Fragmentos






Como um jogo cifrado de concatenação de mensagens e inspirações plurais, nos campos de música, fotografia, prosa, poesia, cinema, esses 'Fragmentos' nos convidam a vivenciar experiências em variadas instâncias, distâncias e temporalidades, no estranhamento, no reconhecimento, na empatia.




"(...) Quando fitava os olhos um pouco violeta de Talita enquanto a ajudava a depenar um pato, luxo quinzenal que a entusiasmava, fã que era o pato em todas as suas apresentações culinárias, Traveler dizia para si mesmo que afinal de contas as coisas não estavam tão mal quanto estavam, e até preferia que Horácio aparecesse para compartilhar um mate, porque nessa oportunidade os dois imediatamente davam início a um jogo cifrado que eles próprios mal compreendiam mas que era preciso jogar para que o tempo passasse e os três se sentissem dignos uns dos outros. Além disso, liam, porque de uma juventude coincidentemente socialista e um pouco teosófica pelo lado de Traveler, os três amavam, cada um à sua maneira, a leitura comentada, as polêmicas pelo gosto hispano-argentino de querer convencer e não aceitar jamais a opinião contrária, e as possibilidades inegáveis de rir feito loucos e sentir-se acima da humanidade doente sob o pretexto de ajudá-la a sair de sua medrosa situação contemporânea." (Rayuela, Julio Cortazar)







Entardecer em Santos. Foto: Otávio D. S. Ferreira.

 












Fragmento 

 


Acabo de soñar. Porque es mi empeño

imaginar que infamias e miserias 

fantasmas son de un borrascoso sueño.

No faltará quien diga y apoyado

por la recta razón de que me alejo

que tengo yo un soñar muy dilatado

y a la región de un mundo no probado

arrebatar por mi ilusión me dejo -

          ------------

No tengo yo la ley de la medida

ni las sendas hollé de la materia

ni obedecí la historia empobrecida

que hace del mundo miserable feria;

Pero siento otras leyes y otra vida

y no es ley de la vida la miseria!- 

ni enseño yo sentencia demostrada, 

ni exactas leyes de la ciencia enseño,

Mas huyo horrorizado de la nada

y en la fe de otro ser asegurada

las leyes dejo de este ser, y sueño;

Que tengo para mi que así soñando

mientras otros de mi se van riendo,

ellos detrás de mi se van quedando

y yo la cierta vida voy viviendo. 

 

MARTI, JoséPoesia Completa








Poema - Ney Matogrosso










"—Ya se verá —dice Pichón—. Por ahora comamos algo. Las palabras que acaba de pronunciar han coincidido con la llegada del mozo, al que ha estado viendo venir en dirección a la mesa por el sendero de ladrillo molido. Los tres primeros vasos de cerveza ya están vacíos desde hace rato, de modo que, consciente de su tardanza, el mozo comienza por depositar sobre la mesa tres otras cervezas doradas, coronadas por un buen cuello de espuma blanca, para seguir en seguida con los platos, a saber un salamín ya pelado y cortado en rodajas, un potecito chato de aceitunas verdes en aceite, un par de porciones de pizza a la napolitana (tomate, mozzarella y orégano) que, sacadas sin duda de un círculo entero de pizza, han debido tener durante unos instantes una forma triangular, pero que ahora se presentan divididas en muchas subporciones de formas geométricas irregulares y, por último, después de la canastita metálica llena de rebanadas ovales de pan, el plato principal, o sea las milanesas picadas todavía calientes, decoradas de pickles y de cuartos amarillos y jugosos de limón. Escarbadientes, cubiertos, sal, savora, más los ingredientes reglamentarios que acompañan la cerveza, completan la descarga del contenido de la bandeja en la que, cuando ya no queda más nada en ella, el mozo comienza a cargar los vasos y los platitos de ingredientes vacíos. —Que no tarden tanto las próximas —dice Tomatis, con un tono lastimero de súplica que, en el fondo, es una advertencia o un reproche. —No —dice el mozo—. Es que estaban cambiando el barril. —Me di cuenta por el cuello —dice Tomatis." (La pesquisa, Juan José Saer)

[Referência no isolamento da pandemia, na saudade desses momentos de descontração num local público]








"Por meio do funicular ele se transportou, com seus esquis, até Schatzalp, onde, levado a dois mil metros de altura, pôs-se a vaguear calmamente através da neve poeirenta, por sobre faiscantes planos inclinados, que em dias claros ofereciam uma vista grandiosa do campo das suas aventuras. Regozijava-se com sua nova aquisição, que lhe abria zonas antes inviáveis e aniquilava quase todos os obstáculos. Ela lhe proporcionava o manto da desejada solidão, a mais profunda imaginável, solidão que inspirava à alma a sensação do desconhecido e do perigoso dessas paragens. Havia ali, por exemplo, um precipício coberto de pinheiros, que se perdia na cerração da neve, e do outro lado subia uma vertente rochosa com enormes massas de neve, ciclópicas, gibosas e arqueadas, que formavam cavernas e cúpulas. Quando Hans Castorp parava, a fim de não ouvir a si próprio, o silêncio era absoluto e perfeito, com o menor traço de som como que abafado por meio de algodão, um silêncio ignoto, jamais sentido, que não existia em nenhum outro lugar. Nenhuma brisa, por mais leve que fosse, roçava as copas das árvores; não se ouvia nenhum sussurro, nenhum pio de pássaro. Era o silêncio primevo, aquele que Hans Castorp espiava ao deter-se assim, apoiado no bastão, com a cabeça inclinada para um dos ombros e com a boca entreaberta. E suave, incessantemente, a neve continuava caindo, numa queda calma, sem ruído algum.
 
Não, esse mundo, no seu silêncio insondável, não tinha nada de hospitaleiro. Admitia o visitante por sua própria conta e risco. Em realidade não o recebia nem acolhia, mas apenas lhe tolerava a intrusão e a presença, sem se responsabilizar por nada. A impressão que despertava era a de uma ameaça muda e elementar, baseada não em hostilidade, senão antes numa indiferença mortal. O rebento da civilização, que pela sua origem fica alheio e distante da natureza selvagem, é muito mais acessível à sua grandiosidade do que o seu filho rude, que depende dela desde a infância e mantém com ela relações de prosaica familiaridade. Este mal conhece o temor religioso com que aquele, arregalando os olhos, a enfrenta. Esse temor forma o âmago de toda a relação sentimental entre os filhos da civilização e a natureza, e faz vibrar na sua alma, constantemente, uma espécie de emoção piedosa e de desassossego tímido. Hans Castorp, com sua blusa de lã de camelo, de mangas compridas, com suas grevas e seus esquis de luxo, no fundo sentia-se audacioso ao contemplar a paz primeva, o ermo hibernal, com aquela funesta ausência de sons; e a sensação de alívio que se apresentava quando, no caminho de volta, apontavam nas brumas as primeiras habitações humanas, tornava-o consciente do seu estado anterior e instruía-o sobre o terror secreto e sagrado que, durante horas, dominara o seu coração." (A montanha mágica, Thomas Mann)










“- Não é obrigação do educador de homens preservá-los do erro, mas sim orientar o errado; e mais, a sabedoria dos mestres está em deixar que o errado sirva de taças repletas seu erro. Qeum só saboreia parcamente seu erro, nele se mantém por muito tempo, alegra-se dele como de uma felicidade rara; mas quem o esgota por completo, deve reconhece-lo como erro, conquanto não seja demente. 


Cerrou-se novamente a cortina, e Wilhelm teve tempo para refletir: ‘De que outro erro esse homem poderá estar falando’, disse a si mesmo, ‘senão daquele que me perseguiu ao longo de toda minha vida, que me fazia buscar formação ali onde não havia nenhuma e imaginar que podia adquirir um talento para o qual não tinha a menor disposição?’.


A cortina se abriu bruscamente, agora com maior rapidez, e um oficial se aproximou, dizendo como de passagem:


- Aprenda a conhecer os homens nos quais pode confiar!


Cerrou-se a cortina, e Wilhelm não precisou refletir muito tempo para reconhecer naquele oficial o homem que lhe abraçara no parque do conde e que fora culpado por haver ele considerado Jarno um recrutador. Como chegara ali e quem poderia ser, era para Wilhelm um total enigma.


-Se tantos homens se interessavam por ti, se conheciam o curso da tua vida e sabiam o que te era conveniente fazer, por que não te guiaram de um modo mais rigoroso, mais sério? Por que favoreciam teus jogos, ao invés de te afastarem deles?


- Não discutas conosco! – clamou uma voz. – Estás salvo e a caminho de tua meta. Não te arrependerás de nenhuma de tuas loucuras, tampouco sentirás falta delas; não pode haver para um homem destino mais venturoso.


Abriu-se de par a par a cortina e o velho rei da Dinamarca, com todas as suas armas, adentrou o recinto.


- Sou o espírito de teu pai – disse a imagem – e me despeço consolado, pois meus desejos por ti se cumpriram, mais do que me foi dado compreendê-los. Regiões íngremes só podem ser escaladas por atalhos; na planície, caminhos retos conduzem de um lugar a outro. Adeus, e pensa em mim quando estiveres desfrutando o que te preparei. 


Wilhelm estava profundamente impressionado; acreditava ouvir a voz de seu pai e, no entanto, não era ela; através da presença e da lembrança ele se encontrava num estado de tremenda confusão.


Não pôde refletir por muito tempo, pois nesse momento entrou o abade e colocou-se atrás da mesa verde.


- Aproxime-se! – ordenou a seu atônito amigo.


Ele se aproximou e subiu os degraus. Sobre o tapete havia um pequeno rolo.


- Aí está sua carta de aprendizado – disse o abade. – Tome-a e peito, pois seu conteúdo é importante.


Wilhelm apanhou-a, abriu-a e leu.


Carta de Aprendizado


‘Longa é a arte, breve a vida, difícil o juízo, fugaz a ocasião. Agir é fácil, difícil é pensar; incômodo é agir de acordo com o pensamento. Todo começo é claro, os umbrais são o lugar da esperança. O jovem se assombra, a impressão o determina, ele aprende brincando, o sério o surpreende. A imitação nos é inata, mas o que se deve imitar não é fácil de reconhecer. Raras as vezes em que se encontra o excelente, mais raro ainda apreciá-lo. Atraem-nos a altura, não os degraus; com os olhos fixos no pico caminhamos de bom grado pela planície. Só uma parte da arte pode ser ensinada, e o artista a necessita por inteiro. Quem a conhece pela metade, engana-se sempre e fala muito; quem a possui por inteiro, só pode agir, fala pouco ou tardiamente. Aqueles não têm segredo nem força; seu ensinamento é como pão cozido, que tem sabor e sacia por um dia apenas; mas não se pode semear a farinha, e as sementes não devem ser moídas. As palavras são boas, mas não o melhor. O melhor não se manifesta pelas palavras. O espírito, pelo qual agimos, é o que há de mais elevado. Só o espírito compreende e representa a ação. Ninguém sabe o que ele faz quando age com justiça; mas do injusto temos sempre consciência. Quem só atua por símbolos é um pedante, um hipócrita ou um embusteiro. Estes são numerosos e se sentem bem juntos. Sua verborragia afasta o discípulo, e sua pertinaz mediocridade inquieta os melhores. O ensinamento do verdadeiro artista abre o espírito, pois onde faltam as palavras, falta a ação. O verdadeiro discípulo aprende a desenvolver do conhecido o desconhecido e aproxima-se do mestre’.” [Os anos de aprendizado de Wilhelm Meinster , Johann Wolfgang Goethe]









E agora, José? Carlos Drummond de Andrade (declamação: P. Autran)













 “Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam  de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque – a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras – e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos!
Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo, por não estarem mais distraídos. (Clarice Lispector)








The whole of the moon - Fiona Apple















                  A veces                                

A veces tengo ganas de ser un cursi
para decir: La amo a usted con locura.

A veces tengo ganas de ser tonto
para gritar: ¡La quiero tanto!

A veces tengo ganas de ser un niño
para llorar acurrucado en su seno.

A veces tengo ganas de estar muerto
para sentir, bajo la tierra húmeda de mis jugos,
que me crece una flor rompiéndome el pecho,
una flor, y decir: 
Esta flor, para usted.

       Nicolas Guillen                                           












Nas nuvens - nós! / Foto: Otávio D. S. Ferreira




















"Maga, vamos compondo uma figura absurda, desenhamos com nossos movimentos uma figura idêntica à que as moscas desenham ao voar em um aposento, daqui pra lá, bruscamente dão meia-volta, de lá para cá, isso é o que chamam movimento brownoide, entende agora?, um ângulo reto, uma linha que sobe, daqui para lá, do fundo para a frente, para cima, para baixo, espasmodicamente, freando em seco e arrancando no mesmo instante em outra direção, e tudo isso vai tramando um desenho, uma figura, algo  tão inexistente quanto você e eu, quanto os dois pontos perdidos em Paris que vão daqui para lá, de lá para cá, fazendo seu desenho, dançando para ninguém, nem sequer para eles mesmos, uma interminável figura sem sentido.(Rayuela. Julio Cortázar) 









Somebody to Love, Queen





"Não me lembro do dia em que conheci o mal. O mal nos outros e em mim mesmo. O mal nos outros e em mim mesmo. Não me recordo do dia em que fui pela primeira vez mesquinho, babaca e egoísta. Algo que se repetiria em mim. Algo que se repete constantemente no mundo. Não me lembro do dia em que achei que só o outro era capaz de me fazer mal. Que só o outro poderia trair minha confiança. Que só o outro podia roubar meu amor, meus sonhos e meus desejos mais íntimos. Não me lembro do dia em que eu também roubei, traí e desejei o desejo do outro." (As coisas de que não lembro, sou, Jacques Fux)
























"Alzando la cabeza, Pichón ha podido ver, en un cielo todavía claro, donde los últimos vestigios violetas habían cedido bajo el azul generalizado, las primeras estrellas. En un fulgor instantáneo —el rumor del agua, más nítido que durante el trayecto porque el motor se había detenido revelando la tranquilidad de la noche, contribuyó sin duda a su clarividencia repentina— ha entendido por qué, a pesar de su buena voluntad, de sus esfuerzos incluso, desde que llegó de París después de tantos años de ausencia, su lugar natal no le ha producido ninguna emoción: porque ahora es al fin un adulto, y ser adulto significa justamente haber llegado a entender que no es en la tierra natal donde se ha nacido, sino en un lugar más grande, más neutro, ni amigo ni enemigo, desconocido, al que nadie podría llamar suyo y que no estimula el afecto sino la extrañeza, un hogar que no es ni espacial ni geográfico, ni siquiera verbal, sino más bien, y hasta donde esas palabras puedan seguir significando algo, físico, químico, biológico, cósmico, y del que lo invisible y lo visible, desde las yemas de los dedos hasta el universo estrellado, o lo que puede llegar a saberse sobre lo invisible y lo visible, forman parte, y que ese conjunto que incluye hasta los bordes mismos de lo inconcebible, no es en realidad su patria sino su prisión, abandonada y cerrada ella misma desde el exterior —la oscuridad desmesurada que errabundea, ígnea y gélida a la vez, al abrigo no únicamente de los sentidos, sino también de la emoción, de la nostalgia y del pensamiento." (La pesquisaJuan José Saer)









Crepúsculo na Baixada / Foto: Otávio Dias de Souza Ferreira










"Era uma decisão política, é claro; ainda que a forma  como cada um pensava nesse aspecto da decisão fosse, na realidade, diametralmente oposta. Para Ela, voltar para o centro era uma maneira de ser coerente com suas ideias sobre as relações de um indivíduo com o lugar onde mora, e com o propósito que a levara a se tronar arquiteta, no começo da juventude. Para Ele, ao contrário, era uma forma de resistência. Um modo de realizar um gesto belo e talvez inútil em direção à maneira em que acreditava que as coisas deveriam ser, e muito provavelmente, nunca mais voltariam a ser. Para Não era pessimismo — embora pudesse ser considerado assim, obviamente, se alguém assim o desejasse —, e sim uma convicção que tinha havia alguns anos, resultado da simples observação: que a geração à qual Ela e Ele pertenciam era a última que nascia livre, relativamente a salvo — e só para aqueles que puderam se beneficiar de um privilégio de que ambos desfrutavam, é claro — do medo, que algumas pessoas haviam instaurado como regime político dominante desde que um punhado de fanáticos destruíra duas torres em Nova York, e da vigilância por parte do Estado e das empresas, que uns e outros justificavam em nome da segurança. Outras pessoas usavam argumentos parecidos — e também errôneos, deliberada ou involuntariamente — para justificar, de alguma forma, o fim dos empregos estáveis, a eliminação dos direitos dos trabalhadores, a desarticulação da cultura criada pelos trabalhadores, o surgimento de um hiato, de um novo domínio a meio caminho entre o mundo real e aquilo que é chamado, de maneira imprecisa, de “os ambientes digitais”, onde as mentiras e as falsidades difundidas tão facilmente acabam projetando suas consequências sob a forma de regimes totalitários e abertamente contrários às liberdades individuais. Nem mesmo a convicção de que as nações têm o direito de cometer erros e de que a história está o tempo todo repetindo a si mesma — sem nos ensinar nada, é claro — fora capaz de prepará-lo para a sociedade em que ambos se viram arremessados; era como se o projeto — ou, mais exatamente, a promessa, nunca cumprida totalmente — que poucos séculos atrás um grupo de pessoas ingênuas e lúcidas formulara em uma certa Declaração dos direitos do homem e do cidadão tivesse sido cancelado, interrompido antes mesmo de começar, e sem que ninguém tivesse sido avisado. Contra o projeto de uma sociedade de iguais — com seus erros lamentáveis e as terríveis tragédias que causou, isso também precisava ser dito —, se opunham antigas e novas ideias. Os partidários das ideias antigas repudiavam esse projeto por considerarem que eles mesmos não eram iguais às outras pessoas, por exemplo as de outro gênero ou raça; já os defensores das novas ideias falavam a partir de uma diferença que os individualizava e, ao mesmo tempo, os invalidava como participantes do tipo de debate que forma a vida política de uma sociedade. Eram imigrantes, mulheres negras, homossexuais, ativistas sociais, representantes de minorias religiosas e étnicas; estavam provocando uma reviravolta na relação entre opressores e oprimidos, mas, em última instância — e este era um dos motivos que o preocupavam, ainda que Ele estivesse, inevitavelmente, do lado deles —, os esforços dessas minorias não questionavam a forma, a estrutura dessa relação, que continuava a existir, mas com outro nome." (Amanhã teremos outros nomes, Patrício Prom)









Somewhere only we know
 -
 Keane





"Azul parou por um momento. Ka sentiu inveja de sua capacidade de contar essa história — ou, na verdade, qualquer história — com tanta convicção. 'Mas eu não lhe contei essa bela história para lhe dizer o que ela significa para mim ou o que tem a ver com minha vida; eu contei para chamar a atenção para o fato de que foi esquecida', disse Azul. “Essa história milenar está no Chah-name de Firdusi. Há muito tempo, milhões de pessoas a conheciam de cor — de Tabriz a Istambul, da Bósnia a Trebizonda — e quando a recordavam, encontravam um sentido para suas vidas. A história lhes fala da mesma forma como o assassinato cometido por Édipo contra o pai e a obsessão de Macbeth com o poder e com a morte falam à gente de todo o mundo ocidental. Mas agora que estamos sob o fascínio do Ocidente, esquecemos nossas próprias histórias. Eles tiraram todas as velhas histórias dos livros escolares. Hoje em dia, você não encontra um único livreiro que tenha o Chah-name em toda a Istambul! Como você explica isso?”" (NeveOrhan Pamuk)









"A grandeza da democracia consiste em nada negar, nem nada renegar da humanidade.

