sexta-feira, 10 de junho de 2011

A fragmentação do processo constituinte


O que é preciso fazer é elaborar uma constituição que acelere a democratização da sociedade civil e sirva de instrumento para a organização de um Estado burguês democrático. Isso é muito pouco para o meu gosto e as minhas esperanças. Não obstante, é tudo para que os oprimidos saiam do lodo e da miséria, isto é, ergam-se por seus próprios pés e para que os trabalhadores do campo e da cidade possam manejar a luta de classes com a mesma desenvoltura e eficácia dos patrões, nacionais ou estrangeiros.


Florestan Fernandes
A ordenação dos trabalhos de elaboração da Constituição obedece a um plano lógico, aparentemente dotado de uma racionalidade inatacável. Oito comissões constitucionais, subdivididas cada uma em três subcomissões, permitiram distribuir os vários assuntos ou temas por grupos de deputados e senadores constituintes mais afetos às questões pertinentes e à sua complexidade. E uma comissão final, de recomposição do todo, a Comissão de Sistematização. Essa arquitetura, fundada em um divisão do trabalho, permitiria desdobrar a discussão de cada tema e, posteriormente, passar o pente-fino na obrar realizada de cada tema e, posteriormente, passar o pente-fino na obra realizada. E estabelecer a harmonia através de uma síntese madura e objetiva. Todavia a Constituição é a realidade política mais rica de uma nação. Ela não contém, apenas “a vontade do Povo”, tal como se expressa através da ótica de seus representantes. Ela desnuda o poder e o reveste como o manto de fantasias e cruezas das ideologias daqueles que “representam” a vontade do Povo, origem da soberania do Parlamento e sua primeira e principal vítima.
A forma de elaborar a Constituição traduz, portanto, essa inquietante verdade. Antes de se tornar um corpo vivo, a Constituição é retalhada, composta aos pedaços, como se fosse um artefato – um paletó, por exemplo. Em outras palavras, o poder é pulverizado, primeiro, par tornar-se depois um corpo vivo. O corpo não vira pó: este gera o corpo e a vida, invertendo a imagem bíblica. Poder-se-ia dizer que as partes já nascem vivas e que a síntese conteria o elemento vital supremo, nascido da conjunção das partes. Não obstante, essa concepção da produção por peças contém a lógica do poder e impõe-se indagar ao que e a quem serve essa lógica de poder, que antes pulveriza e depois unifica – e o que pressupõe uma unificação que brota da produção constitucional por peças.
O nexo conservador é evidente, e ele não se explica somente pelo maior partido da ordem, como sustentáculo do Governo – o PMDB. Ele se explica por uma vontade de neutralizar a Constituição, de retirar dela uma ameaça frontal à transição lenta, gradual e segura. Divididas e subdivididas, as vontades radicais, divergentes e revolucionárias podem pender para o mudancionismo, porém estarão sempre nas garras da “modernização conservadora” e do “conservadorismo ilustrado” à La Oliveira Viana. Os de cima não precisam perder o sono. Os constituintes estarão sempre diante de tarefas discretas, dispersas e diluídas, da parte anterior e superior ao todo. Por maior que serja o seu potencial político divergente, esses ficarão segregados em um recanto isolado e condenados a se afogarem em um copo de água. Nas divisões e subdivisões, haverá sempre a esmagá-los uma concentração conservadora (a maioria dos centro-direitas, direitas e até de algumas centro-esquerdas afoitamente identificados com a transição lenta, gradual e segura), que multiplica suas forças e influências ao dividir-se e subdividir-se. O produto final, por sua vez, passará por um crivo no qual a concentração conservadora é ultraprivilegiada, podendo operar o paciente às avessas, juntando o tronco, as pernas, os braços etc. e compondo uma constituição que dará conta dos interesses e valores dos de cima, mas nunca do Brasil como um todo, como o país real de nossos dias. Se ocorrer algum descuido, ainda restará o recurso do Plenário com sua maioria providencial e da nivelação dentro dos parâmetros da defesa da ordem, apta a funcionar como um trator gigantesco e funesto.
