Como um jogo cifrado de concatenação de mensagens e inspirações plurais, nos campos de música, fotografia, prosa, poesia, cinema, esses 'Fragmentos' nos convidam a vivenciar experiências em variadas instâncias, distâncias e temporalidades, no estranhamento, no reconhecimento, na empatia.
"(...) Quando fitava os olhos um pouco violeta de Talita enquanto a ajudava a depenar um pato, luxo quinzenal que a entusiasmava, fã que era o pato em todas as suas apresentações culinárias, Traveler dizia para si mesmo que afinal de contas as coisas não estavam tão mal quanto estavam, e até preferia que Horácio aparecesse para compartilhar um mate, porque nessa oportunidade os dois imediatamente davam início a um jogo cifrado que eles próprios mal compreendiam mas que era preciso jogar para que o tempo passasse e os três se sentissem dignos uns dos outros. Além disso, liam, porque de uma juventude coincidentemente socialista e um pouco teosófica pelo lado de Traveler, os três amavam, cada um à sua maneira, a leitura comentada, as polêmicas pelo gosto hispano-argentino de querer convencer e não aceitar jamais a opinião contrária, e as possibilidades inegáveis de rir feito loucos e sentir-se acima da humanidade doente sob o pretexto de ajudá-la a sair de sua medrosa situação contemporânea." (Rayuela, Julio Cortazar)
Fragmento
Acabo de soñar. Porque es mi empeño
imaginar que infamias e miserias
fantasmas son de un borrascoso sueño.
No faltará quien diga y apoyado
por la recta razón de que me alejo
que tengo yo un soñar muy dilatado
y a la región de un mundo no probado
arrebatar por mi ilusión me dejo -
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No tengo yo la ley de la medida
ni las sendas hollé de la materia
ni obedecí la historia empobrecida
que hace del mundo miserable feria;
Pero siento otras leyes y otra vida
y no es ley de la vida la miseria!-
ni enseño yo sentencia demostrada,
ni exactas leyes de la ciencia enseño,
Mas huyo horrorizado de la nada
y en la fe de otro ser asegurada
las leyes dejo de este ser, y sueño;
Que tengo para mi que así soñando
mientras otros de mi se van riendo,
ellos detrás de mi se van quedando
y yo la cierta vida voy viviendo.
MARTI, José. Poesia Completa
“- Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sirva de taças repletas seu erro. Qeum só saboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo, alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por completo, deve reconhece-lo como erro, conquanto não seja demente.
Cerrou-se novamente a cortina, e Wilhelm teve tempo para refletir: ‘De que outro erro esse homem poderá estar falando’, disse a si mesmo, ‘senão daquele que me perseguiu ao longo de toda minha vida, que me fazia buscar formação ali onde não havia nenhuma e imaginar que podia adquirir um talento para o qual não tinha a menor disposição?’.
A cortina se abriu bruscamente, agora com maior rapidez, e um oficial se aproximou, dizendo como de passagem:
- Aprenda a conhecer os homens nos quais pode confiar!
Cerrou-se a cortina, e Wilhelm não precisou refletir muito tempo para reconhecer naquele oficial o homem que lhe abraçara no parque do conde e que fora culpado por haver ele considerado Jarno um recrutador. Como chegara ali e quem poderia ser, era para Wilhelm um total enigma.
-Se tantos homens se interessavam por ti, se conheciam o curso da tua vida e sabiam o que te era conveniente fazer, por que não te guiaram de um modo mais rigoroso, mais sério? Por que favoreciam teus jogos, ao invés de te afastarem deles?
- Não discutas conosco! – clamou uma voz. – Estás salvo e a caminho de tua meta. Não te arrependerás de nenhuma de tuas loucuras, tampouco sentirás falta delas; não pode haver para um homem destino mais venturoso.
Abriu-se de par a par a cortina e o velho rei da Dinamarca, com todas as suas armas, adentrou o recinto.
- Sou o espírito de teu pai – disse a imagem – e me despeço consolado, pois meus desejos por ti se cumpriram, mais do que me foi dado compreendê-los. Regiões íngremes só podem ser escaladas por atalhos; na planície, caminhos retos conduzem de um lugar a outro. Adeus, e pensa em mim quando estiveres desfrutando o que te preparei.
Wilhelm estava profundamente impressionado; acreditava ouvir a voz de seu pai e, no entanto, não era ela; através da presença e da lembrança ele se encontrava num estado de tremenda confusão.
Não pôde refletir por muito tempo, pois nesse momento entrou o abade e colocou-se atrás da mesa verde.
- Aproxime-se! – ordenou a seu atônito amigo.
Ele se aproximou e subiu os degraus. Sobre o tapete havia um pequeno rolo.
- Aí está sua carta de aprendizado – disse o abade. – Tome-a e peito, pois seu conteúdo é importante.
Wilhelm apanhou-a, abriu-a e leu.
Carta de Aprendizado
‘Longa é a arte, breve a vida, difícil o juízo, fugaz a ocasião. Agir é fácil, difícil é pensar; incômodo é agir de acordo com o pensamento. Todo começo é claro, os umbrais são o lugar da esperança. O jovem se assombra, a impressão o determina, ele aprende brincando, o sério o surpreende. A imitação nos é inata, mas o que se deve imitar não é fácil de reconhecer. Raras as vezes em que se encontra o excelente, mais raro ainda apreciá-lo. Atraem-nos a altura, não os degraus; com os olhos fixos no pico caminhamos de bom grado pela planície. Só uma parte da arte pode ser ensinada, e o artista a necessita por inteiro. Quem a conhece pela metade, engana-se sempre e fala muito; quem a possui por inteiro, só pode agir, fala pouco ou tardiamente. Aqueles não têm segredo nem força; seu ensinamento é como pão cozido, que tem sabor e sacia por um dia apenas; mas não se pode semear a farinha, e as sementes não devem ser moídas. As palavras são boas, mas não o melhor. O melhor não se manifesta pelas palavras. O espírito, pelo qual agimos, é o que há de mais elevado. Só o espírito compreende e representa a ação. Ninguém sabe o que ele faz quando age com justiça; mas do injusto temos sempre consciência. Quem só atua por símbolos é um pedante, um hipócrita ou um embusteiro. Estes são numerosos e se sentem bem juntos. Sua verborragia afasta o discípulo, e sua pertinaz mediocridade inquieta os melhores. O ensinamento do verdadeiro artista abre o espírito, pois onde faltam as palavras, falta a ação. O verdadeiro discípulo aprende a desenvolver do conhecido o desconhecido e aproxima-se do mestre’.” [Os anos de aprendizado de Wilhelm Meinster , Johann Wolfgang Goethe]
para decir: La amo a usted con locura.
para gritar: ¡La quiero tanto!
para llorar acurrucado en su seno.