Próximo ao direito do Homem, pelo menos ao lado, há o direito da Alma. Esmagar os fanatismos e venerar o infinito, tal é a lei. Não nos limitemos a prostrar-nos sob a árvore da Criação e a contemplar seus imensos ramos cheios de astros. Temos um dever: trabalhar para a alma humana, defender o mistério contra o milagre, adorar o incompreensível e rejeitar o absurdo, não admitir, a respeito do inexplicável, senão o necessário, sanear a crença, tirar as superstições de cima da religião, livrar Deus das lagartas." (Os miseráveis, Victor Hugo)












"Eu não ficava todo tempo no ashrama. Tive a sorte de travar conhecimento com um guarda-florestal nativo, cuja residência permanente era nos arredores de uma aldeia na base da montanha. Era devoto de Shri Ganesha e quando podia deixar o trabalho vinha passar dois ou três dias conosco. Bom sujeito; conversávamos muito. Gostava de praticar comigo o seu inglês. empos depois ele me contou que o serviço de silvicultura tinha um bangalô no alto da montanha, e que se algum dia eu desejaás sose ir lzinho ele me daria a chave. De vez em quando eu me valia do convite. Levava dois dias para chegar lá. Primeiro eu tinha que tomar um ônibus até a aldeia do guarda; o resto do trajeto era feito a pé. Mas, depois que chegava lá, era uma maravilha - tal a grandeza e a solidão. Eu enfiava o que podia num saco e tomava um carregador para levar algumas provisões, lá ficando até elas se acabarem. Nada mais era que uma cabana de madeira com cozinha atrás; como mobiliário só havia uma cama de armara onde a gente atirava a manta de dormir, uma mesa e duas cadeiras. Fazia frio, naquelas alturas, e era agradável ascender  o fogo à noite.  Era para mim uma sensação maravilhosa saberão  que nhavia viva alma numa distância de trinta quilômetros. À noite, muitas vezes ouvia o rugido do tigre ou o barulho dos elefantes que iam abrindo caminho na floresta. Fazia longos passeios através dava mata. Havia um lugar onde eu gostava de ficar sentado, porque de lá podia ver as montanhas estenderem-se na minha frente e, baixando o olhar, um lago onde de tardezinha os animais selvagens vinham beber - veados, javalis, bisões, elefantes e leopardos.
Dois anos depois de estar no ashrama, fui para o meu retiro na floresta, por uma razão de que você vai sorrir. Queria passar lá o meu aniversário. Cheguei na véspera. Ainda estava escuro quando acordei no dia seguinte, e tive a vontade de ir ver o nascer do sol, lá daquele lugar que lhe acabo de descrever. Conhecia o caminho de olhos fechados. Sentei-me debaixo de uma árvore e esperei. Ainda era noite, mas as estrelas brilhavam palidamente no céu; o dia estava próximo. Experimentei uma estranha sensação de expectativa. Tão gradualmente, que mal a percebi, a luz começou a filtrar-se pela escuridão, de mansinho; como um vulto misterioso a insinuar-se por entre as árvores. Meu coração começou a bater como se pressentisse a aproximação do perigo. Nasceu o sol. 
Larry fez uma pausa e um sorriso desajeitado brincou-lhe nos lábios.
- Não tenho talento descritivo, não sei que palavras usar para pintar um quadro e não posso portanto fazer com que você veja a beleza do espetáculo ante meus olhos. Aquelas montanhas, com suas densas selvas;  a neblina ainda emaranhada na copa das árvores; o lago profundo, lá embaixo, bem longe. O sol refletiu-se no lago, através de uma fenda nas montanhas, e este teve um brilho de aço polido. Fiquei maravilhado com a beleza do universo; nunca sentira tanto júbilo, nem tão grande êxtase. Experimentei estranha sensação, um formigueiro que me subiu dos pés à cabeça; pareceu-me que de repente eu me libertara da matéria, compartilhando, como espírito puro, de uma beleza que jamais sonhara. Tinha a impressão de ser possuidor de uma sabedoria sobrenatural, de modo que tudo que me parecera confuso se aclarou, tudo que me deixara perplexo se explicou. Felicidade tão intensa que chegava a ser dolorosa; procurei libertar-me dela, pois sentia que, se durasse mais um momento, eu morreria; e no entanto era um êxtase tão grande que seria preferível morrer a ter que renunciar a ele. Como explicar tal sensação? Não há palavras para descrever a minha bem-aventurança. Quando voltei a mim, estava exausto e trêmulo. Adormeci.(O fio da NavalhaW. Somerset Maughan)






Imagem: Otavio D. S. Ferreira














"Ainda em Ahmedabad, em começara a perceber meu engano. Porém, quando cheguei a Nadiad vi o estado das coisas e ouvi relatos de que um grande número de pessoas do distrito tinha sido presa. De repente, tive a sensação de que cometera um grave erro em convocar as pessoas daquele distrito e de outros lugares para se lançar à desobediência civil de modo prematuro, como agora me parecia.
(...)
Vejamos agora qual foi esse Himalaia de erro. Antes que alguém possa adequar-se à prática da desobediência civil, deve estar completamente disposto a obedecer respeitosamente às leis do Estado. Pois a maior parte de nós obedece a elas por medo da pena que sofreria ao violá-las, e isso não envolve um princípio moral.
Por exemplo, um homem honesto e respeitado não começará de repente a roubar, haja ou não uma lei contra o roubo. Mas esse mesmo homem não sentirá nenhum remorso em não observar a regra do ascender as luzes de sua bicicleta depois do escurecer. Na verdade, é duvidoso que ele até mesmo aceite um amável chamado de  atenção a esse respeito. No entanto, cumpriria qualquer tipo de norma desse tipo, se assim pudesse escapar ao inconveniente de enfrentar um processo por quebrá-la. Tal submissão não é, entretanto, o desejo espontâneo de obediência que se requer de um satyagrahi. Um satyagrahi obedece às leis da sociedade de forma inteligente e por livre e espontânea vontade, porque considera isso um dever sagrado. É apenas quando a pessoa obedece escrupulosamente às leis, que está em posição de julgar quais delas são boas e justas, e quais são injustas e perversas."  (Autobiografia - minha vida e minhas experiências com a verdadeMohandas K. Gandhi)










Amen, Omen, Ben Harper



















"A gritante disparidade de minhas lembranças pessoais torna minha narrativa extremamente difícil. Como já mencionei, às vezes caminhávamos em pequenos grupos; outras, formávamos uma tropa e até um exército, mas em certas ocasiões eu permanecia em determinadas localidades em companhia de uns poucos  amigos, e até mesmo sozinho, sem tenda, sem guias, sem o Chefe do Grupo. Minha narrativa torna-se cada vez mais penosa, porque não vagávamos somente  através do espaço, mas também do tempo. Nosso destino era o Oriente, mas também viajávamos para a Idade Média e para a Idade do Ouro; percorríamos a Itália ou a Suiça, mas muitas vezes passávamos a noite no século X, em companhia dos patriarcas ou duendes. Nas ocasiões em que permaneci só, revi lugares e personagens de meu próprio passado. Vagava com minha antiga noiva pelas margens da floresta do Reno Superior, farreava com meus companheiros de juventude em Tubingen, Basiléia ou Florença, ou então saía a caçar borboletas, a observar as lontras em companhia dos colegas de escola, ou vagava com meus personagens preferidos dos livros que lera: Almansor e Parsifal, Witiko e Goldmund caminhavam ao meu lado, ou então era Sancho Pança, ou éramos convidados das Barmekides. Quando retomava o caminho que me conduziria ao nosso agrupamento, em um vale qualquer, e ouvia as canções da Confraria, acampando próximo à tenda dos guias, percebia com clareza que a incursão em minha infância e os passeios com Sancho pertenciam inteiramente à jornada. Pois nosso objetivo não era unicamente o Oriente, ou melhor, o Oriente não era apenas um país ou um fato geográfico, era também o lar e a juventude da alma, estava em toda parte e em parte nenhuma, era o conjunto de todas as eras. Contudo, sentia-me assim por breves instantes , daí o motivo de minha enorme felicidade então. Mais tarde, quando a perdi, compreendi claramente tais ligações, sem delas tirar o menor proveito ou satisfação. Quando perdemos algo precioso e irrecuperável, temos a sensação de haver despertado de um sonho. E isto se deu, em meu caso, de maneira estranhamente precisa, pois, na verdade, minha felicidade nasceu do mesmo segredo da felicidade dos sonhos; nasceu da liberdade de experimentar simultaneamente tudo que imaginava, viver no mundo interior e exterior, manipular Tempo e Espaço como os cenários de uma peça teatral. A media que nós, membros da Confraria, percorríamos o mundo sem automóveis e navios, conquistando os países arrasados pela guerra, com a nossa fé, transformando-os em paraíso, transportávamos o passado, o futuro e o irreal para o momento presente." (Viagem ao OrienteHermann Hesse)





O acendedor de lampiões


Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Esse mesmo que vem, invariavelmente,
parodiar o sol e associar-se à lua,
quando a sombra da noite enegrece o poente.

Um, dois, três lampiões acende e continua
outros mais a acender, imperturbavelmente,
à medida que a noite, aos poucos, se acentua
e a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita!
Ele, que doura a noite e ilumina a cidade,
talvez não tenha luz na choupana que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
crenças, religião, amor, felicidade,
como esse acendedor de lampiões da rua!


Jorge de Lima








"Iris não teria ficado espantada nem por cinco minutos se fosse informada de que Coleman nascera negro, no seio de uma família negra, e que se identificara como negro quase toda a sua vida; tampouco teria se incomodado se ele lhe pedisse para manter segredo sobre isso. Falta de tolerância pelo exótico não era uma das deficiências de Iris Gittelman — o que lhe parecia mais exótico era justamente o que se adaptava aos padrões de normalidade. Ser dois homens e não um só? Ter duas cores em vez de uma? Caminhar pelas ruas incógnito ou disfarçado, não ser nem isto nem aquilo e sim alguma coisa intermediária? Ter personalidade dupla, tripla ou quádrupla? Para ela, não havia nada de assustador em aparentes anomalias como essas. Em Iris, a ausência de preconceitos não era sequer uma qualidade moral do tipo que os liberais e libertários cultivam com orgulho: era mais uma espécie de mania, uma espécie de intolerância enlouquecida com sinal trocado.

(...)

E, no entanto, o que ele disse a Iris foi que era judeu, que Silk era uma forma atenuada de Silberzweig imposta a seu pai por um funcionário de alfândega bondoso. Coleman ostentava até mesmo a marca bíblica da circuncisão, o que não era muito comum entre seus amigos negros de East Orange daquele tempo. Sua mãe, enfermeira num hospital em que predominavam os médicos judeus, foi convencida pelo consenso reinante na comunidade médica de que a circuncisão era uma medida higiênica importante, e assim foi que os Silk optaram pelo rito que era tradicional entre os judeus — e que estava começando a ser adotado como procedimento pós-natal por um número cada vez maior de pais cristãos — a ser executado pelos médicos quando os meninos completavam duas semanas de vida. 

Coleman passara a dizer que era judeu havia alguns anos — ou então deixava que as pessoas pensassem que ele era judeu —, desde que se dera conta de que, tanto na NYU como nos cafés que freqüentava, muitas das pessoas que ele conhecia aparentemente sempre o tomavam por judeu. Na Marinha ele tinha aprendido que, quando uma pessoa conta uma história verossímil e coerente a respeito de seu passado, ninguém jamais faz perguntas, porque ninguém está tão interessado assim. Seus amigos da NYU e de Greenwich Village poderiam perfeitamente ter imaginado — tal como acontecera na Marinha — que ele tinha suas raízes no Oriente Médio, mas naquele momento de pós-guerra o orgulho judaico chegara ao auge nos meios vanguardistas e intelectuais de Washington Square; a ambição que impelia a audácia mental dessa gente começava a parecer incontrolável, e uma aura de importância cultural emanava das piadas dos judeus, das suas histórias de família, de seu riso, de suas palhaçadas, de suas tiradas espirituosas, de suas discussões — até mesmo de seus insultos — tal como das revistas intelectualizadas como Commentary, Midstream e Partisan Review, e não ia ser Coleman que ia perder aquela carona, especialmente depois do tempo que passara como assistente de Doc Chizner, ensinando boxe aos meninos judeus do condado de Essex, que o convencera de que afirmar ter vivido a infância num bairro judeu de Nova Jersey era menos arriscado do que se fazer passar por um marinheiro americano de origem síria ou libanesa." (A marca humanaPhilip Roth)







"Jack! Quando uma criança pergunta alguma coisa, você precisa responder, pelo amor de Deus. Mas sem exagerar. Crianças são crianças, mas elas percebem uma evasiva mais rápido que os adultos e ficam confusas. Hoje à tarde você deu a resposta certa – avaliou meu pai - , mas pelas razões erradas .Falar palavrões é uma fase pela qual todas as crianças passam, e com o o tempo desaparece, quando elas percebem que não estão conseguindo chamar a atenção. Já o pavio curto é outra coisa. Scout precisa aprender a se controlar, e precisa aprender logo, considerando que vai enfrentar nos próximos meses. Mas ela tem se esforçado. Jem está amadurecendo e ela segue bastante o exemplo dele. Às vezes só precisa de um pouco de ajuda. 

- Átticus, você nunca bateu nela – lembrou tio Jack.

- É verdade. Até agora, só precisei ameaçar. Mas Scout me obedece como pode. Não faz exatamente o que deveria, mas tenta. 

- Essa não é a questão – disse tio Jack.

- Não, a questão é que ela sabe que eu sei que ela tenta. E é isso que importa. O que me preocupa é que ela e o Jem vão ter que lidar com muitas coisas ruins em breve. Não me preocupo com Jem, ele sabe se controlar, mas Scout pode pular no pescoço de alguém se achar que sua honra foi atacada...

Pensei que tio Jack ia quebrar a promessa que tinha feito. Mas ele não disse nada.

- Atticus, quão ruim é esse caso? Ainda não tivemos oportunidade de falar sobre isso.

- Não poderia ser pior, Jack. Só temos a palavra de um negro contra a dos Ewell. As provas se resumem a ‘você fez’ contra ‘não fiz’. O júri certamente não vai aceitar a palavra de Tom Robinson contra a dos Ewell. Sabe quem são eles?

 Tio Jack disse que sim, que se lembrava deles. Descreveu-os para Atticus, que disse:

- Você está atrasado uma geração. Mas eles continuam os mesmos.

- Então o que você vai fazer?

- Antes de terminar a defesa, pretendo sacudir um pouco o júri... Mas acho que temos uma boa chance de apelação. A essa altura, não sei, Jack. Gostaria de nunca enfrentar um caso assim na vida, mas John Taylor apontou o dedo para mim e disse: ‘Você vai fazer a defesa.’

- Você preferia não ter que fazer isso, não é?

- É. Mas depois não teria coragem de encarar os meus filhos. Você sabe o que vai acontecer tanto quanto eu, e espero que Jem e Scout passem por isso sem sofrimento e principalmente sem pegar essa doença tão comum em Maycomb. Como pessoas razoáveis ficam possessas quando se trata de qualquer coisa relacionada com um negro eu nunca vou entender... Só espero que Jem e Scout venham me procurar quando quiserem respostas em vez de ficarem dando ouvidos ao que se fala pela cidade. E que confiem em mim... Jean Louise?

Meus cabelos ficaram em pé. Enfiei a cabeça na porta. 

- Sim?

- Vá dormir.

Corri para o meu quarto e deitei na cama. Tio Jack tinha sido um cavalheiro por não me desapontar. Mas nunca descobri como Atticus sabia que eu estava escutando, e só muitos anos depois compreendi que ele queria que eu ouvisse cada palavra". (O Sol é para todosHarper Lee)









Feeling good - Nina Simone










"Fazia um grande silêncio nas ruas; ao longe ladrava tristemente um cão, e, de vez em quando, ouviam-se ecos de uma música distante. E Raimundo ali, no desconforto do seu quarto, sentia-se mais só do que nunca; sentia-se estrangeiro na sua própria terra, desprezado e perseguido ao mesmo tempo. 'E tudo, por quê?...' - pensava ele - 'porque sucedera sua mãe não ser branca!... Mas do que servira então ter-se instruído e educado com tanto esmero? Do que servira a sua conduta reta e a inteireza de seu caráter? ... Para que se conservou imaculado?... Para que diabo tivera ele a pretensão de fazer de si um homem útil e sincero? ...' E Raimundo revoltava-se. 'Pois, melhores que fossem as suas intenções, todos ali o evitavam, porque a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser branco e não ter nascido livre? Não lhe permitam casar com uma branca? De acordo! Vá que tivessem razão! Mas por que insultá-lo e persegui-lo? Ah! Amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu o africano no Brasil! Maldita! Mil vezes maldita!' Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no tronco, debaixo do relho? E lembrar-se de que ainda havia surras e assassínios irresponsáveis tanto nas fazendas como nas capitais!... Lembrar-se de que ainda nasciam cativos porque muitos fazendeiros, apalavrados com o vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da lei do ventre livre!...  Lembrar-se de que a consequência de tanta perversidade seria uma geração de infelizes, que teriam de passar por aquele inferno em que ele agora se debatia vencido! E ainda que o governo tinha escrúpulo de acabar por uma vez com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por ser comprado e revendido em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser um roubo para ser uma propriedade!" (O mulatoAluisio de Azevedo)









 

 


Gravura de Carybé [Hector Júlio Páride Bernabó]





"A vida simplesmente acontecia e você simplesmente passava por ela. Mas, quando o professor Oliveira contou para sua turma sobre Malcom X, quando vocês conversaram sobre Martin Luther King, quando pela primeira vez você ouviu a palavra 'negritude', o seu entendimento sobre a vida tomou outra dimensão, e você se deu conta de que ser negro era mais grave do que imaginava. Foi com o professor Oliveira que você descobriu que as raças não existiam. Numa única aula você aprendeu que a raça era uma mentira. Que a sua cor era uma invenção cruel e orquestrada pelos europeus. Descobriu que a escravidão negra foi sustentada por discursos racistas a partir do século XVIII. Ouviu o professor Oliveira falar como tudo isso tinha começado. Anotou quando ele escreveu no quadro alguns nomes, como, por exemplo, o de Lineu, um botânico sueco que começou a dividir a humanidade em raças de acordo com a origem e a cor da pele: os europeus, os americanos, os asiáticos, os africanos e os malaios. Você anotou tudo porque estava estupefato. O conhecimento nuca o havia atingido daquela forma. Depois você notou outro nome:ˆ Johann Blumenbach, um zoólogo alemão que seria o primeiro a atribuir cor à humanidade, e que, nos seus estudos, em meados do século XVIII, dividiu os seres humanos em brancos, vermelhos, amarelos, marrons e pretos. Você continua com suas anotações, ninguém interrompe a exposição do professor, alguns porque estão quase dormindo e talvez não se importem com essa história de raça; mas outros, como você, porque estão realmente interessados. Oliveira anota mais um nome no quadro e diz para jamais esquecerem dele: Arthur de Gobineau, o pai do racismo, ele completa. Foi esse sujeito que quem aproximou o conceito de raça do discurso político. Não esqueçam dele, ele repetiu. Foi Arthur de Gobineau quem afirmou que as raças protagonizaram as lutas pelo poder e que, portanto, haveria raças inferiores e raças superiores. Depois dele, outros estudiosos da raça vieram e agregaram mais valores científicos para comprovar que os negros pertenciam a uma raça menor. Então o professor Oliveira projetou um crânio na lousa e perguntou se era possível definir o caráter de uma pessoa apenas olhando para aquela passagem. Se podiam dizer se se tratava de uma pessoa mais ou menos inteligente. Ninguém disse nada, porque não queriam desapontá-lo com alguma resposta idiota. Então, o próprio professor Oliveira respondeu: é claro que não podemos. Mas as teorias racistas dos séculos XVIII e XIX acreditavam que sim. Entretanto, do ponto de vista científico, seria um absurdo, um engodo, um embuste, ele dizia. E você gostava quando o professor Oliveira dizia palavras difíceis, pois anotava todas elas para mais tarde procurar seus significados. Seria um absurdo, continuava ele, porque a comprovação daquelas teorias seria completamente arbitrária. Eram teorias que serviam apenas para fortalecer e sustentar o discurso racista da escravidão.” (O avesso da pele, Jeferson Tenório)











"Afoxé Ioni

E Ioni

Afoxé ê Ioni ê




O Coro ia avante, na cantiga e na dança.



