sábado, 30 de julho de 2011

Vitória do lulismo


Contra uma candidatura que julgam desfavorável aos "mercados" e disposta a questionar um modelo econômico marcado por crescimento com concentração de renda e desigualdade, a velha tríade empresários/igreja/setores hegemônicos da mídia se dispôs a sustentar qualquer um.

Vladimir Safatle
A eleição peruana que deu a vitória a Ollanta Humala é, em vários sentidos, paradigmática. Primeiro porque demonstra como a direita latino-americana é uma espécie de movimento que sempre volta ao mesmo lugar.
Contra uma candidatura que julgam desfavorável aos "mercados" e disposta a questionar um modelo econômico marcado por crescimento com concentração de renda e desigualdade, a velha tríade empresários/igreja/setores hegemônicos da mídia se dispôs a sustentar qualquer um.
No caso peruano, "qualquer um" era Keiko Fujimori, a representante orgânica de uma das épocas mais sombrias da história recente da América Latina. Filha de um ex-presidente preso por violações brutais contra os direitos humanos, golpe de estado e ações como a esterilização forçada de cerca de 250 mil mulheres indígenas pobres.
Essa mesma tríade nunca teve problemas em apoiar ditadores, caudilhos, desde que sentisse que as peças do poder estavam mudando de lugar. Isto a ponto de um dos raros verdadeiros liberais do continente, o escritor Mario Vargas Llosa, escandalizar-se com a ausência de cerimônia no apoio de outros ditos liberais a um projeto político que significava o coroamento da mistura entre autoritarismo político e ações econômicas liberais impostas com a força de choques elétricos. Mistura tipicamente latino-americana, já louvada por Milton Friedman em carta de elogio a Pinochet.
Por outro lado, a vitória de Humala demonstra a força de exportação do lulismo e os limites do chavismo como referência para a esquerda latino-americana. Enquanto vestiu o figurino chavista, Humala perdeu.
Quando usou a receituário do lulismo, ganhou.
De fato, Lula consolidou a imagem de uma certa "esquerda bipolar" que visa usar o Estado para dar conta dos interesses do setor financeiro e do empresariado, enquanto cria amplos sistemas de assistência social capazes de minorar a pobreza.
Uma esquerda que se esmera em jogar em dois tabuleiros na esperança de diminuir os conflitos políticos, ao contrário do que ocorreu na Venezuela, no Equador e na Bolívia. Foi esta a via que escolheram Mauricio Funes (El Salvador), Fernando Lugo (Paraguai) e José Mujica (Uruguai): figuras de um tipo de Internacional Lulista em formação.
Tal lógica bipolar tem limites, já que a modificação dos processos estruturais de produção da desigualdade econômica (como baixos impostos para ricos, ausência de mecanismo de limitação do consumo conspícuo e de investimento estatal em saúde e educação) são evitados por coalizões governamentais heterodoxas. Mas parece que ela mudou completamente o cenário político latino-americano.


Vladimir Safatle – Filósofo e professor da FFLCH/USP – 07.06.2011
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0706201106.htm

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Tragédia grega



A crise leva ao limite a defesa da riqueza já existente. Nenhuma perversidade. É a lógica do dinheiro e do crédito.


Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo
Entre cinco analistas experientes e de boa reputação, quatro não acreditam na solução aviada nos gabinetes da União Europeia com o propósito de "salvar a Grécia". A crise fiscal e de balanço de pagamentos que ora assola a periferia europeia é filha legítima (com DNA comprovado) do despropósito financeiro global.
Espanha, Portugal, Irlanda e Grécia se esbaldaram na abundância de crédito destinado ao mercado imobiliário e encaminhado aos desvarios do consumo. Essa pletora de financiamentos a juros alemães e prazos idem foi generosamente concedida por bancos franceses, alemães, ingleses e italianos. Na euforia do ciclo de crédito, os austeros germânicos lavaram a égua: acumularam pingues saldos comerciais contra os "gastadores e preguiçosos" (sic) do sul da Europa.
A crise impôs aos governos manobras desesperadas de transformação de passivos privados em débitos públicos. Os bancos centrais - uns mais, outros menos - cuidaram de absorver ativos privados em seus balanços, enquanto os Tesouros se incumbiam da emissão generosa de títulos públicos para sustentar a carteira dos bancos privados. Não por acaso, os lucros dos bancos estão parrudos, turbinados urbi et orbi pelas operações de tesouraria. É quase impossível resistir à tentação de praguejar contra os fautores de mais um episódio escandaloso de socialização de prejuízos e privatização dos lucros.
Por essas e outras, Martin Wolf, o celebrado articulista do "Financial Times", está preocupado com a evolução do endividamento público e dos déficits fiscais nos países submetidos às políticas de austeridade.
Ele dizia, no alvorecer da crise financeira: "Os déficits fiscais são imagens especulares dos superávits do setor privado. Além disso, a relação de causalidade é do segundo para o primeiro. As condições necessárias para um retorno à saúde fiscal e econômica são uma recuperação do consumo (e do investimento privados), um aumento enorme das exportações líquidas, ou, idealmente, ambas as coisas. Não se trata simplesmente de reduzir o déficit fiscal; trata-se de reduzir o déficit fiscal e sustentar o crescimento."
Wolf proclama em seu artigo publicado em 29 de junho no Valor: "Só austeridade traz o risco de desastre". O articulista do "Financial Times" reconhece que a normalização da política fiscal e monetária é necessária. "Mas é impossível eliminar déficits fiscais estruturais até que se complete o ajuste do setor privado ou até que vejamos grandes mudanças nos desequilíbrios externos."
Em uma crise como a atual, a avaliação da riqueza (as expectativas de longo prazo) e a incerteza radical (não apenas o risco) bloqueiam os novos fluxos de gasto. Os empresários e os consumidores privados se acautelam em suas decisões de produção, consumo e investimento diante da incerteza em que estão mergulhados. Esse é o estado que contrasta com o de "expectativas convencionais": nele os agentes se comportam como se a incerteza não existisse e como se o presente constituísse a melhor avaliação do futuro.
Keynes procurou demonstrar que, em uma situação de ruptura das expectativas, torna-se aguda a contradição entre o enriquecimento privado e a criação da nova riqueza para a sociedade (crescimento das inversões em capital real). A crise leva ao limite a defesa da riqueza já existente. Os administradores da riqueza líquida e controladores do crédito buscam refúgio em ativos mais confiáveis, deixando à mingua os que, nos últimos meses, lhes concederam taxas de juros de lamber os beiços. Nenhuma perversidade, apenas a lógica do dinheiro e do crédito.
Desgraçadamente para os adeptos do keynesianismo hidráulico, as políticas de geração de déficit e de criação de nova dívida pública naufragam nas profundezas das expectativas deprimidas, insensíveis aos estímulos fiscais e monetários.
O multiplicador de renda e emprego não funciona. Particularmente nas economias localizadas no sul da Europa, o desequilíbrio fiscal torna-se crônico e crescente. O aumento inevitável do débito público na composição da carteira dos bancos e demais instituições financeiras agrava a desconfiança e aproxima os governos da insolvência. Diante de antecipações pessimistas do setor privado, o déficit do governo se agiganta: a queda da produção, do emprego, da renda e, finalmente, da receita fiscal. Sendo assim, a crise não é superada, mas se transfigura de crise da finança privada em crise financeira do Estado.
Nos próximos meses, a crise grega vai caminhar no ritmo ditado pelo ceticismo que, diga-se, tomou conta dos bastidores onde circulam as reais avaliações dos controladores do crédito. São sombrias as perspectivas que se desenham para o povo da Hélade. Há sinais de que os senhores da finança - salvos pela vigorosa intervenção dos governos - já consideram insustentáveis a trajetória do déficit fiscal e da dívida dos gregos, a despeito das promessas de cortes de gastos, privatizações e outras bagatelas típicas da miopia contemporânea.
A desconfiança privada atinge a fundo a soberania estatal, comprometendo a legitimidade do Estado como gestor da moeda e da dívida pública. A visão dolorosa do desastre social e econômico produzido pela sabedoria dos insensatos pode levar à tentação de cair fora do euro, desvalorizar o dracma e consequentemente a dívida, gesto de desespero tão enlouquecido quanto a austeridade que pretendem lhe impor. Nós os, latino-americanos conhecemos bem esse ato da tragédia.


Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo – Ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp – 05.07.2011
IN “Valor Econômico” – http://www.valoronline.com.br/impresso/opiniao/98/450823/tragedia-grega



segunda-feira, 25 de julho de 2011

Dois pesos, duas medidas, dois mundos cindidos


A grande maioria dos brasileiros permanece excLuída da plena cidadania e a discriminação serve para manter as barreiras sociais que garantem a partilha desigual de direitos e deveres.


Heloísa Fernandes1
Certa vez, meu pai, Florestan Fernandes, reconheceu que a pesquisa mais importante que fez foi aquela que ele realizou com Roger Bastide, entre 1947 e 1951, sobre as relações raciais no Brasil. Penso que a pesquisa propiciou um doloroso reencontro com sua infância de menino pobre, com o “poviléu sem eira nem beira”2, com a “gentinha” largada ao léu e ao desamparo. Mas foi também a pesquisa na qual o sociólogo enfrentou o desafio de entender uma sociedade em que a abolição da escravidão representou mais uma espoliação que os negros sofreram e não a sua conquista da cidadania3. Por isso, a escravidão persistirá como padrão de relação entre as classes sociais, mantendo-se no modo de exploração brutal da força de trabalho e na forma autocrática e violenta como são tratados os trabalhadores.
Da pesquisa, Florestan retirou uma interpretação que nunca mais abandonou: o padrão escravista subsistiu e converteu a “dominação de classe em equivalente da dominação estamental e de casta”.4 Por isso mesmo, não estamos sob o império da igualdade formal de todos perante a lei; somos uma sociedade cindida em dois mundos cujas relações são marcadas pela discriminação, pela violência e pelo preconceito.
Um dos efeitos cruéis da discriminação é a invisibilidade. Os excluídos da plena cidadania são invisíveis nos espaços reservados aos cidadãos do mundo de cima, ou só estão presentes quando e porque desempenham funções subalternas.
A lógica da exclusão é violenta. Em 2007, um movimento político de oposição ao governo Lula ganhou seu momento de glória quando um dos militantes declarou que “se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado”. Só uma mentalidade excludente poderia proferir uma tal sentença: Piauí (o Estado da federação remetendo a nordestinos5, negros, índios, camponeses, a todos esses estrangeiros no seu próprio país) pode desaparecer (morrer) que ninguém (os que contam, os mais iguais, os de cima) vai dar a mínima, pois não haveria perda nem afronta moral!6
Uma operação comum à mentalidade excludente deriva da lógica da inversão graças à qual se atribui à própria vítima a responsabilidade por seu infortúnio. Na pesquisa, Florestan entrevistou uma mulher branca para a qual os negros são culpados do preconceito que sofrem. “Eles tratam a gente como se ainda fossem escravos. Em tudo, eles agem servilmente diante do branco”.7 Subentende-se que é o que se espera daqueles que sabem aceitar o seu lugar subalterno. Aliás, essa é a diferença entre negro (reservado aos rebeldes) e preto (usado para os submissos).8
Para Florestan, a pesquisa revelou que não somos uma sociedade democrática porque continuamos cindidos em “duas nações superpostas”.9 A grande maioria dos brasileiros permanece excluída da plena cidadania e a discriminação serve para manter as barreiras sociais que garantem a partilha desigual de direitos e deveres.
É verdade que os de baixo são até mesmo pranteados quando são apresentados como retirantes, desgraçados e mortos de fome. Mas abaixo da hipocrisia da igualdade, permanece um recalcado condenado ao retorno. Onde quer e sempre que a “gentinha” invisível se tornar visível, ousando afirmar sua própria identidade, reconhecendo seus iguais como líderes, explicitando suas preferências e opções, em desacordo com aquelas que dominam no mundo de cima, assistimos às explosões violentas de preconceito. Quando, e sempre que, os de baixo exigem respeito e dignidade, são recebidos como se tivessem declarado guerra! Nesses momentos, muitos não têm pejo de afirmar que os de baixo não são mesmo gente.10
Nas últimas eleições para a presidência, uma jovem paulistana, estudante de Direito, não teve dúvida de aclamar publicamente: “Nordestino não é gente! Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado”! Seu apelo desumano encontrou milhares de simpatizantes e inúmeros defensores!