para sentir, bajo la tierra húmeda de mis jugos,
que me crece una flor rompiéndome el pecho,
una flor, y decir:
Nicolas Guillen
"Era uma decisão política, é claro; ainda que a forma como cada um pensava nesse aspecto da decisão fosse, na realidade, diametralmente oposta. Para Ela, voltar para o centro era uma maneira de ser coerente com suas ideias sobre as relações de um indivíduo com o lugar onde mora, e com o propósito que a levara a se tronar arquiteta, no começo da juventude. Para Ele, ao contrário, era uma forma de resistência. Um modo de realizar um gesto belo e talvez inútil em direção à maneira em que acreditava que as coisas deveriam ser, e muito provavelmente, nunca mais voltariam a ser. Para Não era pessimismo — embora pudesse ser considerado assim, obviamente, se alguém assim o desejasse —, e sim uma convicção que tinha havia alguns anos, resultado da simples observação: que a geração à qual Ela e Ele pertenciam era a última que nascia livre, relativamente a salvo — e só para aqueles que puderam se beneficiar de um privilégio de que ambos desfrutavam, é claro — do medo, que algumas pessoas haviam instaurado como regime político dominante desde que um punhado de fanáticos destruíra duas torres em Nova York, e da vigilância por parte do Estado e das empresas, que uns e outros justificavam em nome da segurança. Outras pessoas usavam argumentos parecidos — e também errôneos, deliberada ou involuntariamente — para justificar, de alguma forma, o fim dos empregos estáveis, a eliminação dos direitos dos trabalhadores, a desarticulação da cultura criada pelos trabalhadores, o surgimento de um hiato, de um novo domínio a meio caminho entre o mundo real e aquilo que é chamado, de maneira imprecisa, de “os ambientes digitais”, onde as mentiras e as falsidades difundidas tão facilmente acabam projetando suas consequências sob a forma de regimes totalitários e abertamente contrários às liberdades individuais. Nem mesmo a convicção de que as nações têm o direito de cometer erros e de que a história está o tempo todo repetindo a si mesma — sem nos ensinar nada, é claro — fora capaz de prepará-lo para a sociedade em que ambos se viram arremessados; era como se o projeto — ou, mais exatamente, a promessa, nunca cumprida totalmente — que poucos séculos atrás um grupo de pessoas ingênuas e lúcidas formulara em uma certa Declaração dos direitos do homem e do cidadão tivesse sido cancelado, interrompido antes mesmo de começar, e sem que ninguém tivesse sido avisado. Contra o projeto de uma sociedade de iguais — com seus erros lamentáveis e as terríveis tragédias que causou, isso também precisava ser dito —, se opunham antigas e novas ideias. Os partidários das ideias antigas repudiavam esse projeto por considerarem que eles mesmos não eram iguais às outras pessoas, por exemplo as de outro gênero ou raça; já os defensores das novas ideias falavam a partir de uma diferença que os individualizava e, ao mesmo tempo, os invalidava como participantes do tipo de debate que forma a vida política de uma sociedade. Eram imigrantes, mulheres negras, homossexuais, ativistas sociais, representantes de minorias religiosas e étnicas; estavam provocando uma reviravolta na relação entre opressores e oprimidos, mas, em última instância — e este era um dos motivos que o preocupavam, ainda que Ele estivesse, inevitavelmente, do lado deles —, os esforços dessas minorias não questionavam a forma, a estrutura dessa relação, que continuava a existir, mas com outro nome." (Amanhã teremos outros nomes, Patrício Prom)
Somewhere only we know - Keane
"A grandeza da democracia consiste em nada negar, nem nada renegar da humanidade.
Próximo ao direito do Homem, pelo menos ao lado, há o direito da Alma. Esmagar os fanatismos e venerar o infinito, tal é a lei. Não nos limitemos a prostrar-nos sob a árvore da Criação e a contemplar seus imensos ramos cheios de astros. Temos um dever: trabalhar para a alma humana, defender o mistério contra o milagre, adorar o incompreensível e rejeitar o absurdo, não admitir, a respeito do inexplicável, senão o necessário, sanear a crença, tirar as superstições de cima da religião, livrar Deus das lagartas." (Os miseráveis, Victor Hugo)
"Jack! Quando uma criança pergunta alguma coisa, você precisa responder, pelo amor de Deus. Mas sem exagerar. Crianças são crianças, mas elas percebem uma evasiva mais rápido que os adultos e ficam confusas. Hoje à tarde você deu a resposta certa – avaliou meu pai - , mas pelas razões erradas .Falar palavrões é uma fase pela qual todas as crianças passam, e com o o tempo desaparece, quando elas percebem que não estão conseguindo chamar a atenção. Já o pavio curto é outra coisa. Scout precisa aprender a se controlar, e precisa aprender logo, considerando que vai enfrentar nos próximos meses. Mas ela tem se esforçado. Jem está amadurecendo e ela segue bastante o exemplo dele. Às vezes só precisa de um pouco de ajuda.
- Átticus, você nunca bateu nela – lembrou tio Jack.
- É verdade. Até agora, só precisei ameaçar. Mas Scout me obedece como pode. Não faz exatamente o que deveria, mas tenta.
- Essa não é a questão – disse tio Jack.
- Não, a questão é que ela sabe que eu sei que ela tenta. E é isso que importa. O que me preocupa é que ela e o Jem vão ter que lidar com muitas coisas ruins em breve. Não me preocupo com Jem, ele sabe se controlar, mas Scout pode pular no pescoço de alguém se achar que sua honra foi atacada...
Pensei que tio Jack ia quebrar a promessa que tinha feito. Mas ele não disse nada.
- Atticus, quão ruim é esse caso? Ainda não tivemos oportunidade de falar sobre isso.
- Não poderia ser pior, Jack. Só temos a palavra de um negro contra a dos Ewell. As provas se resumem a ‘você fez’ contra ‘não fiz’. O júri certamente não vai aceitar a palavra de Tom Robinson contra a dos Ewell. Sabe quem são eles?
Tio Jack disse que sim, que se lembrava deles. Descreveu-os para Atticus, que disse:
- Você está atrasado uma geração. Mas eles continuam os mesmos.
- Então o que você vai fazer?
- Antes de terminar a defesa, pretendo sacudir um pouco o júri... Mas acho que temos uma boa chance de apelação. A essa altura, não sei, Jack. Gostaria de nunca enfrentar um caso assim na vida, mas John Taylor apontou o dedo para mim e disse: ‘Você vai fazer a defesa.’
- Você preferia não ter que fazer isso, não é?
- É. Mas depois não teria coragem de encarar os meus filhos. Você sabe o que vai acontecer tanto quanto eu, e espero que Jem e Scout passem por isso sem sofrimento e principalmente sem pegar essa doença tão comum em Maycomb. Como pessoas razoáveis ficam possessas quando se trata de qualquer coisa relacionada com um negro eu nunca vou entender... Só espero que Jem e Scout venham me procurar quando quiserem respostas em vez de ficarem dando ouvidos ao que se fala pela cidade. E que confiem em mim... Jean Louise?
Meus cabelos ficaram em pé. Enfiei a cabeça na porta.
- Sim?
- Vá dormir.