E Ioni ô imalé xê.



Tem encantamento hoje, diziam, hoje tem encantamento. A corte de Oxalá, tema escolhido para o préstito, obteve tal sucesso que já no ano seguinte o Afoxé dos Pândegos da África juntava-se à Embaixada, fundado e dirigido por uma gente de nação angola, com sede em Santo Antônio do Carmo. Mais um ano e eram cinco a entoar o canto dos negros e mulatos, até então reduzidos ao esconso das macumbas - o samba nas ruas foi de todos.
Tão de agrado de todos esse canto dos negros, esse samba de roda, a dança, o batuque, o sortilégio dos afoxés - que outro jeito senão proibí-los?
As gazetas protestavam contra o 'modo por que se tem africanizado, entre nós, a festa do Carnaval, essa grande festa de civilização'. Durante os primeiros anos do novo século, a campanha de imprensa contra os afoxés cresceu violenta e sistemática a cada sucesso dos 'cordões dos africanos' e a cada fracasso das grandes sociedades carnavalescas - com a Grécia antiga, com Luís XV, com Catarina de Médicis - , ai-jesus dos senhores do comércio, dos doutores, dos ricos. 'A autoridade deveria proibir esses batuques e candomblés, que, em grande quantidade, alastram as ruas nesses dias, produzindo essa enorme barulhada, sem som nem som, como se estivéssemos na Quinta das Beatas ou no Engenho Velho, assim como essa mascarada vestida de saia e torço, entoando o abominável samba, pois que tudo é isso incompatível com o nosso estado de civilização', bradava o Jornal de Notícias, poderoso órgão das classes conservadoras.
Alastravam as ruas os afoxés, a corromper, a envilecer. O povo, nos requebros do samba, já não tinha olhos nem admiração para os carros alegóricos das Grandes Sociedades, para seus temas da corte da França, distante o tempo 'quando o entusiasmo explodia à passagem dos clubes vitoriosos, monopolizando todas as atenções'. O editorialista exigia providências radicais: 'O que será do Carnaval de 1902, se a polícia não providenciar para que nossas ruas não apresentem o aspecto desses terreiros onde o fetichismo impera com seu cortejo de ogãs e sua orquestra de ganzás e pandeiros?'. Os afoxés na praça e na rua, em primazia; cada qual mais triunfal e rico em cores e melodias, em passos de samba - em frente ao Politeama, no Campo Grande, na rua de Baixo, no largo do Teatro. Obtinham triunfo e mais triunfo, aplausos, palmas e até prêmios. Alastravam as ruas, afoxés e samba, uma epidemia. Só um remédio drástico." (Tenda dos Milagres, Jorge Amado)






SomethingThe Beatles












"María le cuenta que en Las Mellizas las mujeres siempre se reunían en el patio de atrás de la casa. Ese parecía ser el lugar destinado a las mujeres, cerca de los niños, de la cocina, de los lavaderos. A María le gustaba ese lugar y allí pasaba horas y horas sentada en la bacinica, rodeada de lenguas que no paraban, de corridos mejicanos, de olores cocinándose. Cuando un día oyó a un amigo de su padre sugerirle achicar el living para ampliar el patio de atrás, ya que no había tenido hijo varón, a María le resultó de lo más coherente. Más tarde habría de definir la existencia de las mujeres en los hombres como en el patio de atrás de sus mentes. Y la existencia de las mujeres en el trabajo como en el patio de atrás de la sociedad, el lugar secundario. Para ella, aun aceptando que este fuera considerado de segundo rango, era el lugar más cálido. Ahí fue instalada su cantora y desde allí fue espectadora del acontecer." (Nosotras que nos queremos tanto, Marcela Serrano)

















[ERA UMA VEZ TRÊS IRMÃS: MARIA, LÚCIA, (...)]
Terras do Sem Fim, Jorge Amado














“É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.” (O avesso da pele, Jeferson Tenório)










Adios Nonino , Astor Piazzolla






"(...) Os mexicanos têm um verbo de que nós, chilenos, carecemos: 'escojibar', que significa acolher. Se acolheu tanta gente no exílio político, por que não também no exílio da alma, como prova a própria história da literatura? 
(...)
Oaxaca. Azul. Trêmula. Insondável. 
Sua escolha fez desde o princípio um grande sentido para mim, mesmo no nível do instinto mais primário, que me impulsionou a seguir Santiago Blanco e até lá. Mas com o tempo cheguei a racionalizar tudo com nitidez. Vocês podem perguntar por que  Oaxaca para a densidade do silêncio, e não Sikkim, ou outra região da Índia. Minha leitura de Octavio Paz em 'Vislumbres da Índia' me deu algumas luzes. Uma pessoa com os referenciais de C.L. Avila não ignora a atração das sociedades com raizes históricas em que o ajuste harmonioso entre o passado e o presente ainda está na pauta. Para a escritora, a vantagem do México em comparação com a Índia é que a sociedade mexicana mantém uma ponte mais ampla e aberta com as débeis raizes, em todo caso ocidentais, de uma mulher que combina outros sangues, ancestrais e cultura: chilena e americana. De certa maneira simbólica e apaixonante, no México e em suas opções estão se definindo a viabilidade e o futuro latino-americanos, e por isso seus espaços mais profundos, como Oaxaca, continuam sendo lugares privilegiados para quem deseja ligar-se à essência de nossa história, e encontrar, precisamente ali, as ressonâncias do silêncio e paz interior que não se conseguem nas sociedades ocidentalizadas e globalizadas. Portanto , era o México, e não a Índia, que podia acolhê-la e permitir que vivesse a ambiguidade entre a ruptura e a salvação." (Nossa Senhora da SolidãoMarcela Serrano)







Catedral de Oaxaca - MEX / Imagem: Otavio D. S. Ferreira










"El dominio de Amaya sobre el grupo era indiscutible. Una noche en que Marta les dijo que todos deberían transportarse a Coyoacán, a la Casa Azul de Frida Kahlo, porque Diego y Frida daban una gran 'pachanga' y tenían el privilegio de haber sido invitados, Amaya dijo en voz muy baja que ella, desde luego, no iría. Le hicieron rueda: claro, vamos, es fascinante, Amaya, hay que conocer su colección de arte precortesiano, dicen que es espléndida, sus fiestas son típicamente mexicanas. Entonces Amaya fue levantando la voz poco a poco y estalló en una cólera que le despejaba la mente y la hacía hablar como una iluminada.


—Eso es folclorismo, exotismo. Si de algo hay que huir es del pintoresquismo. Nada le hace tanto daño al país como esas farsas.


—¿Farsa el ser mexicano?


—¿A poco no es una farsa vestirse de huehuenche o de tehuana para la cena cuando del diario las señoras andan con modelitos de París o de perdida de falda y blusa como todo mundo? Todavía Frida Kahlo, la tullida, usa enaguas para esconder su columna rota y su pata flaca, pero las demás, ¿a qué le tiran? Andrés Henestrosa cambió Juchitán por una curul en el Congreso.


Le dio un prolongado trago a su bebida en medio del estupor y continuó:


—¿Qué caso tiene entonces vestirse de calzón de manta los sábados en la noche? Basta ya de explotar a este pobre país y burlarse de los indios.


—Nadie se burla, Mayita, cálmate.


—Ellos sí tienen derecho a los atuendos 'típicos', nosotros no. ¿No se han dado cuenta de que la esencia de México no está en sus lanas de colores y en sus aguas de chía, sino en algo mucho más profundo: su miseria? ¿A que ésa no se la cuelgan como molcajete? ¿Por qué en vez de reunirse a beber tequila y curado de fresa y comer romeritos no se dan una vuelta por el Mezquital para ver lo que traen entre el ombligo y el espinazo aquellos cuyos trajes copian como si fueran mamarrachos?" (Paseo de la Reforma, Elena Poniatowska)





Para Lennon e McCartney, Milton Nascimento












"(...) Será que chego vivo ao réveillon de 71? Como sobreviver 365 dias com seus milhares de minutos escondidos, um atrás. do outro, na incerteza inexorável do tempo?


Quantos de nós estavam destinados a viajar uma notícia de jornal, uma foto macabra? Aquele fim de ano fora funesto. Em novembro, a morte de Marighela, metralhado numa cilada do DOPS paulista.
Tortura. Antes era uma imagem vaga, saída de algum filme: porradas, gritos, pontapés. Não me assustava demasiado. Porrada aguento fácil. Só que era muito pior. Há dias tínhamos recebido um manuscrito elaborado pelo Angelo Pezzuti e outros presos da COLINA, na penintenciária de Linhares. Era a primeira denúncia que alguém conseguia colocar fora da prisão.


Continha um relato horripilante de dezenas de casos em Minas e no Rio.


Mais do que técnicas de suplício reveladas nos seus detalhes: choques elétricos, afogamento, pau de arara etc.; o que chocava era o sadismo, a maldade imensurável, a degradação humana. O objetivo fundamental da tortura era destruir a personalidade do preso, triturar a sua condição de ser humano, humilhá-lo nos cantos mais recônditos do seu ego, violentar as suas mais ocultas fraquezas. Era executada e cientificamente aperfeiçoada por seres totalmente deformados, imbuídos de uma mentalidade nazista. Adoravam fazer aquilo e tinham todo o tempo.


Como vampiros que têm que chupara sangue para não morrer, eles precisavam se nutrir do sofrimento dos outros, dos seus gritos de dor, do seu medo, para se sentirem bem. Contavam os companheiros, que nos raros dias em que não havia torturas e gritos de dor, eles ficavam nervosos, angustiados." (Os Carbonários, Alfredo Sirkis)







@13














Asi es mi vida


Mis deberes caminan con mi canto:

soy y no soy: és ese mi destino.


No soy sino acompaño a los dolores

de los que sufren: son dolores míos.


Porque no puedo ser sin ser de todos,

de todos los callados y oprimidos,

vengo del pueblo y canto para el pueblo:

mi poesía es cántico y castigo.


Me dicen: perteneces a la sombra.

Tal vez, tal vez, pero a la luz camino.


Soy el hombre del pan y del pecado

y no me encontrarán entre los libros,

sino con las mujeres y los hombres:

ellos me han enseñado el infinito.



Pablo Neruda








Ponta do Mutá / Foto: Otávio D. S. Ferreira






"E assim mudei-me para a rua Church, em Kensington, para um atraente apartamentozinho no topo, onde morei por quatro anos. Era verão, 1950. Porém, antes de sair da rua Denbigh vi. o fim de uma era, a morte de uma cultura - a chegada da televisão. Antes, quando os homens chegavam do trabalho, o jantar já estava na mesa, a lareira acesa, o rádio num canto emitindo baixinho palavras ou música. Eles se lavavam, sentavam em seus lugares, com a mulher, o filho e quem mais fosse seduzido a descer. A comida começava a vir do fogão, prato após prato, fazia-se o chá, aparecia a cerveja, lá se iam as malhas ou paletós, os homens sentavam-se em mangas de camisa, reluzentes de bem-estar. Todos falavam, cantavam, contavam o que ocorrera durante o dia, diziam obscenidades - um ritual -, brigavam, gritavam, beijavam-se, faziam as pazes e iam pra a cama à meia-noite, uma hora, depois de mais ou menos seis horas de convívio animado. Suponho que esse nível de intensidade emocional não fosse comum nas casas da Grã-Bretanha: eu estava testemunhando um extremo. E aí, de um dia para o outro - literalmente de uma noite para outra - os bons tempos terminaram porque a televisão chegou e sentou-se como um sapo no canto da cozinha. Logo mais a grande mesa foi empurrada para o canto, poltronas foram instaladas em semicírculo e, sobre os braços das poltronas, apareceu o jantar na bandeja. Foi o fim de uma exuberante cultura verbal." (Andando na SombraDoris Lessing)











Life on Mars / StarmanRandy Coleman
















"Pensar, capitán Montes, capitancito, que podías haber seguido durmiendo la siesta, y en ese caso aún no habrías enfrentado [quizás tendrías que enfrentarla mañana, aunque nunca se sabe cómo funcionan en los chicos las claves del olvido] la pregunta que en este instante te formula tu hijo, sentado frente a vos en la silla negra: ‘Pa, ¿Es cierto que vos torturás?’ Y tampoco te habrías visto obligado, como ahora, después de tragar fuerte, a responder con otra pregunta: ‘¿Y de dónde sacaste eso?’, aun sabiendo de antemano que la respuesta de Jorgito va a ser: ‘Me lo dijeron en la escuela’. Y claro, decís, masticando cada sílaba: ‘No es cierto. No es cierto como te lo dijeron. Pero hijito, tenés que comprender que estamos luchando con gente muy pero muy peligrosa que quiere matar a tu papá, a tu mamá, y a muchas otras personas que vos querés. Y a veces no hay más remedio que asustarlos un poco, para que confiesen las barbaridades que preparan’. Pero el insiste: ‘Está bien, pero vos… ¿torturás?’ Y de pronto te sentís cercado, bloqueado, acalambrado. Sólo atinás a seguir preguntando: ‘¿Pero a que le llamás tortura?’ Jorgito está bien informado para sus ocho años: ‘¿Cómo a qué? Al submarino, pa. Y a la picana, y al telefono’. Por primera vez esas palavras te taladran, te joden. Sentís que te pones rojo, y no tenés modo de evitarlo. Rojo de rabia, rojo de vergüenza." (Con y sin nostalgia, Mário Benedetti)















"Talvez não saiba contar como minha mãe me contou. Afinal, ela viveu o que contou e eu apenas conto o que ela viveu: Na manhã da quinta-feira 4 de setembro de 1969, no último dia da novena – aquele em que, após expiar as culpas, se pedem as graças –, minha mãe postou-se no altar da nave lateral, ajoelhou-se e rezou. Mas não rezou como sempre, e sim fundo, embriagada pelo que meditava, com uma devoção não a si nem apenas a Santa Teresinha, de quem era devota e para quem rezava e pedia graças. 
– Rezava fora de mim, como se estivesse no céu, e achei que estava perturbada e louca! – contou-me minha mãe anos depois. Devotada apenas a essa loucura de rezar e rezar, minha mãe não viu sequer que minha filhinha Isabela, na inocência dos seus 4 anos, passeava pelo altar-mor e brincava com Cristo na cruz, com Maria ou José e outros santos e santas, como se estivesse num pátio de bonecas. Por fim, pediu a graça, agradeceu e persignou-se. Ao levantar-se, viu a caixa de esmolas, chamou minha filha e deu-lhe uma cédula de 5 cruzeiros para que depositasse para o pão dos pobres da paróquia de Nossa Senhora da Glória. 
Na tarde desse mesmo dia, o embaixador dos Estados Unidos é sequestrado em Botafogo, não muito longe dali, dessa igreja do Largo do Machado, no Rio. Na tarde do dia seguinte, a primeira mensagem do embaixador é deixada na caixa de esmolas da igreja de Nossa Senhora da Glória, ali mesmo no Largo do Machado, junto com a lista dos 15 presos políticos a serem libertados. 
– E eu que pensei que estava perturbada e louca! – disse-me minha mãe anos depois, quando me visitou pela primeira vez no exílio, no México.(Memórias do esquecimentoFlavio Tavares)






High Hopes - Pink Floyd











"Do outro lado da estrada, na serraria, a fumaça saía da chaminé, e Anselmo podia sentir o seu cheiro, soprado pelo vento na sua direção, através da neve. 'Os fascistas estão aquecidos e confortáveis', pensou, 'e amanhã à noite vamos matá-los. É uma coisa estranha e eu não gosto de pensar a respeito. Vigiei-os durante o dia inteiro e eles são homens iguais a nós. Acredito que eu poderia caminhar até a serraria e bater na porta, e seria bem-vindo, exceto pelo fato de que eles têm ordens para abordar todos os viajantes e pedir os seus documentos. São apenas as ordens que nos separam. Aqueles homens não são fascistas. Eu os chamo assim, mas eles não são. São homens pobres iguais a nós. Jamais deveriam estar lutando contra nós, e não gosto de pensar no ato de matar.'

'Estes no posto são galegos. Sei, de ouvi-los conversar hoje à tarde. Não podem desertar porque, se o fizerem, suas famílias são fuziladas. Galegos são ou muito inteligentes, ou muito burros e brutais. Conheço os dois tipos. Lister é um galego da mesma cidade de Franco. Imagino o que estes galegos estão achando desta neve nesta época do ano. Eles não têm montanhas altas como estas, e na região deles chove constantemente, e está sempre tudo verde.'

Uma luz transparecia através da janela da serraria. Anselmo tremia de frio e pensou: 'Inglés desgraçado! Lá estão os galegos, aquecidos, numa casa no nosso país, e eu congelando atrás de uma árvore, morando num buraco nas rochas, como animal das montanhas. Mas, amanhã, as feras sairão dos seus buracos, e estes, que estão agora tão confortáveis, morrerão aquecidos nos seus cobertores. Como aqueles que morreram à noite, quando assaltamos Otero.' Ele não gostou de relembrar Otero.

Em Otero, naquela noite, fora a primeira vez que ele matara alguém, e esperava não precisar matar nessa ação contra esses postos. (...)

'Está frio demais. Que aquele Inglés venha logo, e que eu não tenha que matar nesses negócio dos postos. Esses quatro galegos e o cabo são para quem gosta de matar. Foi o que o Inglés disse. Eu o farei, se for a minha tarefa, mas o Inglés disse que eu estarei com ele na ponte, e que o resto será deixado para os outros. Haverá uma batalha na ponte e, se for capaz de aguentar uma batalha, então eu teria feito tudo que um velho pode fazer nesta guerra. Mas, que venha agora, estou congelado e ver aquela luz dentro da serraria, onde sei que os galegos estão aquecidos, me faz sentir ainda mais frio. Queria estar em minha casa novamente, e que esta guerra tivesse acabado. Mas agora não tenho mais casa. Temos que vencer esta guerra, ou jamais voltarei para minha casa'."
[Por quem os sinos dobram, Ernest Hemingway]









Andando na SombraDoris Lessing






 “E me lembro também da noite em que, à nossa revelia, meu pai morreu: eu e Antônio na praia, nadando no mar negro, os corpos molhados na areia, indiferentes ao vento úmido e fresco; a felicidade, tão fácil, nos prometendo a eternidade que jamais cumpriria. Mas naquele momento parecia que a vida inteira seria assim, simples e feliz. 

Dois dias depois, minha mãe foi nos buscar. Então, deu-se início à queda que, como qualquer queda, só estancou quando já não tínhamos onde cair. O mundo que eu e meu irmão havíamos esboçado logo se mostrou frágil e vaporoso. O elo que nos unia se rompeu de forma tão abrupta que hoje chego a duvidar da veracidade das minhas lembranças. Se nos amássemos tanto, seria mesmo possível destruir o laço? 

