quinta-feira, 30 de junho de 2011

A vitória de Ollanta


A vitória de Ollanta Humala para a presidência do Peru fecha um longo ciclo de governos neoliberais e abre novas perspectivas para o país, ao mesmo tempo que fortalece o campo dos processos de integração regional e enfraquece a precipitada operação de construção de um eixo neoliberal, com o México, a Colômbia e o Chile, em contraposição aos governos posneoliberais.

Emir Sader
“Quando se estrepou o Peru?”, pergunta um personagem ao amigo, no notável novela de Vargas Llosa, Conversas na Catedral. Os dois dão por estabelecido que o Peru tinha se estrepado. Se tratava somente de saber quando. Embora escrito há mais de quatro décadas (1969), na fase melhor da obra do Nobel peruano, poderia incluir o que o país viveu até agora.
A vitória de Ollanta Humala para a presidência do Peru fecha um longo ciclo de governos neoliberais e abre novas perspectivas para o país, ao mesmo tempo que fortalece o campo dos processos de integração regional e enfraquece a precipitada operação de construção de um eixo neoliberal, com o México, a Colômbia e o Chile, em contraposição aos governos posneoliberais.
O governo nacionalista de Velasco Alvarado (1968-1975) foi seguido de uma serie de governos que buscaram desarticular os avanços do governo de Velasco, tanto no plano da reforma agrária, quanto na construção de um projeto nacional no Peru. Foi derrubado por um golpe militar dado por um ministro seu , Morales Bermudez, que governou até 1980.
Foi sucedido por Alan Garcia (1985-1990), do partido mais estruturado do Peru, o Apra, que tentou uma moratória da divida externa peruana, não recebeu sequer apoio de governos da região, não conseguiu controlar a inflação e caiu, sem apoio interno. Na sua sucessão se digladiaram Vargas Llosa, com um programa claramente neoliberal, e o desconhecido Alberto Fujimori, que se valeu da rejeição do estilo aristocrático do escritor, para triunfar.
No governo, Alberto Fujimori (1990-2000) assumiu um projeto de contrainsurgencia que, ao mesmo tempo que combatia a guerrilha do Sendero Luminoso, destruía a espinha dorsal do forte movimento popular peruano, tanto no campo, quanto na cidade. Entre as ações do Sendero – que atacaram também as forças populares que não se submetiam à sua ação - e as ações do Exercito, o movimento popular peruano sofreu, sob um fogo cruzado, ações demolidoras, que o reduziu à uma expressão mínima. Fujimori deu um golpe, fechou o Congresso e interveio na Justiça (para o que recebeu, vergonhosamente para nós, o apoio de FHC), estendeu seu mandato, mas terminou caindo por processos de corrupção e violência, pelo que, depois de fugir para o Japão, foi condenado a 23 anos de prisão, cumprindo atualmente a pena.
Foi a partir dessa destruição da capacidade de defesa e resistência do movimento popular que se erigiu o projeto neoliberal no Peru, mediante os governos de Fujimori, Toledo (2001-2006) e Alan Garcia (2006-2011) cobrindo um período de mais de 20 anos, em que a economia peruana voltou a crescer, em base a uma extensa exploração extrativista exportadora das riquezas do pais, centrada no ingresso maciço de empresas estrangeiras. As condições não poderiam ser melhores para essas empresas, dado que a tributação geral no país gira em torno de 15% do PIB, sem recursos para que os governos fizessem políticas sociais.
Repetiu-se assim com Fujimori, Toledo e Alan Garcia, o mesmo padrão de governo: continuidade do alto crescimento do PIB, centrado na exportação de minerais – ouro, zinco, cobre, gás, basicamente -, sem políticas sociais, com governos que, eleitos, perdiam popularidade de forma estrepitosa, seja pela corrupção que os envolveu a todos, seja pela falta de políticas sociais redistributivas.
Na eleição anterior se enfrentaram o projeto nacionalista de Ollanta Humala e Alan Garcia. Valendo-se de forte campanha de medo, depois que Ollanta havia triunfado no primeiro turno, com o apoio explícito de Hugo Chávez, Garcia triunfou por pequena margem e voltou ao governo, desta vez para dar continuidade aos programas neoliberais de seus antecessores e sofrer o mesmo tipo de desgaste. No final do seu governo, já com menos de 10% de apoio, Toledo havia assinado um Tratado de Livre Comércio com os EUA. Apesar de não se comprometer explicitamente em mantê-lo durante a campanha, Garcia assumiu o TLC e consolidou a abertura neoliberal da economia peruana. Com a recessão norteamericana, no entanto, o Peru passou a ter na China o seu principal parceiro e no Brasil um sócio muito importante, ambos com crescentes investimentos no país.
A invasão de terras indígenas na região amazônica por empresas transnacionais para explorar suas riquezas minerais levou ao despertar de importantes movimentos indígenas, o que ocasionou, entre outros conflitos, um massacre chamado de Baguazo, em junho de 2009, que teve 34 mortos, pela resistência indígena a ocupação de terras para exploração mineral. O Congresso peruano aprovou nesse momento uma legislação que contemplava a consulta aos movimentos indígenas sobre os investimentos.
Essa legislação passou a se constituir em um obstáculo a investimentos já existentes e a outros programados, mas o governo nunca a regulamentou, promovendo situações de incerteza, tanto para os investimentos, como para os movimentos indígenas. Dias antes do segundo turno das eleições desta semana, um movimento parou a região de Cuzco, só aceitando suspendê-lo pela intervenção de Ollanta, mas com a perspectiva de retomá-lo em seguida, se não houver solução para suas reivindicações.
Movimentos deste tipo fizeram com que o país tivesse que reconhecer a região amazônica como região importante para o Peru e despertaram movimentos antes pouco conhecidos no país, promovendo os conflitos sociais mais importantes, que devem se prolongar no novo governo.
O desprestigio de Garcia fez com que seu partido praticamente desaparecesse – elegeu apenas 4 parlamentares -, deixando aberta a sucessão, para a qual se apresentaram vários candidatos neoliberais – entre eles Toledo, um ex-ministro de economia de Garcia, um ex-prefeito de Lima, a filha de Fujimori, diante do único candidato que criticava o modelo, Ollanta Humala. O Apra nem sequer conseguiu apresentar um candidato próprio, com Garcia apoiando ao candidato neoliberal que chegasse ao segundo turno.
Humala reciclou suas posições para um modelo de continuidade do desenvolvimento, mas com redistribuição de renda mediante elevação da taxação dos investimentos mineiros e políticas sociais, modelo próximo ao de Lula. Conseguiu, com base de apoio popular, especialmente no interior do país, chegar de novo em primeiro lugar no segundo turno, desta vez contra Keiko, a filha de Fujimori, que gozava também de apoio popular, baseado nas políticas assistencialistas do seu pai na luta contra o Sendero Luminoso. Em viagem oficial ao Peru, quando se encontrou com Garcia, Lula recebeu publicamente também a Ollanta, com quem trocou opiniões sobre experiências brasileiras na construção de alternativas ao neoliberalismo. Desde então Ollanta veio ao Brasil, tanto na eleição de Dilma, quanto na sua posse, consolidando laços com Lula, Dilma e o PT, o que se traduziu, inclusive, em apoio politico à campanha de Ollanta. (enquanto os tucanos, envergonhados, torciam por Keiko, filha do amigo de FHC.)
O segundo turno foi muito acirrado, tanto na disputa de votos, quanto nas acusações. O apoio da velha mídia peruana, fortemente alinhada com Keiko e as campanhas, conhecidas por nós, de calunias e terror contra Ollanta – a ponto de chegar a revoltar a Vargas Llosa, que rompeu com o jornal tradicional, El Comercio, no qual historicamente publicava suas colunas -, incluindo falsas declarações e telefonemas de Ollanta e, horas antes da abertura da votação, uma suspeita ação, atribuída ao Sendero Luminoso.
Na fase final da campanha, os movimentos de rua e pela internet de rejeição a Keiko, pelos riscos de retorno da camarilha do governo do seu pai – governo de que ela participou como primeira dama -, contribuíram para a vitória apertada de Ollanta. Isso, apesar do apoio maciço da classe média e da oligarquia peruanas em Lima e em regiões do norte do país, além do apoio do governo de Garcia e dos 2 candidatos neoliberais derrotados – Toledo, que havia se elegido no bojo das mobilizações populares que derrubaram a Fujimori, ficou em quarto lugar e apoiou Ollanta.
Ollanta soube, no segundo turno, estabelecer as alianças para conseguir triunfar, renunciando a algumas propostas do seu programa inicial, como nacionalizações de empresas e convocação de Assembleia Constituinte.
Seu triunfo fecha o ciclo de 20 anos de governos neoliberais no Peru, e o mesmo se dá no marco de compromissos já estabelecidos, como o TLC com os EUA. Mas mesmo nesse marco, haverá uma clara aproximação com o Mercosul e, em particular com o Brasil, seja por afinidades políticas, seja pelos interesses econômicos mútuos entre os dois países e distanciamento do pólo neoliberal em que o México, a Colômbia e o Chile pretendiam construir, como alternativo aos processos de integração regional que envolvem a grande maioria dos países da região.
Abre-se para o Peru o caminho de colocar em prática políticas sociais redistributivas – apelo forte da campanha de Humala e, de alguma forma, também de Keiko – e nova inserção internacional do país, que passa a se somar aos governos posneoliberais da região. Não se pode definir precisamente quando o Peru se havia estrepado, mas certamente seguiu por esse caminho nas duas últimas décadas e 2011 marca o momento em que o país, sob a liderança de Ollanta e com forte respaldo popular, começa a ser resgatado para um projeto de ampla democratização econômica, social, política e cultural.