Corri para o meu quarto e deitei na cama. Tio Jack tinha sido um cavalheiro por não me desapontar. Mas nunca descobri como Atticus sabia que eu estava escutando, e só muitos anos depois compreendi que ele queria que eu ouvisse cada palavra". (O Sol é para todos, Harper Lee)
"Fazia um grande silêncio nas ruas; ao longe ladrava tristemente um cão, e, de vez em quando, ouviam-se ecos de uma música distante. E Raimundo ali, no desconforto do seu quarto, sentia-se mais só do que nunca; sentia-se estrangeiro na sua própria terra, desprezado e perseguido ao mesmo tempo. 'E tudo, por quê?...' - pensava ele - 'porque sucedera sua mãe não ser branca!... Mas do que servira então ter-se instruído e educado com tanto esmero? Do que servira a sua conduta reta e a inteireza de seu caráter? ... Para que se conservou imaculado?... Para que diabo tivera ele a pretensão de fazer de si um homem útil e sincero? ...' E Raimundo revoltava-se. 'Pois, melhores que fossem as suas intenções, todos ali o evitavam, porque a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser branco e não ter nascido livre? Não lhe permitam casar com uma branca? De acordo! Vá que tivessem razão! Mas por que insultá-lo e persegui-lo? Ah! Amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu o africano no Brasil! Maldita! Mil vezes maldita!' Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no tronco, debaixo do relho? E lembrar-se de que ainda havia surras e assassínios irresponsáveis tanto nas fazendas como nas capitais!... Lembrar-se de que ainda nasciam cativos porque muitos fazendeiros, apalavrados com o vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da lei do ventre livre!... Lembrar-se de que a consequência de tanta perversidade seria uma geração de infelizes, que teriam de passar por aquele inferno em que ele agora se debatia vencido! E ainda que o governo tinha escrúpulo de acabar por uma vez com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por ser comprado e revendido em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser um roubo para ser uma propriedade!" (O mulato, Aluisio de Azevedo)
"Afoxé Ioni
E Ioni
Afoxé ê Ioni ê
O Coro ia avante, na cantiga e na dança.
E Ioni ô imalé xê.
Tem encantamento hoje, diziam, hoje tem encantamento. A corte de Oxalá, tema escolhido para o préstito, obteve tal sucesso que já no ano seguinte o Afoxé dos Pândegos da África juntava-se à Embaixada, fundado e dirigido por uma gente de nação angola, com sede em Santo Antônio do Carmo. Mais um ano e eram cinco a entoar o canto dos negros e mulatos, até então reduzidos ao esconso das macumbas - o samba nas ruas foi de todos.
Tão de agrado de todos esse canto dos negros, esse samba de roda, a dança, o batuque, o sortilégio dos afoxés - que outro jeito senão proibí-los?
As gazetas protestavam contra o 'modo por que se tem africanizado, entre nós, a festa do Carnaval, essa grande festa de civilização'. Durante os primeiros anos do novo século, a campanha de imprensa contra os afoxés cresceu violenta e sistemática a cada sucesso dos 'cordões dos africanos' e a cada fracasso das grandes sociedades carnavalescas - com a Grécia antiga, com Luís XV, com Catarina de Médicis - , ai-jesus dos senhores do comércio, dos doutores, dos ricos. 'A autoridade deveria proibir esses batuques e candomblés, que, em grande quantidade, alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme barulhada, sem som nem som, como se estivéssemos na Quinta das Beatas ou no Engenho Velho, assim como essa mascarada vestida de saia e torço, entoando o abominável samba, pois que tudo é isso incompatível com o nosso estado de civilização', bradava o Jornal de Notícias, poderoso órgão das classes conservadoras.
Alastravam as ruas os afoxés, a corromper, a envilecer. O povo, nos requebros do samba, já não tinha olhos nem admiração para os carros alegóricos das Grandes Sociedades, para seus temas da corte da França, distante o tempo 'quando o entusiasmo explodia à passagem dos clubes vitoriosos, monopolizando todas as atenções'. O editorialista exigia providências radicais: 'O que será do Carnaval de 1902, se a polícia não providenciar para que nossas ruas não apresentem o aspecto desses terreiros onde o fetichismo impera com seu cortejo de ogãs e sua orquestra de ganzás e pandeiros?'. Os afoxés na praça e na rua, em primazia; cada qual mais triunfal e rico em cores e melodias, em passos de samba - em frente ao Politeama, no Campo Grande, na rua de Baixo, no largo do Teatro. Obtinham triunfo e mais triunfo, aplausos, palmas e até prêmios. Alastravam as ruas, afoxés e samba, uma epidemia. Só um remédio drástico." (Tenda dos Milagres, Jorge Amado)
"María le cuenta que en Las Mellizas las mujeres siempre se reunían en el patio de atrás de la casa. Ese parecía ser el lugar destinado a las mujeres, cerca de los niños, de la cocina, de los lavaderos. A María le gustaba ese lugar y allí pasaba horas y horas sentada en la bacinica, rodeada de lenguas que no paraban, de corridos mejicanos, de olores cocinándose. Cuando un día oyó a un amigo de su padre sugerirle achicar el living para ampliar el patio de atrás, ya que no había tenido hijo varón, a María le resultó de lo más coherente. Más tarde habría de definir la existencia de las mujeres en los hombres como en el patio de atrás de sus mentes. Y la existencia de las mujeres en el trabajo como en el patio de atrás de la sociedad, el lugar secundario. Para ella, aun aceptando que este fuera considerado de segundo rango, era el lugar más cálido. Ahí fue instalada su cantora y desde allí fue espectadora del acontecer." (Nosotras que nos queremos tanto, Marcela Serrano)
[ERA UMA VEZ TRÊS IRMÃS: MARIA, LÚCIA, (...)]
“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.” (O avesso da pele, Jeferson Tenório)
"El dominio de Amaya sobre el grupo era indiscutible. Una noche en que Marta les dijo que todos deberían transportarse a Coyoacán, a la Casa Azul de Frida Kahlo, porque Diego y Frida daban una gran 'pachanga' y tenían el privilegio de haber sido invitados, Amaya dijo en voz muy baja que ella, desde luego, no iría. Le hicieron rueda: claro, vamos, es fascinante, Amaya, hay que conocer su colección de arte precortesiano, dicen que es espléndida, sus fiestas son típicamente mexicanas. Entonces Amaya fue levantando la voz poco a poco y estalló en una cólera que le despejaba la mente y la hacía hablar como una iluminada.
—Eso es folclorismo, exotismo. Si de algo hay que huir es del pintoresquismo. Nada le hace tanto daño al país como esas farsas.
—¿Farsa el ser mexicano?
—¿A poco no es una farsa vestirse de huehuenche o de tehuana para la cena cuando del diario las señoras andan con modelitos de París o de perdida de falda y blusa como todo mundo? Todavía Frida Kahlo, la tullida, usa enaguas para esconder su columna rota y su pata flaca, pero las demás, ¿a qué le tiran? Andrés Henestrosa cambió Juchitán por una curul en el Congreso.
Le dio un prolongado trago a su bebida en medio del estupor y continuó:
—¿Qué caso tiene entonces vestirse de calzón de manta los sábados en la noche? Basta ya de explotar a este pobre país y burlarse de los indios.
—Nadie se burla, Mayita, cálmate.
—Ellos sí tienen derecho a los atuendos 'típicos', nosotros no. ¿No se han dado cuenta de que la esencia de México no está en sus lanas de colores y en sus aguas de chía, sino en algo mucho más profundo: su miseria? ¿A que ésa no se la cuelgan como molcajete? ¿Por qué en vez de reunirse a beber tequila y curado de fresa y comer romeritos no se dan una vuelta por el Mezquital para ver lo que traen entre el ombligo y el espinazo aquellos cuyos trajes copian como si fueran mamarrachos?" (Paseo de la Reforma, Elena Poniatowska)
"(...) Será que chego vivo ao réveillon de 71? Como sobreviver 365 dias com seus milhares de minutos escondidos, um atrás. do outro, na incerteza inexorável do tempo?