À medida que o tempo passava, nós nos afastávamos, reforçando a improbabilidade de reconciliação. Aos 22 anos, Antônio foi fotografar pelo mundo e me deixou com a nossa mãe e a culpa, essa culpa que ele fez questão de que fosse minha, só minha. Meu irmão sempre soube que eu não partiria, não deixaria a mãe sozinha, porque a história que ele se contou foi diferente da que eu agora conto: para ele, eu sou a vilã, a nossa mãe não tem distúrbio algum, é apenas uma pessoa cuidadosa, uma mulher triste, porém organizada e meticulosa, uma viúva que soube preservar a memória do marido e não deixou o mal se abater sobre a casa. E a história dele foi, durante muito tempo, também a minha. Eu estava tão apegada à dor que ela se tornou um hábito. Aos 33 anos, a felicidade era para mim uma abstração. Eu nunca havia imaginado deixar o sofrimento à parte, e agora me dou conta de como era mais fácil viver agarrada a ele, sempre uma justificativa. Por isso foi estranho quando a Marie-Ange surgiu e me mostrou outro caminho, fazendo com que de uma hora para outra esse sentimento desconhecido encontrasse um espaço na minha vida. 

Então, senti a maior liberdade que eu jamais experimentara: a liberdade de empacotar a tristeza e repousá-la no armário. A liberdade de saber que não existe apenas o inferno, e que as histórias podem ser recontadas. Há pessoas que chegam para nos destruir. Outras para nos salvar. Marie-Ange foi uma destas. Não fosse eu tê-la conhecido na praia, ainda estaria presa a casa e ao passado.” (Dois RiosTatiana Salem Levy)









"Desde que estamos aqui, nossa vida antiga nos foi cortada, sem que tenhamos contribuído para isto. Muitas vezes, procuramos um motivo, uma explicação, mas não conseguimos achá-los. Justamente para nós, que temos vinte anos, as coisas são particularmente confusas, para Leer, Kropp, Müller e para mim, para os que Kantorek chama 'juventude de ferro'. Os soldados mais velhos possuem laços firmes com o passado; têm mulheres, filhos, profissões e interesses já bastante fortes para que nem a guerra possa destruí-los. Nós, os de vinte anos, no entanto, temos somente nossos pais; alguns, uma garota. Não é muito – porque na nossa idade a influência dos pais é mais fraca, e as mulheres ainda não nos dominam. Além disso, que mais havia para nós? Algumas paixões, um pouco de fantasia e a escola; nossas vidas não iam mais longe. E, disso tudo, nada sobrou. 

Kantorek diria que nós nos encontrávamos exatamente no limiar da existência. E, com efeito, é assim. Ainda não estávamos enraizados na vida. A guerra foi um dilúvio que nos arrastou. Para os outros, para os mais velhos, ela foi apenas um intervalo: conseguem pensar no tempo que virá depois. Mas nós fomos apanhados por ela e não sabemos o fim de tudo isto. Apenas sabemos, por hora, que nos embrutecemos, de uma maneira estranha e dolorosa, mesmo que muitas vezes nem sequer fiquemos tristes." (Nada de novo no frontErich Maria Remarque)













The gunners dream - Pink Floyd















"Era uma vez um vendedor de brinquedos que se chamava Sigismund Markus e vendia, entre outros, tambores de lata esmaltados de vermelho e branco. Oskar, que acabamos de mencionar, era o principal comprador dos ditos tambores, porque era tambor de profissão e não podia nem queria viver sem tambor. Por essa razão correu da sinagoga em chamas até a passagem do Arsenal, pois ali vivia o guardião de seus tambores: mas encontrou-o em um estado que o impossibilitava de vender tambores daí por diante ou pelo menos neste mundo.

Eles, os mesmos artífices do fogo, que Oskar acreditava ter deixado atrás, já tinham-se adiantado e visitado Markus, molhado em cor o pincel e escrito em escrita Sütterklin, ao longo da vitrine, as palavras 'porco judeu'; a seguir, descontentes talvez com sua própria caligrafia, arrebentaram com os tacões de suas botas o vidro da vitrine, de modo que o título que haviam conferido a Markus mal se deixava adivinhar. Desprezando a porta, entraram na loja pela vitrine arrebentada e brincavam, com seu estilo característico, com os brinquedos de crianças. Ainda os encontrei brincando quando, também pela vitrine, entrei na loja. Alguns tinham baixado as calças e depositado uns salsichões marrons, nos quais se podiam ver ainda ervilhas maldigeridas, sobre barquinhos a vela, sobre macacos violinistas e sobre meus tambores. Todos se pareciam com o músico Meyn e usavam uniformes de SA como Meyn, mas Meyn não estava ali, assim como os que estavam ali tampouco estavam em outra parte. Um deles sacara o punhal. Abria com ele o ventre das bonecas e parecia se surpreender cada vez com o fato de que dos corpos e membros repletos saía apenas serragem. Eu estava inquieto por causa dos meus tambores. Meus tambores não gostavam deles. Meu instrumento não se atreveu a enfrentar a cólera deles; teve de permanecer mudo e dobrar os joelhos. Mas Markus escapara à cólera deles. Quando quiseram falar com ele em seu escritório, não lhes ocorreu bater com os nós dos dedos e rebentaram a porta apesar de não estar fechada. O vendedor de brinquedos estava sentado atrás de sua escrivaninha. Como de costume, usava guarda-pó sobre o traje cinza-escuro de todos os dias. Um pouco de caspa sobre os ombros revelava a enfermidade de seu cabelo. Um SA que trazia na mão alguns títeres deu-lhe uma bordoada com a madeira da avó-marionete; a Markus, porém, já não se podia falar, nem se podia ofender. Sobre a escrivaninha via-se um copo d’água que a sede o fez esvaziar no instante preciso em que o ruído da vitrine saltando em estilhaços veio lhe secar a garganta.

Era uma vez um tambor chamado Oskar. Quando lhe tiraram o vendedor de brinquedos e saquearam a loja do vendedor de brinquedos, teve o pressentimento de que para os tambores anões de sua espécie se anunciavam tempos calamitosos. Assim, ao deixar a loja, surrupiou um tambor bom e outros dois quase incólumes e, dependurando-os no pescoço, deixou a passagem do Arsenal e dirigiu-se ao mercado do Carvão para ter com seu pai, que talvez estivesse procurando por ele. Caía a tarde de um dia de novembro. Junto ao teatro Municipal, perto da parada do bonde, algumas religiosas e algumas moças feias tiritavam de frio e distribuíam brochuras piedosas, recolhiam dinheiro em caixinhas de lata e levavam entre duas hastes um estandarte cuja inscrição citava a Primeira Epístola aos Coríntios, capítulo 13: 'Fé — Esperança — Amor', leu Oskar, e podia brincar com as três palavrinhas feito um malabarista com suas garrafas: crédulo, gotas de Esperança, pérola de Amor, fábrica Boa Esperança, leite de Virgem do Amor, assembleia de crentes. Achas que vai chover amanhã?

Todo um povo crédulo em Papai Noel. Mas Papai Noel era na realidade o homem que acendia os bicos de gás. Ao que parece, estaremos logo no primeiro domingo do Advento. E o primeiro, segundo, terceiro e quarto domingos do Advento abriam-se como se abrem os registros do gás, para que, cheirando plausivelmente a nozes e amêndoas, todos os papa-moscas pudessem acreditar resolutamente: Já vem! Já vem! Quem vem? O Menino Jesus, o Salvador? Ou era o celestial homem do gás com o gasômetro fazendo tique-taque sob o braço? E ele disse: Eu sou o Salvador deste mundo, sem mim não podeis cozinhar. E aceitou o diálogo, ofereceu uma tarifa favorável, abriu os registrozinhos de gás recém-polidos e deixou sair o Espírito Santo, para que se pudesse assar a pomba.

(...)

Quanto a mim, arrebataram-me o vendedor de brinquedos e, com ele, queriam eliminar do mundo os brinquedos." [
O tambor, Gunther Grass]









Carnefici 

Livrai-nos do mal
    a marca da culpa, 
        na pele em fuligem, 
            sem dúvida, remorso, 
                aponta, engatilha... Pawh! 

Jaz um vagabundo! 
    Como já não houvessem tantos. 
        Varre sob o asfalto. 
            Ninguém socorre,
                comove, recorre. 
                 
Desbaratado, 
    o sangue gratuito coagula, 
        borra mãos coniventes 
            em cumprimentos, afagos, preces, 
                no transporte, oficina, sala de jantar. 

Supura 
    no verbo incisivo da TV à tarde, 
        na oração redentora do sacerdote, 
            sob a benção licita da milícia
                ao desdém da Polis.  

Engolido no meio-fio, 
        o pesar leve, leviano, adesivo, 
            na trama de devotos
                que por ordem clama
                    e o ódio inflama!


Otávio Dias de Souza Ferreira















Sob o cinza. Autoria própria..








"Eu não me lembro, mas minhas irmãs mas velhas contam, que , às vezes, meu pai as levava ao hospital São Vicente de Paulo. Maryluz, a mais velha, nunca se esqueceu do dia em que ele a levou ao hospital infantil e a fez percorrer as alas, visitando, uma por uma, as crianças doentes. segundo ela, parecia um louco, um desvairado, pois parava na frente de quase todos os pacientes e perguntava: 'O que esta criança tem?'. E ele mesmo respondia: 'Fome". E logo adiante: 'O que esta criança tem? Fome. O que esta criança tem? A mesma coisa: fome. E esta outra? Nada. Fome. A única coisa que todas estas crianças têm é fome, e bastaria um ovo e um copo de leite por dia para não estarem aqui. Mas nem isso somos capazes de dar a elas: um ovo e um copo de leite! Nem isso, nem isso! É o cúmulo'.

Graças à compaixão, e a essa ideia fixa por uma higiene que só depende de educação e obras públicas, também conseguiu, ainda no tempo de estudante e apesar da resistência dos produtores, que achavam que a medida lhes causaria prejuízos, tornar obrigatória a devida pasteurização de todo o leiteantes de ser distribuído, pois nos exames de laboratório que fizeram com o produto vendido em Medellín e nas localidades vizinhas, encontrara amebas, bacilos de Kock e fezes. Dizia que água tratada e leite esterilizado salvavam mais vidas que a medicina curativa individual, a única que a maioria de seus colegas queria praticar, em parte para enriquecer, em parte para aumentar seu prestígio de pajés da tribo. 

(...)

Mas ele não era odiado apenas por médicos. Em geral, sua maneira de trabalhar não era bem-vista na cidade. Seus colegas dizem que, 'para fazer o que faz esse médico faz, não é preciso diploma', pois para eles a medicina se resumia a tratar doentes em seus consultórios particulares. Os mais ricos achavam que, com sua mania de igualdade e de consciência social, ele estava organizando os pobres para fazerem a revolução. Quando saía a campo e incentivava os trabalhadores a organizarem mutirões para fazerem eles próprios as melhorias necessárias, seus críticos na cidade diziam que ele falava muito em direitos, e pouco em deveres. Onde já se viu os pobres erguerem a voz para reclamar? Um político muito importante, Gonzalo Restrepo Jaramillo, disse no Club Union - o mais exclusivo de Medelín - que Abad Gómez era o marxista mais bem estruturado da cidade, e um perigoso esquerdista cujas assas deviam ser cortadas, para que não alçasse voo. Meu pai se formou numa escola pragmática norte-americana (na Universidade de Minnesota) , nunca tinha lido Marx e confundia Hegel com Engels. Para saber exatamente do que o acusavam, resolveu ler esses autores, e nem tudo lhe pareceu disparatado: em parte, e pouco a pouco ao longo da vida, acabou virando não muito diferente do militante esquerdista que naquela época o acusavam de ser. No fim dos seus dias, costumava dizer que sua ideologia era um híbrido: cristão em religião, pela figura amável de Jesus e sua evidente preferência pelos mais fracos; marxista em economia, porque detestava a exploração econômica e os infames abusos dos capitalistas; e liberal em política, porque não suportava a falta de liberdade e as ditaduras, nem mesmo a do proletariado, pois os pobres no poder, ao deixarem de ser pobres, não eram menos tirânicos e desumanos que os ricos.(A ausência que seremosHéctor Abad)





“Preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto, preto e, de repente: branco. 
Aparecida não se contém, não esconde dos passantes o desespero, com as mãos puxando os cabelos, grita, balança o corpo de volta ao preto e, sem tirar os pés do chão, põe-se a chorar: perdeu a linha que mantém as coisas no eixo. 
E eu, ao seu lado, tenho vontade de mandá-la calar a boca, está todo mundo olhando, pare agora com esse vexame no meio da rua, que diferença faz se você pisou no preto ou no branco, é tudo calçada, você não percebe? Não tem vergonha, não? Não tem vergonha de fazer isso na frente da sua filha, na frente das pessoas? 
E eu, ao seu lado, tenho vontade de abraçá-la e sussurrar em seu ouvido: calma, mãe, calma, está tudo bem, o mundo não vai acabar, nada vai acontecer. Não tem importância se você pisou no branco, foi sem querer, não foi por mal. 
E eu, ao seu lado, tenho vontade de lhe pedir desculpas. Juro, mãe, juro que a culpa não foi minha. E eu, ao seu lado, sem poder gritar, sem poder fazer nada senão olhar, também começo a chorar. Porque eu, como ela, tampouco entendo por que as coisas são como são; porque eu, como ela, também queria poder controlar os acontecimentos e escolher só o que é bom; porque eu, como ela, não entendo por que tão doída, a vida. 
Então, enquanto ela grita e todos a olham, eu choro quieta, choro por mim, por ela, pelo meu pai, pelo meu irmão, por as coisas serem como são. Choro porque ela, a minha mãe, não entende que os sabonetes, a organização, os banhos e os medicamentos não curam nada; choro porque não posso mentir, e ela, assim como eu, conhece a verdade. 
E eu, ao seu lado, enquanto choro e a ouço gritar, me pergunto se isso também pode acontecer comigo, se também posso romper a tênue linha que me separa do desespero, se um dia também andarei na rua buscando pisar só no preto ou só no branco, minha filha ao meu lado, sem saber o que fazer, chorando o mesmo choro que agora choro.” (Dois Rios, Tatiana Salem Levy)




"No meio da inquieta aglomeração, Gabriel Heliodoro acabou por perder de vista tanto Frances como Rosalía. Ia servir-se duma coxa de galinha, bem tostada, como gostava, quando viu, do outro lado da mesa, a sorrir para ele, um general americano fardado. Com a velocidade da luz, o pensamento do Embaixador transportou-o a Soledad del Mar. Um anoitecer de verão, em 1915. Ele tinha doze anos e estava espiando o bivaque dos marines dos Estados Unidos. Um sargento brandiu no ar uma perna de galinha. Os meninos descalços, esfarrapados e famintos da vila ergueram os braços magros e gritaram: 'Atira! Atira!'. O americano jogou na direção deles o pedaço de galinha. Gabriel Heliodoro, o mais alto de todos, apanhou-o antes que ele caísse ao solo, apertou-o contra o peito e tratou de safar-se. Um dos companheiros agarrou-o pelos joelhos e ele tombou, esborrachando o nariz contra o chão, mas não largou a perna de galinha. Os outros atiraram-se em cima dele, aos gritos, rasgaram-lhe a camisa, arranharam-lhe as costas, morderam-lhe os braços, golpearam-lhe a cabeça, e só o deixaram em paz quando outros fuzileiros surgiram e puseram-se a atirar para o meio deles umas moedas de níquel que tinham a imagem dum búfalo em relevo numa das faces. Gabriel Heliodoro precipitou-se para a igreja, onde entrou, ofegante da luta e da corrida. Pôs-se a comer vorazmente a coxa de galinha, que sabia a tempero de gringo, suor de seu corpo, poeira e sangue — o sangue que lhe escorria morno do nariz. Enquanto comia, olhava para a imagem da Virgem, sua madrinha. Estava meio envergonhado por ter aceito restos de comida daquela tropa estrangeira que havia desembarcado em Soledad del Mar especialmente para matar Juan Balsa e seus guerrilheiros. Por um instante mágico, Gabriel Heliodoro conseguiu recapturar as imagens e sensações daquele episódio remoto de sua vida. Sorria agora, olhando para o prato. Num impulso, espetou um garfo na perna de galinha que havia escolhido para si mesmo e praticamente atirou-a no prato do general, que a princípio pareceu um pouco chocado mas em seguida, descobrindo cordialidade no gesto do anfitrião, sorriu, agradecido." (O senhor embaixadorErico Verissimo)




Tenho sede - Gil e Dominguinhos 





"- O que é que o Doutor Thurmer lhe disse, meu filho? Soube que vocês tiveram uma boa conversinha.
- É, tivemos sim. Uma conversa e tanto. Acho que fiquei mais de duas horas no escritório dele.
- E o que foi que ele disse a você?
- Ah... esse negócio de que a vida é um jogo e tudo mais. E que a gente precisa jogar de acordo com as regras. Ele até que foi simpático, quer dizer, não subiu pelas paredes nem nada. Só ficou falando que a Vida é um jogo e tudo. O senhor sabe.
- E a vida é um jogo, meu filho. A vida é um jogo que tem de disputar de acordo com as regras.
- Sim senhor, sei que é. Eu sei.
Jogo uma ova. Bom jogo esse. Se a gente está do lado dos bacanas, aí sim, é um jogo - concordo plenamente. Mas se a gente está do outro lado, onde não tem nenhum cobrão, então que jogo é esse? Qual jogo, qual nada." (O apanhador dos campos de centeioJ. D. Salinger)







Fuga para Cumuru / Foto: Otávio D. S. Ferreira

















"Havia muito orgulho e muito tédio no fundo do caráter dos donos da casa; estavam muito acostumados a ultrajar por desenfado para que pudessem esperar verdadeiros amigos. Mas, com exceção dos dias de chuva e dos momentos de tédio feroz, que eram raros, sempre eram tidos por perfeitamente educados.

Se os cinco ou seis bajuladores que demonstravam uma amizade tão paternal por Julien tivessem desertado a Mansão de La Mole, a marquesa teria sido exposta a grandes momentos de solidão; e, aos olhos das mulheres desse nivel social, a solidão é atroz: é o emblema da desgraça.

O marquês era perfeito com sua mulher; cuidava para que seu salão estivesse suficientemente guarnecido; mas não por seus pares: ele achava que seus novos colegas não eram bastante nobres para virem à sua casa como amigos, nem bastante divertidos para serem admitidos como subalternos.

Só bem mais tarde Julien desvendou esses segredos. A politica dominante, que é assunto nas casas burguesas, só é abordada naquelas da classe do marquês nos momentos de infortúnio.

Tal é, ainda neste século entediado, o império da necessidade de se divertir que, mesmo nos dias de recepção, mal o marquês deixava o salão, todo mundo fugia. Contanto quão  nse brincasse nem com Deus, nem com os padres, nem com o rei, nem com as pessoas bem posicionadas, nem com os artistas protegidos pela corte, nem com nada que é estabelecido; contanto que não  se falasse bem de Béranger, nem dos jornais da oposição, nem de Voltaire, nem de Rousseau, nem de nada que permitisse um pouco de liberdade de expressão; contanto, sobretudo, que não se falasse nunca de política, era possível conversar sobre tudo.

