranhei um: "Perdão, mas non hablo bien espanhol!", com aquele sotaque básico americanizado. Elas foram muito amáveis, mesmo a Madre Superiora, que haviam pintado como suposta megera. Ao final, a jovem disse que eu precisava voltar para arrumar minhas malas para viajar no dia seguinte e nos despedimos. Antes de saírmos elas me entregaram vários terços de presente, alguns que elas produziam ali no trabalho de artesanato e um especial lindíssimo de prata que ganharam do Vaticano, com um design especial. Saímos e ingressamos no taxi que ficou nos aguardando. A freira ficou e fui embora com a jovem descolada no veículo. Ela me deixou na mesma loja de doces, pagou o taxi e fez questão de pagar o doce que eu quisesse da vitrine. Estava radiante, certa de que o plano tinha funcionado e que todas acreditaram na encenação. Foi embora em seguida. Sentei-me sozinho, embasbacado, para comer a sobremesa e tentar deglutir toda a aventura. Mal conseguia crer na história!
Tudo terminou bem! Missão cumprida! 
A impressão que tive da Bolívia e dos bolivianos em geral foi muito positiva. O altiplano revelou lugares e vistas magníficas! Os bolivianos que conheci pareceram simples, muito hospitaleiros, alegres, simpáticos e sorridentes. Tristemente enfrentam dificuldades econômicas imensas, num dos dos mais pobres países do continente. Triste e injusto que assim seja!
Pretendia lhes escrever desde o nível do mar, do outro extremo da América do Sul, de Lima, onde aguardei durante umas 10hs um vôo derradeiro para São Paulo, mas isto quase me custou o vôo de volta. Distraído, não ouvi a chamada para embarque e uma aeromoça teve de me chamar no cyber-café do aeroporto. Acabaria esquecendo ali uma pintura bonita que comprara na Feira de San Ángel. Fazer uma escala ali era a opção mais barata e foi bom sobrevoar muitos lugares visitados, voltando para a cidade onde toda essa aventura começou. Deu tempo de descer até o bairro de Miraflores, onde pude contemplar mais um pouco a paz do Pacífico desde seus altos mirantes. 
Fiz uma segura viagem de retorno. 
Beijos e Abraços.
Otávio  

(Perdoem-me por responder apenas umas poucas mensagens durante este mês. Contestarei-as num momento oportuno. Quem quiser mais informações sobre minha viagem, procure-me. Escrevendo um pouco a cada dia, meu diário de viagem atingiu 75 páginas de um caderno pequeno, umas 15 a mais do que o escrito em minha última viagem).


Salar de Uyuni/BOL. Foto: Otávio D. S. Ferreira.






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Buenos Aires – 2006
 

INFORME ÚNICO – 24.09.2006


Escrevo desde Buenos Aires, no meu último dia de férias. Tirei uma semana e vim sozinho no último sábado, 16.09.2006. É minha primeira visita a essa cidade. E digo a primeira, pois me esforçarei para retornar futuramente. 
Parei há pouco para pensar na grande dificuldade em transmitir, em uma mensagem apenas, um pouco de tantas impressões sobre uma cidade tão fascinante e repleta de surpresas. 
Como descrever de forma sintética a sensação de desbravar tantas belas paisagens? Descobri muitos cenários ricos, intermináveis parques, avenidas amplas, incontáveis ruas arborizadas repletas de edifícios charmosos que volta-e-meia se avizinhavam a uma agradável praça.
Como descrever o sabor de carnes preparadas com grande habilidade nas parrillas porteñas? Ou ainda transmitir em palavras a textura de sorvetes, o gosto de alfajores ou a diferença das empanadas de cá para as do Brasil? 
Como explicitar o charme e a vida em torno de cafés que recebem multidões todos os dias? Que tal mensurar a riqueza e o repertório cultural dessa cidade que se orgulha por ter imensa quantidade de livrarias por habitante? 
Gargalhei demais assistindo sozinho à peça de teatro “El Metodo Grohlholn”. Emocionei-me vendo o sensacional show de um trio de jazz comandado por um genial pianista argentino (cujo nome me fugiu), em um centro cultural da Corrientes. Em San Telmo presenciei jovens e idosos porteños bailando tango descontraidamente numa praça num final de tarde, ao som ao vivo de um trio de instrumentistas talentosos. 
A cidade oferece atrações culturais por todos os lados. Orgulham-se da avenida - a Corrientes -conhecida como aquela "que nunca dorme". Sempre há gente ali para desfrutar dos seus cinemas, casas de espetáculo e livrarias. 
Impressionei-me com a riquíssima exposição de arte moderna de toda a América Latina do museu Malba. Valeu muito também visitar o Alba e o museu do talentoso artista plástico argentino Xul Solar [de quem nunca havia visto nada]. 
Nos dois albergues onde me hospedei, tive o privilégio de conhecer pessoas interessantes, da Austrália, Nova Zelândia, Israel, Áustria e Espanha. E os argentinos que conheci não ficavam atrás no critério simpatia. Não tomei conhecimento da rivalidade de que tantos brasileiros alardeiam; ao contrário, todos foram 'muy amables e hospitaleros'.
Aproveitei ainda, com amigos que fiz no albergue, uma noite agitada num dos “clubs” animados da Costanera Norte, onde dançamos e bebemos demasiadamente. 
Foi belo testemunhar a felicidade dos torcedores do Boca Juniors comemorando no estádio La Bombonera a chegada do troféu conquistado diante do São Paulo, no Morumbi, há uma semana. Foi estabelecida naquela noite o recorde de partidas invictas do Boca no campeonato argentino (que quitaram ao São Lourenço). Parece um caldeirão fervendo! A impressão que tive - senão a certeza - foi a de que permitem a entrada de mais gente do que a capacidade do estádio suportaria de forma segura. 
Há muito mais que poderia narrar. Um informe não permite transmitir a minúscula parte da intensidade de sensações, memórias, cheiros, gostos, músicas, paisagens que se experimentam e se vivem numa boa viagem, mesmo em um lapso temporal aparentemente pequeno. 
Posso me ver daqui a pouco, durante o curto vôo de volta a São Paulo, sentado em uma poltrona no canto do avião, mirando silenciosamente o infinito por uma daquelas janelinhas redondas, meditando; talvez disfarçando, ora ou outra, lágrimas. É a hora de realizar o balanço de memórias, quando costumam despontar, ao lado do orgulho mais primitivo da missão cumprida, um misto de perplexidade e encantamento com tudo o que se fez de imprevisto, imprevisível e surpreendente. Diante das vistas turvas, minha cidade fatalmente surgirá distinta da que deixei, há uma semana.

Abraços, beijos!!! 

 Otávio 






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Europa (Alemanha, França, Espanha e Portugal) – 2011/12


Informe de viagem 1 – 31.12.2011


Escrevo desde Strasbourg, às vésperas da ceia que improvisaremos – eu e Karen – aqui no quarto bem aquecido de hotel. Será regada a champagne e vinho riesling aqui da Alsácia, com direito a presunto serrano, queijos e salames especiais, pães saborosos frescos e docinhos franceses. Providenciamos tudo no comércio fervilhante nos arredores da maravilhosa catedral. Cada tentação gastronômica e etílica que fica difícil de escolher!
Nossa viagem começou em Frankfurt na manha do dia 27. Do aeroporto embarcamos logo no metrô e chegamos ao hotel, situado bem ao lado da estação central. Saciamos a fome ali perto com uma gostosa e picante comida - uma vitela e umas espécies de hambúrgueres pequenos com salada de batata.
Na digestão, descemos até o belo rio e percorremos jardins gramados à sua margem até uma majestosa ponte. Nesse momento sentimos uma amostra do ardente frio que nos acompanharia nessas próximas semanas.
Visitamos a imponente catedral gótica após admirar várias praças e ruas de arquitetura antiga alemã. Ao fundo de tantos edifícios históricos contrastavam meia dúzia de arranha-céus modernos.
Passeamos por calçadões intermináveis e atravessamos uma ampla região comercial onde eu compraria um gorro e uma jaqueta. O sol baixou cedo e subimos a um mirante de onde se podia avistar a cidade. Depois fiz questão de 'carimbar meu passaporte' provando cervejas locais. Achamos um confortável bar e sentamo-nos ao ar livre, junto a um aquecedor, e degustamos geladas com salsichas.
Dia seguinte, após um café-da-manhã muito bem servido, saímos em busca da universidade de onde expoentes da famosa Escola de Frankfurt saíram para brilhar na intelectualidade internacional. No caminho, cruzamos o jardim botânico e conhecemos micro climas simulados em instalações impressionantes, com plantas dos quatro cantos do planeta em gigantes estufas.
Alguns esquilos depois, encontramos o campus de ciências humanas da universidade. Vasculhamos um pouco de seu vasto espaço até alcançarmos o edifício biblioteca, onde algumas pessoas seguiam compenetradas em estudos. Não é normal, no Brasil, uma biblioteca funcionar nos domingos, até as 22hs, e não fechar na época de festividades. 
Satisfeitos pela visita, pegamos o metrô ali perto rumo ao centro velho. Comemos e passeamos ao longo das margens do rio. Ao anoitecer, nos enveredamos em busca da zona boemia, para provar mais um par de boas cervejas. Estava muito frio e perdemos tempo em caminhadas por lugares ermos. Encontrarmos enfim um bar simpático e, muito importante, quentinho.
Na manhã seguinte embarcamos num trem pra Heildelberg, ao sul. Deixamos a bagagem no hotel, logo ao chegar, e saímos pelo calçadão na direção do centro. Num momento desviamos para a beira do caudaloso rio. 
Situada num vale estreito com um rio amplo sinuoso no centro, Heidelberg está cercada dos dois lados por montanhas num horizonte próximo. Mesmo no frio pode-se identificar no leito do rio valentes remadores no exercício sincronizado diário. Destaca-se uma ponte belíssima, repleta de esculturas interessantes de estilos artísticos plurais, a formar uma espécie de museu a céu aberto. Na rua estreita adiante dela, almoçamos num restaurante rústico alemão - bom e barato.
A digestão foi realizada ladeira acima, na caminhada até o imponente castelo medieval que já abrigou a realeza da Prússia, da França e até da Inglaterra. Um nobre supostamente iletrado fundou a famosa universidade da cidade no século XIII, que se tornaria uma das mais importantes da Alemanha e da Europa e que receberia em seus quadros, entre tantas figuras ilustres, o sociólogo Max Weber. O castelo sofreu muito com invasões, o que pode ser atestado nas ruínas expostas ao público. A maior porção dele foi bem restaurada e a visita guiada pelo edifício vale muito a pena. Um dos destaques curiosos foi um barril gigante de vinho com capacidade para 220 mil litros e que chegou a proporcionar rações da bebida a toda população, mesmo aos mais desprovidos. Brincamos que não foi à toa que a fortaleza ruiu por tantas vezes na historia. O pôr-do-sol multicolorido, visto das gélidas torres de sentinela do alto do castelo, com a paisagem panorâmica do vale, fechou o dia majestosamente!
Na descida de volta à cidade - e à hospedagem -, em franca queda de temperatura, refugiamo-nos numa simpática loja de chocolates onde degustamos algumas especiarias deliciosas, tão especiais que fizemos questão de retornar pela manhã para novas compras, antes de seguirmos viagem.  
De noite, no quarto de hotel, após visita rápida a um mercado, tomamos vinho alemão tinto acompanhado por bons embutidos e pães integrais crocantes repletos de sementes.
Visitamos alguns prédios da tal faculdade, entre os quais a biblioteca, na manhã seguinte. Os edifícios universitários são discretos e estão dispostos no meio da parte histórica da cidade, junto ao comércio e a moradias convencionais. O ambiente todo nos pareceu aconchegante e sensacional para uma boa temporada de estudos. A visita foi curta mas ficamos encantados com o charme de Heidelberg.  
Pegamos um trem para a França no meio do dia. Nosso destino era este de onde escrevo. Bem maior que Heildelberg, Strasbourg já foi por muitos anos dos alemães e a influencia deles é percebida a todo o momento. A região mudou várias vezes de nacionalidade nos últimos séculos e a convivência pacífica entre diferentes povos foi um dos motivos para que ela se tornasse, ao lado de Bruxelas, uma das capitais da Comunidade Européia, sediando o Conselho da Europa.
No curto tempo em Strasbourg até este momento que vos escrevo, já conhecemos o interior de uma das mais fabulosas catedrais góticas da Europa, aproveitamos, numa manhã chuvosa, um passeio num barco coberto de vidro através dos canais que serpenteiam a cidade toda, com direito a subir e descer por comportas aos níveis mais elevados do rio. Na seara gastronômica e etílica, degustamos uma suculenta costela de porco, uma éclair e macarons e provamos ricas cervejas artesanais. Tudo muito bom! Tudo muito bem!
Feliz 2012 a todos! Saúde, felicidade...