Quantos de nós estavam destinados a viajar uma notícia de jornal, uma foto macabra? Aquele fim de ano fora funesto. Em novembro, a morte de Marighela, metralhado numa cilada do DOPS paulista.
Tortura. Antes era uma imagem vaga, saída de algum filme: porradas, gritos, pontapés. Não me assustava demasiado. Porrada aguento fácil. Só que era muito pior. Há dias tínhamos recebido um manuscrito elaborado pelo Angelo Pezzuti e outros presos da COLINA, na penintenciária de Linhares. Era a primeira denúncia que alguém conseguia colocar fora da prisão.
Continha um relato horripilante de dezenas de casos em Minas e no Rio.
Mais do que técnicas de suplício reveladas nos seus detalhes: choques elétricos, afogamento, pau de arara etc.; o que chocava era o sadismo, a maldade imensurável, a degradação humana. O objetivo fundamental da tortura era destruir a personalidade do preso, triturar a sua condição de ser humano, humilhá-lo nos cantos mais recônditos do seu ego, violentar as suas mais ocultas fraquezas. Era executada e cientificamente aperfeiçoada por seres totalmente deformados, imbuídos de uma mentalidade nazista. Adoravam fazer aquilo e tinham todo o tempo.
Como vampiros que têm que chupara sangue para não morrer, eles precisavam se nutrir do sofrimento dos outros, dos seus gritos de dor, do seu medo, para se sentirem bem. Contavam os companheiros, que nos raros dias em que não havia torturas e gritos de dor, eles ficavam nervosos, angustiados." (Os Carbonários, Alfredo Sirkis)
Mis deberes caminan con mi canto:
soy y no soy: és ese mi destino.
No soy sino acompaño a los dolores
de los que sufren: son dolores míos.
Porque no puedo ser sin ser de todos,
de todos los callados y oprimidos,
vengo del pueblo y canto para el pueblo:
mi poesía es cántico y castigo.
Me dicen: perteneces a la sombra.
Tal vez, tal vez, pero a la luz camino.
Soy el hombre del pan y del pecado
y no me encontrarán entre los libros,
sino con las mujeres y los hombres:
ellos me han enseñado el infinito.
Pablo Neruda
"Pensar, capitán Montes, capitancito, que podías haber seguido durmiendo la siesta, y en ese caso aún no habrías enfrentado [quizás tendrías que enfrentarla mañana, aunque nunca se sabe cómo funcionan en los chicos las claves del olvido] la pregunta que en este instante te formula tu hijo, sentado frente a vos en la silla negra: ‘Pa, ¿Es cierto que vos torturás?’ Y tampoco te habrías visto obligado, como ahora, después de tragar fuerte, a responder con otra pregunta: ‘¿Y de dónde sacaste eso?’, aun sabiendo de antemano que la respuesta de Jorgito va a ser: ‘Me lo dijeron en la escuela’. Y claro, decís, masticando cada sílaba: ‘No es cierto. No es cierto como te lo dijeron. Pero hijito, tenés que comprender que estamos luchando con gente muy pero muy peligrosa que quiere matar a tu papá, a tu mamá, y a muchas otras personas que vos querés. Y a veces no hay más remedio que asustarlos un poco, para que confiesen las barbaridades que preparan’. Pero el insiste: ‘Está bien, pero vos… ¿torturás?’ Y de pronto te sentís cercado, bloqueado, acalambrado. Sólo atinás a seguir preguntando: ‘¿Pero a que le llamás tortura?’ Jorgito está bien informado para sus ocho años: ‘¿Cómo a qué? Al submarino, pa. Y a la picana, y al telefono’. Por primera vez esas palavras te taladran, te joden. Sentís que te pones rojo, y no tenés modo de evitarlo. Rojo de rabia, rojo de vergüenza." (Con y sin nostalgia, Mário Benedetti)
"Do outro lado da estrada, na serraria, a fumaça saía da chaminé, e Anselmo podia sentir o seu cheiro, soprado pelo vento na sua direção, através da neve. 'Os fascistas estão aquecidos e confortáveis', pensou, 'e amanhã à noite vamos matá-los. É uma coisa estranha e eu não gosto de pensar a respeito. Vigiei-os durante o dia inteiro e eles são homens iguais a nós. Acredito que eu poderia caminhar até a serraria e bater na porta, e seria bem-vindo, exceto pelo fato de que eles têm ordens para abordar todos os viajantes e pedir os seus documentos. São apenas as ordens que nos separam. Aqueles homens não são fascistas. Eu os chamo assim, mas eles não são. São homens pobres iguais a nós. Jamais deveriam estar lutando contra nós, e não gosto de pensar no ato de matar.'
'Estes no posto são galegos. Sei, de ouvi-los conversar hoje à tarde. Não podem desertar porque, se o fizerem, suas famílias são fuziladas. Galegos são ou muito inteligentes, ou muito burros e brutais. Conheço os dois tipos. Lister é um galego da mesma cidade de Franco. Imagino o que estes galegos estão achando desta neve nesta época do ano. Eles não têm montanhas altas como estas, e na região deles chove constantemente, e está sempre tudo verde.'
Uma luz transparecia através da janela da serraria. Anselmo tremia de frio e pensou: 'Inglés desgraçado! Lá estão os galegos, aquecidos, numa casa no nosso país, e eu congelando atrás de uma árvore, morando num buraco nas rochas, como animal das montanhas. Mas, amanhã, as feras sairão dos seus buracos, e estes, que estão agora tão confortáveis, morrerão aquecidos nos seus cobertores. Como aqueles que morreram à noite, quando assaltamos Otero.' Ele não gostou de relembrar Otero.
Em Otero, naquela noite, fora a primeira vez que ele matara alguém, e esperava não precisar matar nessa ação contra esses postos. (...)
'Está frio demais. Que aquele Inglés venha logo, e que eu não tenha que matar nesses negócio dos postos. Esses quatro galegos e o cabo são para quem gosta de matar. Foi o que o Inglés disse. Eu o farei, se for a minha tarefa, mas o Inglés disse que eu estarei com ele na ponte, e que o resto será deixado para os outros. Haverá uma batalha na ponte e, se for capaz de aguentar uma batalha, então eu teria feito tudo que um velho pode fazer nesta guerra. Mas, que venha agora, estou congelado e ver aquela luz dentro da serraria, onde sei que os galegos estão aquecidos, me faz sentir ainda mais frio. Queria estar em minha casa novamente, e que esta guerra tivesse acabado. Mas agora não tenho mais casa. Temos que vencer esta guerra, ou jamais voltarei para minha casa'." [Por quem os sinos dobram, Ernest Hemingway]
"Era uma vez um vendedor de brinquedos que se chamava Sigismund Markus e vendia, entre outros, tambores de lata esmaltados de vermelho e branco. Oskar, que acabamos de mencionar, era o principal comprador dos ditos tambores, porque era tambor de profissão e não podia nem queria viver sem tambor. Por essa razão correu da sinagoga em chamas até a passagem do Arsenal, pois ali vivia o guardião de seus tambores: mas encontrou-o em um estado que o impossibilitava de vender tambores daí por diante ou pelo menos neste mundo.