Notas
1 Esse artigo é dedicado a Maria Rita Kehl, que ousou denunciar os dois pesos e as duas medidas, e foi punida por delito de opinião.
2 FERNANDES, Florestan, Que tipo de república? São Paulo: Globo, 2007, p.296.
3 FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007, p.296.
4 FERNANDES, F. Circuito Fechado. São Paulo: Hucitec, 1976, p.77.
5 Neste contexto, o termo “nordestino” discrimina o pobre. Alguns nordestinos do mundo de cima fazem depoimentos sobre a inexistência de um preconceito que evidentemente não sofreram; a seu modo, são os novos filhos do “narcisismo branco”. BASTIDE, R. e FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008, p. 202.
6 Florestan constatou que, especialmente nas famílias tradicionais, achava-se que o “negro não é gente” e que a sua inferioridade era moral, mental e social. Mesmo após a abolição, a polícia recusava-se a prender certos assassinos com a justificativa de “não ser crime matar-se os pretos” ( BASTIDE, R. e FERNANDES, F., ob.cit.,p 140 e 147)
7 Biblioteca Florestan Fernandes, Universidade Federal de São Carlos, ficha de 11 de setembro de 1951.
8 A escola (seja pelas punições, seja pelas brincadeiras humilhantes) é a instituição que inicia o processo procurando “dar ao preto um espírito de submissão, ensinar-lhe bem cedo a se conformar, a aceitar sua situação inferior”; não por acaso, muitas crianças negras fogem da escola e não querem mais estudar. BASTIDE, R. e FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo, ob.cit. p.202. Ainda neste ano de 2010, após ouvir na sua escola o depoimento de Eva Schloss sobre o holocausto, Jonatas, um menino da sexta série, disse “para gente como eu, não é preciso colocar uma estrela amarela na roupa, porque a cor da pele já me identifica. ‘Tição, carniça, macaco, negrinho da macumba’, eu já ouvi isto um milhão de vezes”. CAPRIGLIONE, L. Holocausto visto pelo gueto, Folha de S.Paulo, 19/11/2010.
9 FERNANDES, F. A ditadura em questão. São Paulo: TAQueiroz, 1982, p. 121.
10 O MST é uma das grandes vítimas da violência desta concepção de mundo; em 2005, o Manifesto de São Gabriel incitava contra os Sem Terra afirmando que a cidade não podia aceitar ser “maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana (...). Estes ratos precisam ser exterminados”.

Heloísa Fernandes - Professora associada do Departamento de Sociologia da USP e professora voluntária da Escola Nacional Florestan Fernandes – janeiro/março de 2011
IN Jornal “Juízes pela Democracia” – Ano 14, nº 52

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Carta aberta à Palestina


O controle repugnante e draconiano que Israel exerce sobre os palestinos exige que as pessoas, com sentido de justiça, os apoiem na sua resistência civil.