Emir Sader – Sociólogo e cientista político –  06.06.2011

segunda-feira, 27 de junho de 2011

As cotas e os recalcitrantes!



Sabemos, porém, que as profundas desigualdades raciais existentes no Brasil não se resolverão apenas pela adoção de cotas nas universidades, ou pelo ProUni. Mas é um caminho importante, que abrirá outras portas que ampliam o acesso a outros direitos. Por isso mesmo, identificar corretamente as razões da rejeição às cotas será fundamental para que tenhamos sucesso nas demais políticas de inclusão racial no Brasil.

Zulu Araújo 

Há cinco anos o Brasil vem experimentando e implementando o sistema de cotas raciais e sociais. Mais de 70 universidades públicas brasileiras, por iniciativa própria, acolhem mais de 55 mil estudantes cotistas. No ProUni, estima-se que 200 mil jovens afro-brasileiros tenham acessado o ensino superior. Somando-se os dois, temos 250 mil jovens afro-brasileiros com possibilidades reais de poderem, dentro de alguns anos, disputar o mercado de trabalho em condições mínimas de competitividade. Estes números revelam também que, nos últimos cinco anos das cotas, chegaram ao ensino superior no Brasil mais afro-brasileiros do que em toda a história republicana deste país.
As pesquisas de avaliação realizadas por diversas instituições de ensino, a exemplo da Universidade Federal da Bahia, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Universidade de Brasília, entre outras, atestam de maneira insofismável que o aproveitamento dos cotistas é igual ou melhor que o dos não-cotistas. A evasão escolar é extremamente reduzida e a rejeição dos demais estudantes é praticamente nula. Em que pesem todos os indicativos de que a medida vem cumprindo com o seu objetivo maior – que é o de acelerar a inclusão plena dos excluídos (alunos da escola pública, indígenas e negros) no ensino superior brasileiro -, ainda assim temos um grupo muito bem nutrido de recalcitrantes que insistem em querer destruir o que está dando certo. Por que tanta resistência, então? Qual a razão de tanta má vontade para com um mecanismo que está previsto durar no máximo entre 10 a 15 anos e que já tem um terço deste caminho percorrido com sucesso? Que motivação política leva pessoas e instituições tão importantes, tanto econômica quanto intelectualmente, a se posicionarem de forma tão ácida e permanente contra as cotas?
Não lembro, nem mesmo no período da ditadura militar, de um tema ocupar de forma tão presente os espaços de mídia durante tanto tempo (seis anos) e de forma tão parcial e desigual, como vem ocorrendo com as cotas. Para combatê-las, reuniram-se os órgãos de imprensa mais poderosos do país, os intelectuais mais influentes, os empresários mais fortes e juristas dos mais conceituados. Todos a brandir o mito da democracia racial como um legado eterno e imexível da trajetória escravocrata brasileira. Não importam os dados estatísticos, mesmo que sejam produzidos pelas mais renomadas instituições do país, que indicam claramente a exclusão dos afro-brasileiros do ensino superior, não importam as pesquisas qualitativas realizadas por universidades conceituadas, que apontam o racismo como um dos entraves ao desenvolvimento do país. Enfim, nenhum dado científico, social, econômico ou político importa para justificar os caminhos tomados para romper de uma vez por todas com este legado trágico. O que vale é a vontade imperial dos antigos e novos senhores de engenho.
Para quem não acredita, aqui vão alguns números: entre os 10% mais pobres, 68% são pretos e pardos; apenas 5% dos negros de até 30 anos têm curso superior (entre os brancos, a taxa é de 18%); negros ocupados recebem R$ 578,24 ao mês, 53% a menos que brancos, cuja renda é de R$ 1.087,14; apenas 3,5% de negros estão em cargos de nível executivo nas maiores empresas brasileiras.
Por isso é muito bem-vinda a aprovação pelo Legislativo federal, no apagar das luzes de 2008, do Sistema de Cotas para o Ensino Superior no Brasil. Menos pela aprovação em si, pois, como afirmei acima, o sistema já está em pleno funcionamento, porém muito mais pelo valor político e simbólico que possui uma decisão como esta vinda da Câmara dos Deputados, que, em tese, representa os interesses maiores do povo brasileiro. “Aprovamos um texto de justiça social e étnica”, comemorou o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia. Assim como o deputado – é bom que se registre -, vários segmentos da sociedade civil se postaram a favor da aprovação do projeto e pressionaram fortemente o Legislativo a adotar esta decisão, capitaneados evidentemente pelo movimento negro.
Sabemos, porém, que as profundas desigualdades raciais existentes no Brasil não se resolverão apenas pela adoção de cotas nas universidades, ou pelo ProUni. Mas é um caminho importante, que abrirá outras portas que ampliam o acesso a outros direitos. Por isso mesmo, identificar corretamente as razões da rejeição às cotas será fundamental para que tenhamos sucesso nas demais políticas de inclusão racial no Brasil. Cremos que o nó da questão está no discurso vicioso de pequena parcela da população acostumada a privilégios, que detém poder político e econômico, manipula conhecimento e esbraveja aos quatro cantos para forjar um ponto de vista que justifique um entendimento favorável a uma práxis vergonhosa que se arrasta há 500 anos. E isto tem nome e sobrenome – Racismo, Discriminação e Preconceito.
O que tem ficado cada vez mais claro, seja nos artigos, nos discursos ou nas matérias absolutamente tendenciosas, no plano negativo, sobre o sistema de cotas para o ensino superior, é a defesa explícita da manutenção e ampliação dos privilégios que esta pequena parcela da sociedade brasileira acostumou-se a ter, como algo natural, quase divino. O que se ouve nos bastidores desses segmentos ou nas discussões mais acirradas na academia é que a ascensão de afro-brasileiros aptos a disputar os espaços dirigentes do nosso país poderá causar sérios deslocamentos na arquitetura social brasileira e destruir o sonho de consumo de parte da elite brasileira, que é o de que “somos todos iguais, desde que cada um saiba qual o seu lugar”. E eles sabem muito bem que os principais afetados nessa nova arquitetura serão aqueles mandam no Brasil há quase 500 anos. E isto (para eles) é intolerável. A estratégia é clara e objetiva – barrar a qualquer custo os avanços rumo à igualdade racial, para continuar assegurando os privilégios de ontem, de hoje e do amanhã para os de sempre.
Seja como for…
Para finalizar essas reflexões, gostaria de pôr em questão a necessidade de um olhar atento, sensível, generoso e respeitoso à rica diversidade cultural, racial e religiosa existente no Brasil. Do mesmo modo, é preciso que tenhamos gestos e atitudes firmes no enfrentamento às gritantes desigualdades e que não nos intimidemos com esta cantilena conservadora e discriminatória. Pois o que desejamos mesmo é que, num futuro próximo, não precisemos de sistema de cotas para fazer justiça “àqueles que historicamente foram marginalizados, de sorte a colocá-los em um nível de competição similar ao daqueles que historicamente se beneficiaram da sua exclusão”, como bem diz o ministro Joaquim Barbosa.
Nesse sentido, vale a pena pensar que a verdadeira força, fundada na consciência política e na ética, para enfrentar e derrotar os algozes da democracia e da igualdade racial virá da capacidade que tenhamos para articular e comprometer com a justiça e a fraternidade negros, brancos, mestiços, cafuzos e quem mais acredite e deseje um Brasil democrático e igualitário, tanto social quanto racialmente.
E esta é uma tarefa só nossa! E exige dedicação!