Abraços, beijos!!
Otavio


Informe de viagem 2 – 05.01.2012


A ceia foi agradável no quarto de hotel de Strasbourg. 
Saímos após a primeira champagne até a frente da magnífica catedral gótica da cidade. Lá ouvimos uns poucos fogos e musicas do grande órgão, além dos sinos. Muitos jovens se aglomeravam ali. A passagem do ano deu-se com relativa tranqüilidade. Quando estudantes bêbados começaram a quebrar garrafas numa pilastra, saímos a vagar para uma praça ampla próxima levando conosco uma garrafa de um vinho riesling da Alsácia, que guardamos no frigobar. 
Um fato inusitado ocorreu, por sinal, na hospedagem quando, antes de tomar banho, passei furtivamente pelado adiante da janela do quarto no primeiro andar para checar a temperatura do Champagne no tal frigobar. A janela estava aberta e notei um flash exatamente quando tateava a garrafa. Um turista sacou fotos da bonita decoração de natal do hotel e me pegou no flagra, nu em pelos, com uma garrafa na mão. Paciência!
Vale aqui uma pequena nota sobre a catedral de Strasbourg, mais imponente ainda que a homônima de Paris. A sensação imediata foi que ela era desproporcional para o local. Fica encravada no meio de edifícios relativamente pequenos. Não coube nem sequer uma praça adiante dela. Seus contornos podem ser avistados e admirados de longe. Sua parte externa é toda preenchida por esculturas pequenas, gárgulas góticas, formando uma singular textura. De noite, o efeito torna-se ainda mais fascinante e sinistro com a iluminação e as sombras. Não cansamos de admirar sua beleza, nas quatro noites em que dormimos na cidade.
No primeiro dia do ano caminhamos pelo centro. Boa parte do comércio e das atividades locais ficou fechada, mas foi possível aproveitar bastante passeando e descobrindo interessantes paisagens através das vielas e das curvas dos canais. O tempo não tem sido muito companheiro. Faz muito frio e quase todo dia chove um pouco. Não seria diferente neste dia.
Strasbourg apresenta uma distribuição peculiar e confusa na geografia de suas ruas sinuosas. Costumo ter bom senso de orientação já após as primeiras andanças numa cidade nova. Tínhamos conhecido uma cervejaria artesanal muito simpática nos primeiros dias e jurava que saberia voltar ao lugar. Quando tentamos retornar, demos voltas e voltas e não chegamos ao maldito lugar. Mas acabamos desbravando outros sítios bonitos. Se perder em alguns destinos, nem sempre é uma fria!
Aproveitamos melhor o segundo dia do ano. Acordamos bem cedo, compramos os primeiros brioches e croissants quentinhos de uma patisserie. Alugamos um pequeno peugeut e saímos estrada a fora, para explorar a famosa rota do vinho da Alsácia. 
Obedecíamos cegamente ao companheiro GPS. Os planos indicavam que andaríamos uns sessenta quilômetros ao sul até o primeiro destino. Estranhamente, porém, a maquininha indicou caminhos para o leste. Adentramos uma área bucólica para os lados da Alemanha, como os nomes pareciam indicar nas placas da estrada. Chegamos a um vilarejo pequenino de nome similar a um dos que procurávamos. Não era Engisheim, mas Ebishein. Fomos levados para uma rua tão estreita que não cabia nem nosso pequeno carro. Retornamos de ré por uma curva minúscula. Ora, o GPS era disléxico!? Pior, quando resolvemos voltar e indicar outro nome de cidade, o aparelhinho ficou sem bateria. Maldito! Como tudo pode piorar, havia um carregador no veículo, mas não funcionava. 
Paramos o carro, respiramos fundo e ressoaram sonoros palavrões em face da tecnologia e da locadora do veículo. Voltar e entregar o carro recusando-se a pagar um centavo estava descartado. Sob alguma apreensão, enfrentamos a aventura por territórios desconhecidos, sem nenhuma ajuda tecnológica, sem um bom mapa, sem compreender o idioma local. Tudo o que tínhamos era um pequeno guia da Franca, que dedicava duas paginas curtas para esse trajeto. 
Lá pelas tantas, felizmente encontramos uma placa para uma das cidades recomendadas no guia. Enfim chegamos ao nosso primeiro destino, a incrível vila medieval de Riquewiir. A chuva caía, com fraca intensidade. Passeamos por loja de artesanatos, de queijos, de vinhos. várias vielas, algumas minúsculas, com construções muito antigas e charmosas. Até que chegamos numa pequena galeria. A entrada era cheia de gigantes torrones, cada um de um sabor e cores diferentes no recheio. Sentamos num estabelecimento simples no fundo e pedimos duas taças de vinhos, um dos quais achamos sensacional (da uva pinot-gris). O acompanhamento foi uma lingüiça branca "ancienne", com mostarda dijon dali da região, Ela tinha pequenos pedaços amolecidos de batata no seu interior. Humm!! Um aperitivo, a principio despretensioso, seria um dos pontos gastronômicos mais inesquecíveis de toda viagem.

Cidade medieval na Alsácia. Foto: Otávio Dias de Souza Ferreira.

 