 
Roger Waters
Em 1980, uma canção que escrevi, “Another Brick in the Wall Part 2”, foi proibida pelo governo da África do Sul porque estava a ser usada por crianças negras sul-africanas para reivindicar o seu direito a uma educação igual. Esse governo de apartheid impôs um bloqueio cultural, por assim dizer, sobre algumas canções, incluindo a minha.
Vinte e cinco anos mais tarde, em 2005, crianças palestinianas que participavam num festival na Cisjordânia usaram a canção para protestar contra o muro do apartheid israelita. Elas cantavam: “Não precisamos da ocupação! Não precisamos do muro racista!” Nessa altura, eu não tinha ainda visto com os meus olhos aquilo sobre o que elas estavam a cantar.
Um ano mais tarde, em 2006, fui contratado para actuar em Telavive.
Palestinos do movimento de boicote académico e cultural a Israel exortaram-me a reconsiderar. Eu já me tinha manifestado contra o muro, mas não tinha a certeza de que um boicote cultural fosse a via certa. Os defensores palestinos de um boicote pediram-me que visitasse o território palestiniano ocupado para ver o muro com os meus olhos antes de tomar uma decisão. Eu concordei.
Sob a protecção das Nações Unidas, visitei Jerusalém e Belém. Nada podia ter-me preparado para aquilo que vi nesse dia. O muro é um edifício revoltante. Ele é policiado por jovens soldados israelitas que me trataram, observador casual de um outro mundo, com uma agressão cheia de desprezo. Se foi assim comigo, um estrangeiro, imaginem o que deve ser com os palestinos, com os subproletários, com os portadores de autorizações. Soube então que a minha consciência não me permitiria afastar-me desse muro, do destino dos palestinos que conheci, pessoas cujas vidas são esmagadas diariamente de mil e uma maneiras pela ocupação de Israel. Em solidariedade, e de alguma forma por impotência, escrevi no muro, naquele dia: “Não precisamos do controlo das ideias”.

Realizando nesse momento que a minha presença num palco de Telavive iria legitimar involuntariamente a opressão que eu estava a testemunhar, cancelei o meu concerto no estádio de futebol de Telavive e mudei-o para Neve Shalom, uma comunidade agrícola dedicada a criar pintainhos e também, admiravelmente, à cooperação entre pessoas de crenças diferentes, onde muçulmanos, cristãos e judeus vivem e trabalham lado a lado em harmonia.
Contra todas as expectativas, ele tornou-se no maior evento musical da curta história de Israel. 60.000 fãs lutaram contra engarrafamentos de trânsito para assistir. Foi extraordinariamente comovente para mim e para a minha banda e, no fim do concerto, fui levado a exortar os jovens que ali estavam agrupados a exigirem ao seu governo que tentasse chegar à paz com os seus vizinhos e que respeitasse os direitos civis dos palestinianos que vivem em Israel.
Infelizmente, nos anos que se seguiram, o governo israelita não fez nenhuma tentativa para implementar legislação que garanta aos árabes israelitas direitos civis iguais aos que têm os judeus israelitas, e o muro cresceu, inexoravelmente, anexando cada vez mais a faixa ocidental.
Aprendi nesse dia de 2006 em Belém alguma coisa do que significa viver sob ocupação, encarcerado por trás de um muro. Significa que um agricultor palestino tem de ver oliveiras centenárias ser arrancadas. Significa que um estudante palestino não pode ir para a escola porque o checkpoint está fechado. Significa que uma mulher pode dar à luz num carro, porque o soldado não a deixará passar até ao hospital que está a dez minutos de estrada. Significa que um artista palestiniano não pode viajar ao estrangeiro para exibir o seu trabalho ou para mostrar um filme num festival internacional.
Para a população de Gaza, fechada numa prisão virtual por trás do muro do bloqueio ilegal de Israel, significa outra série de injustiças. Significa que as crianças vão para a cama com fome, muitas delas malnutridas cronicamente. Significa que pais e mães, impedidos de trabalhar numa economia dizimada, não têm meios de sustentar as suas famílias. Significa que estudantes universitários com bolsas para estudar no estrangeiro têm de ver uma oportunidade escapar porque não são autorizados a viajar.
Na minha opinião, o controle repugnante e draconiano que Israel exerce sobre os palestinos de Gaza cercados e os palestinos da Cisjordânia ocupada (incluindo Jerusalém oriental), assim como a sua negação dos direitos dos refugiados de regressar às suas casas em Israel, exige que as pessoas com sentido de justiça em todo o mundo apoiem os palestinos na sua resistência civil, não violenta.
Onde os governos se recusam a atuar, as pessoas devem fazê-lo, com os meios pacíficos que tiverem à sua disposição. Para alguns, isto significou juntar-se à Marcha da Liberdade de Gaza; para outros, isto significou juntar-se à flotilha humanitária que tentou levar até Gaza a muito necessitada ajuda humanitária.
Para mim, isso significa declarar a minha intenção de me manter solidário, não só com o povo da Palestina, mas também com os muitos milhares de israelitas que discordam das políticas racistas e coloniais dos seus governos, juntando-me à campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel, até que este satisfaça três direitos humanos básicos exigidos na lei internacional.