Zulu Araújo Ex-Presidente da Fundação Cultural Palmares / Ministério da Cultura – Fevereiro de 2009
IN Revista “Raça”–  http://www.palmares.gov.br/?page_id=7649     

sábado, 25 de junho de 2011

Construtora deve devolver valor pago de uma só vez


o comprador do imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas.
a devolução das quantias pagas deva ser feita de uma só vez.
após devolver em juízo o que foi pago pelo comprador, a incorporadora não pode pedir qualquer indenização do consumidor no mesmo processo.


Laura Ignacio
A Justiça paulista vem julgando de forma favorável processos de consumidores que compraram imóveis na planta, via crédito facilitado, e desistiram do negócio. Nesses casos, as multas cobradas pelas incorporadoras têm sido consideradas abusivas, assim como a devolução da quantia paga em parcelas intermináveis. Em razão do elevado número de ações sobre o tema, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) editou três súmulas - já aplicadas pela primeira instância - que pacificam o entendimento da Corte sobre a questão.

Uma dessas súmulas determina que o comprador do imóvel, mesmo inadimplente, pode pedir a rescisão do contrato e reaver as quantias pagas. O tribunal só admite o desconto de gastos pela incorporadora com administração e propaganda, e do valor correspondente ao aluguel do bem - caso o imóvel tenha sido ocupado pelo comprador. Outra súmula impõe que a devolução das quantias pagas deva ser feita de uma só vez. A terceira súmula deixa claro que, após devolver em juízo o que foi pago pelo comprador, a incorporadora não pode pedir qualquer indenização do consumidor no mesmo processo.

Em uma das decisões já proferidas pela primeira instância paulista com base nas súmulas, o juiz Alexandre Augusto Marcondes declarou rescindido o contrato e condenou uma construtora a devolver de uma só vez a totalidade das quantias que foram pagas, atualizadas monetariamente desde as datas de pagamento, acrescidas de juros de 1% ao mês, calculados a partir da citação. O consumidor argumenta que ficou inadimplente porque a entrega da obra atrasou. Em outro caso semelhante, do total de R$ 130 mil, o consumidor já havia pago R$ 30 mil. A juíza Jacira Jacinto da Silva determinou a devolução de R$ 80 mil.

Para João Crestana, presidente do Sindicato da Habitação (Secovi) em São Paulo, há despesas que são irreversíveis para as incorporadoras, como o custo com o serviço dos corretores para vender o imóvel e com advogados na contratação. O advogado Marcelo Tapai, do escritório Tapai Advogados, conseguiu decisões que declaram essas taxas ilegais. Ele cita o caso de um comprador que desfez o noivado e com R$ 35 mil já pagos, teria que desembolsar mais R$ 12 mil em razão dessas taxas, o que resultaria em uma multa equivalente a 20% do valor do imóvel (R$ 235 mil). "Outro cliente era empregado de uma concessionária há 20 anos, porém ficou desempregado e mudou o padrão de vida", diz. Tapai afirma que a incorporadora queria devolver o dinheiro já pago apenas quando a obra ficasse pronta e o apartamento fosse vendido a terceiro.

Na MRV, quando há desistência da compra, se não há acordo, o contrato é rescindido para evitar briga judicial. Segundo Maria Fernanda Menin Maia, diretora jurídica da incorporadora, se o consumidor não recebeu as chaves do imóvel, é aplicada uma retenção de 8% do valor do contrato e o restante é devolvido. "Normalmente, a devolução é feita em parcela única, mas em casos excepcionais o parcelamento é acordado porque, afinal, os clientes pagam à construtora em parcelas", explica. No caso de imóvel já entregue, a advogada explica que há também um desconto de 1% por mês habitado, por depreciação pelo uso.

Nas ações civis públicas propostas pela Promotoria de Justiça do Consumidor do Ministério Público Estadual (MPE) de São Paulo é considerada lícita a retenção de até 10% dos valores pagos pelo consumidor, mais eventuais prejuízos, como no caso em que o consumidor já usufruia do bem. Segundo o promotor Gilberto Nonaka, do MPE-SP, esse é o percentual que vem sendo aceito pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). "Na maioria dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), o percentual é respeitado, evitando o ajuizamento de ação civil pública", diz.

Segundo o advogado Jorge Cesa, do escritório Veirano Advogados, para o incorporador se prevenir da inadimplência o importante é estabelecer no contrato, além da multa, garantias no caso de não pagamento. "O afã em fazer vendas e as facilidades de crédito levaram incorporadoras a deixar isso de lado", afirma.

Segundo o presidente do Secovi, João Crestana, em comparação com o início dos anos 2000, o índice de desistência hoje é pequeno. Ele lembra que, antes de 1995, quando foi editado o Plano Real, os diversos planos econômicos reajustavam constantemente as parcelas a pagar, levando a um alto índice de inadimplência. "Mas se em 2002 o volume de financiamento imobiliário no Brasil era de R$ 3 bilhões, atualmente já bateu os R$ 85 bilhões", pondera. "Por isso, em números absolutos, o total de pessoas que desistem do negócio é considerável."




Laura Ignacio – jornalista – 17.05.2011


quinta-feira, 23 de junho de 2011

A imprensa e a revolução árabe

Na cultura democrática, processo pautado pela liberdade de expressão, os jornais deverão estar abertos às novas apreensões e anseios dos movimentos sociais que levaram ao outono do patriarca; redefinir as fronteiras causadas pela erosão do processo político e ampliar a participação pública, preenchendo o domínio do direito com conteúdos.


