segunda-feira, 18 de junho de 2018

A pacificadora

Conrado Hübner Mendes

A ministra Cármen Lúcia, dois anos atrás, em discurso de posse na presidência do STF, destacou a necessidade de fazer a “travessia para tempos pacificados, travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta”. Há poucas semanas, ela concedeu entrevista em que fez balanço de sua gestão: “Não consegui a pacificação social, pelo menos do que era minha atribuição”.

Alguns comentaristas se deixaram impressionar por essa ambição pacificadora, aparentemente fora de lugar. Deram-se ao trabalho de alertar que a grandiosa tarefa caberia à política, não à Corte. Caíram na armadilha de levar a sério demais uma expressão vazia de significado, um mantra de cartilhas jurídicas que juristas entoam sem muito compromisso com o mundo real. Nada mais raro no Direito do que a pacificação: ele até pode facilitar a emancipação de grupos vulneráveis; mas pode também, com maior frequência na história, legitimar e cristalizar relações de violência e dominação. Num e noutro caso, para o bem ou para o mal, nada há de pacífico nesses processos que o Direito ajuda a desencadear.

A ministra, contudo, parecia dizer algo mais. A pacificação não seria apenas papel do Direito, mas do STF em especial. Ingênua ou não, essa pretensão ecoa a antiga ideia de atribuir ao STF o lugar de poder moderador, de árbitro dos conflitos de alta voltagem política. Seria uma bússola que dá direção, previsibilidade e estabilidade constitucional à sociedade. Se era essa a meta que Cármen Lúcia queria perseguir, sua prática radicalizou no sentido oposto. Entre as marcas de sua gestão estão a forma errática e aleatória de definição de pauta e a falta de senso de oportunidade para escolher casos que não ajudem a tensionar ainda mais a situação política do país. Sua pauta flutua conforme as pressões de ocasião, para prejuízo do tribunal.

Há muitos exemplos. Na semana passada, a ministra pautou caso que discute a possibilidade de instaurar, por Emenda Constitucional, o parlamentarismo. O caso é de 1997, já passou por seis relatores e nunca foi a julgamento. A ministra o recolocou na mesa no meio do ano eleitoral mais incerto em três décadas, em que o presidente em exercício tem índices históricos de impopularidade e risco de não terminar o mandato. Fez apenas alimentar teorias conspiratórias sobre uma grande trama para esvaziar o voto popular e sufocar o papel das eleições. Dias mais tarde, retirou-o da pauta. Não deu explicações para uma coisa ou outra.

Por sua própria inépcia, deixou de pautar ação que trata da execução provisória da pena após condenação em segunda instância e esperou o tema explodir na mesa do Supremo por ocasião do habeas corpus de Lula. Na mesma época, permitiu que o ministro Luiz Fux tirasse da pauta o caso do auxílio-moradia de juízes (que ele mesmo, como relator, já havia segurado por três anos) sob o pretexto de que um processo de conciliação seria instaurado entre magistratura e governo. Nem Cármen Lúcia nem Luiz Fux explicaram a origem da saída exótica: se uma prática tem sua constitucionalidade sob suspeita, não há o que “conciliar”.

O estilo de Cármen Lúcia escancarou um costume perverso do STF: a total arbitrariedade do que entra e do que sai de pauta.

A agenda constitucional do país tornou-se agenda do STF, e quem manda nela é uma única pessoa. Essa pessoa não precisa explicar seus atos, como qualquer agente público deve fazer. Na pauta do mês que vem, pode entrar caso que está há 20 anos na gaveta ou há 30 dias. Isso já é sério o suficiente. Para agravar, os casos podem sair da pauta e voltar para a gaveta sem motivo explícito. Um Parlamento define sua pauta conforme a habilidade de aglutinar coalizões político-partidárias e estabelecer prioridades. Isso é próprio da política. Uma Corte não pode funcionar assim.

Cármen Lúcia não está só. A mesma dissonância cognitiva se percebe também em Michel Temer. Depois da greve dos caminhoneiros, Temer declarou que foi à “Assembleia de Deus para comemorar a pacificação do país”, conseguida por sua virtude do diálogo.

Se esses são nossos pacificadores, quem serão os incendiários?


Conrado Hübner Mendes - Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - 07.06.2018.
IN Revista Época [ https://epoca.globo.com/politica/Conrado-Hubner/noticia/2018/06/pacificadora.html ]

domingo, 17 de junho de 2018

A ficha caiu

Fernando Limongi

O governo entrou em sua fase terminal. Com a greve dos caminhoneiros e a saída de Pedro Parente, Temer perdeu a capa de respeitabilidade que ainda o protegia. Velhos aliados aproveitaram a deixa para abandonar o barco e se eximir de responsabilidade pelo desastre.