1. Pondo fim à ocupação e à colonização de todas as terras árabes [ocupadas desde 1967] e desmantelando o muro;
2. Reconhecendo os direitos fundamentais dos cidadãos árabo-palestinianos de Israel em plena igualdade; e
3. Respeitando, protegendo e promovendo os direitos dos refugiados palestinianos de regressar às suas casas e propriedades como estipulado na resolução 194 da ONU.

A minha convicção nasceu da ideia de que todas as pessoas merecem direitos humanos básicos. A minha posição não é antisemita. Isto não é um ataque ao povo de Israel. Isto é, no entanto, um apelo aos meus colegas da indústria da música e também a artistas de outras áreas para que se juntem ao boicote cultural.

Os artistas tiveram razão de recusar-se a atuar na estação de Sun City na África do Sul até que o apartheid caísse e que brancos e negros gozassem dos mesmos direitos. E nós temos razão de recusar atuar em Israel até que venha o dia – e esse dia virá seguramente – em que o muro da ocupação caia e os palestinianos vivam ao lado dos israelitas em paz, liberdade, justiça e dignidade, que todos eles merecem.

Roger Waters – Fundador da banda “Pink Floyd”, compositor e cantor – 17.03.2011
IN “Brasil de Fato” –
http://www.brasildefato.com.br/node/6555

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Desigualdade cai entre Nordeste e SP


Para especialistas, o aumento do mínimo e o Bolsa Família ajudam a explicar a redução das disparidades na última década

De 2000 a 2010, renda média subiu 3% em cidades paulistas e 46% nas maranhenses, mas discrepâncias persistem


Antônio Gois e Pedro Soares do RJ e Simon Ducroquet de SP

Ainda que disparidades regionais continuem gritantes, o Brasil ficou menos desigual na década passada. A divulgação dos dados do Censo Demográfico do IBGE esmiúça como o movimento afetou as cidades.
A comparação da renda média domiciliar per capita em 2000 e 2010 mostra, por exemplo, que municípios do Nordeste tiveram os maiores ganhos na renda por pessoa, enquanto cidades paulistas lideram a lista das que menos avançaram na década.
Considerando apenas os municípios com mais de 100 mil habitantes -os muito pequenos são mais sujeitos a variações-, entre os 50 que mais avançaram, metade são nordestinos e um paulista (Franco da Rocha).
Já na lista dos 50 que menos avançaram, 36 são de São Paulo. Corrigindo os valores de 2000 pela inflação acumulada em dez anos pelo INPC (indicador do IBGE), 12 tiveram até mesmo pequena queda no rendimento médio. Nove entre eles são paulistas.
É natural que municípios mais pobres tenham margem maior para avançar mais. No entanto, isso nem sempre ocorreu num país que se acostumou com a desigualdade. Nos anos 80, por exemplo, São Paulo viu a renda média de seus domicílios subir 17%, enquanto o Maranhão avançou 7%.
Na década passada, os domicílios paulistas registraram o menor crescimento entre todas as unidades da federação (apenas 3%), enquanto nos maranhenses a variação foi de 46%.
Para João Saboia, professor do Instituto de Economia da UFRJ, a "melhora substancial na distribuição regional dos rendimentos" ocorreu graças especialmente ao desenvolvimento de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, e ao aumento do salário mínimo, que variou 70% na década, descontada a inflação.
Pedro Herculano de Souza, do Ipea, explica que o Bolsa Família, apesar do baixo valor da transferência (varia de R$ 32 a R$ 242), tem impacto muito grande em cidades menores e nas quais a renda familiar é muito baixa.
Ele lembra que a Previdência Rural, cujo benefício é vinculado ao mínimo, incide mais nessas áreas.
Segundo Claudio Dedecca, da Unicamp, o aumento do mínimo repercute mais no mercado de trabalho das cidades mais pobres, pois um contingente maior tem rendimentos vinculados a ele.
"A década foi marcada por ampliação da política social e crescimento de qualidade, graças à maior dispersão dos investimentos sobre o território nacional, beneficiando áreas mais pobres", resume Lena Lavinas, da UFRJ.
Quando se analisa o crescimento em cada município, Sonia Rocha, pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, lembra que é preciso considerar, no caso de regiões metropolitanas ou aglomerados urbanos, que a renda pode ser alta em função do dinamismo de cidades vizinhas. Mas esse dinamismo, segundo ela, também pode ter efeito colateral. Ao atrair mais população, reduz a renda média da cidade.