Rafael Marroquin
"Três jornais hostis devem ser mais temidos que mil baionetas." A frase, atribuída a Napoleão Bonaparte, sintetiza a maneira pela qual a "guerra pela informação" se impôs como um elemento central na contemporaneidade, ganhando novos contornos com as revoluções democráticas no mundo árabe. Nesse sentido, a cobertura dos protestos civis no Egito, Líbia e Iêmen – países esquecidos pelas grandes agências internacionais de notícias – provou a força não só das redes sociais, mas principalmente da TV Al-Jazira, emissora responsável pela veiculação de informações com olhar dissonante em relação às suas congêneres ocidentais.
Durante a crise no Egito, a versão internacional da televisão árabe se equiparou à da Fox News no número de telespectadores nos Estados Unidos. Na Líbia, a TV é uma das poucas a ter repórteres em Benghazi, cidade ocupada pelos rebeldes. No início de março, a própria secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, reconheceu que os norte-americanos estão perdendo a "guerra por informação".
"Estamos em uma imensa competição por influência global e mercados globais. China e Rússia lançaram redes de televisão funcionando em várias línguas, quando os EUA fazem cortes nesta área. Estamos pagando um preço elevado por desmantelar redes de comunicação internacional depois do fim da Guerra Fria. Nossos meios privados não podem preencher essa brecha", disse a senhora Clinton.
O melhor veículo estrangeiro
Diferente do Twitter e do Facebook, que exigem acesso à internet, a Al-Jazira é assistida por milhares de árabes. Em países como o Egito, com quase 30% de analfabetos e 57% da população vivendo na zona rural em 2007, o veículo obteve papel central ao noticiar os protestos na praça Tahrir, no Cairo. O então ditador Hosni Mubarak chegou a proibir a cobertura da TV no auge das manifestações, temendo maior apoio aos opositores do regime.
Com as versões apressadas da mídia e de acadêmicos de bureau ocidentais, os países árabes, sobretudo do Norte da África, estariam relegados a duas matrizes: uma política, o chamado "despotismo oriental", e outra religiosa, o "fundamentalismo islâmico". Os protestos civis pela democracia, ao contrário, revelaram a presença de uma classe média não-fundamentalista, pouco pitoresca aos olhos ocidentais e articulada em torno de movimentos sociais.
A revolução tida como impossível pelo Ocidente hegemônico, que negava a presença de uma sociedade civil ou mesmo de uma opinião pública árabe, parece ter caído por terra, como explicou o historiador Francisco Carlos Teixeira. Por isso, a necessidade de reduzir o "espaço público político", com raízes históricas definidas de décadas de resistência aos regimes, às teses pré-fabricadas por uma relevância indiscriminada das redes sociais.
Outras formas de sociabilidade, como as escolas, praças e mesquitas se perderam no murmúrio de agências de notícias e de articulistas internacionais a longa distância, reprodutores de estereótipos de qualquer cruzada cristã. Pode não demorar até que essa inversão de fumaça em fogo se torne, de fato, roteiro de consagração imediata indicada ao Oscar, dedicado a todos que lutaram na "Facebook Revolution". À Al-Jazira caberá, talvez, a resignação pós-colonial de melhor veículo estrangeiro. Ao menos o voto dos EUA e da senhora Clinton já foram dados.
Mudança política, mudança editorial
Com a saída das ‘baionetas’, ao menos no Egito, os jornais antes tidos como hostis pelos manifestantes começam a mudar de postura. Em janeiro, durante os confrontos violentos entre opositores e polícia, o Al-Ahram, principal periódico do país, estampou na primeira página uma notícia sobre flores e chocolates entregues aos policiais. Um dia depois de Mubarak renunciar ao cargo, o mesmo jornal trouxe a manchete "O povo derrubou o regime", aplaudindo os jovens egípcios pela retirada do ditador.
De acordo com a reportagem "Saiba tudo sobre a imprensa árabe", do semanário The Economist, a mídia mudou de tom com os novos protestos. Além do Egito, a revista britânica cita exemplos no Golfo Pérsico e na Líbia de jornais que estão ultrapassando a "linha vermelha" da censura. Em 2008, uma pesquisa com 600 jornalistas árabes realizada pela American University, no Cairo, revelou que 75% dos profissionais consideravam o jornalismo capaz de promover mudanças políticas e sociais.
Após o relato apenas de fatos oficiais que contribuíram para a sustentação do regime ditatorial por mais de 30 anos, as revistas e periódicos egípcios governamentais vivem agora o desafio de uma nova ordem de comunicação. Na cultura democrática, processo pautado pela liberdade de expressão, os jornais deverão estar abertos às novas apreensões e anseios dos movimentos sociais que levaram ao outono do patriarca; redefinir as fronteiras causadas pela erosão do processo político e ampliar a participação pública, preenchendo o domínio do direito com conteúdos.
Ao se desvincular das baionetas, o jornalismo egípcio poderá contribuir, de fato, para a democracia que se aproxima. À revelia do que ocorre usualmente na imprensa brasileira, deverá aprender a lição com o passado, estando aberto às novas demandas da sociedade civil por um novo horizonte de transformação nas condições gerais da vida social.


Rafael Marroquim – Jornalista – 19.04.2011

terça-feira, 21 de junho de 2011

Vidas em liquidação


Na presente crise de transcendência, a vida perdeu seu secular centro de gravidade valorativa, representado pela religião, pela política e pela moral privada familiar. Essas agências foram destronadas pelo impacto imaginário da ciência, da economia e da indústria do espetáculo.

Jurandir Freire Costa
Nas últimas semanas, a imprensa noticiou com destaque o caso de mortes de crianças por abandono das mães e o assassinato de duas jovens por uma concorrente à vaga de emprego em uma empresa.
Somem-se os homicídios recentes de pais por filhos, os homicídios diários resultantes de assaltos a cidadãos pacíficos e, enfim, os homicídios cometidos por policiais e bandidos nos crônicos conflitos do tráfico de drogas e a pergunta se torna inevitável: que valor a vida passou a ter entre nós?
Refletir sobre o problema é, antes de tudo, entender que perguntas desse teor surgem apenas quando não podemos estabelecer nexos significativos entre motivos antecedentes e mortes conseqüentes.
Habitualmente, compreendemos o que leva alguém a tirar a vida de outrem, se a razão do ato homicida não é trivial. Assim, crimes passionais ou assassinatos por interesses políticos, econômicos etc., embora brutais e condenáveis, parecem, de certa forma, inteligíveis, dada a força do móvel dos crimes.
Outra coisa é o homicídio que julgamos desproporcional ao objetivo visado pelo criminoso. Nesse caso, a lacuna que se abre entre a razão e o ato nos faz pensar que a relação entre direito à vida e potencialidade assassina transborda a racionalização possível do que ocorreu. Falamos, então, de monstruosidade da parte de quem mata ou de banalização do valor da vida.
Aqui, porém, surge um obstáculo. É relativamente fácil caracterizar a monstruosidade de um crime. Dizemos que um crime é monstruoso se for praticado com requintes de crueldade ou se a vítima for ou estiver indefesa ao sofrer a agressão. Mais difícil, em contrapartida, é definir o que significa banalização do valor da vida.
Duas acepções, em geral, monopolizam o sentido da expressão.
Banalização do mal
A primeira, inspirada no conceito arendtiano de banalidade do mal, faz da banalização sinônimo de uso instrumental da vida. A vida, afirma-se, é um valor absoluto. Utilizá-la como meio para alcançar fins de poder, prestígio ou gozo alheios ao seu possuidor é uma violação fatal ao ideário dos direitos humanos.
A segunda filia-se às teses de alguns pensadores dos tempos contemporâneos, e é a que me parece mais adequada à análise dos fenômenos discutidos. Para tais pensadores, banalizar a vida significa não apenas instrumentalizá-la mas desatá-la dos vínculos transcendentes que garantem seu valor e seu sentido.
Explicitando, nesta última acepção banalizar é mais do que instrumentalizar, pois há casos nos quais a instrumentalização da vida para fins exteriores à pura sobrevivência é moralmente justificável. Dispor-se a morrer na defesa de princípios éticos, por exemplo, raramente é algo visto como "banalização da vida".
Ao contrário, na maioria das vezes, vemos nisso provas de abnegação, coragem, santidade, nobreza etc.; em suma, sinais de virtude e elevação moral.
Banalizar a vida, portanto, quer dizer instrumentalizá-la, mas para finalidades irrisórias. Eis, segundo aqueles autores, o drama da cultura atual. Pois, conhecer o valor ou a derrisão da vida é um processo que independe dela. A vida nua, como pontuaram Arendt e Agamben, não é o juiz de seu próprio valor moral.
Sua qualificação ética como bem supremo lhe é doada de "fora", por instâncias que lhe são transcendentes.
O transcendente não é, de forma compulsória, o religioso, mas o que não coincide com a existência biológica do ser humano.
Aglomerado metabólico
Ou seja, transcendente é o que ultrapassa a "primeira natureza" do sujeito, a que está contida no equipamento instintivo prévio à expressão lingüística de sua capacidade imaginativa. Reduzida à  "primeira natureza" – noção criada por Arnold Gehlen e explorada criativamente por Dany - Robert Dufour-, a vida se torna um mero aglomerado de processos metabólicos em interação com o meio.
Ora, na presente crise de transcendência, a vida perdeu seu secular centro de gravidade valorativa, representado pela religião, pela política e pela moral privada familiar. Essas agências foram destronadas pelo impacto imaginário da ciência, da economia e da indústria do espetáculo. Atribuir valor à vida, hoje, requer um esforço permanente do sujeito para se deslocar de uma perspectiva para outra.
E, ao deixarmos a órbita da hierarquia vertical Deus-Pátria-Família, na qual a vida desdobrava seu sentido do mais particular para o mais universal, do mais egoísta para o mais altruísta, caímos na vertigem dos sentidos pontuais, prescritos pela contingência "ad hoc" do sujeito e seu momento. A sólida pirâmide do valor da vida se liquefez nos pequenos, provisórios e errantes sentidos determinados pelos padrões científico-econômicos ou pelos interesses da cultura do espetáculo.
Desse modo, em dadas circunstâncias, o sujeito pode sentir-se autorizado a julgar que um posto de trabalho vale mais do que a vida do competidor, sem que isso lhe pareça uma aberração moral. O mesmo pode ser dito do abandono de recém-nascidos pelas mães, do assassinato de rivais pela posse e comercialização de drogas, do assassinato de pais que se opõem a namoros de filhos ou de avós que negam dinheiro ao neto para o consumo de cocaína.
Moral tradicional
Bem entendido, o quadro cultural é mais complexo do que o sumário que apresentei. Manifestações indignadas sempre acompanham episódios do gênero, mostrando que os sujeitos reagem diante dessas vidas em liquidação orientados pela moral tradicional. O que me parece grave, entretanto, é que muitos deles não notam o quanto estão comprometidos com a moral que está na origem do que condenam e repudiam. Um exemplo citado por Dufour ilustra bem esse estado de coisas. Em 1995, 500 tomadores de decisão de alto nível político-econômico reuniram-se para debater a governabilidade de um mundo onde 80% da humanidade não se enquadra no regime de mercado.
A solução proposta e aceita foi a de fornecer "um coquetel de entretenimento estupidificante e de alimentação suficiente que permita a manutenção do bom humor na população frustrada do planeta". A frieza e o cinismo da "solução" a la personagens de Orwell ou de Huxley mostra o que é evidente: a desregulamentação dos mercados corre em paralelo com uma desregulação do valor da vida, cujos efeitos nefastos são absolutamente desconsiderados pelos tomadores de decisão.
Freud dizia que a condição original da civilização foi a interdição do parricídio, do incesto e do canibalismo.
Os mentores das novas visões de mundo deveriam ouvir cuidadosamente a advertência. Imaginar que a surrada fórmula do "pão e circo" substitui o respeito pela dignidade da vida humana não é apenas esquecer que o grande Império Romano se esfarelou assentado sobre essa insensata crença; é agarrar-se a ondas para escapar de um naufrágio que eles próprios estão provocando.