Não há cem mil escudos de renda nem condecoração que possam lutar contra tal norma de salão. A mínima ideia viva parecia uma grosseria. Apesar do bom-tom, da perfeita polidez, da vontade de agradar, o tédio se lia em todas as fisionomias. Os jovens que vinham prestar homenagem, com medo de dizer alguma coisa que sugerisse um pensamento ou traísse alguma leitura proibida, calavam-se após algumas palavras elegantes sobre Rossini e o tempo que faria." (O Vermelho e o NegroStendhal)








Todo o sentimento, Raphael Rabello e Eliseth Cardoso




"(...) Mas quem podia matar o trabalho quando Tibúrcio, o capataz, estava em cima, gritando: 
— Mais depressa… Mais depressa… 
Sempre mais depressa, essa é a lei dos alugados nas fazendas de cacau. “Mais depressa”, grita Tibúrcio do alto do seu cavalo, o relho na mão, o relho que por vezes se desvia das ancas do animal para as costas de um homem que protesta. “Mais depressa”, grita, acrescentando: 
— São uns molengas, não sabem trabalhar, roubam o dinheiro que ganham, são uns ladrões… 
Quando a voz de Tibúrcio atravessa as roças sobre os homens, Varapau contrai o rosto com raiva. Varapau não se recorda de ter odiado ninguém durante sua vida. Nem mesmo Rosa que o abandonou nas ruas de Ilhéus, levando-o a tomar o trem para Itabuna. Mas, ah!, se ele pudesse pegar Tibúrcio numa noite na estrada, os dois sozinhos… Varapau, quando pensa nisso, até sorri. Foi nos últimos dias da colheita, antes que entrasse o trabalho das podas, que ele pensou no terno. Um terno de reis, para as festas do fim e do começo do ano… 
Primeiro a ideia veio em função da festa simplesmente. Alguém falou que estava próximo o Natal e o Varapau lembrou-se do terno. Por que não fazer um terno? Mas a voz de Tibúrcio continuava sobre eles, nos xingamentos e nas ameaças: 
— Não roubem o dinheiro do patrão que custa a ganhar… 
E Varapau ligou então a ideia do terno à ideia de fuga. Quantas vezes não planejara fugir, largar aquelas terras, arribar pelo mundo afora, para longe desse trabalho nos cacaueiros? Mas recordava sempre, como todos os trabalhadores da fazenda, a surra que Ranulfo levara quando tentara fugir. Fora alcançado em Ferradas e apanhou na vista de todos os trabalhadores, reunidos especialmente para assistir. O coronel Frederico também estava, o rebenque de Tibúrcio trabalhou nas costas do homem. Depois o coronel disse: 
— Isso é pra vocês aprenderem a não querer roubar os outros… Trabalhador que deve tem que pagar a dívida antes de poder ir embora… 
Quem não devia? Ranulfo vivia tremendo de maleita, tinha seu salário sempre reduzido que a febre não o deixava produzir como os outros. Sua conta ia subindo, foi na alucinação da doença que ele fugiu. Desde que apanhou vive para um canto, sem conversar com ninguém, a cabeça baixa, remoendo coisas. Capi já disse que aquele é capaz de fazer uma besteira e se desgraçar para a vida toda. Varapau também, que é alegre e cínico, por vezes sente uma coisa estranha na cabeça, os olhos turvos, a boca amarga, e a espingarda o tenta, seria belo ver Tibúrcio estendido na estrada. Todos eles têm mais ódio ao capataz que ao coronel. O coronel é intocável, é sagrado, mas o capataz já foi trabalhador algum dia, é igual a eles, só que subiu e agora é pior que o próprio patrão." [São Jorge dos Ilhéus, Jorge Amado]






Junho dissonante / Foto: Otávio D. S. Ferreira








"(...) que revolução faremos? Acabei de dizer, a revolução da Verdade. Do ponto de vista político, há somente um princípio, a soberania do homem sobre si mesmo. Essa soberania de mim sobre mim chama-se Liberdade. Onde duas ou mais destas soberanias se associam, principia o Estado. Mas, nessa associação não há nenhuma abdicação. Cada soberania concede certa quantidade de si mesma para formar o direito comum. Essa quantidade é igual para todos. Essa identidade de concessão que cada um faz a todos chama-se Igualdade. O direito comum nada mais é que a proteção de todos brilhando sobre o direito de cada um. Essa proteção de todos sobre cada um chama-se Fraternidade. O ponto de interseção de todas essas soberanias que se agregam chama-se Sociedade. Sendo essa interseção uma junção, esse ponto é um nó. Daí vem o que chamamos laço social. Alguns dizem contrato social, o que é a mesma coisa; a palavra contrato é etimologicamente formada pela a ideia de laço. Vamos nos entender sobre a igualdade; pois, se a liberdade é o cume, a igualdade é a base. A igualdade, cidadãos, não é o nivelamento de toda a vegetação; uma sociedade de grandes punhados de grama e pequenos carvalhos; uma vizinhança de invejas castrando-se mutuamente; é, civilmente, a oportunidade por igual de todas as aptidões; politicamente, o mesmo peso para todos os votos; religiosamente, todas as consciências possuindo os mesmos direitos. A igualdade tem um órgão; a instrução gratuita e obrigatória. É preciso começar pelo direito ao alfabeto. A escola primária imposta a todos, a escola secundária oferecida a todos, assim deve ser a lei. Da escola idêntica sai a sociedade igual. Sim, ensino! Luz! Luz! Tudo provém da luz e tudo retorna para a luz. Cidadãos, o século XIX é grande, mas o século XX será feliz." (Os miseráveis, Victor Hugo)








Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, 
onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais, 
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. 

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
 
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze 
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
 

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra 
e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer.
 
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina 
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras. 

Caminhas entre mortos e com eles conversas 
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito. 

A literatura estragou tuas melhores horas de amor. 
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
 

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva. 

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição 
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Carlos Drummond de Andrade






Se os tubarões fossem homens, Bertold Brecht (declamação: A. Abujamra)











“Na escura prisão de Conciergerie, os que deviam morrer aguardavam se destino. Eram em número igual ao das semanas do ano. Dos vagalhões da cidade para oceano eterno e infinito, cinquenta e duas cabeças rolariam naquela tarde. Antes que esvaziassem suas celas, novos ocupantes eram designados; antes que seu sangue se misturasse ao sangue derramado na véspera, aquele que se misturaria ao deles já estava separado.


Cinquenta e dois condenados. Desde o rendeiro de setenta anos, que as riquezas não lhe podiam comprar a vida, até a costureira de vinte anos, cuja pobreza e obscuridade não a pudessem salvar. As doenças físicas, engendradas nos vícios e negligências dos homens, agarram suas presas em todas as classes sociais. E a temível desordem moral, nascida de um indescritível sofrimento, de uma opressão intolerável e de uma desalmada indiferença, também ceifava, sem fazer distinções de qualquer natureza. Charles Darnay, sozinho em sua cela, deixara de apegar-se a qualquer ilusão desde que saíra do tribunal. Em cada linha da narrativa que ouvira, ouvira sua condenação. Compreendera que nenhuma influência pessoal poderia salvá-lo, que fora virtualmente sentenciado por milhões de votos e que simples unidades nenhum benefício poderiam trazer-lhe. 


Contudo, não era fácil, tendo diante dos olhos a imagem de sua amada esposa, convencer seu espírito a resignar-se com o. que deveria suportar. Laços poderosos o prendiam à vida e era muito, muito difícil rompê-los. Quando, por meio de esforços, conseguia aos poucos afrouxá-los, logo sentia-os apertarem-se ainda mais; e quando buscava energia em sua mente para apoiar-se, esta lhe faltava. Além disso, havia um sentimento de urgência em todos os seus pensamentos, uma turbulenta e acalorada batalha travada em seu coração contra o conformismo. Se, por um momento, ele se conformava com a sua sorte, parecia-lhe ouvir os protestos da esposa e da filha, que teriam que sobreviver a ele, recriminando-o pela atitude egoísta.


Esses conflitos, porém, assaltaram-no apenas no início. Não tardou em que a consideração de que não havia desonra no destino que o aguardava, que inúmeras pessoas seguiam o mesmo injusto caminho, trilhando-o com firmeza todos os dias, surgiu para estimulá-lo. Depois, seguiu-se a ideia de que muito da futura paz de espírito de que seus entes queridos desfrutariam dependia de ele demonstrar uma serena Fortitude. Assim, gradualmente, alcançou um estado de bem-vinda tranquilidade, que lhe permitiu elevar os pensamentos e deles extrair conforto.


Antes de se espalharem as trevas da noite de sua condenação, sua mente havia, assim, alçado seu derradeiro vôo. Tendo conseguido comprar papel, pena e tinta, além de uma vela, sentou-se para escrever até a hora em que as luzes da prisão teriam que extinguir-se.


(...)


Darnay teve tempo de terminar as cartas antes do apagar das luzes. Quando se estendeu no catre, refletiu que, para ele, tudo estava acabado neste mundo.


Mundo que, entretanto, acenou-lhe em seu sono, revelando-se nas cores mais brilhantes. Livre e feliz, de volta à velha casa do Soho (embora, no sonho, fosse totalmente diversa da casa real), indescritivelmente aliviado e de coração leve, ele estava novamente com Lucie, que lhe dizia que fora um pesadelo, que ele jamais havia partido. Uma pausa de esquecimento, e então ele foi executado, mas regressou para ela, morto e em paz, sem ter sofrido qualquer mudança. Outra pausa de esquecimento e ele acordou na cela sombria, inconsciente de onde estava e do que acontecera até que a lembraça assoumou-lhe à memória: ‘este é o dia da minha morte!’” [Um conto de duas cidadesCharles Dickens 













Heartbeats José Gonzalez





"Aliás, convenhamos, a utopia sai de sua esfera radiante guerreando. Ela, a verdade do amanhã, toma emprestado seu procedimento, a batalha, da mentira de ontem. Ela, o futuro, comporta-se como o passado. Ela, ideia pura, torna-se via de fato. Ela complica seu heroísmo com uma violência pela qual é justo que responda; violência de ocasião e de expediente, contrária aos princípios e pela qual é fatalmente punida. A utopia-insurreição combate com o antigo código militar na mão; fuzila os espiões, executa os traidores, suprime seres vivos e arremessa-os nas trevas desconhecidas. Serve-se da morte, coisa grave. Parece que a utopia já não tem fé na luz, sua força irresistível e incorruptível. Fere com a espada. Porém, nenhuma espada possui um só gume. Toda espada tem dois gumes; quem fere com um fere-se com o outro. Feita essa ressalva, e feita com toda a severidade, torna-se impossível deixar de admirar, quer vençam ou não, os gloriosos combatentes do futuro, os confessores da utopia. Mesmo quando abortam, são veneráveis, e talvez seja no fracasso que eles tenham mais majestade. 

A vitória, quando é conforme ao progresso, merece os aplausos dos povos, mas uma derrota heroica merece o seu enternecimento. Uma é magnífica, a outra é sublime.

(...)

Somos injustos para com esses grandes empreendedores do futuro quando malogram. 

Acusamos os revolucionários de espalhar o terror. Toda barricada parece um atentado. Incriminamos suas teorias, suspeitamos de seu objetivo, tememos seu pensamento, denunciamos sua consciência. São censurados por levantar, alicerçar e amontoar contra o fato social reinante um bocado de misérias, de dores, de iniquidades, de agravos, de desesperos, e por arrancar dos abismos blocos de trevas para neles se entrincheirar e combater. Gritamo-lhes: “Estão arrancando as pedras do inferno!” Eles poderiam responder: “É por isso que nossa barricada é feita de boas intenções”. O melhor, certamente, é a solução pacífica. Em suma, convenhamos, quando vemos uma pedra pensamos no urso, boa vontade com a qual a sociedade se inquieta. Mas a salvação da sociedade depende dela mesma; é para a sua própria boa vontade que nós apelamos. Nenhum remédio violento é necessário. Estudar o mal amigavelmente, constatá-lo e depois o sanar. É para isso que a convocamos. Seja como for, mesmo caídos, principalmente caídos, são grandiosos esses homens que, em todos os pontos do universo, e olhos fixos na França, lutam pela grande obra com a lógica inflexível do ideal; eles dão a própria vida, como pura doação, pelo progresso; cumprem a vontade da Providência; praticam um ato religioso. Na hora marcada, com o mesmo desinteresse de um ator no momento de sua réplica, obedecendo ao cenário divino, entram no túmulo. E esse combate sem esperança, e esse desaparecimento estoico, eles o aceitam para levar às esplêndidas e supremas consequências universais o magnífico movimento humano irresistivelmente iniciado em 14 de julho de 1789. Esses soldados são sacerdotes. A Revolução Francesa é um gesto de Deus." (Os miseráveis, Victor Hugo)

















Salvador Dali...












Debaixo da minha pele, Doris Lessing










"Waterloo, acabando com a demolição dos tronos europeus pela espada, não teve outro efeito senão o de dar continuidade ao trabalho revolucionário por um outro lado. Acabaram os homens da espada, é a vez dos pensadores. O século que Waterloo queria fazer parar passou-lhe por cima e continuou seu caminho. Aquela sinistra vitória foi vencida pela liberdade. Em suma, e incontestavelmente, o que triunfava em Waterloo, o que sorria por trás de Wellington, o que lhe trazia todos os bastões de marechal da Europa, inclusive, segundo se diz, o bastão de marechal da França, o que alegremente movia os carrinhos de terra cheios de ossadas para formar a elevação do leão, o que triunfantemente escreveu no pedestal esta data: 18 de junho de 1815, o que encorajava Blucher a acutilar a derrota, o que se curvava do alto do planalto de Mont-Saint-Jean sobre a França, como se fosse sobre uma presa, era a contrarrevolução. Era a contrarrevolução que murmurava esta infame palavra: desmembramento. Ao chegar a Paris, viu a cratera de perto, sentiu aquela cinza queimando-lhe os pés e reconsiderou. Voltou ao balbuciar de uma constituição. 

Vejamos em Waterloo apenas o que está em Waterloo. Nenhuma liberdade intencional. A contrarrevolução foi involuntariamente liberal, do mesmo modo que Napoleão, por um fenômeno correspondente, foi involuntariamente revolucionário. Em 18 de junho de 1815, Robespierre, a cavalo, foi atirado da sela." (Os miseráveis, Victor Hugo)





Pedalada em Uyuni / Foto: Otávio D. S. Ferreira










"As ondas de refugiados que irromperam em Londres, fugindo de Hitler e posteriormente de Stalin, eram muito pobres, miseráveis mesmo; viviam de modo precário, fazendo uma tradução aqui, uma resenha ali, dando aulas no idioma pátrio. Trabalhavam como porteiro de hospital, operário de obra, em serviços domésticos. Havia uns poucos cafés e restaurantes tão pobres quanto eles, que supriam a necessidade nostálgica de conversas sobre política e literatura em torno de um cafezinho. Saídos de universidades de toda a Europa, eram intelectuais, palavra fatal e fonte de muita suspeita no seio dos filisteus xenófobos, que nem sempre se considerava elogiosos quando admitiam que os recém-chegados eram mais instruídos que eles. Um bar em especial servia goulash com bolinhos de massa, sopas encorpadas e outros pratos de igual substância a náufragos que, logo mais, viriam a acrescentar valor e brilhos diversos à cultura nativa. Lá pelo final dos anos 50, 60, eram editores, escritores, jornalistas, artistas e até um ganhador do prêmio Nobel. Um estranho que entrasse no Cosmo [bar] imaginaria que aquele seguramente era o lugar mias incrementado do norte de Londres porque, àquela altura, todos já envergavam o uniforme geral do não-conformismo: camisa pólo e jeans caros, jaquetas Mao ou de couro, cabelos desgrenhados ou o sempre popular corte à la imperador romano. Havia mulheres também, umas poucas, de minissaia, em sua maioria namoradas, absorvendo os estrangeirismos enquanto tomavam o melhor café de Londres e comiam bolos cremosos de inspiração vienense.

Frances adquirira o hábito de ir ao Cosmo para trabalhar. Na porção da casa que pensava ser sua, a salvo de invasões, ela agora ouvia os passos de Júlia, ou de Andrew, já que ambos visitavam Sylvia para lhe dar xícaras disso ou daquilo e insistiam para que ela deixasse tudo aberto, porque a menina temia toda e qualquer porta fechada. E Rose dera de perambular pela casa. (...)

Pode-se dizer que lamentar os pequenos desentendimentos domésticos e depois optar por ficar sentada num canto do Cosmo, que reverberava com debates e discussões o tempo inteiro, era - indiscutivelmente - um tanto desarrazoado. Sobretudo quando as conversas escutadas seriam sem dúvida de cunho revolucionário. Todo mundo ali tinha algum tipo de ideal revolucionário, ainda que estivesse fugindo dos resultados da revolução. Em sua maioria, representavam alguma fase do Sonho e eram capazes de discutir horas a fio sobre como fora tal ou tal assembleia na Rússia de 1905 ou de 1917, o que ocorrera em Berchtesgaden ou quando as tropas alemãs invadiram a União Soviética e o estado de poços de petróleo da Romênia em 1940. Falavam de Freud e de Jung, de Trotski e Bukárin, de Arthur Koestler e da Guerra Civil Espanhola. E Frances, cujos ouvidos se fechavam bem fechados quando Johnny começava uma de suas arengas, achava aquilo tudo muito apaziguante, ainda que não escutasse ativamente as conversas. Verdade que um bar barulhento cheio de fumaça de cigarro (então um acompanhamento indispensável à atividade intelectual), é mais privado que uma casa sempre repleta de gente querendo bater um papo. Andrew gostava do Cosmo. Assim como Colin: diziam que as energias do lugar eram boas, sem falar nas vibrações positivas.