Eles, os mesmos artífices do fogo, que Oskar acreditava ter deixado atrás, já tinham-se adiantado e visitado Markus, molhado em cor o pincel e escrito em escrita Sütterklin, ao longo da vitrine, as palavras 'porco judeu'; a seguir, descontentes talvez com sua própria caligrafia, arrebentaram com os tacões de suas botas o vidro da vitrine, de modo que o título que haviam conferido a Markus mal se deixava adivinhar. Desprezando a porta, entraram na loja pela vitrine arrebentada e brincavam, com seu estilo característico, com os brinquedos de crianças. Ainda os encontrei brincando quando, também pela vitrine, entrei na loja. Alguns tinham baixado as calças e depositado uns salsichões marrons, nos quais se podiam ver ainda ervilhas maldigeridas, sobre barquinhos a vela, sobre macacos violinistas e sobre meus tambores. Todos se pareciam com o músico Meyn e usavam uniformes de SA como Meyn, mas Meyn não estava ali, assim como os que estavam ali tampouco estavam em outra parte. Um deles sacara o punhal. Abria com ele o ventre das bonecas e parecia se surpreender cada vez com o fato de que dos corpos e membros repletos saía apenas serragem. Eu estava inquieto por causa dos meus tambores. Meus tambores não gostavam deles. Meu instrumento não se atreveu a enfrentar a cólera deles; teve de permanecer mudo e dobrar os joelhos. Mas Markus escapara à cólera deles. Quando quiseram falar com ele em seu escritório, não lhes ocorreu bater com os nós dos dedos e rebentaram a porta apesar de não estar fechada. O vendedor de brinquedos estava sentado atrás de sua escrivaninha. Como de costume, usava guarda-pó sobre o traje cinza-escuro de todos os dias. Um pouco de caspa sobre os ombros revelava a enfermidade de seu cabelo. Um SA que trazia na mão alguns títeres deu-lhe uma bordoada com a madeira da avó-marionete; a Markus, porém, já não se podia falar, nem se podia ofender. Sobre a escrivaninha via-se um copo d’água que a sede o fez esvaziar no instante preciso em que o ruído da vitrine saltando em estilhaços veio lhe secar a garganta.
Era uma vez um tambor chamado Oskar. Quando lhe tiraram o vendedor de brinquedos e saquearam a loja do vendedor de brinquedos, teve o pressentimento de que para os tambores anões de sua espécie se anunciavam tempos calamitosos. Assim, ao deixar a loja, surrupiou um tambor bom e outros dois quase incólumes e, dependurando-os no pescoço, deixou a passagem do Arsenal e dirigiu-se ao mercado do Carvão para ter com seu pai, que talvez estivesse procurando por ele. Caía a tarde de um dia de novembro. Junto ao teatro Municipal, perto da parada do bonde, algumas religiosas e algumas moças feias tiritavam de frio e distribuíam brochuras piedosas, recolhiam dinheiro em caixinhas de lata e levavam entre duas hastes um estandarte cuja inscrição citava a Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 13: 'Fé — Esperança — Amor', leu Oskar, e podia brincar com as três palavrinhas feito um malabarista com suas garrafas: crédulo, gotas de Esperança, pérola de Amor, fábrica Boa Esperança, leite de Virgem do Amor, assembleia de crentes. Achas que vai chover amanhã?
Todo um povo crédulo em Papai Noel. Mas Papai Noel era na realidade o homem que acendia os bicos de gás. Ao que parece, estaremos logo no primeiro domingo do Advento. E o primeiro, segundo, terceiro e quarto domingos do Advento abriam-se como se abrem os registros do gás, para que, cheirando plausivelmente a nozes e amêndoas, todos os papa-moscas pudessem acreditar resolutamente: Já vem! Já vem! Quem vem? O Menino Jesus, o Salvador? Ou era o celestial homem do gás com o gasômetro fazendo tique-taque sob o braço? E ele disse: Eu sou o Salvador deste mundo, sem mim não podeis cozinhar. E aceitou o diálogo, ofereceu uma tarifa favorável, abriu os registrozinhos de gás recém-polidos e deixou sair o Espírito Santo, para que se pudesse assar a pomba.
(...)
Quanto a mim, arrebataram-me o vendedor de brinquedos e, com ele, queriam eliminar do mundo os brinquedos." [O tambor, Gunther Grass]
"No meio da inquieta aglomeração, Gabriel Heliodoro acabou por perder de vista tanto Frances como Rosalía. Ia servir-se duma coxa de galinha, bem tostada, como gostava, quando viu, do outro lado da mesa, a sorrir para ele, um general americano fardado. Com a velocidade da luz, o pensamento do Embaixador transportou-o a Soledad del Mar. Um anoitecer de verão, em 1915. Ele tinha doze anos e estava espiando o bivaque dos marines dos Estados Unidos. Um sargento brandiu no ar uma perna de galinha. Os meninos descalços, esfarrapados e famintos da vila ergueram os braços magros e gritaram: 'Atira! Atira!'. O americano jogou na direção deles o pedaço de galinha. Gabriel Heliodoro, o mais alto de todos, apanhou-o antes que ele caísse ao solo, apertou-o contra o peito e tratou de safar-se. Um dos companheiros agarrou-o pelos joelhos e ele tombou, esborrachando o nariz contra o chão, mas não largou a perna de galinha. Os outros atiraram-se em cima dele, aos gritos, rasgaram-lhe a camisa, arranharam-lhe as costas, morderam-lhe os braços, golpearam-lhe a cabeça, e só o deixaram em paz quando outros fuzileiros surgiram e puseram-se a atirar para o meio deles umas moedas de níquel que tinham a imagem dum búfalo em relevo numa das faces. Gabriel Heliodoro precipitou-se para a igreja, onde entrou, ofegante da luta e da corrida. Pôs-se a comer vorazmente a coxa de galinha, que sabia a tempero de gringo, suor de seu corpo, poeira e sangue — o sangue que lhe escorria morno do nariz. Enquanto comia, olhava para a imagem da Virgem, sua madrinha. Estava meio envergonhado por ter aceito restos de comida daquela tropa estrangeira que havia desembarcado em Soledad del Mar especialmente para matar Juan Balsa e seus guerrilheiros. Por um instante mágico, Gabriel Heliodoro conseguiu recapturar as imagens e sensações daquele episódio remoto de sua vida. Sorria agora, olhando para o prato. Num impulso, espetou um garfo na perna de galinha que havia escolhido para si mesmo e praticamente atirou-a no prato do general, que a princípio pareceu um pouco chocado mas em seguida, descobrindo cordialidade no gesto do anfitrião, sorriu, agradecido." (O senhor embaixador, Erico Verissimo)
Carlos Drummond de Andrade
“Na escura prisão de Conciergerie, os que deviam morrer aguardavam se destino. Eram em número igual ao das semanas do ano. Dos vagalhões da cidade para oceano eterno e infinito, cinquenta e duas cabeças rolariam naquela tarde. Antes que esvaziassem suas celas, novos ocupantes eram designados; antes que seu sangue se misturasse ao sangue derramado na véspera, aquele que se misturaria ao deles já estava separado.
Cinquenta e dois condenados. Desde o rendeiro de setenta anos, que as riquezas não lhe podiam comprar a vida, até a costureira de vinte anos, cuja pobreza e obscuridade não a pudessem salvar. As doenças físicas, engendradas nos vícios e negligências dos homens, agarram suas presas em todas as classes sociais. E a temível desordem moral, nascida de um indescritível sofrimento, de uma opressão intolerável e de uma desalmada indiferença, também ceifava, sem fazer distinções de qualquer natureza. Charles Darnay, sozinho em sua cela, deixara de apegar-se a qualquer ilusão desde que saíra do tribunal. Em cada linha da narrativa que ouvira, ouvira sua condenação. Compreendera que nenhuma influência pessoal poderia salvá-lo, que fora virtualmente sentenciado por milhões de votos e que simples unidades nenhum benefício poderiam trazer-lhe.