O governo Temer veio ao mundo amparado por ampla coalizão. A aliança abrigou todos que viam em Dilma e no PT a causa última da crise vivida pelo país. Simplificando, as pastas ministeriais foram entregues a dois grandes grupos. De um lado, os 'profissionais', como viria a nomeá-los Moreira Franco e, de outro, o 'Dream Team' capitaneado por Henrique Meirelles.

Romero Jucá, um expoente dos 'profissionais', explicou melhor do que ninguém as razões que levaram o grupo a abandonar Dilma: era preciso estancar a sangria, traçar o círculo que dividiria os que já haviam caído nas malhas da Lava Jato dos que ainda poderiam se salvar.

O 'dream team' se juntou ao governo para recuperar a economia. Prometeu fazer a 'lição de casa' depois de anos de gestão macroeconômica heterodoxa imposta pelo PT. Os 'fundamentos' seriam respeitados, reformas implementadas e, liberado das amarras e distorções, o mercado responderia e a atividade econômica seria retomada. A economia voltaria a crescer. Essa foi a promessa feita quando o grupo assumiu as rédeas da economia.


Ao longo de todo o governo Temer, a ortodoxia imposta por Meirelles e sua equipe nunca deixou de contar com a confiança do mercado. Mais do que isso, nunca se questionou o acerto do receituário aplicado. Bastaria fazer a lição de casa, respeitar os fundamentos e o Brasil voltaria a crescer. A politica adotada pelo 'Dream Team' nunca foi questionada.

A agenda reformista não encontrou resistências no Congresso e reformas, como a PEC do teto dos gastos e a trabalhista, foram aprovadas. Os avanços foram saudados pelos analistas econômicos, que não se cansaram de dizer que suas consequências podiam ser divisadas na esquina. Era questão de paciência, de dar tempo ao tempo e os efeitos seriam sentidos no bolso dos cidadãos.

O episódio Joesley, assim como vários outros contratempos causados pelos 'profissionais', não rompeu a aliança. Gerou, é certo, algumas dúvidas no mercado sobre a capacidade do governo levar à frente a agenda reformista, mas essas interrogações se dissiparam rapidamente. 'A economia se descolou da política', passou-se a dizer.

Assim, a completa desmoralização dos 'profissionais' não atingiu o 'Dream Team'. Ao contrário, a dependência do governo para com a equipe de Meirelles aumentou. Promover reformas passou a ser a única forma de justificar a sobrevivência do governo. Mais do que isso, todas as acusações contra o governo passaram a ser vistas como artimanhas para minar a agenda reformista.

Mesmo quando a Reforma da Previdência foi deixada para as calendas, os oráculos capazes de interpretar os humores do mercado não deixaram de reafirmar sua confiança no 'Dream Team'. A promessa seria cumprida. O Brasil voltaria a crescer, talvez com menos força e intensidade, mas a economia não tardaria a dar sinais de vitalidade.

Henrique Meirelles, de sua parte, tampouco demonstrou ter qualquer dúvida sobre o sucesso da sua gestão e, muito menos, das suas repercussões eleitorais. Migrou do PSD para o MDB e obteve o aval do presidente para se apresentar como o candidato da continuidade. Orgulhoso, gabou-se de ser uma espécie de solucionador geral das crises.

Ao longo de maio, contudo, as projeções do crescimento do PIB foram revistas diversas vezes, sempre para baixo. O otimismo cedeu lugar ao realismo e, ao fim do mês, ao pessimismo. A reversão de expectativas se completou com o anúncio oficial do PIB para o primeiro trimestre. O cenário internacional trouxe outras más notícias, como crise na Argentina e pressões sobre o câmbio. As certezas foram para o ralo. A recuperação da economia faltou ao encontro.

Na última sexta-feira, Armínio Fraga, o oráculo dos oráculos, foi direto ao ponto: "caiu a ficha do mercado". Demorou, mas caiu e a fanfarra desafinou: "O mercado está vendo que os fundamentos mostram o país em uma tremenda dificuldade fiscal".

O governo fracassou. O 'Dream Team' não entregou os resultados prometidos. Simples assim. Outro ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, já havia entoado o réquiem: 'Nem ordem, nem progresso', foi o título da sua coluna de segunda última.

Mas não se espere autocrítica dos ortodoxos. Para estes, fracassos servem apenas para reforçar convicções. Por exemplo, a crise do setor de transportes se deveria aos subsídios de Dilma, que teria gerado excesso de oferta de fretes. A fraca demanda que a prometida recuperação da economia deveria gerar não entra na explicação.