Johnny era frequentador assíduo, mas estava em Cuba, de modo que Frances se sentia a salvo." [O sonho mais doce, Doris Lessing]













La maza, Silvio Rodrigues



 












Floriano sacode a cabeça lentamente e pensa na sua contínua e prolongada luta em busca da liberdade. Desejou sempre com tal ardor ser livre, que acabou escravo da ideia de liberdade, tendo pago por ela quase o preço de sua humanidade. Sabe agora que conquistou apenas uma liberdade negativa, que pouco ou nada serve ao homem e ao escritor. Sente-se livre dos compromissos políticos e vive tentando convencer-se de que está liberto – pelo menos teoricamente - dos preconceitos e atitudes da sociedade burguesa. Mas ser livre será apenas gozar da faculdade de dizer não aos outros (e às vezes paradoxalmente de si mesmo) – um eterno negar-se, um obstinado esquivar-se, um estúpido ensimesmar-se? Haverá alguma vantagem em ter uma liberdade de caramujo: defensiva, encolhida, medrosa, estéril? Chegou à conclusão de que, por obra e graça desse medo de comprometer-se, na realidade ele se comunica apenas tecnicamente com os outros seres humanos." (O ArquipélagoÉrico Veríssimo)

















O arco / Foto: Otávio D. S. Ferreira







"E o que foi que os alunos de Amalfitano aprenderam? Aprenderam a recitar em voz alta. Memorizaram os dois ou três poemas de que mais gostavam para recordá-los e recitá-los nos momentos oportunos: funerais, bodas, solidões. Compreenderam que um livro era um labirinto e um deserto. Que o mais importante do mundo era ler e viajar, talvez a mesma coisa, sem nunca parar. Que ao fim da leitura os escritores saíam da alma das pedras, que era onde viviam depois de mortos, e se instalavam na alma dos leitores como numa prisão macia, mas depois essa prisão se ampliava ou explodia. Que todo sistema de escrita é uma traição. Que a poesia verdadeira vive entre o abismo e a desdita e que perto da sua casa passa o caminho real dos atos gratuitos, da elegância dos olhos e da sorte de Macabrú. Que o principal ensinamento da literatura era a coragem, uma coragem estranha, como um poço de pedra no meio de uma paisagem lacustre, uma coragem semelhante a um turbilhão e a um espelho. Que não era mais cômodo ler do que escrever. Que lendo aprendia a duvidar e recordar. Que a memória era o amor." [As agruras do verdadeiro tira, Roberto Bolaño]








Sinto bastante inveja de um escritor como W. Somerset Maugham, de quem estou lendo nestes dias 'O fio da navalha'. É capaz de narrar com todos os detalhes histórias que escutou, inclusive a ponto de imaginar esses detalhes, inventá-los, a partir de um relato esboçado por algum amigo. É um excelente escritor, por algum motivo menosprezado. Eu mesmo o menosprezava, talvez porque teve muito sucesso, e porque sua forma narrativa é bastante humilde. Lembro-me de que na minha casa havia vários livros dele, que estava na moda quando eu era criança ou bem jovem, e inclusive passaram pelas minhas mãos vários exemplares desses mesmos livros quando eu era livreiro, e nunca cheguei a lê-los. É muito provável que, se tivesse lido, naquela época, não me interessariam nem um pouco. Quando se é jovem e inexperiente, procura-se nos livros enredos chamativos, assim como nos filmes. Com o passar do tempo, a pessoa vai descobrindo que o argumento não tem grande importância; o estilo, a forma de narrar, é tudo. Assim, posso assistir ao mesmo filme ou ler o mesmo livro inúmeras vezes, inclusive um romance policial cuja resolução eu me lembro de cabeça." (O romance luminoso, Mario Levrero)





 






"– O senhor não está passando bem, deputado. Não melhorou com o comprimido? 
– Coisa sem importância, não é nada, não. Muito cigarro, e bebi um pouco demais ontem... 
– Às vezes um pouco de macela, uma dose boa de losna... – sugeriu o magrinho de gravata amarela. Foram para a cozinha. (...) 
Um bater aflito de asas chamou a atenção do deputado. Era o frango índio, com o talho fundo no pescoço de penas arrancadas, pingando sangue no prato de folha. A crista branca, descarnada, as pernas ainda pedalando soltas... Frango ao molho pardo! Não havia escapatória: teria mesmo de aguentar aquele horror do Carrapato até à tardinha...
estômago, com toda certeza: ânsia de vômito que subia, queimando o peito, amargando a garganta. Ânsia e tonteira: o povo todo da cozinha rodava – o carão vermelho do tio Aurélio (pusera os óculos, o ladrão, para melhor chupar o seu leite com farinha!), o tal de seu Iziquia, o de paletó preto de casimira, o seu Quincão, o seu Tataco, o magricela de gravata de abóbora, Nenzinho, prima Alzira, João Soares... Chegara mais gente: o novato falante e um negrão alto, descalço, camisa vendendo farinha. Tudo rodava... Passara a ânsia, só a cabeça estalando... Nossa! O capetão sapateava no cocuruto da cabeça, pulava da nuca para a sobrancelha, num pulo só. Não, não era apenas um: eram muitos os demônios – demônios machos, demônios fêmeas; e se agarravam, casais trocando-se, derrubando-se: bêbados, bêbados, a fazerem desatinos por cima da fofice dos miolos. Rápidos: espojavam-se, esfregavam-se, e daquela sem-vergonheira nasciam enxames de capetinhas – já de rabo, já peludinhos, de chifre e fogo nos olhos. Por isso, o zumbido de abelha arapuá nos ouvidos. O corpo inteiro, agora – a capetada descera pelas veias, talvez pelos corrimãos dos nervos – as costas, as pernas, as solas dos pés: tudo pegando fogo... O sangue queimava, corria em labaredas... tudo ardia, estralava, sacudia, ameaçando desabar. Bombeiros, bombeiros! O tio Aurélio, de capacete, de óculos, mangueira comprida na mão; João Soares, seu Iziquia, seu Candinho... O novato, sempre falante, dava ordens, comandava: – 'Água benta, gente! Água benta!' Água benta, fria, gelada! escorrendo pelos cabelos, pela cara, pelas costas. Friagem de gelo – mas os demônios fugiam! A cozinha, de novo: giravam todos da esquerda para a direita – devagar, no começo, mas a velocidade aumentava, aumentava, até que as caras se confundiam. Depois, corriam ao contrário: o negro descalço, prima Alzira, João Soares... um velho, agora, acompanhado da moça morena de cabelos pretos, compridos... Fogo, água benta, fogo, água fria. E tudo começando a ficar mais vermelho: primeiro, da cor de sangue de passarinho; depois, cor de sangue de boi; por último, cor de sangue coalhado. E girando de baixo para cima: todo mundo de ponta-cabeça, sem cair: as panelas, o leite, o requeijão – até o frango índio de pescoço pelado, e o prato cheio de vinagre e sangue. Força centrífuga. A tal que segurava as motocicletas no globo do circo, quando ficavam de rodas para cima. Por que é que a saia da Alzira continuava descida até os pés, ela pendurada daquele jeito? E a da moça morena, de cabelos pretos e compridos? Bonita, bonita... coxas bonitas também, grossas, cor de chocolate... Que pena! – as saias não emborcavam, como deviam; os cabelos compridos, também não... – Água benta! – gritava o novato. – Água benta! ... De repente, tudo acabou. Escuridão. 
Quando tio Aurélio gritou, já era tarde: o sobrinho caía de lado, as costas perdidas do apoio da quina do assento. O corpo escorregou e rolou, e Paulo despencou-se de bruços, batendo com a cara no chão de terra da cozinha." (Vila dos ConfinsMário Palmério)








Across the Universe - Fiona Apple













"Nisto, seu rosto se contraiu; quase se podia ver a dor lancinante que lhe atravessou a cabeça. A porta abriu-se e Larry apareceu. Isabel contou-lhe o que havia.
- Oh! Sinto muito - disse ele, lançando a Gray um olhar de comiseração. - Não se pode fazer alguma coisa para aliviá-lo?
- Nada - respondeu Gray, ainda de olhos fechados. - A única coisa que podem fazer é deixar-me só; vão vocês e divirtam-se bastante. 
Por mim achei que era a única coisa sensata a fazer, mas talvez a consciência de Isabel não lhe permitisse agir assim.
- Quer que eu veja se posso ajudá-lo? perguntou Larry.
- Ninguém pode ajudar-me - disse Gray em voz cansada. - Isto esát me matando, e, por Deus, às vezes chego a desejar que me mate mesmo.
- Enganei-me ao dizer que talvez pudesse ajudá-lo. Minha intenção era dizer que talvez eu pudesse ajudá-lo a ajudar-se a si próprio.
Gray abriu lentamente as pálpebras e fitou Larry.
- Como é que você pode fazer isso?
Larry tirou do bolso uma moeda de prata e entregou-a a Gray. 
- Feche bem os dedos e conserve a mão de palma para baixo. Não lute contra mim. Não faça esforço, mas segure a moeda no punho fechado. Antes de eu ter contado vinte, sua mão se abrirá e a moeda cairá no chão.
Gray fez o que lhe diziam. Larry sentou-se à escrivaninha e começou a contar. Isabel e eu continuamos de pé. Um, dois, três, quatro. Até ele chegar a quinze, não houve movimento por parte de Gray: depois a mão tremeu ligeiramente e, não posso dizer que tenha visto, mas pareceu-me que os dedos se afrouxavam. O polegar separou-se do punho. Vi distintamente os dedos moverem-se. Quando Larry chegou a dezenove, a moeda soltou-se da mão de Gray e rolou pelo chão, vindo parar a meus pés. Apanhei-a e examinei-a. Era pesada e malfeita, tendo de um lado, em relevo, uma cabeça jovem que reconheci como sendo de Alexandre, o Grande. Gray olhou perplexo para a sua mão.
- Não soltei a moeda - disse ele. Caiu por si mesma.
Estava sentado com o braço direito apoiado no braço da poltrona de couro.
- Você se sente confortável nessa cadeira? perguntou Larry.
- O mais confortável possível para quem tem a enxaqueca que eu tenho.
- Pois bem, relaxe os músculos. Fique à vontade. Não faça coisa alguma. Não resista. Antes de eu ter contado vinte, seu braço direito se levantará da cadeira até chegar em cima da cabeça. Um, dois, três, quatro.
Ele dizia os números lentamente, naquela sua voz argentina, melodiosa; quando chegou ao número nove, vimos mão de Gray erguer-se, de maneira apenas perceptível, mais ou menos três centímetros acima da superfície de couro onde descansava, aí parando pelo espaço de um segundo.
- Dez, onze, doze. 
Um repuxãozinho e então, lentamente, todo braço começou a erguer-se. Já não estava apoiado na poltrona. Um tanto atemorizada, Isabel agarrou a minha mão. Curioso, aquilo. Nãa se parecia absolutamente com um movimento voluntário. Nunca vi um sonâmbulo em ação, mas imagino que seus movientos se assemelham aos moviemntos do braço de Gray naquele momento. Não  se tinha a impressão de que a vontade fosse a força motriz. Achei que, por um esforço consciente, devia seír difcil erguer um braao dço tevagar e assim gradualmente. Era como se uma força subconsciente, independente da vontade, o levantasse. Movimento semelhante ao do pistão que se move lentamente num cilindro. 
- Quinze, dezesseis, dezessete. 
As palavras caíam, lentas, lentas, lentas, como gotas de água numa bacia, provindo de uma torneira defeituosa. O braço de Gray subiu, subiu, até a mão pairar acima de sua cabeça; e, quando Larry atingiu o número determinado, caiu pesadamente sobre a poltrona.
- Não levantei o braço - afirmou Gray. - Não pude evitar que subisse daquele jeito. Ergueu-se por si mesmo.
Um sorriso esboço-se nos lábios de Larry.
- Não tem importância. Achei que isto faria com que você tivesses mais confiança em mim. Onde está aquela moeda grega?
Entreguei-a a Larry e ele virou-se para Gray. 
- Segure-a com força. - Gray fez o que lhe mandavam e Larry consultou o seu relógio. - São oito horas e treze minutos. Daqui a sessenta segundos, suas pálpebras se tornarão tão pesadas que você será obrigado a fechá-las. Você vai dormir durante seis minutos. Às oito e vinte acordará e não sentirá mais dor alguma. 
Nem eu nem Isabel falamos. Nossos olhos estavam fixos em Larry. Ele nada mais disse. Fitou Gray, mas não parecia vê-lo; parecia mesmo estar olhando através e além dele. Havia qualquer coisa de sobrenatural no silêncio que caiu sobre nós; tal o silêncio das flores num jardim, ao cair da noite. Súbito senti a mão de Isabel contrair-se; olhei então para Gray. Suas pálpebras estavam cerradas; respirava com facilidade e regularmente; dormia. Ali ficamos por tempo que parecia interminável. Eu estava louco por um cigarro, mas não quis acender um. Larry estava imóvel, de olhos perdidos não sei em que distância. A não ser pelo fato de estarem abertos, ele parecia em transe. De repente pareceu relaxar-se; os olhos adquiriram a expressão normal e ele consultou o relógio. Nisto Gray abriu os olhos.
- Céus, creio que cochilei - disse ele. Depois teve um sobressalto. Notei que seu rosto perdera a lividez. - Minha dor de cabeça passou.
- Ótimo - disse Larry. - Fume um cigarro e vamos depois jantar.
- É um milagre. Sinto-me perfeitamente bem. Como é que você conseguiu isso?
- Não fui eu. Foi você mesmo.
(...)(O fio da NavalhaW. Somerset Maughan)




Céu magnífico, 2024. Autoria própria.








“(...) A princípio pensei que o sorriso que me dirigiu fosse de admiração. Logo me dei conta de que não passava de desprezo. Os poetas mexicanos (suponho que os poetas em geral) detestam que lhes recordem sua ignorância. Mas não me atemorizei e, depois de ele destroçar um para de poemas meus na segunda semana de que participei, eu lhe perguntei se sabia o que era um ‘rispetto’. Álamo pensou que eu lhe exigia ‘respeito’ a meus poemas e desatou a falar da crítica objetiva (para variar) , que é um campo minado por onde se deve transitar todo jovem poeta, etcétera e tal, mas não o deixei prosseguir e, após lhe esclarecer que nunca em minha curta vida eu havia pedido respeito a minhas pobres criações, tornei a formular a pergunta, desta vez tentando pronunciar com a maior clareza possível. 


- Não me venha com merda, García Madero – Álamo disse.


- Um ‘rispetto’, querido mestre, é um tipo de poesia lírica, amorosa, para ser mais exato, semelhante ao ‘strambotto’, que tem seis ou oito hendecassílabos, os quatro primeiros em forma de sirvente e os seguintes construídos em parelhas. Por exemplo... – eu já me dispunha a lhe dar um ou dois exemplos, quando Álamo se levantou de um pulo e deu por encerrada a discussão. O que aconteceu em seguida está envolto em brumas (apesar de eu ter boa memória: lembro da risada de Álamo e das risadas dos quatro ou cinco colegas de oficina, possivelmente coroando uma piada às minhas custas. 


Outro, em meu lugar, não teria posto novamente os pés ali, mas, apesar de minhas infaustas recordações (ou da ausência de recordações, no caso tão ou mais infausta que a retenção menmotécnica destas), na semana seguinte lá estava eu, pontual como sempre.


Creio que foi o destino que me fez voltar. Era minha quinta sessão na oficina de Álamo (mas pode ter sido a oitava ou a nona, ultimamente notei que o tempo se encolhe ou se estica a seu arbítrio), e a tensão, a corrente alternada da tragédia se sentia no ar, sem que ninguém conseguisse explicar a que isso se devia. Para começar, estávamos todos presentes, os sete aprendizes de poeta inscritos inicialmente, coisa que não havia acontecido nas sessões precedentes. Também: estávamos nervosos. O próprio Álamo, normalmente tranquilo, mal se aguentava. Por um momento pensei que talvez houvesse acontecido algo na universidade, uma fuzilaria no campus de que não estivesse a par, uma greve surpresa, o assassinato do decano da faculdade, o sequestro de um professor de Filosofia ou algo do gênero. Mas nada disso havia acontecido, e a verdade era que ninguém tinha motivos para ficar nervoso. Pelo menos objetivamente, ninguém tinha motivos. Mas a poesia (a verdadeira poesia) é assim: ela se deixa pressentir, se anuncia no ar, como os terremotos que, segundo dizem, alguns animais especialmente aptos a tal propósito pressentem. (Esses animais são as cobras, as minhocas, os ratos e certos pássaros.) O que aconteceu em seguida foi tumultuado mas dotado de algo que, mesmo correndo o risco de ser cafona, eu me atreveria a chamar de maravilhoso. Chegaram os dois poetas real-visceralistas, e, a contragosto, Álamo os apresentou a nós, embora só conhecesse pessoalmente um deles; o outro conhecia de ouvir falar, ou seu nome não lhe era estranho, ou alguém lhe havia falado dele, mas mesmo assim o apresentou.


Não sei o que eles teriam ido fazer lá. A visita parecia claramente de natureza beligerante, embora não isenta de um matiz propagandístico e proselitista. A princípio, os real-visceralistas se mantiveram calados ou discretos. Álamo, por sua vez, adotou uma postura diplomática, levemente irônica, de esperar os acontecimentos, mas, pouco a pouco, ante a timidez dos estranhos, foi se encorajando, e ao cabo de meia hora a oficina já era a mesma de sempre. Então começou a batalha. Os real-visceralistas puseram em dúvida o sistema crítico que Álamo adotava; este, por sua vez, chamou os real-visceralistas de surrealistas de araque e de falsos marxistas, sendo apoiado no debate por cinco membros da oficina, ou seja, por todos menos por um cara muito magro, que andava sempre com um livro de Lewis Carroll debaixo do braço e quase nunca falava, e por mim, atitude que com toda franqueza me deixou surpreso, pois os que apoiavam Álamo com todo rancor eram os mesmos que recebiam com atitude estóica suas críticas implacáveis e que agora se revelavam (o que me pareceu surpreendente) seus mais fieis defensores. Nesse momento decidi pôr meu grão de areia e acusei Álamo de não ter ideia do que era um ‘rispetto’; intrepidamente, os real-visceralistas reconheceram que eles também não sabiam o que era isso, mas minha observação lhes pareceu pertinente e assim afirmaram; um deles me perguntou que idade eu tinha, eu disse que tinha dezessete anos e tentei explicar mais uma vez o que era um ‘rispetto’. Álamo estava rubro de raiva; os membros da oficina me acusaram de pedante (um disse que isso não passava de um academicismo meu); os real-visceralistas me defenderam; já embalado, perguntei a Álamo e à oficina em geral se pelo menos lembravam o que era um nicárqueo ou um tetrástico. E ninguém soube me responder.


A discussão não acabou, contrariamente ao que eu esperava, num quebra-pau generalizado. Sou obrigado a reconhecer que eu teria adorado. E, embora um dos membros da oficina tenha prometido a Ulisses Lima que um dia iria quebrar a cara dele, no final não aconteceu nada, quer dizer, nada violento, ainda que eu tenha reagido à ameaça (que, repito, não foi dirigida a mim) garantindo ao ameaçador que eu me punha à sua inteira disposição em qualquer canto do campus, no dia e na hora que ele quisesse. 


O fim do sarau foi surpreendente. Álamo desafiou Ulisses Lima a ler um de seus poemas. Este não se fez de rogado e tirrou do bolso do blusão uns papeis sujos e amarfanhados. Cacete, pensei, esse panaca se meteu sozinho na boca do lobo.  Creio que fechei os olhos de pura vergonha por ele. Há momentos  para recitar poesias e há momentos para boxear. Para mim, aquele era um destes últimos. Fechei os olhos, como já disse, e ouvi Lima pigarrear. Ouvi o silêncio (se isso é possível, embora eu duvide) um tanto incômodo que foi fazendo à sua volta. E finalmente escutei sua voz, que lia o melhor poema que jamais havia ouvido”. (Os detetives selvagens, Roberto Bolaño











Ramon de Algeciras - Paco de Lucia












"Imobilizado no meio da planície, Bianco espreita o horizonte. O borrão leve, móvel, que alterava a linha em que o céu e a terra cinzenta se juntam transformou-se numa mancha nervosa, alongada, que começa a adquirir relevo sobre a linha horizontal e, pouco a pouco, à medida que se separa dela e vai se aproximando, lentamente se desagrega e se transforma numa infinidade de pontos e, depois, de manchas escuras que se sacodem e vão crescendo progressivamente, levantando um rumor remoto que ainda não chega aos ouvidos de Bianco mas que o pássaros, as toupeiras, as lebres, as perdizes e as doninhas da planície já perceberam, começando a agitar-se, fugindo em todas as direções. Uma lebre passa a toda velocidade, esquivando-se aos pulos, espavorida, das moitas de capim ressecado e ralo. Duas perdizes saem do meio do capim e, voando baixo, pesadas, percorrem o trecho pelo ar e voltam a mergulhar no capim para alçar vôo novamente um pouco mais adiante. No ar, bandos de pássaros se dispersam a toda velocidade. Uma toupeira bate várias vezes na parede de sua toca, sob a terra, depois fica imóvel. Agora o rumor crescente que vem do horizonte começa a chegar aos ouvidos de Bianco e, pouco a pouco, da mesma maneira que a mancha original foi se desagregando numa proliferação de manchinhas escuras e ainda sem forma, o rumor apagado vai se desdobrando num ruído crescente e múltiplo, que ainda assim conserva certa uniformidade, e que Bianco deduz ser produzido pelo galope de muitos cavalos. Bianco apalpa o revólver na cintura e, saindo bruscamente de sua imobilidade, vai correndo para a cabana. Ao dobrar a quina lateral e chegar à parte da frente, quase tropeça com os dois cavalos amarrados que o trouxeram da cidade e que o levarão de volta, mordiscando, indiferentes, e sem apetite nem convicção, talos de capim seco. Bianco entra na cabana, pega uma carabina em cima da mesa e volta para o campo.