Jurandir Freire Costa – Psicanalista e professor – 12.02.2006
IN “Folha de São Paulo”, Caderno MAIS! – http://jfreirecosta.sites.uol.com.br/artigos/artigos_pdf/vidas.pdf

sábado, 18 de junho de 2011

A luta de classes no Wisconsin

O movimento dos trabalhadores nos Estados Unidos renasce com força em meio ao processo de destruição dos sindicatos do setor público. Em Los Angeles, São Francisco, Denver, Chicago, Nova York e Boston, Milhares de pessoas foram às ruas manifestar o apoio aos insurgentes.

Rick Fantasia
De uma hora para outra e quase sem nenhum aviso, a cidade de Madison, no Wisconsin, tornou-se o centro do universo social dos Estados Unidos. Durante quatro semanas, centenas de funcionários públicos e estudantes ocuparam – com protestos pacíficos, mas barulhentos – o saguão do Capitólio de Wisconsin (sede do governo estadual), enquanto outros milhares de manifestantes rodeavam o edifício do lado de fora. Paralelamente, enormes protestos se levantavam contra os governos de outros estados, como na cidade de Harrisburg, capital da Pensilvânia; Richmond, na Virginia; Boise, em Idaho; Montpelier, em Vermont; e Columbus, em Ohio. E não parou por aí: em Los Angeles, São Francisco, Denver, Chicago, Nova York e Boston, milhares de pessoas foram às ruas manifestar o apoio aos insurgentes.
O chamado “walk like an egyptian” (“ande como um egípcio”, título de um hit musical dos anos de 1980) foi respondido por milhares de pessoas que, inspiradas pelo momento político mundial, se organizaram para expressar a indignação em relação a medidas políticas estaduais. A demanda era simples e clara: queriam a revogação da lei draconiana instituída pelo governador republicano que atingia diretamente o sindicalismo do setor público em Wisconsin. Apesar do projeto de lei ter sido aprovado pela maioria republicana no legislativo e de governadores de outros estados também levarem adiante medidas antissindicais parecidas, a batalha de Wisconsin cumpriu um papel: reavivou um movimento de classe em processo de destruição.
O conflito foi exitoso à medida que centenas de milhares de membros da classe trabalhadora estadunidense despertaram do sono da imobilidade e despolitização e incitaram uma onda de protesto coletivo adormecida por quase 75 anos – mas que agora dá sinais de não querer retroceder tão cedo. A ação do governador do Wisconsin, Scott Walker, teve efeito reverso: ao tentar solapar os direitos dos trabalhadores, ressaltou sua importância, ao mesmo tempo que decepcionou milhões de eleitores da classe trabalhadora (chamados de “democratas de Reagan”) há décadas manipulados para votar contra seus próprios interesses.
As medidas foram anunciadas como cortes no orçamento para regular a máquina pública, mas em última instância privavam os funcionários públicos de seus direitos sindicais. O cenário tornou-se claro para todos quando os sindicatos de funcionários públicos finalmente aceitaram atender às demandas econômicas de Walker, mas com a condição de manutenção dos direitos de negociação coletiva. Walker recusou categoricamente. “Este é o nosso momento”, afirmou ele para a voz do outro lado da linha, cujo dono era um ativista pró-sindicalismo que, com o desconhecimento do governador, se fez passar por um dos bilionários irmãos Koch.
Entre as famílias mais ricas do planeta, os direitistas David e Charles Kochforam benfeitores de diversas iniciativas antissindicais pelo país e, não por acaso, foram os maiores doadores da campanha eleitoral do governador Walker – como pessoa física e através da empresa da família, a Koch Industries. Na mencionada conversa telefônica – gravada e depois exibida para milhões de pessoas pela televisão, rádio e internet –, Walker explicitamente se compara ao presidente Ronald Reagan, que começou um governo presidencial com a audaciosa medida de demitir 12 mil controladores de voo em greve, em 1981. Três décadas depois, Walker arquitetou seu ataque inspirado no legado de Reagan e em função de suas grandes ambições políticas. Nessas circunstâncias, qualquer negociação ou compromisso com os trabalhadores estava fora de cogitação.
A nova lei foi desenhada para debilitar as organizações sindicais a partir de mudanças nos mecanismos básicos de manutenção de suas estruturas. Por exemplo, institui a necessidade de eleições anuais para determinar o apoio dos membros ao sindicato, acaba com a dedução automática da contribuição sindical e torna qualquer contribuição ao sindicato facultativa. Além dessas medidas, a lei limitou severamente os pontos negociáveis com os sindicatos. Apenas o direito de negociação salarial foi mantido integralmente, mas veio acompanhado estrategicamente de uma obrigação estatutária que restringe a indexação dos salários à inflação, virtualmente anulando uma moeda de troca chave dos sindicatos. Outros temas de negociação foram sumariamente proibidos.
Vale lembrar que a sociedade estadunidense goza de pouquíssimos benefícios sociais por parte do Estado e a consequência disso é que as negociações coletivas se tornaram determinantes na conquista de mais provisões sociais. Tanto no setor público como no privado, a ausência de um sindicato fortalecido para negociar com o empregador tende a estagnar os salários, manter as condições precárias de trabalho e reafirmar a quase inexistência de políticas de apoio social. Em outras palavras, isso significa que, sem o respaldo de um sindicato, a maioria dos trabalhadores braçais e não profissionalizados simplesmente não pode arcar com os custos de uma aposentadoria decente, de um seguro de saúde familiar acessível, férias remuneradas, licença-maternidade ou qualquer outro benefício disponível para cidadãos de uma sociedade industrializada.1
As medidas de Walker e de outros governadores republicanos para enfraquecer os núcleos de reivindicação do setor público buscam, na realidade, atingir os últimos bastiões da força sindical nos Estados Unidos. No setor privado, os salários e as condições de trabalho vêm decaindo há décadas. A participação sindical foi reduzida a 7% (contra 33% na década de 1950) por uma combinação de fatores, como medidas corporativas para dificultar as ações dos sindicatos, terceirização do trabalho e desindustrialização (incluindo a redução de capital em fábricas sindicalizadas em benefício das não sindicalizadas). Essas medidas implicam no aumento imediato dos lucros de acionistas.