Além disso, sempre é possível jogar a culpa nos aliados. O problema de fundo, afirmou Loyola, é que a classe política não tem "incentivo algum para apoiar reformas que signifiquem perdas de privilégios para certos grupos da sociedade. Preferem, ao contrário, continuar distribuindo 'meias entradas', a torto e a direito, principalmente com o intuito de auferir dividendos eleitorais." Ou seja, Meirelles nunca teve em mente colher 'dividendos eleitorais' e, se falhou, é porque seus aliados o impediram de ser tão radicalmente reformista como deveria.

Os liberais se eximem de culpa e a única solução que enxergam para a crise é a radicalização de seu programa: "O mais desalentador é que o enfrentamento da crise pelo governo Temer mostrou que o aprendizado tem sido nulo. Erros se repetem, o populismo se mantém, assim como o apelo a remendos que trazem distorções maiores ainda ao mercado", conclui Loyola.

Os aliados abandonam o barco, ignoram os velhos companheiros de aventura e sua contribuição para o fracasso do governo. Estamos por conta de Temer e seus 'profissionais'. Assim acabam os governos.



Fernando Limongi - Professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap - 11.06.2018.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Judiciário, crise e fascismo

Fábio Wanderley Reis
Fui gentilmente convidado por esta Folha para um debate sobre a eleição presidencial e a conjuntura. Publicada em 24 de maio, breve notícia inicial sobre o assunto limita-se, quanto à minha participação, a combinar a informação sobre a associação que faço entre a Operação Lava Jato e riscos para a democracia com a qualificação de "fascistoide" dirigida ao juiz Sergio Moro —como diz o texto, por causa de "um artigo acadêmico de 2004 em que Moro defendeu a busca de apoio da opinião pública como parte essencial de uma estratégia de combate à corrupção".

O debate tomou rumo polêmico, e com certeza usei a qualificação. Mas a menção feita a Moro remetia a uma reveladora passagem do tal artigo(para quem quiser conferir, "Operação Mani Pulite", Revista CEJ, 2004, p. 61). Nela, recorrer à democracia —note-se!— para o combate à corrupção é assimilado à possibilidade de contornar "a carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal" e ao "salutar substitutivo" que a opinião pública pode constituir, "tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo".

Ou seja: como provar crime é difícil, levemos, em nome da democracia, a opinião pública a condenar. É patente o caráter pouco democrático desse suposto recurso à democracia, em que o clamor da opinião pública manipulada atropela direitos garantidos em lei. Esse caráter marca várias ações ilegais de Moro, objeto de crítica e rechaço do próprio Supremo Tribunal Federal —embora, como os efeitos da crise certamente alcançam os escalões mais altos do Poder Judiciário, daí não tenham resultado sanções.

Mas, num aspecto central do que procurei dizer no debate, tratando justamente da opinião pública, procurava contrapor-me à leitura de outro participante, Carlos Pereira.

Vendo a opinião pública como entidade singular e expressão unânime do que pensa o país em dado momento, o que propunha Pereira redundava em santificá-la e torná-la o suporte sadio da redefinição punitivista que se vem manifestando no Ministério Público e no Judiciário —incluído, sem dúvida, o STF, onde ministros como Luís Roberto Barroso e a própria presidente Cármen Lúcia reclamam atenção, com insistência, para coisas como o "sentimento da cidadania".

O que aí se omite é que há opiniões públicas e "sentimentos" diversos na cidadania, de modo especial em correspondência com divergências políticas. Ainda que nossa desigualdade leve a que os cidadãos de classe média ou acima tendam a ser também os formuladores e operadores da opinião pública mais vocal —e, assim, a tornar ocasionalmente dominante uma opinião classista—, é preciso lembrar que, menos mal, todos os cidadãos dispõem do voto e que um Judiciário orientado pela opinião pública dominante estará benzendo judicialmente algo nítido em nossa crise atual: a opinião pública a se colocar contra o eleitorado. Fará, pois, política, e com frequência política de elite.

Quanto a fascismo, cabe ainda uma evocação dramática: a da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de 22 de setembro de 2016, que mereceria maior repercussão do que teve. Ela se refere justamente às ações ilegais de Moro, que serviam de base para o pedido de seu afastamento por 19 advogados.

Por voto de 13 contra apenas 1 dos 14 desembargadores participantes (o do desembargador Rogério Favreto), o tribunal acompanhou o que propôs o relator do processo, desembargador Rômulo Pizzolatti. Reclamou-se a suspensão da relevância do "regramento genérico" vigente —incluída, naturalmente, a da própria Constituição— e invocou-se, como apontou Favreto, a teoria fascista do estado de exceção. Ficou mais fácil, depois, condenar Lula.


Fábio Wanderley Reis - Cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA) e professor emérito da UFMG -  06.06.2018.

IN Folha de São Paulo [ https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/06/fabio-wanderley-reis-judiciario-crise-e-fascismo.shtml?loggedpaywall ]