Contudo, não era fácil, tendo diante dos olhos a imagem de sua amada esposa, convencer seu espírito a resignar-se com o. que deveria suportar. Laços poderosos o prendiam à vida e era muito, muito difícil rompê-los. Quando, por meio de esforços, conseguia aos poucos afrouxá-los, logo sentia-os apertarem-se ainda mais; e quando buscava energia em sua mente para apoiar-se, esta lhe faltava. Além disso, havia um sentimento de urgência em todos os seus pensamentos, uma turbulenta e acalorada batalha travada em seu coração contra o conformismo. Se, por um momento, ele se conformava com a sua sorte, parecia-lhe ouvir os protestos da esposa e da filha, que teriam que sobreviver a ele, recriminando-o pela atitude egoísta.
Esses conflitos, porém, assaltaram-no apenas no início. Não tardou em que a consideração de que não havia desonra no destino que o aguardava, que inúmeras pessoas seguiam o mesmo injusto caminho, trilhando-o com firmeza todos os dias, surgiu para estimulá-lo. Depois, seguiu-se a ideia de que muito da futura paz de espírito de que seus entes queridos desfrutariam dependia de ele demonstrar uma serena Fortitude. Assim, gradualmente, alcançou um estado de bem-vinda tranquilidade, que lhe permitiu elevar os pensamentos e deles extrair conforto.
Antes de se espalharem as trevas da noite de sua condenação, sua mente havia, assim, alçado seu derradeiro vôo. Tendo conseguido comprar papel, pena e tinta, além de uma vela, sentou-se para escrever até a hora em que as luzes da prisão teriam que extinguir-se.
(...)
Darnay teve tempo de terminar as cartas antes do apagar das luzes. Quando se estendeu no catre, refletiu que, para ele, tudo estava acabado neste mundo.
Mundo que, entretanto, acenou-lhe em seu sono, revelando-se nas cores mais brilhantes. Livre e feliz, de volta à velha casa do Soho (embora, no sonho, fosse totalmente diversa da casa real), indescritivelmente aliviado e de coração leve, ele estava novamente com Lucie, que lhe dizia que fora um pesadelo, que ele jamais havia partido. Uma pausa de esquecimento, e então ele foi executado, mas regressou para ela, morto e em paz, sem ter sofrido qualquer mudança. Outra pausa de esquecimento e ele acordou na cela sombria, inconsciente de onde estava e do que acontecera até que a lembraça assoumou-lhe à memória: ‘este é o dia da minha morte!’” [Um conto de duas cidades, Charles Dickens]
La maza, Silvio Rodrigues |
"E o que foi que os alunos de Amalfitano aprenderam? Aprenderam a recitar em voz alta. Memorizaram os dois ou três poemas de que mais gostavam para recordá-los e recitá-los nos momentos oportunos: funerais, bodas, solidões. Compreenderam que um livro era um labirinto e um deserto. Que o mais importante do mundo era ler e viajar, talvez a mesma coisa, sem nunca parar. Que ao fim da leitura os escritores saíam da alma das pedras, que era onde viviam depois de mortos, e se instalavam na alma dos leitores como numa prisão macia, mas depois essa prisão se ampliava ou explodia. Que todo sistema de escrita é uma traição. Que a poesia verdadeira vive entre o abismo e a desdita e que perto da sua casa passa o caminho real dos atos gratuitos, da elegância dos olhos e da sorte de Macabrú. Que o principal ensinamento da literatura era a coragem, uma coragem estranha, como um poço de pedra no meio de uma paisagem lacustre, uma coragem semelhante a um turbilhão e a um espelho. Que não era mais cômodo ler do que escrever. Que lendo aprendia a duvidar e recordar. Que a memória era o amor." [As agruras do verdadeiro tira, Roberto Bolaño]
"– O senhor não está passando bem, deputado. Não melhorou com o comprimido?
“(...) A princípio pensei que o sorriso que me dirigiu fosse de admiração. Logo me dei conta de que não passava de desprezo. Os poetas mexicanos (suponho que os poetas em geral) detestam que lhes recordem sua ignorância. Mas não me atemorizei e, depois de ele destroçar um para de poemas meus na segunda semana de que participei, eu lhe perguntei se sabia o que era um ‘rispetto’. Álamo pensou que eu lhe exigia ‘respeito’ a meus poemas e desatou a falar da crítica objetiva (para variar) , que é um campo minado por onde se deve transitar todo jovem poeta, etcétera e tal, mas não o deixei prosseguir e, após lhe esclarecer que nunca em minha curta vida eu havia pedido respeito a minhas pobres criações, tornei a formular a pergunta, desta vez tentando pronunciar com a maior clareza possível.
- Não me venha com merda, García Madero – Álamo disse.
- Um ‘rispetto’, querido mestre, é um tipo de poesia lírica, amorosa, para ser mais exato, semelhante ao ‘strambotto’, que tem seis ou oito hendecassílabos, os quatro primeiros em forma de sirvente e os seguintes construídos em parelhas. Por exemplo... – eu já me dispunha a lhe dar um ou dois exemplos, quando Álamo se levantou de um pulo e deu por encerrada a discussão. O que aconteceu em seguida está envolto em brumas (apesar de eu ter boa memória: lembro da risada de Álamo e das risadas dos quatro ou cinco colegas de oficina, possivelmente coroando uma piada às minhas custas.
Outro, em meu lugar, não teria posto novamente os pés ali, mas, apesar de minhas infaustas recordações (ou da ausência de recordações, no caso tão ou mais infausta que a retenção menmotécnica destas), na semana seguinte lá estava eu, pontual como sempre.
Creio que foi o destino que me fez voltar. Era minha quinta sessão na oficina de Álamo (mas pode ter sido a oitava ou a nona, ultimamente notei que o tempo se encolhe ou se estica a seu arbítrio), e a tensão, a corrente alternada da tragédia se sentia no ar, sem que ninguém conseguisse explicar a que isso se devia. Para começar, estávamos todos presentes, os sete aprendizes de poeta inscritos inicialmente, coisa que não havia acontecido nas sessões precedentes. Também: estávamos nervosos. O próprio Álamo, normalmente tranquilo, mal se aguentava. Por um momento pensei que talvez houvesse acontecido algo na universidade, uma fuzilaria no campus de que não estivesse a par, uma greve surpresa, o assassinato do decano da faculdade, o sequestro de um professor de Filosofia ou algo do gênero. Mas nada disso havia acontecido, e a verdade era que ninguém tinha motivos para ficar nervoso. Pelo menos objetivamente, ninguém tinha motivos. Mas a poesia (a verdadeira poesia) é assim: ela se deixa pressentir, se anuncia no ar, como os terremotos que, segundo dizem, alguns animais especialmente aptos a tal propósito pressentem. (Esses animais são as cobras, as minhocas, os ratos e certos pássaros.) O que aconteceu em seguida foi tumultuado mas dotado de algo que, mesmo correndo o risco de ser cafona, eu me atreveria a chamar de maravilhoso. Chegaram os dois poetas real-visceralistas, e, a contragosto, Álamo os apresentou a nós, embora só conhecesse pessoalmente um deles; o outro conhecia de ouvir falar, ou seu nome não lhe era estranho, ou alguém lhe havia falado dele, mas mesmo assim o apresentou.