A situação no setor público é bem diferente. Os empregadores públicos (governantes e dirigentes municipais e estaduais) tradicionalmente sempre contaram com o apoio eleitoral do funcionalismo público e, em troca, garantiram contratos sindicais com ênfase em custos de longo prazo (como saúde, pensão e benefícios), em vez de privilegiar o aumento imediato dos salários – que aplicado no curto prazo pode criar rombos no orçamento. O resultado desse arranjo é a garantia de benefícios e respaldo social a milhões de pessoas que correspondem a 36% do funcionalismo público de todo o país, como professores de escolas públicas, trabalhadores de serviços municipais, médicos, motoristas, escrivães, funcionários de universidades e repartições jurídicas, policiais, bombeiros. Os ataques ao setor público visam restringir os benefícios desses trabalhadores e destruir uma importante fonte de organização política que apoia o Partido Democrata. Se os objetivos forem alcançados, o resultado será uma sociedade completamente sem sindicatos e sem contraponto ao poder das corporações.
Antes dessas investidas, o governador Scott Walker era um político praticamente desconhecido fora de sua jurisdição e ascendeu ao poder nas eleições de novembro de 2010 como membro do Tea Party, facção de republicanos de ultradireita que ganhou o pleito em vários municípios e Estados do país.2 Na campanha, o discurso de Walker enfatizava os cortes no orçamento, mas o então candidato nunca mencionou qualquer coisa sobre os sindicatos. Em três meses desde que tomou posse, diminuiu os impostos de empresas, e as cobranças sobre a renda de pessoas físicas abastadas antes de decretar uma “crise no orçamento”. Essa crise seria resolvida, segundo ele, não apenas com cortes no crédito destinado aos mais pobres e com o aumento dos impostos pagos pelo funcionalismo público para saúde e pensão (aumento de 5,8% e 12%, respectivamente), mas também com a redução dos direitos reivindicativos dos funcionários públicos. Os sindicatos da polícia e dos bombeiros, porém, ficariam de fora das novas medidas, já que foram setores-chave no apoio à sua candidatura durante as eleições. Walker parece seguir minuciosamente o roteiro da “doutrina do choque”, pois logo ficou evidente que a falsa crise do orçamento estaria sendo evocada com outro objetivo: desmantelar os sindicatos do setor público, a única força política organizada e que só no Estado de Wisconsin representa 300 mil funcionários públicos.
 “Walk like an egyptian”
O extraordinário drama social produzido pelas medidas governamentais e a resposta inesperada da população foram o grande tema nacional por semanas. Slogans como “Kill the Bill” (“matem a lei”, também trocadilho para o célebre filme “Kill Bill”) e “walk like an egyptian” ecoavam entre as multidões. Os manifestantes ganharam o apoio de 14 senadores democratas do congresso estadual, que trataram de sair de Wisconsin para impedir a formação de quorum na votação do projeto de lei e não serem forçados legalmente a participar do plenário. Durante a batalha, o grupo apelidado de “Wisconsin 14” permaneceu do outro lado da fronteira, no Illinois, onde não podiam ser alcançados pelas leis de seu estado, nem pela polícia, que já havia deslocado efetivos para monitorar a casa dos senadores caso voltassem ao país. Após três semanas dessa tentativa de neutralização, os republicanos realizaram uma manobra: tiraram da lei as partes que restringiam e impunham medidas para a negociação salarial com os sindicatos – o que tornou ainda mais explícita a tentativa do governo de desmantelar o sindicalismo público – e permitiu a votação e a aprovação do projeto sem o quorum legal. Foi uma vitória para Walker e os republicanos, mas com um custo político altíssimo.
Em 12 de março, o dia seguinte à aprovação da lei, os integrantes do Wisconsin 14 voltaram a Madison e foram recebidos como heróis, ovacionados por mais de 150 mil trabalhadores dos setores público e privado e suas famílias, além de trabalhadores de fazendas (numa comitiva de 50 tratores) e milhares de estudantes da Universidade de Wisconsin. Eclodiram ameaças de greve geral por parte não de trotskistas, mas de líderes sindicais dos bombeiros e dos professores, tática avaliada por especialistas na televisão como uma resposta razoável ao ocorrido
A situação poderia ser apenas um clichê em muitas sociedades, mas no contexto estadunidense é extraordinária. Dela também resultou a ação programática de organizar uma petição para cassar o mandato de oito senadores republicanos, esforço inédito de modificar o cenário político na legislatura estadual. O governador não pode ser deposto até completar um ano no cargo, mas é provável que a futura data seja incontornável nos calendários de Wisconsin. Enquanto os republicanos empreendem uma campanha contra alguns dos democratas “fugidos”, a opinião pública está firme do lado do grupo Wisconsin 14. A situação permitiu que muitas pessoas testemunhassem pela primeira vez e com muita clareza, o que os republicanos têm reservado para elas. Sondagens de opinião mostraram o apoio da população aos sindicatos e à preservação dos direitos coletivos de negociação (entre 60% e 70% no Estado do Wisconsin e nacional).
Nos estados da Flórida e Nova Jersey, governadores republicanos estavam afiando suas facas contra os sindicatos públicos, mas retrocederam ao ver a resposta dessa política em Wisconsin. Em Indiana, legisladores democratas seguiram o exemplo dos colegas de Wisconsin e voaram para Illinois na tentativa de inviabilizar em seu próprio estado a votação de leis contra os sindicatos públicos. Projetos de lei desse teor estão avançando em Michigan e Idaho; em Ohio, o debate sobre o tema toma conta do plenário. A luta é nacional.
Se os esforços políticos estão claramente orientados contra os sindicatos, essa batalha está longe do fim. Sim, o antissindicalismo está profundamente enraizado nas instituições e na cultura estadunidense, e o poder das corporações está infiltrado no sistema político como nunca esteve na história do neoliberalismo. Por outro lado, nem o movimento sindical estadunidense nem o Partido Democrata têm muita experiência e interesse em manter uma ação coletiva, a não ser que esteja estritamente sob seu controle, orientada unicamente para seus horizontes sociais estreitos. No entanto, a batalha em Wisconsin se espalhou rapidamente como um incêndio, ultrapassando os limites imaginados pela sociedade estadunidense. Todos sabem o que está em jogo daqui para a frente.
Trinta anos atrás, a ousada atitude antissindical de Reagan pareceu lançar um feitiço sobre a população dos Estados Unidos, que mergulhou num longo sono de desarticulação social. A ironia é que, ao imitar Reagan, o governador Walker talvez tenha, ele mesmo, desfeito esse encanto.