Estas reflexões parecerão sombrias a muitos leitores. Mas ouvi pacientemente centenas de discursos e acompanhei as escaramuças dos grandes e pequenos partidos da ordem. Enquanto persistir o ânimo de manter e reproduzir os compromissos sagrados, assumidos por Tancredo Neves, e de “evitar o pior” através da “Nova República”, o processo constituinte estará preso a essa arquitetura, que só poderá parir um Frankenstein constitucional, um equivalente político da ordem ilegal vigente. Pois o pior está aí, na chamada “Nova República”, em seu descalabro e no que ela é como um confortável biombo para a ação despótica dos donos do poder, civis e fardados. E, em segundo lugar, nessa arquitetura artificiosa, que dirige a produção da Constituição pelos caminhos tortuosos da defesa da ordem e dos costumes... por gente que não se lixa diante da iniqüidade da ordem e põe a condição de constituinte a serviço da mudança escala zero.
Ora, a Constituição terá de ser, queiram ou não os de cima, uma ruptura – uma ruptura dentro e através da lei, mas uma ruptura de natureza revolucionária. Os acordos de Tancredo Neves ficaram para trás. A “Nova República” nasceu inviável e podre. O que é preciso fazer é elaborar uma constituição que acelere a democratização da sociedade civil e sirva de instrumento para a organização de um Estado burguês democrático. Isso é muito pouco para o meu gosto e as minhas esperanças. Não obstante, é tudo para que os oprimidos saiam do lodo e da miséria, isto é, ergam-se por seus próprios pés e para que os trabalhadores do campo e da cidade possam manejar a luta de classes com a mesma desenvoltura e eficácia dos patrões, nacionais ou estrangeiros.
As exigências históricas são de tal monta que devemos proclamar a verdade sem timidez e sem o temor das incompreensões. Como enfrentar essa grave ameaça que poderá castrar o processo constituinte atual, condenar-nos a perder uma oportunidade histórica única? Gostemos ou não, temos de admitir que o PMDB detém, no momento, a chave das soluções positivas. Se o PMDB não romper com o seu imobilismo e não se dispuser a soterrar suas vantagens de principal partido da ordem, tudo continuará como dantes no quartel de Abrantes... O PMDB com duas faces, uma de partido da ordem e do Governo, outra de partido progressista e de oposição, será sempre um arma brutal nas mãos dos donos do poder: o meio que oculta e legitima a audácia e os ardis conservadores na esfera do poder e da elaboração constitucional.
Em outro plano encontra-se a mobilização popular, a luta direta das massas populares para que o Brasil saia do estado de anomia, de seus dilemas históricos. A iniciativa popular abre novos caminhos para intervenções mais construtivas dos oprimidos no seio da Assembléia Nacional Constituinte e, em particular, para as entidades orgânicas que travaram grandes batalhas contra a ditadura, mas não souberam manter o “punch” no momento da construção do Estado de direito que defendiam. Dispomos de pouco tempo e de meios pobres para retomar o terreno perdido; e se as massas estivessem organizadas, elas assaltariam a Bastilha, sem gastar suas energias com as ilusões constitucionais. Porém, as coisas são como são. Se não se pode fazer dançar os de cima, seria de bom-tom propiciar-lhes alternativas que não chegam à sua imaginação ou são ignoradas por seu egoísmo de classe. Daí a importância de aproveitar a iniciativa popular no que e como for possível. Nas circunstâncias, os pequenos avanços tornam-se decisivos, e evitar certas derrotas equivale a grandes vitórias. O resto virá mais tarde, com a auto-emancipação coletiva dos oprimidos e a construção de uma nova sociedade, que uma constituição deformada não poderá evitar – antes apressará...


Florestan Fernandes – Sociólogo, político e professor – 12.04.1987
IN “Folha de São Paulo” – “A Constituição Inacabada” – São Paulo: Estação Liberdade, 1989.