Não sei o que eles teriam ido fazer lá. A visita parecia claramente de natureza beligerante, embora não isenta de um matiz propagandístico e proselitista. A princípio, os real-visceralistas se mantiveram calados ou discretos. Álamo, por sua vez, adotou uma postura diplomática, levemente irônica, de esperar os acontecimentos, mas, pouco a pouco, ante a timidez dos estranhos, foi se encorajando, e ao cabo de meia hora a oficina já era a mesma de sempre. Então começou a batalha. Os real-visceralistas puseram em dúvida o sistema crítico que Álamo adotava; este, por sua vez, chamou os real-visceralistas de surrealistas de araque e de falsos marxistas, sendo apoiado no debate por cinco membros da oficina, ou seja, por todos menos por um cara muito magro, que andava sempre com um livro de Lewis Carroll debaixo do braço e quase nunca falava, e por mim, atitude que com toda franqueza me deixou surpreso, pois os que apoiavam Álamo com todo rancor eram os mesmos que recebiam com atitude estóica suas críticas implacáveis e que agora se revelavam (o que me pareceu surpreendente) seus mais fieis defensores. Nesse momento decidi pôr meu grão de areia e acusei Álamo de não ter ideia do que era um ‘rispetto’; intrepidamente, os real-visceralistas reconheceram que eles também não sabiam o que era isso, mas minha observação lhes pareceu pertinente e assim afirmaram; um deles me perguntou que idade eu tinha, eu disse que tinha dezessete anos e tentei explicar mais uma vez o que era um ‘rispetto’. Álamo estava rubro de raiva; os membros da oficina me acusaram de pedante (um disse que isso não passava de um academicismo meu); os real-visceralistas me defenderam; já embalado, perguntei a Álamo e à oficina em geral se pelo menos lembravam o que era um nicárqueo ou um tetrástico. E ninguém soube me responder.
A discussão não acabou, contrariamente ao que eu esperava, num quebra-pau generalizado. Sou obrigado a reconhecer que eu teria adorado. E, embora um dos membros da oficina tenha prometido a Ulisses Lima que um dia iria quebrar a cara dele, no final não aconteceu nada, quer dizer, nada violento, ainda que eu tenha reagido à ameaça (que, repito, não foi dirigida a mim) garantindo ao ameaçador que eu me punha à sua inteira disposição em qualquer canto do campus, no dia e na hora que ele quisesse.
O fim do sarau foi surpreendente. Álamo desafiou Ulisses Lima a ler um de seus poemas. Este não se fez de rogado e tirrou do bolso do blusão uns papeis sujos e amarfanhados. Cacete, pensei, esse panaca se meteu sozinho na boca do lobo. Creio que fechei os olhos de pura vergonha por ele. Há momentos para recitar poesias e há momentos para boxear. Para mim, aquele era um destes últimos. Fechei os olhos, como já disse, e ouvi Lima pigarrear. Ouvi o silêncio (se isso é possível, embora eu duvide) um tanto incômodo que foi fazendo à sua volta. E finalmente escutei sua voz, que lia o melhor poema que jamais havia ouvido”. (Os detetives selvagens, Roberto Bolaño)
"- Se eu escrever umas palavras pra você, promete que vai ler cuidadosamente? E guardar?
- Prometo, sim - respondi. E era verdade. Até hoje guardo o papel que ele me deu.
Foi até a escrivaninha, no outro lado da sala, e escreveu alguma coisa num pedaço de papel, sem se sentar. Aí voltou e se sentou, com o papel na mão.
- Por estranho que pareça, isso não foi escrito por um poeta. Foi escrito por um psicanalista chamado Wilhelm Stekel. Aqui está o que ele... Você ainda está me ouvindo?
- Claro que estou.
- Aqui está o que ele disse: 'A característica do homem imaturo é aspirar a morrer nobremente por uma causa, enquanto que a do homem maduro é querer viver humildemente por uma causa'.
Inclinou-se e me passou o pedaço de papel. Li imediatamente o que estava escrito, agradeci e tudo, e guardei o papel no bolso. foi muito simpático da parte dele incomodar-se por minha causa. Foi mesmo. Mas a verdade é que eu não estava realmente com muita vontade de me concentrar. Puxa, nunca me senti tão cansado, assim de repente.
Mas ele não dava a menor impressão de cansaço. Em parte porque estava bastante alto.
- Acho que um dia desses - ele falou - você vai ter que decidir para onde quer ir. E aí vai ter que começar a ir para lá. E sem perda de tempo. No seu caso, não se pode perder um minuto que seja.
Concordei com a cabeça, por que ele estava me encarando e tudo, mas não estava entendendo muito bem o que ele disse. Eu achava que sabia o que era, mas, naquele momento, não tinha certeza absoluta. Estava cansado para diabo.
- Detesto dizer isso, mas acho que, assim que você tiver uma ideia de onde quer chegar, seu primeiro passo vai ser aplicar-se no colégio. É o que você vai ter que fazer. Você é um estudante - quer a ideia lhe agrade ou não. Você está apaixonado pelo conhecimento. E eu acho que você vai encontrar, depois de deixar para trás todos esses professores Vinenses e suas composições e...
- Vinsons - falei. Ele queria dizer todos os professores Vinsons, e não todos os professores Vinenses. Mas eu não devia ter interrompido.
- Está bem... os professores Vinsons. Na hora em que você conseguir deixar para trás todos os professores Vinsons você vai começar a se aproximar cada vez mais - isto é, se você quiser, e se procurar, e se tiver paciência de esperar - da espécie de conhecimento que será muito, muito importante para você. Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enojada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho neste terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmos, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia." (O apanhador dos campos de centeio, J. D. Salinger)
"Enquanto estivermos no campo de batalha, os dias na frente [front de batalha], que já passaram, caem dentro de nós como pedras: são pesados demais para podermos refletir tão depressa sobre eles. Se o fizéssemos, eles nos abateriam mais tarde, pois já notei que se consegue suportar o horror enquanto se dissimula, mas ele mata quando nele se pensa.
Exatamente como nos transformamos em animais quando vamos para a frente, porque é a única maneira de nos salvarmos, tornamo-nos humoristas e vagabundos quando estamos descansando. Não conseguimos agir de outra maneira: na verdade, é qualquer coisa superior a nós próprios.
Queremos viver a qualquer preço; por isso, não podemos arcar com o peso de sentimentos, que podem ser muito decorativos em tempo de paz, mas, aqui, estariam totalmente deslocados.
Kemmerich está morto, Haie Westhus, agonizante; terão no dia do Juízo Final um trabalho hercúleo para recompor o corpo de Hans Kramer, dilacerado por uma granada; Martens não tem mais pernas; Meyer está morto, Berger está morto, Hammerling está morto; cento e vinte homens jazem por aí cheios de tiros; é uma desgraça, mas o que temos a ver com isso, uma vez que estamos vivos?
(...)