De lá fomos para Colmar, onde nutria expectativa por conhecer a atração "Petit Venece". A cidade era maior e bem menos charmosa que a anterior. As atrações eram belas, mas não nos causaram nenhuma emoção maior. Seguimos para outra cidade medieval e o próximo destino foi Enguisheim. Como não havia placa, chegamos primeiro a INguesheim, uma vila sem grandes atrativos, e finalmente alcançamos o destino desejado desde o princípio (e da história da fatídica Ebisheim). Cidadela curiosa, não há como negar, formada por três círculos de casas mais simples que vão se dirigindo ao centro onde se localizam construções maiores, um castelo e duas igrejas. 
No caminho de volta para Strasbourg, já no final do dia, viramos para Ribeuville. No alto da colina vimos as ruínas de três castelos. A cidadela revelou-se charmosa e mais movimentada que a anterior. Uma torre que se erguia sob uma viela lembrou bastante com a do Boulevard Geneve, de Campos do Jordão. Após boa caminhada, voltamos para a cidade onde estávamos hospedados, cansados, mas satisfeitos pelo trajeto cumprido. O GPS fez novamente falta, pois nos perdemos outra vez. Uma viagem para longe tem também seus momentos desagradáveis, que fogem do planejamento.
Imaginávamos encontrar lugares agradáveis para comer e beber em todas essas cidadelas da Alsácia, a exemplo do primeiro destino, Riquewiir, mas não tivemos sorte. A primeira parada foi imbatível. Se soubéssemos, teríamos alongado bastante aquela visita. 
Dia seguinte, o terceiro do ano, fomos embora de Strasbourg no trem veloz para Paris. Viajara já por duas vezes para cá, de onde escrevo agora. Uma fora em 1998, por cinco dias imediatamente após a vitoria francesa na Copa, em meio a toda a confusão daquelas festas do evento internacional. A segunda foi em 2000 - acidentalmente -, após entrar alguns minutos antes do horário marcado em meu bilhete, no trem desde Carcassone, cujo destino deveria ser Viena, sem contar com a incrível pontualidade dos itinerários. Acordei na estação central de Paris, surpreso. Guardei a mochila em um dos armários dali e acabei aproveitando maravilhosamente aquele dia, mudando forçosamente o roteiro inicial. Desde então não tinha voltado para a Europa, um hiato de quase dez anos. 
Cada vez em Paris é diferente. Sempre é especial! Agora estava bem acompanhado, por alguém que não conhecia a cidade. Significa que servi um pouco como guia. De todo os modos, Paris sempre é fantástica e a cada vez me impressiona mais. Não preciso dizer que demorou pouco até que a Ká também ficasse apaixonada pela Cidade-Luz!
Pouco conhecera antes do agito de Saint Germain, com suas centenas de bares e restaurantes que funcionam freneticamente pelo dia. Agora mesmo estou num cybercafé tomando o segundo pint de um ótimo chopp Grimbergen, cujo rotulo do copo acusa a origem em 1128. 
Impressiona como os preços estavam muito melhores nas viagens anteriores. Nem havia o euro e o real era mais valorizado. 
Primeiro dia caminhamos bastante. Passamos, entre outros lugares, pelo jardim do Louvre, pela Opera, pelos Inválidos e fomos até a Torre Eifell, que está a apresentar de hora em hora uma nova iluminação multicolorida para o réveillon. 
No segundo dia em Paris, o Sol finalmente deu o ar das graças na viagem. Seguimos até Montmatre, subimos a escadaria até a igreja Sacrecour, de onde admiramos aquela paisagem magnífica da cidade.Fomos brindados no alto do morro por um talentoso harpista a tocar belas canções para a horda de turistas. 
Visitamos o museu de Salvador Dali, onde vimos vários de seus impressionantes quadros e esculturas. Voltando para o alto da escadaria, comemos saborosos - e baratos - sanduiches de presunto francês e lingüiça alemã de uma barraca adiante da catedral branca, admirando a vista. Como o frio apertou, apelamos para vinho quente e wafers com chocolate. 
Passamos, na volta, por um famoso edifício da Sorbonne, datado do século XIII. Tentamos entrar no campus mais antigo e não nos deixaram. Nunca tinha sido barrado na entrada de Universidades publicas, nem no Brasil, nem na Inglaterra, Alemanha, México, Cuba e Argentina. A Ká, especialmente, estava encantada com o ambiente acadêmico do edifício histórico e de seus entornos. Fiquei desapontado com esse fechamento do edifício ao público, sinal de elitização do ensino superior e de possível distanciamento do publico mais necessitado da produção intelectual.
Na manhã seguinte, hoje, ao passar pela recepção do hotel, reconheci um rosto de uma figura muito conhecida. Já na rua, perguntei à Ká se não era uma tal pessoa ilustre. Pairou a dúvida. Não sou de fazer essas coisas de tietagem, mas resolvi retornar. Aproximei-me e perguntei ao senhor que lia Le Figaro no sofá, com suas bagagens:
- Excuse me, do you speak English?
- Yes!, respondeu. 
- "Are you Slavoj Zizek?". 
- Yes! 
Sorrimos todos e iniciamos - os três -  uma conversa agradável que seguiu por algum tempo ! Ficamos emocionados por conhecê-lo - e por sermos bem recebidos por ele. Tido como um dos maiores filósofos marxistas vivos, ex-candidato à presidência da Eslovênia, soubemos que  estudara da Universidade Sorbonne de Paris e que voltava anualmente para passar uma temporada na cidade. Foi muito simpático e abandonou a leitura para conversar conosco sobre o Brasil, China, Dubai, Nova Yorque, Singapura... papo que durou cerca de uma hora. É uma pessoa que gosta de contar histórias! Garantiu que gosta bastante do Brasil. Disse, entre muitas outras coisas, que preferia o caos organizado de São Paulo e o contato das classes sociais que a cidade de São Paulo, aos seus olhos, propiciava, do que toda a organização de Nova Iorque e do que as festividades excessivas do Rio de Janeiro, em meio a toda miséria dos morros. Seu inglês macarrônico foi de fácil compreensão para nós. O encontro valeu demais!
Visitamos o Louvre depois, de forma breve, priorizando alguns corredores de arte europeia do século XVIII e XIX. O destaque do passeio foi "A liberdade chama os homens", de Delacroix, obra referência em famosos livros de história, adiante da qual paramos por mais tempo a admirar. 
A chuva apertou quando saímos, já famintos. Achamos um bom restaurante, com preço honesto. Sentamos diante de uma das pontes da Ilha menor da região central de Paris. Comi um suculento pato com e batatas, bebendo uma boa taça de vinho, que por aqui custa o mesmo que um refrigerante.
Au revoir!
Otavio


Informe de viagem 3 – 14.01.2012

 

Seguimos mais alguns dias em Paris passeando bastante, visitando e descobrindo - ou redescobrindo - museus, praças, boulangeries, cafés... Adquirimos um vale-transporte para seis dias e um vale entradas de museus para quatro, que serviram de grande utilidade.
Nos raros momentos de Sol, aproveitamos para fazer um pequeno pic-nic de croissants em confortáveis assentos nos Jardins de Luxemburgo e para desfrutar um pouco da tranqüilidade das fontes no parque das Tulheries ao inverno. 
Um dos dias que mais aproveitei foi o da visita a Versailles. Gostei de retornar não mais como turista de primeira viagem. Respirei melhor e desfrutei com serenidade os famosos e lindos jardins. Encantou-me, sobretudo, o Petit Trianon, da princesa Maria Antonieta, quando ainda dispunha de cabeça junto ao pescoço. Almoçamos num simpático restaurante perto do grande espelho de água que parece ter inspirado o de Washington. Embora não aparecesse o Sol, centenas de pessoas caminhavam, corriam ou passeavam, solitários ou entre amigos e família. Muitos deles não pareciam mesmo turistas.
Nesses dias que se seguiram, conseguimos ingressar em estabelecimentos da Universidade de Paris, o que nos causou excelente impressão e alguma surpresa. Descobrimos que apenas o prédio principal e mais tradicional da Universidade fica fechado ao publico. Assim, retiro o desapontamento que manifestei no último informe, sobre o suposto isolamento dessa universidade.
Entre essas e outras andanças em Paris li o curto e denso 'Viagem para o Oriente', do sempre brilhante Herman Hesse.
O Museu Pompidou, que não conhecia ainda, revelou-se outra grata surpresa, pela sua arquitetura, vista privilegiada para a cidade e, claro, pelo acervo. Rever obras do museu Orsay, sobretudo as do Van Gogh, de alguns dos impressionistas franceses e a sensacional porta do inferno de Rodin, ou subir novamente na torre Eiffel e no Arco do Triunfo foram atividades deliciosas. 
No quesito alimentação, confesso ter sofrido um pouco com a presença massiva de queijo, comida com a qual não sou admirador. Por outro lado, doces e pães em Paris são absolutamente fora de série. 
O que mais me assustou na França foram os preços exorbitantes. Nas minhas duas visitas anteriores, nosso Real estava muito valorizado e a moeda francesa, pouco. Agora, os preços na França - ao menos em Paris e Strasbourg pareceram quase o dobro dos da Alemanha e o triplo dos da Península Ibérica.
Seguimos estrada adiante. Numa noite embarcamos num trem noturno, em camas confortáveis, rumo ao sul da França, atravessamos a fronteira com a Espanha e chegamos a Donostia-San Sebastián, no país basco, na alvorada. 
Andamos muito no pouco tempo de hospedagem, ansiosos por conhecer as belezas que nos desafiavam a cada olhar. A praia é bela com amplos calçadões. O tempo estava ensolarado, com uma brisa fria. As pessoas andavam agasalhadas. 
Percorremos muitas vielas no centro antigo. Logo se nota como cultuam tradições culinárias especiais, especialmente os pinchos. Dos bares mais exóticos aos tradicionais, frutos-do-mar e presuntos espanhóis destacam-se nas bandejas que preenchem grandes balcões.
Ofereceram-nos, num dos bares, um prato grande para que escolhêssemos o tapa mais atraente em um rol amplo de opções tentadoras. Servimo-nos com as mãos. Comemos também em San Sebastián uma paella de lamber os beiços, bem servida e a um preço justo. Reparamos na grande quantidade de senhores e senhoras bascos, para além do público de turistas, que circulam pelos bares durante a noite, mesmo durante o inverno.
O sol nos agraciou com sua benção nos dias que se seguiram perto do oceano, embora sempre as noites permaneceriam geladas.
Passeamos bastante à beira-mar por seus calçadões superiores e inferiores, pela areia, pelas vias que atravessam próximas às rochas, pelo centro histórico, pelo cais e pelos trapiches ali adiante. Durou pouco a visita, talvez não no tempo suspenso da memória. Valeu demais!
Dia seguinte fomos para Sanxenxo-Portonovo na Galícia com o fim precípuo de conhecer a família da Karen. Seus avós e sua mãe vieram há cerca de cinqüenta anos para o Brasil. Voltaram poucas vezes, mas as gerações mais novas nunca tinham estabelecido contato. Ela estava muito ansiosa por esse momento, uma incógnita a lhe causar grandes temores. Para aumentar a ansiedade, perdemo-nos logo pela manhã, com todas as malas, logo ao baixar de um ônibus que vinha de Vigo, a cidade grande próxima. Trazíamos a um mapa bem precário conosco, que não nos levava a lugar algum. Se não bastasse, quando fomos pedir informação encontramos uma mulher com alguns parafusos a menos na cachola que além de não ajudar, não parava de insistir em propagandas sobre os peixes do mercado. 
Após longa caminhada com as bagagens seríamos muito bem recebidos por uma tia muito amável e atenciosa. De imediato nos acomodou numa habitação. Saciamos a fome com estilo e sabor demasiado: tortilla com jamon serrano, peixes e um precioso 'pulpo a la feira' galego. Tudo acompanhado com vinho albariño galego, o que até pediríamos novamente na derradeira noite. 
Pouco a pouco fomos conhecendo um a um dos muitos parentes de três gerações diferentes dos lados de sua avó e de seu avô maternos. Receptividade incrível! Nas 3 noites que dormimos ali dividimos bem o tempo entre os dois ramos da família, junto a companhias agradabilíssimas, divertidas e em programas deliciosos. Levaram-nos a conhecer charmosos vilarejos, praças, decks, praias e mirantes. 
Ah! É fabuloso esse litoral ao norte de Pontevedra, região de rias - especies de bahias enormes que recortam singularmente toda essa costa -, entre as quais se destaca aquelas ao redor de Sanxenxo, por onde estivemos. Formam-se praias maravilhosas, várias com a natureza muito preservada, com poucas construções. Outras dispoem de boa estrutura para o turismo com dezenas de restaurantes, bares, sorveterias e até discos que atraem milhares de jovens pelo verão. 
Pena que por esta época o mar está gelado, o tempo frio, o que afasta o turismo e fecha grande parte dos serviços. E não faltam esculturas na região, para enriquecer mais ainda as paisagens e prestigiar os artistas locais. Orgulham-se por ser a região com mais praias limpas da Espanha e, no caso da Galicia como um todo, por ser a maior fonte de pescados de todo o País. Os frutos do mar são divinos, distintos dos nossos e os vinhos albariño da região, muito saborosos. E ali, bem perto, há um curioso povoado colado ao mar com muitas casas antigas de pedra e barro  em meio a pequeninas ruelas. Conhecemos até uma pequena produção própria de vinho de um tio da Ká. 
Encantou-nos demais conhecer tantas pessoas amáveis e calorosas, das crianças aos mais idosos, todas preocupadas o tempo inteiro em tornar nossa estadia mais agradavel. Foi comovente ver familias aparentemente unida e orgulhosas de si, superando diferenças de geração, empregos, escolaridade. Ao menos foi a impressão do turista, em passagem efêmera! 
Agora nos resta manter contato e quem sabe não tentar retribuir a hospitalidade e o carinho caso algum deles resolva aparecer nas nossas terras além mar? A ansiedade inicial foi claramente despropositada e o que fica é a memoria de dias incríveis.
Atingimos agora as quintas de Lisboa, no país de antepassados meus, incluindo meus queridos avós que infelizmente já não vivem mais e de quem sinto demasiada saudade. Bom, mas isso já será assunto para o próximo informe...
Abraços e beijos.
Otavio DSF