A tropilha avança a todo galope pela superfície, dispersa e crescente como se sofresse mudanças descontínuas de tamanho, e o ruído dos cascos ressoa e repercute, desdobrando-se sob as patas dos cavalos e se dissemina pelo ar em que os pássaros fogem em todas as direções. Ignorando a garoa fina que começa a cair e que escorre, silenciosa, em seu rosto e em seus cabelos, Bianco, entendendo que não vêm  montados por nenhum cavaleiro, abaixa a carabina e contempla com uma expressão em que o alarme vai dando lugar à surpresa, e depois à maravilha, a enorme tropa de cavalos escuros que se aproxima a toda velocidade, tumultuando o deserto um pouco adormecido pelo final do inverno. Devem ser mais de dois mil, mais de dois mil, pensa, movimentando-se um pouco excitado e batendo no chão, muitas vezes, para acalmar sua excitação, com a culatra da carabina. Os cavalos, todos escuros, os pêlos de tons quase idênticos, com o mesmo ritmo, a mesma velocidade, na mesma direção, massa sombria e palpitante, de uma multidão unificada por todos os seus membros e ao mesmo tempo dispersa em cada um deles, aglomeração de carne quente, de músculos e nervos e de sentidos, vão propagando o estrondo pelo campo vazio e saturando-se a tal ponto que até os pensamentos maravilhados de Bianco são cobertos pela proliferação sonora e tornam-se inaudível ou incompreensíveis para ele em sua própria mente. Vigorosos, disciplinados e selvagens, parecem a massa arcaica do ser deslocando-se como um vento cósmico, dividida num número indefinido de indivíduos idênticos, tal como uma infinidade de estrelas separadas pelo negrume, mas todas constituídas pela mesma substância, ou uma fileira de álamos brotados da mesma semente e que, observados de certo ponto do espaço, superpõem-se e se fundem até dar a ilusão de serem um só." (A ocasiãoJuan José Saer)







Crepúsculo 2024. Autoria própria.


















"- Se eu escrever umas palavras pra você, promete que vai ler cuidadosamente? E guardar?
- Prometo, sim - respondi. E era verdade. Até hoje guardo o papel que ele me deu.
Foi até a escrivaninha, no outro lado da sala, e escreveu alguma coisa num pedaço de papel, sem se sentar. Aí voltou e se sentou, com o papel na mão.
- Por estranho que pareça, isso não foi escrito por um poeta. Foi escrito por um psicanalista chamado Wilhelm Stekel. Aqui está o que ele... Você ainda está me ouvindo?
- Claro que estou.
- Aqui está o que ele disse: 'A característica do homem imaturo é aspirar a morrer nobremente por uma causa, enquanto que a do homem maduro é querer viver humildemente por uma causa'.
Inclinou-se e me passou o pedaço de papel. Li imediatamente o que estava escrito, agradeci e tudo, e guardei o papel no bolso. foi muito simpático da parte dele incomodar-se por minha causa. Foi mesmo. Mas a verdade é que eu não estava realmente com muita vontade de me concentrar. Puxa, nunca me senti tão cansado, assim de repente.
Mas ele não dava a menor impressão de cansaço. Em parte porque estava bastante alto.
- Acho que um dia desses - ele falou - você vai ter que decidir para onde quer ir. E aí vai ter que começar a ir para lá. E sem perda de tempo. No seu caso, não se pode perder um minuto que seja.
Concordei com a cabeça, por que ele estava me encarando e tudo, mas não estava entendendo muito bem o que ele disse. Eu achava que sabia o que era, mas, naquele momento, não tinha certeza absoluta. Estava cansado para diabo.
- Detesto dizer isso, mas acho que, assim que você tiver uma ideia de onde quer chegar, seu primeiro passo vai ser aplicar-se no colégio. É o que você vai ter que fazer. Você é um estudante - quer a ideia lhe agrade ou não. Você está apaixonado pelo conhecimento. E eu acho que você vai encontrar, depois de deixar para trás todos esses professores Vinenses e suas composições e...
- Vinsons - falei. Ele queria dizer todos os professores Vinsons, e não todos os professores Vinenses. Mas eu não devia ter interrompido.
- Está bem... os professores Vinsons. Na hora em que você conseguir deixar para trás todos os professores Vinsons você vai começar a se aproximar cada vez mais - isto é, se você quiser, e se procurar, e se tiver paciência de esperar - da espécie de conhecimento que será muito, muito importante para você. Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enojada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho neste terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmos, enfrentaram os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que, algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia." (O apanhador dos campos de centeio, J. D. Salinger)








César Vallejo











Preludes I, II e III, de Villa-Lobos, Julian Bream

















"Enquanto estivermos no campo de batalha, os dias na frente [front de batalha], que já passaram, caem dentro de nós como pedras: são pesados demais para podermos refletir tão depressa sobre eles. Se o fizéssemos, eles nos abateriam mais tarde, pois já notei que se consegue suportar o horror enquanto se dissimula, mas ele mata quando nele se pensa.


Exatamente como nos transformamos em animais quando vamos para a frente, porque é a única maneira de nos salvarmos, tornamo-nos humoristas e vagabundos quando estamos descansando. Não conseguimos agir de outra maneira: na verdade, é qualquer coisa superior a nós próprios.


Queremos viver a qualquer preço; por isso, não podemos arcar com o peso de sentimentos, que podem ser muito decorativos em tempo de paz, mas, aqui, estariam totalmente deslocados.


Kemmerich está morto, Haie Westhus, agonizante; terão no dia do Juízo Final um trabalho hercúleo para recompor o corpo de Hans Kramer, dilacerado por uma granada; Martens não tem mais pernas; Meyer está morto, Berger está morto, Hammerling está morto; cento e vinte homens jazem por aí cheios de tiros; é uma desgraça, mas o que temos a ver com isso, uma vez que estamos vivos?


(...)


Queremos é nos atirar no chão e dormir, ou encher o estômago, beber e fumar, para que as horas não sejam desperdiçadas. A vida é curta. O horror da frente desaparece quando lhe voltamos as costas e enfrentamo-lo com piadas infames e de mau gosto. É um humor grosseiro, mas é assim que falamos de tudo, até mesmo da morte, porque isso nos salva da loucura. Enquanto aceitamos os acontecimentos dessa forma, sentimo-nos capazes de resistir. Mas não esquecemos a frente de batalha!


O que sai nos jornais de guerra sobre o moral das tropas, que se divertem organizando pequenos bailes logo que chegam do bombardeio, não passa de asneiras sem o menor fundamento. Não fazemos isso porque temos bom humor, mas porque somos obrigados a arranjá-lo; caso contrário, estaria tudo perdido. Aliás, quase esgotamos nossos recursos, e o tal humor fica cada vez mais amargo.


Já sei que tudo aquilo que agora, enquanto ainda estamos na guerra, afunda em nós como uma pedra despertará novamente depois dela, e, a partir de então, começará a grande luta. De vida ou de morte." (Nada de novo no front, Erich Maria Remarque).









 Lullabye - Billy Joel










"— Tenho a impressão — continua — de que as ilhas do arquipélago humano sentem dum modo ou de outro a nostalgia do Continente, ao qual anseiam por se unirem. Muitos pensam resolver o problema da solidão e da separação da maneira que há pouco se mencionou, isto é, aderindo a um grupo social, refugiando-se e dissolvendo-se nele, mesmo com o sacrifício da própria personalidade. E se o grupo tem o caráter agressivo e imperialista, lá estão as suas ilhas a se prepararem, a se armarem para a guerra, a fim de conquistarem outros arquipélagos. Porque dominar e destruir também é uma maneira de integração, de comunhão, pois não é esse o espírito da antropofagia ritual? 

Edu salta: 

— Toda essa conversa não passa duma cortina de fumaça atrás da qual procuras esconder a tua falta de vocação política, a tua incapacidade para a vida gregária. 

— Por mais absurdo que pareça — diz Rodrigo — desta vez estou de acordo com o camarada Eduardo. 

Floriano sorri. Os apartes, longe de o irritarem, o estimulam, pois tiram à sua exposição o caráter antipático e egocêntrico de monólogo. Prossegue: 

— Para o Eduardo o Continente é o Estado Socialista, ou a simples consciência de estar lutando pela salvação do proletariado mundial. Para outros, como para o Zeca, a Terra Firme, o Grande Continente, é Deus, e a única ponte que nos pode levar a Ele é a religião ou, mais especificamente, a Igreja Católica Apostólica Romana. Há ainda pessoas que satisfazem em parte essa necessidade de integração simplesmente associando-se a um clube, a uma instituição, uma seita. 

Bandeira aparteia: 

— Por exemplo, o Rotary Club ou a Linha Branca de Umbanda. 

— O que importa para cada ilha — prossegue Floriano — é vencer a solidão, o estado de alienação, o tédio ou o medo que o isolamento lhe provoca. 
Faz uma pausa, dá alguns passos no quarto, com a vaga desconfiança de que se está tornando aborrecido. Mas continua: 

— Estou chegando à conclusão de que um dos principais objetivos do romancista é o de criar, na medida de suas possibilidades, meios de comunicação entre as ilhas de seu arquipélago... construir pontes... inventar uma linguagem, tudo isto sem esquecer que é um artista, e não um propagandista político, um profeta religioso ou um mero amanuense..." (O arquipélago, O tempo e o ventoErico Verissimo)









"Teria desejado voltar a ser aquele que, no princípio da pandemia, queria correr, com um único impulso, para fora da cidade e atirar-se de encontro daquela que amava. Mas sabia que isso não era mais possível. Ele mudara, a peste tinha deixado nele uma distração que com todas as suas forças tentava negar e que, entretanto, continuava nele como uma angústia surda. De certa forma, tinha o sentimento de que a peste terminara com demasiada brutalidade, de que não recuperara a sua presença de espírito. A felicidade cegava com todo o ímpeto, o acontecimento ia mais depressa que a expectativa. Rambert compreendia que tudo lhe seria devolvido de uma vez e que a alegria é uma queimadura que não adura que não se saboreia.

Todos, aliás, mais ou menos conscientemente, estava como ele, e é de todos que é preciso falar. Na plataforma da estação onde recomeçavam a sua vida pessoal, sentiam ainda a sua comunhão, trocando entre si olhares e sorrisos. Mas o sentimento de exílio, desde que viram a fumaça do trem, apagou-se bruscamente sob a tempestade de uma alegria confusa e perturbadora. Quando o tem parou, separações intermináveis, que em muitos casos tinham começado nessa mesma plataforma de estação, ali terminaram, num segundo, no momento em que braços se fecharam com uma avareza exultante sobre corpos cuja forma viva tinham esquecido. Rambert, por sua vez, mal teve tempo de olhar essa forma que corria para ele e já ela se abatia contra o seu peito. E, segurando-a com a força de seus braços, apertando contra si uma cabeça que só via os cabelos familiares, deixou correr as lágrimas, sem saber se elas vinham da felicidade presente ou de uma dor por muito reprimida, seguro, pelo menos, de que elas o impediriam de verificar se esse rosto enterrado no seu ombro era aquele com que tanto sonhara ou, pelo contrário, o de uma desconhecida. Saberia mais tarde se a sua suspeita era verdadeira. Por ora, queria fazer como todos os que à sua volta pareciam acreditar que a peste poderia chegar e voltar a partir sem que o coração dos homens mudasse com isso." (A peste, Albert Camus)  









Manifestação na pandemia de Covid19/ Foto: Otávio D. S. Ferreira





 “Os mortos estão sempre conosco, Marie-Ange. Os mortos e os amores perdidos. Fugi porque precisei sobreviver. Agora, depois do nosso encontro e da sua partida, não fujo mais, vou aprendendo a armazenar as diversas camadas do passado, sabendo que nenhum amor apaga as dores do anterior, nenhuma alegria elimina as tristezas mais profundas. Está tudo aqui, comigo, hoje eu sei. Nenhum dos meus fantasmas tinha ido embora, como eu imaginava. Por mais que eu tenha corrido, corrido e corrido, todos vieram atrás de mim, ao meu pé. No fundo eu sempre soube. A gente sempre sabe. Apenas escolhe aquilo que nos parece melhor. Por um momento, achei que não fosse sobreviver à sua partida: como continuar depois de ter conhecido a felicidade ao seu lado? Como prosseguir sem partilhar minha vida com você, sem virar de um lado para o outro da cama, abraçando e sendo abraçado pelo seu corpo? Sem sua gargalhada ao meu ouvido, seu entusiasmo desenfreado pela vida? Mas aí senti a mão quente da sua avó me pedindo para ficar. A gentileza da sua mãe me trazendo comida todos os dias na praia. Depois veio o barco do seu pai, repleto de peixes-voadores. Então, ele me levou para assistir àquela cena inesquecível, os peixes pulando de livre e espontânea vontade para o barco, como os apaixonados que saltam no precipício mesmo sabendo que no fim haverá a queda. Mas como não pular? E viver como aqueles que planejam a vida do início ao fim e apenas seguem a cronologia de seus planos? Aqueles que preferem o medo e a certeza, a garantia do final feliz, nem que para isso ponham a perder a travessia? Mas e se a verdade não estiver no fim? E se a verdade, ao contrário, estiver perdida no meio, na confusão e nas contradições do meio?” (Dois Rios, Tatiana Salem Levy).




















 

“-Veja a posição que ocupa aos setenta e oito anos. Quantos sentirão a sua falta quando a deixar vaga?


- Ora, um velho e solitário solteirão – retrucou o senhor Lorry, sacudindo a cabeça. – Ninguém chorará por mim.


- Como pode afirmar isso? Ela não choraria pelo senhor? E também a filha?


- Sim, sim, graças a Deus. Eu realmente não quis dizer isso.


- Tem motivos para agradecer a Deus, não acha?

- Certamente, certamente.


- Se o senhor pudesse confessar esta noite, com toda a sinceridade, para o seu próprio coração: ‘não conquistei o amor, nem o apreço, nem a gratidão ou o respeito de ninguém neste mundo; não granjeei a estima ou o carinho de ninguém; nada fiz de bom ou de útil para ser lembrado por quem quer que seja!’, os seus setenta e oito anos equivaleriam a setenta e oito maldições'. Não é?


- É verdade, senhor Carton. Julgo que seria assim.


Sydney tornou os olhos para o fogo e, após uma pausa, indagou:


- Gostaria de perguntar-lhe... sua infância parece muito distante? Os dias em que o senhor se sentava no colo de sua mãe lhe parecem muito longínquos?


Sensível à suavidade de seus modos, o senhor Lorry respondeu:


- Há vinte anos, sim. Nesta época e minha vida, não. Quanto mais me aproximo do fim, como se andasse em círculo, chego cada vez mais perto do início. Deve ser uma forma de abrandar e preparar o caminho. Meu coração, agora, comove-se com muitas lembranças que havia muito estavam adormecidas... lembranças de minha mãe, linda e jovem (e eu tão velho), e, por meio de uma série de associações, recordo os dias quando o que chamamos de ‘mundo’ ainda não era tão real para mim, e minhas falhas ainda não se haviam cristalizado em meu caráter.” [Um conto de duas cidadesCharles Dickens








Parque de la Memória, Buenos Aires. Foto: Otávio D. S. Ferreira. 













"(...) Decidiu ir ao Museu Britânico. A solidão era agora o seu único luxo. Desde que estava na Lynn ia lá frequentemente; sentava-se diante dos grupos de esculturas do Parténon e, sem o fazer deliberadamente, permitia que as suas massas divinas lhe aliviassem o espírito perturbado. Mas nessa tarde elas não tinham nada para lhe dizer e, ao fim de alguns minutos de impaciência saiu da sala. Havia demasiadas pessoas, provincianos de rostos tacanhos, estrangeiros debruçados sobre roteiros turísticos; a sua fealdade conspurcava as eternas obras-primas, a sua agitação perturbava o repouso imortal dos deuses. Dirigiu-se a outra sala, onde praticamente não se encontrava ninguém e sentou-se, fatigado. Tinha os nervos à flor da pele. Não conseguia tirar as pessoas da cabeça. Por vezes na Lynn afectavam-no do mesmo modo e via-os desfilar ante si com pavor; eram tão horríveis e os seus rostos mostravam uma tal tacanhez que era aterrador; tinham os traços distorcidos por desejos mesquinhos e sentia-se que lhes era estranha qualquer noção de beleza. Tinham olhos furtivos e queixos fracos. Não possuíam qualquer tipo de malvadez, tão-só mesquinhez e vulgaridade. O seu humor era de uma jocosidade vulgar. Por vezes dava por si a observá-los, tentando descobrir a que animal se assemelhavam (evitando fazê-lo, pois rapidamente se tornava numa obsessão) e em todos via uma ovelha, um cavalo, uma raposa ou um bode. Os seres humanos enojavam-no.

Mas pouco depois o lugar começou a exercer a sua influência. Sentia-se mais calmo. Começou a olhar com ar ausente as lápides que revestiam a sala. Eram obra de pedreiros atenienses dos séculos quarto e quinto antes de Cristo e eram muito simples, não obra de grande talento, mas contendo o requintado espírito de Atenas; o tempo dulcificara o mármore até este se tornar tom de mel, levando-o inconscientemente a pensar nas abelhas de Himeto, e suavizara-lhe os contornos. Umas representavam uma figura nua, outras a partida do morto de junto daqueles que o amavam e outras ainda o morto segurando a mão de alguém que ficara para trás. Em todas se encontrava presente a trágica palavra adeus; isso e nada mais. A sua simplicidade era infinitamente comovente. Amigo separado de amigo, o filho de sua mãe, e a sobriedade tornava mais pungente a dor do sobrevivente. Aquilo fora há tanto, tanto tempo, e século sobre século passara sobre aquela infelicidade; há dois mil anos que aqueles que choravam eram pó, tal como aqueles por quem tinham chorado. No entanto, a mágoa encontrava-se ainda bem viva, enchendo o coração de Philip, fazendo surgir nele a compaixão e levando-o a dizer:

— Coitados, coitados.

Então apercebeu-se de que os turistas embasbacados, os estrangeiros gordos de roteiro turístico em punho e todas aquelas pessoas medianas e comuns que apinhavam a loja, com os seus desejos triviais e preocupações vulgares, eram mortais e teriam de morrer.

Também estes amavam e teriam de ser separados daqueles que amavam, o filho de sua mãe, a mulher de seu marido; e talvez fosse mais trágico por as suas vidas serem feias e sórdidas e não conhecerem nada que desse beleza ao mundo. Uma das pedras era muito bonita, um baixo-relevo de dois jovens de mãos dadas; e a contenção das linhas, a simplicidade, faziam com que se gostasse de pensar que aqui o escultor fora tocado por uma emoção genuína. Era um monumento admirável àquele sentimento que apenas outro suplanta: a amizade; e ao olhá-la, Philip sentiu virem-lhe as lágrimas aos olhos. Pensou em Hayward e na ardente admiração por ele quando se conheceram e em como depois viera a desilusão e a indiferença, até nada os manter juntos além do hábito e das velhas recordações. Era uma das bizarrias da vida que se pudesse ver uma pessoa todos os dias durante meses e ser-se tão íntimo que nem se pudesse imaginar a existência sem essa pessoa; depois dava-se a separação e tudo continuava do mesmo modo, e o companheiro que parecera essencial revelava-se desnecessário. A vida continuava e nem sequer se sentia a sua falta. Philip pensou naqueles primeiros tempos em Heidelberg em que Hayward, capaz de grandes feitos, se sentira entusiasmado em relação ao futuro e de como, pouco a pouco, não alcançando nada, se resignara ao insucesso. A sua morte fora tão fútil como a sua vida. Tinha morrido ingloriamente, de uma doença estúpida, não conseguindo uma vez mais, mesmo no final, alcançar nada. Agora era como se nunca tivesse vivido.