Queremos é nos atirar no chão e dormir, ou encher o estômago, beber e fumar, para que as horas não sejam desperdiçadas. A vida é curta. O horror da frente desaparece quando lhe voltamos as costas e enfrentamo-lo com piadas infames e de mau gosto. É um humor grosseiro, mas é assim que falamos de tudo, até mesmo da morte, porque isso nos salva da loucura. Enquanto aceitamos os acontecimentos dessa forma, sentimo-nos capazes de resistir. Mas não esquecemos a frente de batalha!
O que sai nos jornais de guerra sobre o moral das tropas, que se divertem organizando pequenos bailes logo que chegam do bombardeio, não passa de asneiras sem o menor fundamento. Não fazemos isso porque temos bom humor, mas porque somos obrigados a arranjá-lo; caso contrário, estaria tudo perdido. Aliás, quase esgotamos nossos recursos, e o tal humor fica cada vez mais amargo.
Já sei que tudo aquilo que agora, enquanto ainda estamos na guerra, afunda em nós como uma pedra despertará novamente depois dela, e, a partir de então, começará a grande luta. De vida ou de morte." (Nada de novo no front, Erich Maria Remarque).
"— Tenho a impressão — continua — de que as ilhas do arquipélago humano sentem dum modo ou de outro a nostalgia do Continente, ao qual anseiam por se unirem. Muitos pensam resolver o problema da solidão e da separação da maneira que há pouco se mencionou, isto é, aderindo a um grupo social, refugiando-se e dissolvendo-se nele, mesmo com o sacrifício da própria personalidade. E se o grupo tem o caráter agressivo e imperialista, lá estão as suas ilhas a se prepararem, a se armarem para a guerra, a fim de conquistarem outros arquipélagos. Porque dominar e destruir também é uma maneira de integração, de comunhão, pois não é esse o espírito da antropofagia ritual?
“-Veja a posição que ocupa aos setenta e oito anos. Quantos sentirão a sua falta quando a deixar vaga?
- Ora, um velho e solitário solteirão – retrucou o senhor Lorry, sacudindo a cabeça. – Ninguém chorará por mim.
- Como pode afirmar isso? Ela não choraria pelo senhor? E também a filha?
- Sim, sim, graças a Deus. Eu realmente não quis dizer isso.
- Tem motivos para agradecer a Deus, não acha?
- Certamente, certamente.
- Se o senhor pudesse confessar esta noite, com toda a sinceridade, para o seu próprio coração: ‘não conquistei o amor, nem o apreço, nem a gratidão ou o respeito de ninguém neste mundo; não granjeei a estima ou o carinho de ninguém; nada fiz de bom ou de útil para ser lembrado por quem quer que seja!’, os seus setenta e oito anos equivaleriam a setenta e oito maldições'. Não é?
- É verdade, senhor Carton. Julgo que seria assim.
Sydney tornou os olhos para o fogo e, após uma pausa, indagou:
- Gostaria de perguntar-lhe... sua infância parece muito distante? Os dias em que o senhor se sentava no colo de sua mãe lhe parecem muito longínquos?
Sensível à suavidade de seus modos, o senhor Lorry respondeu:
- Há vinte anos, sim. Nesta época e minha vida, não. Quanto mais me aproximo do fim, como se andasse em círculo, chego cada vez mais perto do início. Deve ser uma forma de abrandar e preparar o caminho. Meu coração, agora, comove-se com muitas lembranças que havia muito estavam adormecidas... lembranças de minha mãe, linda e jovem (e eu tão velho), e, por meio de uma série de associações, recordo os dias quando o que chamamos de ‘mundo’ ainda não era tão real para mim, e minhas falhas ainda não se haviam cristalizado em meu caráter.” [Um conto de duas cidades, Charles Dickens]
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Parque de la Memória, Buenos Aires. Foto: Otávio D. S. Ferreira. |
"A primeira noite em que Lorenzo passou a noite com ele [o telescópio de 25cm. de Luis Enrique Erro], sentiu que havia chegado ao seu lar espiritual: `Já sabe manejá-lo, amigo - disse Erro. - Não se esqueça de esqueça de cobrí-lo e de trancar a porta quando sair.` Sim, aquela imensidão diante dos seus olhos lhe pertencia, correspondia à que ele trazia dentro de si. Como dentro de seu corpo, milhóes de criaturas se mexiam sem parar, teciam uma rede de circuitos que mantinham sua vida sobre a Terra. O silêncio vinha das estrelas. Onde estou? Lorenzo respirou fundo. E se ao fechar a pequena cúpula ninguém mais vivesse, somente as estrelas, como era seu desejo? Na escala cósmica, na abóboda celeste, os objetos luminosos fotografados, que examinaria no dias seguinte ao microscópio, era um corpo que pulsava como ele. As partículas tinham radiação, energia, magnetismo. Lorenzo dirigiu o telescópio para Órion e só parou de observar quando avistou a luz da aurora. Enquanto cobria amorosamente o Zeiss, foi invadido por uma imensa gratidão por Luís Enrique Erro e por essa noite." (A pele do céu, Elena Poniatowska)
“(...) Terminada a corrida – em último lugar que seja - , Felipe faz a festa do vencedor, levantando os braços, feliz da vida: é o Campeão. Nas primeiras vezes, o pai tenta lhe explicar, paciente: Filho, você tirou quarto lugar; veja, são seis raias; só o primeiro é o campeão – mas na metade da explicação o ridículo daquilo vai contaminando a voz. Se o filho não consegue contar até dez (a rigor, não conta conscientemente até cinco – apenas repete nomes decorados, às vezes acertando a sequência), que sentido tem para ele ‘quarto lugar’? Trata-se apenas de um jogo, ou, antes ainda, trata-se da encenação de um jogo, no qual o filho reproduz o que se espera dele. – nadar daqui até ali – e o mundo lhe dará a taça de campeão. Não é assim? Se ele nadou o percurso, por que não?, perguntaria o filho, se todo o meandro dessa lógica absurda e alucinada tivesse a mais remota ligação com a cabeça de seu filho, osmose pura com o instante presente. Olhe bem para o filho, ambos impregnados daquela agitação fantasmagórica do ginásio, em que todos parecem ter o que fazer a cada instante, naquela sequência de competições com nomes repetidos em alto-falantes que chegam a ensurdecer, reverberantes: Foi legal a corrida, filho? A criança sorri: Olhe! Olhe! Sou Campeão! E mostra os braços e os bíceps ainda pingando a água da piscina, como se a competição fosse de luta livre. Eu sou forte! – completa, feliz, olhos pregados no desenho animado ou as mãos entretidas no jogo de montar, balbuciando alguma história em torno de seu inexpugnável silêncio.
A felicidade. Sempre sentiu medo dessa palavra, que lhe soa arrogante, quando levada a sério; quando usada ao acaso, gastou-se completamente pelo uso e não corresponde mais a coisa alguma, além de um anúncio de tevê ou de uma foto de calendário. O pai, entretanto, é movido a alegria, um sentimento fácil na sua alma – tanto que às vezes se pergunta se o idiota não seria ele, não o filho, por usar tão mal suas habilidades e competências, em favor das miudezas. Para manter a alegria, entretanto, é preciso desenvolver algumas técnicas de ocultação da realidade, ou morreríamos todos.” (Cristóvão Tezza, O filho eterno)
sucumbindo-a sob tuas tranças grisalhas?
por algum capricho sublime.
serenam rebanhos e gélidas cascatas.
no vale fundo, o espelho do céu.
E as engole sob a surda sinfonia da finitude.
Otávio Dias de Souza Ferreira