Donostia, San Sebastian/ESP. Foto: Otávio D. S. Ferreira.





Informe de viagem 4 – 19.01.2012


Não conhecia Lisboa; melhor dizendo, não a conhecíamos, nem eu e nem Karen.
No caminho para lá, coincidentemente, percorria eu as primeiras páginas do Cândido, de Voltaire, justamente no trecho em que o protagonista vivenciava o devastador terremoto de 1755, para em seguida ser um alvo da inquisição.
Ficamos num bom apart-hotel bem localizado, na praça dos Restauradores, bem no centro da Cidade Baixa. Na primeira tarde subimos para a Cidade Alta, a desbravar a terra de nossos colonizadores. Com a crise apertada deles, agora nós fazemos as vezes dos exploradores. Há uma verdadeira invasão de turistas brasileiros. Num quarto confortável e bem equipado, pagamos um preço bem mais em conta do que pagaríamos na maioria dos locais anteriores. O câmbio de moedas foi bem mais favorável que na França e Alemanha, o que perfaz um alívio.
A crise está muito presente nos discursos de todos por aqui na Europa, mas em Portugal a impressão é a de que a situação está ainda mais alarmante; seja no café no bondinho, no restaurante ou nas televisões. E se já havíamos ouvido algumas pessoas querendo imigrar ou voltar para o Brasil, em Lisboa testemunhamos esse movimento com maior intensidade. Os salários e os direitos trabalhistas estão a se afrouxar. Enquanto muitas pessoas são despedidas, os que ficam têm que trabalhar dobrado. Mas uma constatação fácil de se fazer quando se compara os gastos básicos é a de que os salários mais baixos em todos os países por que passamos ainda têm um poder de compra bem maior do que no Brasil. Estando-se empregado e sendo cidadão europeu, tem-se boas garantias das quais nosso Estado ainda não dispõe, principalmente no tocante à educação e à saúde, os maiores gastos de nossa classe média.
O grande centro de Lisboa desenha-se como um vale comprido que se estende em meio a duas grandes colinas; uma corresponde ao chamado bairro alto e a outra abriga um castelo magnífico e as ladeiras e becos da Alfama.
Já ouvira dizer que a cidade alta dali parece bem com o Pelourinho de Salvador; ou seria mais adequado afirmar o oposto? É inegável que há similaridades, mas aqui parece haver mais vida própria, independente do turismo, e a região a se caminhar é muito maior. No domingo a região estava às moscas, mas nos dias da semana veríamos uma badalação e uma vida cultural e comercial muito intensa. Há centenas de edifícios, praças e pequenas ruas muito charmosas, muitas casas esbanjando do uso dos tradicionais azulejos portugueses.
Bacalhau é realmente uma iguaria preciosa e de grande qualidade, mesmo em restaurantes mais simples. Ademais, provamos bons peixes e lingüiças, saborosos vinhos verdes e cervejas portuguesas.
Numa localização privilegiadíssima e da época moura, o castelo de São Jorge perfaz uma construção iniciada no século XII. A vista que todo o complexo do castelo proporciona é provavelmente a mais espetacular da cidade. Por onde se ande no vasto espaço que ele ocupa, da fortaleza baixa com seus canhões debruçados em precipícios, às mais elevadas muralhas da fortaleza, tudo é um mirante interminável, para a cidade, para o grande Tejo; este que parece o próprio mar. Num dia de Sol, recomendo algumas horas de visita. O espaço é agradável e amplo. Impressionou-nos, ademais de tudo, uma seção de observação no periscópio do castelo, tecnologia desenvolvida há muito por Da Vinci que permite, de uma câmara escura numa sala, através de um jogo de lentes dispostas no alto dela, uma visão acurada de todos os arredores do castelo.
Identificando-me prontamente com o santo padroeiro da equipe alvinegra campeã brasileira de futebol, não poderia deixar de fazer com que sacassem uma fotografia minha ao lado da estátua de São Jorge.
Na descida do morro, atravessamos os famosos becos e ruelas da Alfama, bairro pobre com uma beleza singular, conhecido pelos varais que se estendem por todos os cantos possíveis e pelas casas coloridas.
Nossa visita pelo centro de Lisboa foi complementada por um passeio em um dos encantadores bondinhos, pequenos, muito arrumadinhos por dentro. Parecem funcionar bem como uma das modalidades de transporte público e constituem um dos símbolos da cidade. Em alguns trechos do passeio, lembrei-me bem do passeio pela bela região de Santa Thereza, no Rio de Janeiro. 
Como nem tudo são flores numa viagem, nem mesmo na terra dos cravos, registro que fui acometido numa noite por um enjôo terrível. Dormi muito mal e amanheci fraco. Perto do almoço apressei-me em acionar um seguro de saúde de viagem (exigência de um tratado entre Brasil e União Européia). Funcionou o serviço de modo eficiente e uma doutora veio logo ao quarto da hospedagem. O diagnóstico foi uma infecção viral, algo frequente em turistas. Receitou-me dois remedinhos santos que me colocaram bem, de pé, já pela noite, quando voltamos a passear, indo até um café simpático na Cidade Alta. O estabelecimento já tinha recebido Caetano Veloso e muitas figuras importantes do fado. Lá tomamos uma boa sopa. Mas o dia de molho devido à virose nos custou uma ida a Cintra, que prometia ser um grande passeio. Paciência! A saúde às vezes nos prega peças.
Deu pra caminhar bastante por boa parte do que é o centro, mas não foi dessa vez que pudemos avançar para além dali, a Belém, a Cais-cais e até Cintra. Ficará para outras histórias, noutras linhas.
O tempo de viagem esgotou-se e tivemos de recolher nossos trapos para retornar. Já chegava aquele momento em que começamos a sentir a falta de nossa cama, de nosso espaço, de entes queridos e até mesmo de coisas menores do cotidiano que usualmente não valorizamos.
E as últimas páginas do livro Cândido foram tragadas prazerosamente no caminho de volta, sob a névoa de deslumbramento da jornada cumprida, em meio ao balanço do que se passou, do que se fez surpresa e da bagagem que se leva.

Otávio DSF


Porto Novo/ESP. Foto: Otávio D. S. Ferreira.