1 Rick Fantasia e Kim Voss, Sindicatos domésticos:repressão patronal e resistência sindical nos EUA,Raisons d’Agir, Paris, 2003.
2 Rick Fantasia, “Ces deux gauches américaines qui sígnorent”, Le Monde Diplomatique, nº 681, dez/2010, p.6-7.


Rick Fantasia – Professor de Sociologia de Massachussets – 01.04.2011
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” – http://diplomatique.uol.com.br/edicao_mes.php

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Economia, a quem interessa?


os investimentos na área social não resultam apenas em maior grau de proteção da população, mas também na promoção do desenvolvimento econômico. Para um país em construção como o Brasil, os investimentos sociais permanecem em igualdade de importância com os investimentos em atividades econômicas.

Márcio Pochman
A crise da dívida externa no início da década de 1980 fragmentou e dissolveu o antigo bloco de poder que dirigiu politicamente o ciclo de industrialização nacional por cerca de meio século (1930 – 1980), ou seja, produtores de bens e serviços para o mercado interno. Em função das decisões de política econômica adotadas durante o último governo militar (Figueiredo, 1979-1985), dois novos protagonistas (exportadores e financistas) passaram a conduzir, em grande medida, a trajetória nacional durante as duas últimas décadas.
O resultado disso foi o predomínio do baixo dinamismo econômico e da grave oscilação no nível de produção (stop and go econômico). Em boa medida, a gravidade na situação do balanço de pagamentos levou à dependência maior de exportadores, especialmente de bens primários, na geração de saldos externos favoráveis ao atendimento dos serviços da dívida externa anteriormente contraída, sobretudo na década de 1970, e fortemente ampliada pela decisiva elevação real da taxa de juros nos Estados Unidos e demais países ricos durante a primeira metade dos anos de 1980.
Mas para a geração de elevados saldos de exportação, especialmente para um país que mal conseguia até então equilibrar suas contas externas, o Brasil terminou abandonando o seu próprio projeto nacional de desenvolvimento pela via do mercado interno. A opção pela recessão e contenção do mercado doméstico se mostrou fundamental para a obtenção e sustentação do saldo exportador, necessário ao pagamento dos juros dos serviços da dívida externa. Ou seja, a economia nacional não poderia crescer pelo mercado interno, pois isso tornava insustentável a manutenção das exportações.
Por mais de vinte anos, o quadro geral de semi-estagnação da renda per capita foi acompanhado pelo empobrecimento do povo e pela desigualdade pró-rico. Isso porque a ausência de alternativas de maior rentabilidade produtiva pelo mercado interno transcorreu simultaneamente ao desenvolvimento sofisticado das finanças favoráveis à garantia de retornos extremamente elevados aos aplicadores no mercado financeiro. Exemplo disso foi o papel de destaque dos rentistas que, assentados no processo de endividamento público e de financeirização da riqueza, absorveram, em média, mais 6% de todo o Produto Interno Bruto (PIB) ao ano.
Em contrapartida, o aumento em mais de 10 pontos percentuais do PIB da carga tributária, especialmente sobre os mais pobres, assumiu tarefa essencial na geração de significativa transferência de renda conjuntamente com a venda do patrimônio estatal e aumento do endividamento público. A ciranda das altas finanças operava quase que por compensação ao contexto de baixo dinamismo econômico interno no setor produtivo e em meio à superinflação e desorganização das finanças públicas.
Somente na primeira metade da década de 2000, o Brasil libertou-se da dependência externa, o que lhe permitiu passar da posição de devedor à de credor do Fundo Monetário Internacional. Ao mesmo tempo, passou a registrar desempenho econômico satisfatório, com crescimento da produção interna mais de duas vezes superior ao período anterior e queda real na taxa de juros alimentadora da ciranda financeira.
Alguns estudos recentes realizados pelo Ipea sobre o resultado das decisões de política econômica têm permitido conhecer melhor o Brasil que emerge atualmente após mais de duas décadas de aprovação da Constituição Federal de 1988. A expansão do fundo público em cerca de 10 pontos percentuais do PIB se mostrou determinante para a reconfiguração das determinações no conjunto das atividades econômicas. Resumidamente, a consolidação de um novo elemento de disputa no âmbito das decisões de política econômica, para além dos dois principais protagonistas que hegemonizaram desde a grave crise da dívida externa do início da década de 1980.
Por exercer uma função-meio, não finalística, a economia deve comprometer-se com a geração de oportunidades que permitam elevar o padrão de vida do conjunto da população. Nesse sentido, as decisões de política econômica devem procurar considerar as melhores vias para que isso possa ocorrer. Após detalhado estudo das contas nacionais, o Ipea identificou que o impacto do gasto social no nível de produção se apresenta cada vez mais determinante para o impulso do conjunto das atividades econômicas internas. Para cada 1 real gasto com educação pública geral, o resultado é de R$1,85 no PIB, enquanto o investimento de também 1 real na saúde resulta em R$1,70 no Produto Interno Bruto.
Nota-se, em síntese, que os investimentos na área social não resultam apenas em maior grau de proteção da população, mas também na promoção do desenvolvimento econômico. Para um país em construção como o Brasil, os investimentos sociais permanecem em igualdade de importância com os investimentos em atividades econômicas.
O contrário disso representa o aprisionamento das decisões de política econômica ao circuito da financeirização da riqueza, capaz de contra-arrestar parte dos esforços de elevação do padrão de vida da população. Dada a composição da dívida do setor público, o aumento de somente 1% na taxa de juros (Selic) implica a ampliação do adicional de quase R$ 6 bilhões ao ano no estoque do endividamento governamental. Ou seja, o crescimento de uma despesa pública cujos resultados produtivos se apresentam nulos para a geração de emprego da mão de obra, além de implicações desfavoráveis à taxa de câmbio. Se a taxa de juro relativa à de outros países for muito maior, o Brasil torna-se ainda mais atrativo ao ingresso de recursos estrangeiros nem sempre produtivos, podendo gerar maior desvalorização do dólar frente ao real. Ao fim e ao cabo, maior dificuldade de exportar e crescente pressão de importados.
O fortalecimento do real torna mais cara a produção interna e desfavorece a competição dos produtos nacionais com os externos, elevando a importação e a remessa de recursos ao exterior, anteriormente investidos no Brasil. Em contrapartida, cresce a pressão doméstica pela contração dos gastos públicos em decorrência do aumento das despesas com juros e estimula-se a desaceleração da economia em sua função de prover oportunidades crescentes para a elevação do padrão de vida da população.
É claro que ajustes táticos sempre podem ser compreensíveis desde que não se apresentem capazes de desarticular a estratégia maior da elevação do padrão de vida da população. O que significaria o retorno à dependência do bloco de poder constituído, principalmente por grandes exportadores de produtos primários e rentistas do endividamento público.

Márcio Pochmann – Economista e Professor – 05.04.2011
IN “Revista Forum”, Ed. 96 – http://revistaforum.com.br/marciopochmann/?p=92

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Os últimos momentos

José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo enfrentavam interesses poderosos. Mas não contavam com a traição de quem vivia as mesmas agruras.