Philip meditou em desespero no próprio propósito de viver. Tudo isto lhe parecia vácuo. O mesmo se podia dizer de Cronshaw; não fazia grande diferença o facto de ele ter vivido; estava morto e esquecido, o seu livro de poemas vendido a baixo preço por alfarrabistas; a sua vida parecia não ter servido para nada excepto dar a um jornalista oportunista ensejo para escrever um artigo numa revista. E Philip gritou do fundo da sua alma:

— Para que serve tudo isto?

O esforço era tão incomensurável em relação ao resultado. A que amargo preço de desilusão eram pagas as alegres esperanças da juventude. Como a dor, a doença e a desilusão dificultavam o caminho. O que significava tudo isto? Pensou na sua própria vida, nas elevadas expectativas com que a iniciara, nas limitações que o corpo lhe impusera, no seu desamparo e na falta de afecto que tinham preenchido a sua juventude. Pensava ter feito sempre aquilo que parecia o melhor, e como falhara! Outros homens, com os mesmos meios que ele, eram bem-sucedidos, e outros, com muito mais meios, falhavam. Parecia uma mera questão de sorte. Tanto chovia sobre o justo como sobre o pecador e nada tinha causa nem motivo.

Pensando em Cronshaw, Philip lembrou-se do tapete persa que ele lhe oferecera, dizendo-lhe que continha a resposta à sua pergunta sobre o sentido da vida; e de repente ocorreu-lhe a resposta e riu entre dentes: agora que o percebia, era como um daqueles enigmas que nos mantêm ocupados até nos mostrarem a solução, e então não conseguimos imaginar como nos pôde a resposta ter iludido. A resposta era óbvia. A vida não tinha significado. Na Terra, satélite de uma estrela a viajar veloz pelo espaço, tinham surgido seres vivos sob a influência de condições que faziam parte da história do planeta; e tal como nela surgira a vida, também sob a influência de outras condições chegaria o fim: o Homem, tão significativo apenas quanto as outras formas de vida, não surgira como o clímax da criação, mas como uma reacção física ao ambiente. Philip recordava-se da história do rei do Oriente, desejoso de conhecer a história do Homem, a quem um sábio levou quinhentos volumes; ocupado com assuntos de Estado, o rei ordenou-lhe que os condensasse; vinte anos depois o sábio regressou e a sua história encontrava-se agora em apenas cinquenta volumes; mas o rei, então demasiado velho para ler tantos tomos ponderosos, ordenou-lhe que partisse e voltasse a resumi-los uma vez mais; outros vinte anos passaram e o sábio, velho e grisalho, regressou com um único livro em que se encontrava o conhecimento que o rei procurara; mas o rei encontrava-se no seu leito de morte e não tinha tempo para ler nem mesmo isso; e então o sábio contou-lhe a história do Homem numa única frase — era esta: o Homem nascia, sofria e morria. A vida não tinha significado e o homem não cumpria qualquer destino ao viver. Era irrelevante nascer ou não nascer, viver ou deixar de viver. A vida era insignificante e a morte não tinha importância. Philip exultou, como tinha exultado na sua meninice quando o peso de uma crença em Deus lhe fora retirado dos ombros: parecia que lhe retiravam o último fardo de responsabilidade e que se encontrava pela primeira vez completamente livre. A sua insignificância transformara-se em poder e sentia-se subitamente igual ao cruel destino que parecera persegui-lo; é que se a vida não tinha significado, o mundo via-se destituído da sua crueldade. Não importava o que ele fizesse ou deixasse de fazer. O insucesso não tinha importância e o sucesso nada significava. Ele era a criatura mais insignificante naquela massa pululante de seres humanos que por um breve período ocupavam a superfície da Terra; e era todo-poderoso porque arrancara ao caos o segredo do seu nada. Os pensamentos atropelavam-se na imaginação ansiosa de Philip e inspirou várias vezes longas golfadas de uma alegre satisfação. Sentia-se inclinado a saltar e cantar. Há meses que não se sentia tão feliz.

— Ó vida — gritava o seu coração —, ó vida, onde está o teu aguilhão?

O mesmo surto de imaginação que lhe mostrara com toda a força de uma demonstração matemática que a vida não tinha significado trouxera consigo outra ideia; e era por isso, imaginava ele, que Cronshaw lhe tinha dado o tapete persa. Tal como o tecelão elaborara o seu padrão apenas pelo prazer do seu sentido estético, também assim poderia um homem viver a sua vida ou, se fosse forçado a crer que as suas acções não eram escolhidas por si, também assim poderia um homem olhar a sua vida, como um padrão. Havia tão pouca necessidade como utilidade de o fazer. Era simplesmente algo que fazia para seu próprio prazer. De entre os variados acontecimentos da sua vida, poderia criar um padrão, regular, elaborado, complicado ou belo; e apesar de poder ser mera ilusão o facto de deter o poder de selecção, apesar de poder não ser nada mais do que um fantástico passe de prestidigitação em que as aparências se entrelaçavam com raios de luar, isso não importava: parecia-o e por isso, para ele, era-o. Na vasta urdidura da vida (rio sem nascente que corre infindavelmente para mar nenhum), tomando como pano de fundo para a imaginação o facto de não haver significado e nada ser importante, um homem poderia alcançar satisfação pessoal com a selecção dos vários fios que compunham o padrão. Havia um padrão, o mais óbvio, perfeito e belo, em que um homem nascia, se tornava homem, casava, produzia descendência, labutava pelo seu pão e morria; mas havia outros, intrincados e belos, em que não entrava a felicidade e não se tentava alcançar o sucesso; e podia descobrir-se neles uma graça mais perturbante. Algumas vidas, e a de Hayward encontrava-se entre estas, eram cortadas pela indiferença cega da sorte enquanto o padrão ainda não tinha sido aperfeiçoado; e depois era confortável o consolo de que não importava; outras vidas, tal como a de Cronshaw, exibiam um padrão difícil de seguir; era necessário mudar de ponto de vista e alterar os velhos termos de comparação antes de se poder perceber que tal vida era a sua própria justificação. Philip pensava que ao superar o desejo de felicidade estava a livrar-se da última das suas ilusões. A sua vida tinha parecido horrível quando medida pela sua felicidade, mas agora ele parecia fortalecer-se ao aperceber-se de que poderia ser medida por algo diferente. A felicidade tinha tão pouca importância quanto a dor. Participavam ambas, como todos os outros pormenores da sua vida, na elaboração do padrão. Ele teve por um momento a sensação de se encontrar acima dos acidentes da sua existência, e sentiu que não podiam afectá-lo de novo como o tinham feito anteriormente. O que quer que lhe acontecesse agora seria mais um motivo para acrescentar à complexidade do padrão e, quando se aproximasse o fim, ele regozijar-se-ia com a sua conclusão. Seria uma obra de arte e não seria menos bela por só ele se inteirar da sua existência, nem por a sua morte a extinguir imediatamente.

Philip sentia-se feliz." [A servidão humana, W. Somerset Maugham].



























"A primeira noite em que Lorenzo passou a noite com ele [o telescópio de 25cm. de Luis Enrique Erro], sentiu que havia chegado ao seu lar espiritual: `Já sabe manejá-lo, amigo - disse Erro. - Não se esqueça de esqueça de cobrí-lo e de trancar a porta quando sair.` Sim, aquela imensidão diante dos seus olhos lhe pertencia, correspondia à que ele trazia dentro de si. Como dentro de seu corpo, milhóes de criaturas se mexiam sem parar, teciam uma rede de circuitos que mantinham sua vida sobre a Terra. O silêncio vinha das estrelas. Onde estou? Lorenzo respirou fundo. E se ao fechar a pequena cúpula ninguém mais vivesse, somente as estrelas, como era seu desejo? Na escala cósmica, na abóboda celeste, os objetos luminosos fotografados, que examinaria no dias seguinte ao microscópio, era um corpo que pulsava como ele. As partículas tinham radiação, energia, magnetismo. Lorenzo dirigiu o telescópio para Órion e só parou de observar quando avistou a luz da aurora. Enquanto cobria amorosamente o Zeiss, foi invadido por uma imensa gratidão por Luís Enrique Erro e por essa noite." (A pele do céu, Elena Poniatowska)








Crepúscúlo  espelhado. Foto e composição: Otávio D. S. Ferreira











“(...) Terminada a corrida – em último lugar que seja - , Felipe faz a festa do vencedor, levantando os braços, feliz da vida: é o Campeão. Nas primeiras vezes, o pai tenta lhe explicar, paciente: Filho, você tirou quarto lugar; veja, são seis raias; só o primeiro é o campeão – mas na metade da explicação o ridículo daquilo vai contaminando a voz. Se o filho não consegue contar até dez (a rigor, não conta conscientemente até cinco – apenas repete nomes decorados, às vezes acertando a sequência), que sentido tem para ele ‘quarto lugar’? Trata-se apenas de um jogo, ou, antes ainda, trata-se da encenação de um jogo, no qual o filho reproduz o que se espera dele. – nadar daqui até ali – e o mundo lhe dará a taça de campeão. Não é assim? Se ele nadou o percurso, por que não?, perguntaria o filho, se todo o meandro dessa lógica absurda e alucinada tivesse a mais remota ligação com a cabeça de seu filho, osmose pura com o instante presente. Olhe bem para o filho, ambos impregnados daquela agitação fantasmagórica do ginásio, em que todos parecem ter o que fazer a cada instante, naquela sequência de competições com nomes repetidos em alto-falantes que chegam a ensurdecer, reverberantes: Foi legal a corrida, filho? A criança sorri: Olhe! Olhe! Sou Campeão! E mostra os braços e os bíceps ainda pingando a água da piscina, como se a competição fosse de luta livre. Eu sou forte! – completa, feliz, olhos pregados no desenho animado ou as mãos entretidas no jogo de montar, balbuciando alguma história em torno de seu inexpugnável silêncio. 

 

A felicidade. Sempre sentiu medo dessa palavra, que lhe soa arrogante, quando levada a sério; quando usada ao acaso, gastou-se completamente pelo uso e não corresponde mais a coisa alguma, além de um anúncio de tevê ou de uma foto de calendário. O pai, entretanto, é movido a alegria, um sentimento fácil na sua alma – tanto que às vezes se pergunta se o idiota não seria ele, não o filho, por usar tão mal suas habilidades e competências, em favor das miudezas. Para manter a alegria, entretanto, é preciso desenvolver algumas técnicas de ocultação da realidade, ou morreríamos todos.” (Cristóvão TezzaO filho eterno)








Por que me miras, Huascaran?
Monte Huascarán-PER 

Por que me miras, Huascaran?

Se em tua fúria foste capaz de fustigar toda uma cidade,
sucumbindo-a sob tuas tranças grisalhas?

Não sem antes absolver as crianças e os artistas do picadeiro,
por algum capricho sublime.

Ante tua sombra e a da bruma que te enlaça os lábios
serenam rebanhos e gélidas cascatas.

Sob teu inebriante véu, secreto, lá do alto espia
no vale fundo, o espelho do céu.

Hipnotiza almas em planos distantes
E as engole sob a surda sinfonia da finitude.





Otávio Dias de Souza Ferreira






















Tiny Dancer - Elton John













"Settembrini fez uma reverência. 

— O senhor quer dizer — explanou — que o contato prematuro e repetido com a morte produz uma disposição fundamental da alma que torna o indivíduo suscetível e atento às durezas e cruezas da vida mundana maquinal, ou digamos: ao seu cinismo. 

— Exatamente! — gritou Hans Castorp com sincero entusiasmo. 

— Que formulação admirável, sr. Settembrini! O senhor pôs os pontos nos is. 'Com a morte…' Eu sabia que o senhor, como literato… 

Settembrini moveu a mão em direção ao jovem, inclinando a cabeça para um lado e fechando os olhos, num gesto belo e suave, destinado a interromper o jovem e a pedir-lhe mais uns instantes de atenção. Manteve-se durante alguns segundos nessa posição, mesmo depois de Hans Castorp haver calado e manter-se à espera do que estaria por vir. Finalmente reabriu os olhos negros, os olhos de tocador de realejo, e disse:

— Permita-me. Permita-me, Engenheiro, que lhe diga e inculque que a única maneira sadia e nobre, aliás, também, como acrescento expressamente, a única maneira religiosa de encarar a morte é compreendê-la e senti-la como uma parte, como um complemento, como uma condição inviolável da vida, e não separá-la, justamente, da vida (o que seria o contrário de sadio, nobre, sensato e religioso) ao criar-se uma oposição intelectual entre morte e vida e, de modo abjeto, usar a morte como argumento contra a vida. Os antigos adornavam seus sarcófagos com símbolos de vida, procriação, e até com símbolos obscenos. Para a religiosidade antiga, o sagrado frequentemente coincidia com o obsceno. Esses homens sabiam honrar a morte. A morte é venerável como berço da vida, como regaço da renovação. Mas, separada da vida, torna-se um fantasma, um bicho-papão, e coisa pior ainda. Pois a morte, como potência espiritual independente, é uma potência extremamente devassa; a perversa atração que ela exerce é muito forte, sem dúvida, mas simpatizar com ela, também sem dúvida alguma, equivale à mais horrorosa aberração do espírito humano." (A Montanha MágicaThomas Mann)









Monte Chacaltaia / foto: Otávio D. S. Ferreira













"O tumulto interior ainda não cessou. É preciso que desça para o chão a poeira que as explosões levantaram para que o ar se torne outra vez límpido e eu possa ver o azul do céu. No céu está a minha alma. Penso que sempre lá esteve nos momentos em que o corpo refocilava na lama das trincheiras. É para o céu que sempre olham os que se julgam perdidos, os que querem fugir, os que se atolam na miséria. É no céu que mora a esperança. Essa é a única indicação que tenho da existência de Deus. Mas quantas coisas vi que são a negação d’Ele? Pelo dreno se vai o pus do empiema. Assim se fosse com ele toda a amargura que tenho dentro de mim. Torno a retomar os cubos coloridos das minhas experiências e tento de novo formar o quadro. Nestas lentas horas de hospital meus pensamentos correm como um rio preguiçoso sob um sol de marasmo. Sinto-me prisioneiro da cama e dum punhado de memórias. Não há fuga possível. Muitas vezes ouço em pensamento a voz estrídula de Alfonsito ou as palavras graves e cansadas de dom Miguel. Atravessei o oceano para vir ao encontro justamente das coisas que mais odeio. Não posso culpar ninguém do que me aconteceu. Quando eu vivia no Brasil a minha vida de sonhos insatisfeitos, comparava-me ao peru que, segundo se diz, metido no centro dum círculo traçado a giz no chão, se julga irremediavelmente prisioneiro dele. Um dia achei que devia correr para a liberdade, saltando o risco de giz. Cortei as amarras que me prendiam a todas as convenções sociais e a esse manso comodismo dos hábitos. Dei o salto... E agora, moendo e remoendo experiências recentes, comparando-as com as antigas, chego à conclusão de que a vida não passa duma série numerosa de círculos de giz concêntricos. A gente salta por cima de um apenas para verificar depois que está prisioneiro de outro e assim por diante. É a condição humana." (SagaErico Verissimo)









Ya somos el olvido que seremos
El polvo elemental que nos ignora 
y que fue el toro Adán y que es ahora
todos los hombres y los que seremos. 

Ya. somos en  la tuba las dos fechas 
del principio y el fin, la caja,
la obscena corrupcíon y la mortaja.
los ritos de la muerte y las endechas.
 
No soy el insensato que se aferra 
al mágico sonido de su nombre;
pienso con esperanza en aquel hombre.

que no sabrá quien fui sobre la tierra. 
Bajo el indiferente azul del cielo, 
esta meditación es un consuelo.


Jorge Luís Borges

 










Oração sobre o tempo - Maria Bethania





"Descascavam-se cebolas. Diz-se que elas têm sete peles. As senhoras e os cavalheiros descascavam as cebolas com as facas de cozinha. Desprendiam-lhes a primeira, a terceira pele loura, a dourada, a castanho-avermelhada ou, melhor dizendo, a pele cor de cebola, e iam pelando até que a cebola se tornava vítrea, verde, esbranquiçada, úmida, aquosa, pegajosa, e cheirava, recendia a cebola; e depois se punham a cortar, tal como se cortam as cebolas, e cortavam, com maior ou menor habilidade, sobre umas tabuinhas que tinham perfis de porcos e de peixes, cortavam neste e no outro sentido, e o suco saltava em pequenos esguichos e se comunicava à atmosfera por cima das cebolas. Os senhores de certa idade, pouco experientes em matéria de facas de cozinha, tinham de ter cuidado para não cortar os dedos, o que de qualquer forma alguns faziam sem reparar; as senhoras, porém, eram muito mais hábeis, não todas, mas aquelas que em casa eram boas donas de casa e sabiam como se devem cortar as cebolas para as batatas assadas no forno, digamos, ou para o fígado frito com maçã e rodelas de cebola; não obstante, na adega das Cebolas de Schmuh nada serviam de comer, e quem quisesse comer tinha de ir a algum outro lugar, ao Peixinho, por exemplo, e não à adega das Cebolas, porque aqui só se cortavam cebolas. E por quê? Porque assim se chamava a adega, o principal, porque a cebola, a cebola cortada, se bem se olha dentro dela... não, os fregueses de Schmuh não viam mais nada, ou pelo menos alguns não viam mais nada, porque lhes vinham lágrimas nos olhos. Não porque os corações estivessem tão repletos, pois não se disse de modo algum que quando os corações estão cheios também os olhos transbordam; alguns não conseguem isso nunca, sobretudo durante os últimos decênios, e por isso algum dia se designará o nosso século como o século sem lágrimas, apesar de todos os seus sofrimentos. E por isso também, precisamente em razão dessa falta de lágrimas, as pessoas que dispunham dos meios para isso iam à adega das Cebolas de Schmuh e recebiam do dono uma tabuinha de picar — porco ou peixe — e uma faca de cozinha de oitenta pfennige e, por 12 marcos, uma vulgar cebola de cozinha, de jardim ou de campo, e lá iam cortando em pedacinhos cada vez menores, até que o suco conseguia. O quê? Obtinha isso que o mundo e a dor deste mundo não conseguem produzir: a esférica lágrima humana. Aqui se chorava. Aqui, por fim, se voltava a chorar. Chorava-se discretamente ou sem reserva, abertamente. Aqui corriam as lágrimas e tudo lavavam. Aqui chovia, caía o orvalho. Oskar pensa em comportas que se abrem, em diques que se rompem em caso de inundação." (O tambor, Günter Grass). 




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"Acho que é tão difícil fazer a ligação pela dor que sinto ao lembrar da minha amiga Elisa, sua esposa morta, apesar de que tenho provas de que ela se encontra muito bem onde está; mas sabe-se que a dor que uma morte alheia nos causa se deve à referência implícita à nossa própria morte, e por que a ideia de que a própria morte nos espanta é algo que ainda não compreendo por completo. No meu caso, provavelmente se trata de medo do desconhecido, de me ver privado dos pontos de referência que são imprescindíveis para mim. Morrer deve ser como sair à rua, coisa que é cada vez mais difícil para mim, mas sem a esperança de voltar para casa. Talvez no meu inconsciente se forme a imagem de mim mesmo, morto, como uma espécie de fantasma errante e desconsolado que não encontra seu lugar, da mesma maneira que não o encontrei aqui em vida. É possível que a morte assuste porque é percebida como um novo nascimento, já que o não ser não tem nada de espantoso porque não há com que se espantar; e, diante da ideia de um novo nascimento, seguramos a cabeça e exclamamos: 'Ó, não! De novo não!'. Isso não quer dizer que eu tenha grandes queixas contra a vida; pelo contrário. Só lamento ter estado sempre tão angustiado pelo temor ao imprevisto, ao desconhecido, o tempo todo, inclusive em momentos nos quais não há maiores motivos para pensar em alguma interrupção desagradável." (O romance luminosoMario Levrero)








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