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Patagônia – 2010/11


INFORME DE VIAGEM 1 (TRECHO CHILENO) – 03.01.2011


23h em El Calafate, sul da Argentina, o Sol desceu há bem pouco, mas ainda emana seus últimos raios no horizonte. Estamos ficando mal acostumados com isso. Confesso que estou gostando do dia longo, sobretudo em “vacaciones”!
Viemos hoje – eu e Karen, minha mãe e meu padrasto – de um incrível paraíso no sul do Chile: Torres del Paine. Um daqueles lugares excepcionais que todos deveriam ter o direito de visitar pelo menos uma vez na vida. 
O clima tem sido generoso. Fez pouco frio, de vez em quando até calor. Só em alguns momentos sentimos o vento gelado - muito - da corrente de Humboldt.
Estamos viajando há cerca de uma semana. Chegamos a Punta Arenas, em pleno estreito de Magalhães - junção dos oceanos Pacífico e Atlântico.
Merece um breve registro o incidente ocorrido na viagem de ida, a história curiosa da  maçã mais cara do mundo. Antes de virmos para o extremo sul, fizemos escala em Santiago do Chile. Eu trazia comigo uma maçã para comer de “desayuno”. Como dormi durante a viagem, não cheguei a comê-la; esqueci mesmo de sua existência. Não me dava conta de como são paranóicos os chilenos com qualquer produto agrícola alienígena. Na aduana nos seguraram e aplicaram uma multa pesadíssima: 260US$ por uma maçã; umazinha! Senti-me ultrajado, como um suposto narcotraficante internacional. Fingi perder o ar (ou talvez não tenha mesmo fingido) ao ouvir a quantia. Pedi, arfando, para repetirem o valor obsceno. Chamei a Karen, que aguardava na sala ao lado, com um berro estridente. Distraída, pulou da cadeira, ao que lhe contei-lhe do veredito, no que ela também pareceu se embasbacar. Respirei fundo algumas vezes, recompus-me minimamente e voltei. Insisti em recorrer da condenação, comecei a lançar mão de argumentos jurídicos, da proporcionalidade, aleguei desconhecimento da lei e falta de informação clara, considerando o horário da viagem, a madrugada (poxa, para alguma coisa aquela faculdade tem que servir). Só pagaria desde que emitissem um recibo do valor, com a informação pormenorizada da condenação, documento que prometi entregar ao Itamarati posteriormente, onde pediria reciprocidade no tratamento aos chilenos. Arrematei garantindo que sofria de uma crise de diarreia e que a fruta serviria como medicação natural. A condenação na primeira instância foi fustigada ali, dentro de mais alguns minutos, depois de algum chá-de-cadeira. Absolvidos, fomos comer em um buffet do aeroporto. Estava orgulhoso da vitoria quando, de repente, apareceram as autoridades da aduana adiante de nossa mesa. Tentei disfarçar algumas frituras no meu prato, que não condiziam com meu alegado quadro de fragilidade na saúde, mas creio que perceberam. Pairou constrangimento no ar... Bom, bola pra frente! 
Na primeira caminhada em Punta Arenas, saindo do hotel, ficamos felizes ao nos depararmos supostamente com pingüins no píer da colorida cidade de Punta Arenas. Achamos graça nos bichinhos, mas logo soubemos que aquelas aves eram de outra espécie, menores e voadoras, embora guardassem alguma similaridade, nas cores, em relação aos pinguins. Ainda comermos um suculento côngrio com papas e cerveja local e presenciamos o primeiro pôr-do-sol, de vários que viriam, por volta das 11h da noite (23h). 
No dia seguinte, conhecemos os verdadeiros pinguins-de-Magalhães em passeio até o Seno Otway. Fomos recebidos por um contínuo rufar de ventos insuportavelmente gelados, literalmente de doer os ossos! Centenas daquelas aves elegantes caminhavam em estilo meio que desajeito, com pegadas curtas que as pequeninas patas lhes permitem. Passavam por vezes a poucos metros de nós, atravessando os caminhos permitidos aos turistas, sem se incomodar com nossa presença. O solo era de pedras, terra e só espécies ralas de vegetação logravam sobreviver naquele habitat. Entre si, os pinguins pareciam conversar e gesticular, mostrando-nos uma organização social peculiar. Alguns se banhavam no mar congelante. 
No horizonte, manifestavam-se timidamente algumas montanhas cobertas de nuvens, exemplares do inicio da imensa Cordilheira que atravessa longitudinalmente toda borda oeste do continente, diante do Oceano Pacífico.
No caminho para Torres del Paine, encaramos uma estrada monótona nas primeiras 3 horas, cruzando uma larga planície de vegetação rasteira. De repente se abriram por 180º no horizonte uma porção de montes com picos gelados, cenário que vimos  crescer nas duas horas seguintes. A certa altura começaram a aparecer lagos e mais lagos na paisagem.
As montanhas íngremes, com recortes muito acentuados, esculpidas nas rochas de tons distintos de cores e cobertas por gelo nos cumes, que levam o nome de Torres, quando vistas ao vivo, são de perder o fôlego. Pelo que pudemos ver, nem mesmo para os próprios habitantes da região passam impunes pela sensação de deslumbramento diante da escandalosa e exuberante manifestação da natureza.

Ficamos hospedados, eu e minha companheira, numa pousada muito charmosa, sem maiores sofisticações, dentro do parque, numa pequena ilha no Lago Pehoe. Nas primeiras noites, o som das ondas do lago chocando-se contra as margens da ilha lembravam o ruído do mar, tornando especialmente agradável o sono. 

Fomos, em dois dos dois primeiros dias, para a região do lago e da geleira Gray. Caminhamos pelo vale do rio com o mesmo nome e conhecemos muitas paisagens distintas. Depois atravessamos uma fina península que corta o grande lago até uma ilha que proporciona uma vista privilegiada das torres e do majestoso Paine. Ah!! O vento soprava fortíssimo, mas valia enfrentá-lo. A paisagem era absolutamente deslumbrante!
Fizemos um passeio emocionante de barco no Lago Gray. Enfrentamos uma maré digna de alto mar, com ventos que pareciam assustar até o condutor da embarcação, para vermos de muito perto as encostas da imensa geleira em suas margens. Numerosos icebergs se descolavam da geleira e meio que boiavam ao longo do caminho.
O réveillon foi gostoso, no sofisticado hotel perto do nosso, dentro da reserva de Torres del Paine, onde se hospedaram minha mãe e meu padrasto. Depois de algumas taças de champanhe e cerveja, descobrimos uma festa paralela à dos hospedes, mais divertida. Era a confraternização dos funcionários do estabelecimento, numa espécie de galpão externo às instalações principais. Tinha música, cerveja e as pessoas estavam dançando alegremente. Os hóspedes mais animados acabaram migrando para lá, onde puderam bailar modinhas chilenas! Pena que não durou muito, pois tivemos que pegar carona para retornarmos à nossa hospedagem. As distâncias no parque são grandes e não é tão seguro caminhar de noite sozinhos, considerando o habitat dos pumas patagônicos e seus costumes noturnos.  
Estamos viajando em parte juntos - minha mãe, meu padrasto, eu e minha companheira - e em parte separados. Ficamos em hospedagens próximas e estabelecemos adequações no planejamento. Fizemos passeios juntos, degustamos refrescos, vinhos e petiscos juntos, mas, ao final do dia, nos retiramos cada casal para seu lado. Depois do desayuno, voltamos a nos encontrar. Alguns passeios que exigem mais do físico, por exemplo, marcamos separadamente, para que cada casal siga em seu ritmo. A dinâmica tem funcionado bem e a companhia deles tem sido sempre muito agradável! Viajar assim acompanhado para o exterior é algo novo na minha trajetória. Com família, então, foi a primeira vez.
Primeiro dia do ano e eu e Karen aproveitamos as primeiras horas para descansar de pernas para o ar, nas beiras do lago Pehoe, admirando o cenário. 
Mapa do Parque de Torres del Paine/ CHI. Fonte: Página Vamos pra onde (vamospraonde.com).

Pela tarde, a partir de umas 15h, encaramos a trilha com mais adrenalina de todas: a do “Guanacocídio”, no lago Sarmiento. 
Havíamos aprendido a passear sem guia pelo parque desde o primeiro dia. Bastava seguir as estacas "anaranjadas". Só que dessa vez passearíamos por mais de duas horas por um verdadeiro safari cercados de guanacos - parentes de llamas e de carneiros - emas e, pasmem, pumas – felinos gigantes e cruéis predadores dos demais. Basta dizer que testemunhamos ao longo de todo o caminho dezenas de ossadas - 3 delas bem frescas. Aprendemos que os guanacos se organizam em sentinelas que ficam de 100 em 100 m aproximadamente, sozinhos, para proteger um grupo que fica no meio deles onde se reúnem as fêmeas e os filhotes. Ao menor sinal do felino, gritam para os outros se afastarem. De dia isso funciona, mas de noite... A cada colina, a cada curva, procurávamos um guanaco. Se não aparecessem, ... 
Ora, devem supor que o final não foi trágico. Acabou sendo um passeio maravilhoso por toda a paisagem, com todos aqueles montes gelados desenhados em formações rochosas incríveis ao fundo, e também pelo ingrediente da emoção. Acontece que os pumas vivem em um território onde não lhes falta comida e só uma vez na história recente do parque uma pessoa foi atacada por eles (segundo ouvimos, porque carregava peixes frescos que havia pescado e porque comportou-se como presa, correndo assim que viu os felinos) de modo que não haveria tanto risco assim. Caso contrário, nem permitiriam os "recorridos".
Na última madrugada no Chile, eu e a Karen subimos no morro mais alto da ilha no meio do lago Pehoe para vermos os primeiros raios do sol da "aurora austral". Testemunhamos fachos de luz vermelha sobre as torres e o grande paine, num espetáculo singular que as lentes fotográficas dificilmente vão reproduzir. Ouvimos dizer que nessa época esse fenômeno é menos intenso do que na primavera e no outono, mas mesmo assim, presenciamos cores da alvorada que não costumam ser vistas em locais mais distantes das calotas polares.
Depois de essas e outras menos memoráveis, aqui chegamos em solo argentino. 
Um dente meu teve a infelicidade de mordiscar um duro caroço de azeitona no interior de uma inofensiva empanada no bar da fronteira Chile-Argentina. Creck!! Foi o seu fim! Forçou-me a fazer um "pit stop" num hospital de El Calafate, onde fizeram um curativo de emergência. Depois do stress e aborrecimento pelo evento desagradável, consegui comer e tomar um vinho argentino, porque ninguém é de ferro.
Fico por aqui, que já escureceu mais. A impressão é a de que nunca fica um breu total no verão, mesmo quando a lua não dá as caras. 
Amanha começaremos a conhecer a Patagônia argentina.
Beijos, abraços!
Otávio

PS: feliz ano novo para todos!!!

Torres del Paine/CHI. Foto: Otávio D. S. Ferreira.