Felipe Milanez.
A noite ainda cobria a floresta quando, por volta das 4h30 da manhã da terça-feira 24 de maio, uma moto vermelha passou em frente à Encruzilhada da Morte, apelido de um boteco localizado no assentamento Praia Alta-Piranheira, na área rural de Nova Ipixuna, no Pará. Seguiu em alta velocidade e cruzou a pequena vila de Maçaranduba. Sobre ela, dois homens carregavam uma mochila comprida. A dupla andava rápido por um motivo: era preciso chegar antes ao local planejado e preparar a tocaia. Certamente, não haveria outra oportunidade tão cedo.
Alguns quilômetros adiante, a moto parou em frente a uma ponte em más condições sobre um igarapé: uma tora de madeira semiafundada e, ao lado, uma prancha levantada. Passar ali exige cuidado. No fim da ponte, uma ladeira encobre a visão de quem a atravessa, local perfeito para emboscada. A dupla camuflou-se no mato, em um ponto de onde era possível enxergar até o topo da ladeira e não ser visto. E esperou.
Não muito longe, Maria do Espírito Santo se levantou assim que o sol surgiu por entre as árvores. Despertou o marido, José Cláudio Ribeiro, saiu pela varanda da casa, caminhou cerca de 5 metros e foi até a cozinha preparar o café. José Cláudio veio em seguida. Por volta das 7 da manhã, dia claro, o casal saiu. Passaram, como de costume, na casa de Laíse Santos Sampaio, vizinha, irmã e confidente de Maria. E foram para a cidade. Precisavam buscar logo o dinheiro que faltava para enviar à irmã de José Cláudio, que vive no Tocantins e está mal de saúde. Haviam conseguido com uma vizinha 700 reais emprestados. Mas os outros 1,3 mil reais viriam de uma amiga em Marabá. José Cláudio guiava a moto, Maria ia na garupa.
Perto da ponte, José reduziu ao mínimo a velocidade e conduziu a motocicleta com os pés. Assim que cruzaram o igarapé, foram surpreendidos. O primeiro tiro de escopeta atravessou a mão direita de Maria e atingiu o lado esquerdo do abdome de José. Na sequência, mais tiros de escopeta e de um revólver 38, que levariam o casal à morte. Um dos assassinos retirou o capacete e a touca que escondia seu rosto. Sua-do, livrou-se da touca no local do crime. O outro puxou a faca, andou até José Cláudio, que dava os últimos suspiros, e cortou um pedaço de sua orelha direita para levar como prova do serviço realizado.
José Cláudio e Maria, ambos de 54 anos, tinham medo. Sabiam que a morte os espreitava. Em conversa telefônica no início de maio, Maria declarou que estava com muito medo, e que “as coisas estavam ainda piores”. Seu apelo é conhecido nacionalmente desde outubro de 2010, quando a revista Vice divulgou trechos de uma entrevista feita por mim. “Eu sozinha eles não me pegam. Mataram a irmã Dorothy (Stang), mas não é o caso. Era uma freira, não tinha marido. Eu tenho um marido de personalidade forte. Que já teve momento de discutir com pistoleiro. Se pegar, pegam os dois”, anteviu.
A militância do casal é fruto do desejo de viver na Amazônia e preservar a floresta. Assentados, tornaram-se voz -ativa contra a concentração de terras, o contrabando de madeira e a produção ilegal de carvão. Acumularam muitos e poderosos inimigos: madeireiras, donos de carvoaria, grileiros, pecuaristas, industriais da siderurgia e até mesmo assentados como eles que se dedicam a extrair madeira de forma ilegal. Nunca se intimidaram e pagaram o preço. Dois dias depois, outro pequeno agricultor, Herivelto Pereira dos Santos, também seria morto. Até agora, a polícia não estabeleceu conexões entre os crimes, mas parece lógico que há aí, no mínimo, uma escalada da violência decorrente do clima tenso. José Cláudio até desconfiava do preço por sua cabeça: 5 mil reais. Há quem fale no dobro, por causa de sua posição de liderança.
As denúncias dos crimes ambientais feitas pelo casal ficaram mais intensas a partir de 2007, depois de serem excluídos da diretoria da Apaep, associação de assentamentos onde viviam. José e Maria acusavam a Apaep de ter se unido a carvoeiros e madeireiros ilegais. Ao mesmo tempo, em consequência do crescimento econômico experimentado pelo País e de novos projetos siderúrgicos na região, Marabá alcançou uma população de 233 mil habitantes. Isso representa demanda por mais casas, mais ruas, mais bairros. As árvores do entorno, principalmente as castanheiras sobreviventes do intenso período da exploração madeireira entre 1985 e 1995, viraram a matéria-prima da construção civil. Segundo documentos em meu poder, até o Incra valeu-se de madeira ilegal. Uma distribuidora e uma construtora, a Santa Bárbara, foram autuadas em agosto de 2010 pelo Ibama por venda e utilização de partes de castanheiras, cuja derrubada é expressamente proibida. O Incra-, que deveria proteger o assentamento e dar subsídio ao extrativismo, contratou a construtora que ergueu casas no projeto de -Assentamento 26 de Março.
Igualmente enfrentavam os pecuaristas e suas ações ilegais para acumular terras. Em 17 de novembro do ano passado, por intermédio de José Cláudio, o assentado Francisco Tadeu Vaz e Silva denunciou à Comissão Pastoral da Terra que Neusa Santis, do cartório de Marabá, teria usado “laranjas” para obter lotes na região e depois revendê-los para um tal José Rodrigues. Este e Genival Olivaria Santos, conhecido como Gilzão, acompanhados por policiais, teriam expulsado Vaz e Silva de seu terreno. O próprio José Cláudio denunciou posteriormente Neusa Santis ao Incra.
O casal encaminhou outras tantas denúncias aos órgãos competentes. Em uma delas, enviada ao Ministério Público, anotou: “O mais angustiante é que está sendo destruído todos os castanhais de dentro do projeto, e até o momento não está sendo feito nem uma ação por parte do Ibama, e o mesmo sabendo de todos os fatos que vem acontecendo no projeto, no desrespeito à extração de Castanheiras e na instalação de Fornos de Carvão e destruição de açaizais, andirobeiras e outras espesses (sic) que estão em extinção”.
Diziam-se também preocupados com a concentração de terras e suas consequên-cias: o desmatamento de grandes áreas e a extração ilegal de madeira. José e Maria chegaram a listar os principais madeireiros da região, todos de uma mesma família: Aguilar Tedesco, o patriarca, Aguimar Tedesco, o filho, Marlu, Marlos Ailton Tedesco, que seria um sobrinho (grau de parentesco não confirmado). O engenheiro florestal responsável pelos planos seria Edimilson Macedo dos Santos, conhecido como Bobo. A acusação- data de 13 de novembro de 2007.
A denúncia ao MP deu início a uma investigação. Instigado pela Procuradoria, o Ibama decidiu agir e todas as madeireiras da cidade passaram a ser vistoriadas. As empresas da família Tedesco foram multadas e embargadas. Mas, à medida que eram lacradas, novas companhias eram abertas no lugar, com outra estrutura jurídica. A Tedesco Madeiras Ltda., de 2007 até hoje, foi multada em 820 mil reais. Uma mudança radical e um baque em suas finanças. Só para se ter uma ideia, nos seis anos anteriores, as autuações das empresas do grupo não haviam somado 10 mil reais. Só a Madeireira Eunápolis, uma das principais da família, que entre 1999 e 2006 foi multada em míseros 4,3 mil reais, acumula autuações em quase 180 mil reais desde 2007.
Na entrevista de outubro de 2010, Maria se mostrava surpresa com a ação do Ibama, já que a denúncia havia sido encaminhada ao MP. No dia seguinte à maior operação realizada pelo instituto ambiental, um pistoleiro teria sido enviado para matar seu marido. Conta ela que um rapaz teria simulado um problema em uma moto e procurado pelo socorro de José Cláudio. A sorte é que ele não estava em casa e o homem foi embora.
Além da vistoria das madeireiras, o Ibama- intensificou, a partir das denúncias do casal, a fiscalização dos caminhões que transportavam carvão ilegal para as siderúrgicas de Marabá. As principais consumidoras seriam a Sidepar e a Cosipar.
Para os assentados que não queriam mais o extrativismo, o carvão passou a ser importante fonte de renda, e uma moeda política nas eleições das assembleias da associação. O carvão ilegal custaria cerca de 30 reais o metro, o que poderia render até 2 mil reais por mês. Some-se o valor pago pelas toras e os assentados teriam um ganho rápido. “Se eu vendo uma árvore, ela me dá dinheiro uma vez. Se protejo, ela me dá dinheiro todo ano”, me disse José Cláudio em outubro, ao criticar a falta de perspectivas dos colegas de assentamento.
No último ano, as ações do Ibama eram capitaneadas por  Roberto Scarpari, conhecido pelo rigor no combate aos crimes ambientais. O casal se encontrou várias vezes com Scarpari, a quem sempre elogiou. O problema é que as ações de -repressão do Ibama não foram acompanhadas de outras investigações para estabelecer a ordem na região. Os denunciantes, em consequência, ficaram expostos.
O Ibama repassava as denúncias ao MP, que as encaminhava à Polícia Federal. Mas os federais, sob a justificativa (errônea) de que os crimes denunciados não eram da esfera federal, nunca as investigaram, nem as ameaças contra o casal. Foi outro órgão público, o Incra, que apontou o “equívoco” da PF: “Trata-se de área pública incorporada e sob o domínio da União”. Logo, de competência federal. Até 18 de abril de 2011, data da última manifestação do MP, não havia sido instaurado nenhum inquérito policial sobre os fatos, embora as denúncias de José e Maria, e as ameaças contra eles, já há muito tivessem se tornado públicas.
O casal não confiava na polícia de Nova Ipixuna. “Teve madeireiro que ameaçou agricultor. Chegou com a polícia, em um desses núcleos, ele trouxe a polícia disfarçada de fiscal, entrou no lote de um agricultor e tirou toda a madeira”, me contou Maria. A tática de José para sobreviver era alterar os caminhos por onde passava, sem nunca repetir as rotas. Só uma traição, portanto, poderia conduzir os matadores até eles.
O enterro do casal provocou comoção. Uma multidão despediu-se de José e Maria cantando o Hino Nacional. No fim, uma das assentadas repetia aos berros a frase: “Verás que um filho teu não foge à luta”. Deputados, representantes dos movimentos sociais, da PF e do Ibama se reuniram após o evento, enquanto helicópteros sobrevoavam a área. Mas nem todo esse aparato intimidou a pistolagem. No mesmo dia, a oito quilômetros das lápides do casal e três horas depois de os túmulos serem cobertos por terra, Erivelton foi morto. Encontrado no sábado pela manhã, ele havia levado um tiro na cabeça e outro no peito, método notório de execução. Como não se apontou relação entre as mortes, o assassinato de Erivelton será investigado pela polícia local.
No sábado 28,  familiares de José Cláudio e Maria tentaram levantar o nome de suspeitos do crime. Decidiram ainda pleitear que a casa onde vivia o casal seja transformada em uma Reserva Particular- do Patrimônio Natural (RPPN), forma de homenagem. Os parentes acreditam que a tentativa de levantar dinheiro para salvar a irmã possa expor o casal, sempre tão cuidadoso. Falam em traição vinda do próprio assentamento: alguém teria avisado os mandantes (seria não um, mas um consórcio) da viagem a Marabá e do possível trajeto do casal. “Alguém daqui de dentro traiu eles e informou que eles estavam indo para a cidade. Avisaram os pistoleiros”, afirma a irmã mais nova de José Cláudio, Claudenice Santos.
Maria, quando viva, queria ter feito mais uma denúncia, desta feita sobre a colônia de pescadores do lago de Tucuruí, no limite do assentamento. “Há mais de mil inscritos, mas eles não chegam a cem. Tão recebendo dinheiro de aposentadoria sem ser aposentados.” Queria fazer a denúncia bem organizada, ela disse. Seu senso de justiça não tolerava o roubo ao dinheiro público. Foi silenciada antes, da mesma forma banal com que vidas são ceifadas no meio da floresta. Na lei da selva, o pistoleiro e o mandante sempre vencem. Será diferente agora?


Felipe Milanez – Jornalista – 03.06.2011
IN “Carta Capital” – http://www.cartacapital.com.br/destaques_carta_capital/os-ultimos-momentos