INFORME DE VIAGEM 2 (TRECHO ARGENTINO) – 10.01.2011


Em El Calafate ficamos hospedados alguns dias em uma confortável pousada na entrada da cidade. Para chegarmos na rua principal de comércio, usávamos um transfer disponível em vários horários determinados. O espaço era menos charmoso que o da hospedagem anterior e situado numa região árida, mas era sofisticado, com mais conforto. O desayuno foi o ponto alto, com um repertório amplo de guloseimas deliciosas. 
Essa cidade, segundo ouvimos, deve muito aos investimentos nos governos dos dois Kirchners, políticos influentes na região. Criaram um aeroporto, asfaltaram a estrada para o Parque Nacional, organizaram o serviço de passeios de barco e desapropriaram áreas extensas para repassá-las a investidores privados, mediante a contrapartida de investimentos em turismo, tudo nos últimos dez anos. A população da vila quintuplicou, acompanhando o vultoso aumento do turismo. História diferente do que ocorre com Torres Del Paine, de onde viemos, região com potencial muito semelhante de turismo, mas ainda pouco explorado. Por outro lado, um destino bem mais pacato, selvagem e bucólico! 
El Calafate situa-se em um território de estepes, semidesértico, cujas árvores e plantas necessitam de caminhões pipas para crescerem. Transformou-se em enorme pólo de turismo com numerosos serviços, lojas de marcas internacionais na avenida principal, restaurantes sofisticados, base para se visitar o parque onde se situam incríveis geleiras ao redor do maior lago argentino, de nome sugestivo: “Lago Argentino”. 
A geleira que mais se destaca, embora não a maior, é a famosa “Perito Moreno”, com quilômetros de imponentes paredes de gelo. Pode-se vislumbrar sua beleza em passeios de barco, em treckings no gelo ou através de um circuito longo de passarelas de metal recém inauguradas – uma magnífica obra de engenharia – que permite ao visitante – durante todo o ano – caminhar por horas subindo e descendo ao longo de uma montanha a poucos metros da frente do glacial. De quando em quando ouve-se um estrondo que lembra um trovão. É o desprendimento de blocos enormes de gelo em algum ponto dos paredões.
Os outros glaciais desse lago podem ser visitados em apenas um dia, em um passeio grande de barco. Aí o que mais me impressionou foram os imensos icebergs que se desprendem constantemente da geleira Upsala. Alguns deles são capazes de fazer barcas enormes, de mais de três andares, que servem a centenas de turistas todos os dias, parecerem pequenos barquinhos. Sem contar que mais de três quartos de seu tamanho permanece oculto abaixo do nível da água. O mais curioso neles são suas formas caprichosas, fazem lembrar formas ora um tubarão, ora um rato ou uma águia. 
Depois de já estarmos um pouco cansados de tanto gelo, um passeio interessante foi a subida a um enorme canyon com um caminhão 4x4 até mais de mil metros acima da cidade, onde se pode desfrutar de uma ampla vista à beira de penhascos e de uma paisagem de curiosas formações rochosas em meio a um deserto. Enquanto comíamos sanduíches, uma bela raposa de pequena estatura se aproximava respeitosamente do grupo a pedir nossa comida.
Vale a menção gastronômica a dois alfajores caseiros deliciosos preparados por alguém de muito talento que trabalhava na entrada das passarelas do Perito Moreno. Pareciam ter massa de bolo. Outro ponto alto nesse setor foi uma porção maravilhosa de lula com batatas, no “Los Amigos”. 
O último destino na Patagônia foi El Chaltén, em uma curta visita de um dia e uma noite. O povoado é simpático, tranquilo e aconchegante. Fica a apenas três horas de Calafate. Pareceu ter uma dinâmica mais genuína no cotidiano que o destino anterior, que era mais artificial e apenas voltado para o turismo internacional, de gente mais endinheirada. Funciona ali em El Chalten outro tipo de turismo. O local é famoso como um paraíso de trecking e alpinismo. Oferece vários circuitos de passeios, recebe menos famílias com crianças. Só encontramos ali a primeira carne de grande qualidade dessa viagem à Argentina , num restaurante pequeno, despretencioso. 
A região é acidentada, com diversas formações rochosas. A cidadezinha minúscula situa-se na beira de um lago, no sopé de altas montanhas, entre as quais o protagonista é o imponente monte Fitzroy. O cume é cobiçado por alpinistas de todo planeta. Desafortunadamente, um alpinista brasileiro despencara de uma de suas encostas, apenas dois dias antes de chegarmos. A queda foi fatal. 
De manhã fomos de barco até uma das maiores geleiras da Argentina, a Viedma. Paramos junto às rochas vizinhas do paredão glacial, calçamos “grampones”, armações para encaixarmos em nossos calçados, dispostas de várias lâminas afiadas que nos permitem caminhar com segurança sobre o gelo, e recebemos uma aula para andarmos com aqueles apetrechos sobre o gelo. Por cerca de duas horas, percorremos lentamente um trajeto curto em meio fantásticas formações brancas e azuis, subindo e descendo o terreno, por vezes na beira de assustadoras e profundas fendas. É preciso usar luva pra não machucar a mão em alguma eventual queda, na dura e áspera superfície. Óculos escuros são necessários para evitar o intenso brilho do reflexo solar. Embora não estivesse muito sol, o tempo estava quente e esse reflexo deixou os dois com as faces bronzeadas ao redor dos óculos. Ao chegarmos no cume mais alto, os guias nos serviram copos com licor Baileys usando o gelo fresco dali da superfície. 
O circuito é emocionante e os perigos são reais. Outro grupo que saiu quase junto conosco, teve de abreviar bastante o passeio por conta de um russo maluco que desobedecia sistematicamente as instruções de seus guias. Afobado demais, realizou movimentos imprudentes que poderiam ter resultado em acidente grave. Os guias perderam a paciência com o rapaz, a temperatura se elevou e quase houve agressão física.
Na volta, seguimos para o aeroporto de Calafate e deixamos a Patagônia para trás, com muitas boas memórias, fotografias, experiências...
Tivemos ainda um dia e uma noite em Buenos Aires, em escala de voos. Na curta visita retornando à quentíssima e ensolarada Buenos Aires, passeamos tranquilamente por parques em torno do Rosedal e por livrarias. Adoro essa cidade e é sempre um enorme prazer voltar. Ao lado do Cemitério da Recoleta, onde nos hospedamos, ao dar a volta no quarteirão para passar na farmácia, ainda cruzei com um grande amigo por acaso, o Caio Andrea, pessoa que raramente viaja para o exterior e que jamais imaginaria ver por aquelas bandas. Seguia pela calçada apressado, olhando para vitrines, espiei um rosto familiar caminhando com uma moça, reparei algo familiar e segui por mais alguns metros. Pensei com meus botões, mas como esse argentino é parecido com o Caio! Eis que ele, que parecia viver similar surpresa, virou-se pra trás, denunciando a verdade e caímos na gargalhada!
O ponto alto dessa visita à capital argentina foi a comida. Um mero a la plancha da premiada cozinha do Fervor e um magnífico bife de chorizo no Mirasol de La Recova (minha parrilla favorita naquela cidade), foram memoráveis. Os preços estavam bem acessíveis para os brasileiros, no jogo de câmbios. 
O percalço do dente foi contido pelo curativo e não tive mais incômodo com ele na viagem. Segui devidamente a recomendação do dentista de usar apenas com o lado oposto da mandíbula. Na volta pra São Paulo precisarei tratar a questão.  
Foi isso! Acabamos de voltar a São Paulo. Tive tempo apenas pra jogar um monte de roupas na máquina, pagar umas contas atrasadas e me sentei para redigir mais este informe.
Valeu!
Abraços, Beijos!!!
Otávio








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Serras gaúchas – 2012 

 

INFORME DE VIAGEM ÚNICO – 31.07.2012 


Depois de escrever quase que somente informes sobre viagens ao exterior,  era hora de prestigiar a nossa terra natal. Não que nunca tenha explorado alguns sítios desses lados de cá, longe disso, mas muitas viagens por estas bandas foram curtas, sem muitas novidades a ponto de encorajar uma narração ou ocorreram em tempos remotos, antes de eu ter iniciado essa prática de redação de informes, quando a difusão da rede mundial de computadores era incipiente.
Meus apontamentos presentes chegam desde a rodoviária de Caxias do Sul. Estou a aguardar a partida do transporte que nos conduzirá novamente a Gramado, aonde participaremos - eu e minha companheira - de um Congresso de Ciência Política.
Chegamos há alguns dias a Porto Alegre, alugamos um automóvel simples e logo caímos na estrada para o norte. Almoçamos em São Francisco de Paula, com direito à primeira taça de vinho da região e seguimos até o primeiro destino: a charmosa Cambará do Sul, uma cidadela que desfruta do privilegio de contar com dois Parques Nacionais no seu entorno.
Vale uma lembrança: desde a infância guardava uma revista de turismo com belas fotos dos canyons dessa região. Nutri, por anos, longa expectativa por essa visita. Um congresso realizado na região foi um pretexto perfeito para a viagem, permitindo associar trabalho e lazer.
A previsão do tempo prometia dias de chuvas torrenciais, o que, para nossa alegria, não se confirmaria de forma redonda. Restaria-nos o frio; muuito frrrrio! Mas eis um companheiro que não é propriamente desagradável quando se está bem acompanhado e em locais com alguma estrutura. Tivemos acesso a comidas saborosas, inclusive sopas e chocolates, vinhos, lareiras, chuveiros com aquecedor, boas cobertas e camas aconchegantes.
Numa manhã ensolarada partimos para o Parque do Canyon de Fortaleza, um planalto amplo repleto de verde, que desemboca num vale cercado de paredões de pedra de proporções colossais. Admiramos a paisagem a partir de muitos panoramas num percurso longo e sinuoso através de pastos úmidos e floridos que cercam os despenhadeiros. Atingimos o alto de um mirante cuja extensão da vista  abrange até cidades costeiras de Santa Catarina. As pessoas se tornam minúsculos pontos coloridos difíceis de identificar nas fotografias da paisagem.
Ao final, andamos cuidadosamente sobre as pedras mergulhadas num riacho até nos aproximarmos da beira da queda d'água que despenca por centenas de metros de altura. Ali ao lado nos deparamos com uma grande e bonita rocha curiosamente esculpida pelos ventos pendurada na borda de um penhasco.
Canyon Fortaleza. Foto: Otávio Dias de Souza Ferreira. 
Cansados e famintos, desfrutamos uma refeição num restaurante relativamente grande ali perto, edificado numa construção rústica de madeira. O buffet, disposto ao longo da superfície aquecida de um fogão a lenha, oferecia pratos típicos. Comemos bem, ao som de ritmos tradicionalistas gaúchos tocados por um sanfoneiro talentoso.
Manhã seguinte, a profecia de temporais se concretizou parcialmente. Apenas eu, em um grupo de uns dez turistas, estava arrumado e disposto a enfrentar a chuva para visitar os canyons e assim o programa da manha seria cancelado. Ficamos de molho em nosso quarto confortável de madeira na pousada dos simpaticíssimos Julio e Zeney, que nos receberam amavelmente. 
A casa era simples e simpática, toda de madeira, como a maioria das demais da vizinhança. Tinha lareira na sala, junto à entrada. No andar de cima, sob tetos que acompanhavam o declive do telhado, ocupamos um quarto pequeno, que perfazia praticamente o tamanho da cama de casal. Durante as noites fez bastante frio e era duro ficar fora das cobertas. 
O Sr. Julio seria também nosso guia em passeios pelos parques. Parecia o mais velho deles. Mostrou um bom repertório de histórias da região e informações sobre os parques. 
No segundo passeio, visitamos o Parque do Itaimbezinho, depois de um formidável churrasco sulista e de aguardarmos o volume das chuvas diminuir. Creio que fomos os únicos visitantes do parque no final daquela tarde. Durante as andanças pela natureza, o céu permaneceu cinza e as pancadas de chuva íam e vinham. 
O Canyon do Itaimbezinho forma quilômetros de paredes estreitas cercadas por uma vegetação escura e densa. E num espaço relativamente curto, duas magníficas quedas d'água despencam de muitas dezenas de metros de altura, formando lá em baixo um mesmo rio abençoado por rara beleza. O cenário corta a respiração do observador. O temporal tornou o rio ainda mais caudaloso. A paisagem é distinta da do outro parque, com muitas árvores no planalto que cerca o vale, permitindo menor amplitude e cores diferentes na vista. 
Á noitinha tomamos uma deliciosa sopa em um pequeno bar rústico e simpático de Cambará do Sul. Dividimos a garrafa de um bom vinho produzido nessas serras daqui, sentados próximos a uma lareira que tornava o ambiente bem mais aconchegante.
Chegamos a Gramado na manha seguinte, deixamos as bagagens na pousada e logo saímos para passear na vizinha Canela. Comemos num buffet com pratos exóticos e fizemos a digestão caminhando em um parque repleto de imponentes coníferas - incluindo espécies de sequoia.
Na outra manha passearíamos tranquilamente em outro parque, enfrentaríamos uma interminável escadaria com mais de 700 degraus, no que se revela uma instigante obra de engenharia. Construída sob uma densa mata em um relevo íngreme muito acidentado, permite se aproximar bastante de outra enorme cachoeira. As batatas das pernas da Karen ainda não pararam de latejar.
Vale dizer que predominam em todas as cidades nessa região muito verde e construções de influencia arquitetônica europeia, uma boa herança da colonização. E mesmo as casas mais simples são preparadas para resistir às baixas temperaturas de invernos rigorosos. Vinho e suco de uva são itens muito presentes na mesa dos gaúchos das serras.
Devolvemos o carro alugado em Caxias, no escritório mais próximo da locadora. Voltamos de ônibus e a viagem foi relativamente longa. 
Como agora o foco será o congresso, um automóvel já não terá mais grande utilidade. Embora ainda haja tempo para desfrutar de algumas delícias de Gramado, certamente não haverá mais fatos interessantes suficientes para justificar outro informe. De modo que me despeço aqui. E até uma próxima!
Valeu!

Abraços, Beijos!! 

Otávio






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Mendoza e Santiago (2012-2013)



PRIMEIRO INFORME DE VIAGEM (01.01.2013)


Primeiramente, neste dia inaugural de 2013 e antes de iniciar alguma história neste informe, faço os votos de um feliz ano, com muita saúde para todos!
Falo sobre a primeira parte desta viagem em curso. Escrevo desde Mendoza, a oeste de Buenos Aires, região famosa por seus vinhos. Estou longe de ser um entendido na bebida, mas já que viemos até aqui, não custa provar algumas ¨cepas¨.
A viagem não começou por aqui. Chegamos a Santiago, no Chile, eu e Ká, dia 27, em viagem tranquila. Acomodamo-nos em hotel simples situado no bairro Providencia e saímos, famintos, a buscar um estabelecimento para fazermos o câmbio de moedas e outro para almoçarmos. 
A primeira refeição minha teve como prato principal um congrio suculento, mesmo que quase sem temperoO Chile è conhecido, entre outros aspectos, pelos frutos do mar de água gelada do Pacífico. Geograficamente, são abençoados pela corrente de Humboldt, de modo que peixe costuma ser uma excelente pedida. Mas nem sempre! A Ká não deu sorte com a panqueca de frutos do mar que comeu, com a qual seguiria conversando na sua intimidade por horas a fio. 
Seguimos de metrô até um terminal de ônibus. Garantimos nossa passagem para Mendoza para o dia 29. Passamos pela famosa Praça da Moeda, local da trágica morte do Salvador Allende, no cruel golpe de Estado protagonizado pelos
Estados Unidos junto da direita autoritária chilena, em tempos de Guerra Fria. Vimos a estátua desse ex-presidente adiante do Ministério da Justiça, local escolhido provavelmente com alguma ironia.
  
Dali caminhamos longamente pela grande avenida. Embrenhamo-nos pelo charmoso bairro velho repleto de bares e livrarias, próximo à Universidade Católica. Cruzamos um belo parque onde numerosos jovens estendiam-se descontraidamente nos gramados, sob outonais e coníferas que não costumam nascer nas praças no Sudeste do Brasil
Na manhã seguinte, depois da refeição matinal, seguimos para o bairro de Bela Vista, onde Pablo Neruda construiu sua terceira e última casa, para viver seus últimos dias. Morreu provavelmente de desgosto ao ver os militares tomarem o poder. Agendamos a visita na casa para mais tarde. Conhecemos ali por perto  um bar charmoso chamado Casa del Aire , que nos tinha sido recomendado. Além de fazerem empanadas deliciosas, suas paredes vermelhas são forradas de imagens de referências políticas da esquerda latino americana. 
Na casa do poeta chileno, percebemos o quanto sua genialidade extrapolava em muito as letras. Cada habitação ou canto da ¨Chascona¨ (o nome da casa que faz referencia ao apelido de sua última mulher) reserva uma surpresa interessante.
De lá subimos o grande cerro que permite uma privilegiada visão da cidade e de altas montanhas nos arredores. O Sol erguia-se forte, como em todos os dias até agora, clareando até altas horas do dia (que por aqui se esgota por volta das 21hs, no verão).
Depois de degustarmos um ceviche e de caminhadas, acabamos o dia em uma especie de bistrô, comendo salada e uma suculenta tortilla española, bebendo um bom vinho nacional. 
O dia seguinte começou bem cedo rumo a Mendoza. Saímos em longa viagem em direção à Cordilheira dos Andes, com direito a paisagens sensacionais entre as incontáveis curvas da rodovia. 
A primeira impressão de Mendoza, depois de uma caminhada pela tarde, foi a de uma cidade vazia e sem vida. Uma engenhosa obra de irrigação permitiu a transformação de uma região muito seca em uma cidade repleta de verde, com muitas árvores frondosas.  Mendoza é a quarta maior cidade da argentina e a campeã em produção vinícola. Alerto, porém, que a disposição de algumas das canaletas nas calçadas promete ser perigosa para algum borracho desavisado.
Só pela noite, descobrimos uma multidão de turistas espalhada em numerosos bares em uma certa rua ao norte. Nossa primeira parrilla e o primeiro vinho que bebemos da região não foram memoráveis. 
No segundo dia acertamos na carne, mas só hoje – no quarto dia na Argentina -, demos sorte com o vinho. 
Fizemos, logo na chegada, um passeio cansativo em direção à cordilheira. O que parecia quase uma monótona repetição da viagem da véspera pela carretera que cruza os Andes, teve um ¨gran finale¨ que compensou o passeio. Lá pelas tantas o veículo saiu do asfalto, perto da fronteira Chile-Argentina, e subiu uma imensa montanha nevada, por uma sinuosa e precária via até o cume. 
A quatro mil metros de altitude construíram uma estátua de Cristo para celebrar a paz entre as duas nações após um conflito. O vento lá no alto era cortante. A altitude acelerava a palpitação. Mas tudo ao redor era extraordinário. A paisagem era de tirar o fôlego. Permitia-nos ver até o Aconcágua, o mais alto cume dos Andes. Por todos os lados desfilavam picos gelados e formações de pedra e gelo esculpidas pelo vento e pelo movimento das placas tectônicas  milênios a fio. O ambiente inóspito não permitia que nenhuma vida prosperasse, mas paradoxalmente aquele panorama amplo era de encher a vida de quem ali chegasse. 
Mas a escolha do passeio para logo depois de termos chegado do Chile por aquela mesma carretera foi um pouco infeliz. Foi um tanto cansativo e repetitivo. De longa data nutria enorme fascinação pela Cordillera e quando vi o anúncio de um passeio para lá, imaginei um percurso diferente, mais curto e bucólico, por alguma carretera charmosa na zona rural argentina. 
Na volta, em Mendoza, um pouco esgotados, comemos um bife de chorizo suculento, na rua agitada de bares. 
No dia 31, saímos em busca de alimentos e bebidas para a ceia particular que faríamos em nosso espaçoso quarto de hotel. Compramos embutidos e doces bonitos,  um espumante e um vinho, bebidas de marcas mais renomadas - e preços mais salgados - para mitigar os riscos no momento da virada de ano. 
A passagem de ano foi intimista e gostosa. Do alto do nono andar de um dos poucos edifícios elevados do centro de Mendoza, observamos chuvas de fogos por todos os lados nos arredores. As bebidas, entretanto, foram decepcionantes. Apesar da expectativa e investimento, uma estava passada e a outra foi apenas razoável (e olha que nem somos bons entendedores de vinho). 
No fim das contas, não saímos para festejar na cidade. Dormimos relativamente cedo. 
A primeira manhã não teve ressaca. Aproveitamos  muito bem com um longo passeio de horas, conhecendo um imenso parque no alto de Mendoza. Em boa parte do trajeto tivemos a companhia de um simpático cãozinho preto que se afeiçoou por nós. 
No último almoço pegamos leve na comida, depois de dias de refeições pesadas com muita parrilla. Foi quando tomamos o vinho argentino que mais nos agradou; justamente o mais barato que compramos e aquele de uma vinícola que nos parecia menos pretenciosa: a Trapiche. 
Foi um parto encontrar um café expresso que estava sedento para beber, agora há pouco. Enquanto a Ká ficou lendo no hotel, enfrentei uma epopéia pela cidade até achar um único estabelecimento aberto. Depois de tanto esforço, tomei o bendito café com tanto gosto que até o dono pareceu se surpreender com o talvez inesperado sucesso do produto. Precisava demasiadamente dele para redigir este informe.
Compramos jà nossa passagem de retorno a Santiago, onde passaremos mais alguns dias. Amanhã visitaremos duas ou três vinícolas, no que será nosso último dia na Argentina 
Vale mencionar especialmente os sorvetes espetaculares que descobrimos na região. Não deixam nada a dever para os melhores italianos que jà provei.

Reitero o desejo de um grande 2013 para todos!
 
Abraços e beijos!!



SEGUNDO INFORME DE VIAGEM (07.01.2013)


Escrevo já de São Paulo, retomando a sequência da narrativa desde Mendoza.

O último dia de passeios naquela cidade argentina revelou-se como o mais extravagante e memorável. Em apenas um dia, visitamos três vinícolas numa verdadeira saga alcoólica. Cada qual proporcionaria algo especial e exclusivo. Tivemos a agradável companhia de Ana e Flávia – duas mineiras simpáticas que havíamos conhecido no passeio pela Cordilheira e com quem havíamos papeamos longamente em um bar na noite anterior, no planejamento do passeio. 

A jornada começou pela manhã. Fomos em um taxi com motorista, escolha providencial considerando todo o álcool que beberíamos. 

Na famosa e antiga Altavista tivemos uma aula sobre o beabá da produção da bebida, caminhamos pela suas belas e organizadas instalações. Ao final, degustamos três de seus vinhos, de rótulos de diferentes valores. 

Seguimos para a também tradicional Lagarte, onde, após uma aula sobre sua produção artesanal de espumante e visita pelos vinhedos, sentamo-nos num jardim para uma surpreendente refeição harmonizada. Para cada bebida era servida uma comida, somando cinco, no total: um rose, um branco, dois tintos e uma espumante. 

Um tanto cambaleantes depois de todo o ritual, demos passos adiante rumo a outra vinícola. Seu nome pareceu bem apropriado para a ocasião: Renacer. Conhecemos brevemente sua moderna linha de produção e seguimos para a degustação, geralmente a parte mais interessante desses tours. E essa foi distinta. Primeiro, provamos três vinhos brutos extraídos diretamente dos toneis de carvalho. Daí, fizemos uma interessante experiência de elaborar um próprio “blend”, combinando os vinhos brutos, com o auxílio de espécies de tubos de ensaio. Fiquei impressionado ao constatar que a mistura transforma sensivelmente a bebida. Curioso também foi perceber como três vinhos provenientes da mesma uva, mas cultivados em altitudes e terrenos diferentes, podem ser tão diferentes. Na forma mais bruta, nenhum deles era muito gostoso. Mas algumas combinações criaram bebidas bem saborosas. Depois ainda provamos quatro rótulos da vinícola. O último vinho do dia tinha o sugestivo nome de “Punto Final”. 

Ao fim, ficamos os quatro estendidos no gramado da bela propriedade, ao lado das vinhas, desfrutando ebriamente o sol derradeiro da tarde. No retorno, após merecido descanso no quarto do hotel, enfrentei ainda uma sauna. Asseguro que o elevado teor etílico da minha transpiração seria percebido por quem porventura adentrasse o recinto.

Na manhã seguinte enfrentamos a viagem de volta a Santiago. A aduana chilena, ao contrário da argentina, foi extremamente rigorosa e chata. Levaram mais de uma hora e meia para revistar minuciosamente tudo e todos no ônibus. 

Cansados e famintos chegamos a Santiago. 

Hospedamo-nos num apartamento aconchegante perto da estação de metrô Los Leones por um preço super honesto. Com quarto, banheiro, uma pequena sala com cozinha americana, que permitia fazermos o desayuno, o destaque ficava para uma agradável varanda estreita com uma mesinha e duas cadeiras. O andar era elevado e a vista dava para um trecho arborizado de praças, entre as quais a charmosa Praça das Esculturas, junto ao rio Mapocho. Os arredores eram bem servidos de cafés, bares, restaurantes e serviços.   

Deixamos a bagagem na nova hospedagem, e fomos comer num restaurante peruano sensacional, de aparência um pouco decadente, mas com uma qualidade impecável da cozinha e valores honestos. Ao nosso lado reparamos que se sentavam executivos da embaixada do país vizinho, o que era um boa referência. O ceviche divino da entrada conquistou nossa simpatia pelo lugar. 

Muito satisfeitos, seguimos para norte até o local onde a ONU instalou a CEPAL, o PNUD e a OIT. Não pudemos entrar nos edifícios, mas curtimos a região e o agradável parque nos arredores. Chamou-nos a atenção, em exposição de árvores de natal de artistas do mundo inteiro disposta ao ar livre, o fato de encontrarmos uma arte do “Estado Palestino”.

Bem cedo na outra manhã alugamos um carro (que havíamos reservado dias antes) e descemos a serra até o Pacífico. O primeiro destino foi a casa de Pablo Neruda na Isla Negra. Chegar e sair de lá não foi fácil. Mesmo com o GPS (que desta vez funcionaria às mil maravilhas) passamos apuros. Por mais de uma vez, achamo-nos perdidos em estreitas e compridas estradas vicinais desprovidas de sinalização. 

O poeta, que era um colecionador e acumulador inveterado de inúmeros objetos, deve ter vivido maravilhosamente bem por ali, junto ao Oceano Pacífico. O local é mágico! Parece que era ali, bem próximo ao mar, diante de uma bucólica costa com mais rocha escura do que areia branca e daquele horizonte de mar, aonde Neruda mais se inspirou para escrever, sobretudo no inverno gélido.

Nosso destino seguinte foi Valparaiso. Parte do percurso fizemos beirando a costa do Pacífico, espiando o mar e as construções da região. Na chegada, comemos uma empanada medíocre que mais parecia uma esfiha. 

Dentro em pouco, lá estávamos visitando outra bela casa de Neruda, a de Valparaiso. Todas as suas três casas reservam visuais amplos das redondezas e são repletas de surpresas e detalhes inusitados. Embora essa tenha parecido a menos aconchegante, foi também interessante a visita. Situada no alto de um morro íngreme, no declive da cidade de casas coloridas, construída em vários andares estreitos, sua localização permite uma paisagem ampla do oceano lá embaixo, desde as docas de um porto próximo, até praias e horizontes distantes. A destinação dessa residência era mais para festas, eventos e recepções, o que o poeta adorava. 

No resto do dia caminhamos pelas areias da praia principal de Viña del Mar, cidade vizinha. Fizemos essa viagem ao Pacífico numa sexta-feira no intuito de evitar praias muito cheias. Mesmo assim, havia muita gente por lá. Crianças valentes entravam naquele mar gelado, onde só ousamos resvalar os pés. Comemos algo, pegamos a estrada de volta e devolvemos o veículo na locadora.

De volta à noite de Santiago, antes do repouso, provamos deliciosos sorvetes. Conforme corretamente sugerido por uma amiga, nada devem aos gelatos argentinos.

O dia que se seguiu foi dedicado a museus. De manhã, visitamos o enorme espaço cultural sob o Palácio de la Moneda, que apresentava exposição com exemplares preciosos da coleção de Peggy Guggenheim e uma menor, de poucas, mas não menos preciosas, obras de Violeta Parra. Valeu muito! 

Caminhamos para o mercado central, onde nos deparamos com uma ostentação de pescados e mariscos variados de mares gelados, com muitas espécies exóticas. Pedimos uma porção grande com muitas variedades. Era a oportunidade ímpar para provar várias delas. A experiência foi curiosa, mas a cozinha não era refinada e alguns exemplares decididamente não agradaram nosso paladar. Comi bastante, mais do que deveria... 

Santiago do Chile. Foto: Otávio Dias de Souza Ferreira.

 

Em meio à digestão lenta, visitei o museu que parece o mais necessário para inspirar a realidade brasileira: o Museo de la Memoria y los Derechos Humanos. O belo e grandioso edifício foi projetado por um arquiteto brasileiro. Inúmeros recursos tecnológicos interativos tornam assuntos grotescos mais palatáveis para a atenção e compreensão das pessoas. O museu moderno foi inaugurado recentemente, na gestão de Michelle Bachelet. Trata-se de um modelo que deveria ser seguido pelo Brasil. Poderia nos ajudar na deglutição do indigesto passado autoritário, que tantas sequelas legou. O acervo é imenso sobre o terrível regime comandado por Pinochet, mas oferecem também referências sobre ditaduras e iniciativas de justiça de transição de outros países. 

Anoiteceu! Já me sentia recomposto da digestão, quando retornamos ao bar que elegemos como nosso bar favorito na cidade: o Casa en el Aire. Consideramos na escolha sua decoração com temas políticos da esquerda latino-americana e da resistência à ditadura de Pinochet. Combinava com nosso estado de espírito reflexivo que a experiência intensa da tarde propiciou. Cerveja gelada, petiscos apetitosos e canções latino-americanas tocadas ao vivo por bons músicos, um casal de voz e violão, era tudo o que mais precisávamos! 

O último dia reservou-nos um passeio a uma vinícola chilena próxima a Santiago, a Undurraga. Após as três visitas em Mendoza, não apostava muitas fichas nessa. Mas o vinho do Chile é renomado e tinha ouvido boas recomendações sobre o Valle Central. Foi outra grata surpresa. Além de a estância ser linda, com grandes jardins e instalações formidáveis, o guia proporcionou-nos uma aula ainda mais rica que as das visitas anteriores. E os vinhos provados ao final foram de muito boa qualidade. 

No retorno a Santiago, passamos o resto da tarde desfrutando tranquilamente o belo parque do Cerro Santa Lúcia, no Centro. Uma hora caminhamos, outra deitamos em bancos de pedra, na sombrinha, literalmente de pernas para o ar. 

De noite, levamos pra hospedagem uma porção do ceviche do Peru Gostoso. Foi a  ceia de despedida, na varanda, regada por mais um bom vinho, com a paisagem do vale do rio Mapocho e as luzes da cidade. El gran final! 

Cá de volta ao cotidiano da metrópole, resta a memória da experiência vivida, ainda pouco refletida, promessa de suavidade e inspiração nos momentos mais turbulentos que o ano reserva.


 

Valeu!

Beijos , Abraços! 

Otávio