Antônio Gois e Pedro Soares do RJ e Simon Ducroquet de SP – 19.06.2011
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/po1906201112.htm

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Europa se distancia de paz social e econômica


Socorros não garantirão emprego ou estabilidade na região.

Assis Moreira
A reação popular aos planos de austeridade fiscal e econômica vai conturbar cada vez mais a Europa. As turbulências políticas se propagam por vários países e aumentam as dúvidas sobre a implementação de reformas.
Existe uma fadiga com sucessivos planos de ajuste e a popularidade de governos está em queda livre. Pela Europa, cresce a cólera contra o que os sindicatos chamam de tratamento privilegiado para o setor financeiro, socorrido pelo dinheiro público - enquanto que para os assalariados sobraria a parte dolorosa do ajuste.
Um recente levantamento realizado pela Confederação Europeia de Sindicatos (CES), em Bruxelas, aponta os funcionários públicos como os primeiros e mais duramente atingidos por medidas que terminam por ampliar as dificuldades, ao invés de estimular a expansão econômica. Vários países europeus reduziram os salários dos funcionários, indo de 2,5% na Alemanha a 5% na Espanha, 10% em Portugal (para quem ganha acima de € 1.500), 13% na Irlanda, 2% na Grécia, 25% na Romênia e até 50% na Letônia.
Os salários nominais foram congelados por um a três anos na França, Itália, Portugal, Espanha, Bulgária, Polônia, Romênia e Eslovênia. Com a inflação em alta, a medida resulta em corte real implícito nos pagamentos.
Os empregos no setor público também estão sendo cortados: o governo conservador do Reino Unido anunciou planos de reduzir até 490 mil empregos ou quase 10% da força de trabalho total do setor público. Polônia e Bulgária já cortaram 10%, Romênia anunciou 250 mil cortes, a França congelou contratações. Na Grécia, apenas um em cinco que se aposentam será substituído.
"Os planos de austeridade [na Europa] estão sufocando nossas economias e mantendo o desemprego persistentemente alto", afirma Bernadette Ségol, secretária-geral da CES, que comandará amanhã uma "euro-manifestação" em Luxemburgo.
Após perder cinco milhões de empregos durante a recessão, a Europa poderá apagar mais 1,5 milhão a dois milhões. Isso porque os planos de socorro dificilmente ajudarão a compensar com novos empregos por um bom tempo. E os efeitos imediatos sobre a demanda e a atividade econômica serão grandes.
Como sempre ocorre em tempos de crise econômica, os sindicatos estão com posição enfraquecida. Na Itália, a maioria de seus membros são aposentados. Eles não conseguiram evitar o enfraquecimento dos sistemas de barganha coletiva na Grécia, Espanha, Estônia, França, Bulgária, Republica Tcheca e Polônia.
Outros movimentos canalizam a revolta. Os "indignados" - formados na maioria por jovens com emprego precário ou sem emprego nenhum - se propagam pela Espanha, Grécia, França e outros países, sobretudo depois que vários países europeus cortaram a duração dos benefícios para os desempregados. O benefício foi reduzido de quatro para dois anos na Dinamarca. Também diminuiu na Suécia, Alemanha, Suíça, Estônia, República Tcheca e na Espanha.
A dívida pública da Grécia aumentou 135% desde 2002, para atingir o equivalente a 157% do PIB este ano. Em Portugal, a alta foi de 69% e na Irlanda, de 242%. Até na prudente Alemanha, subiu 40% em quase dez anos.
Para organizações internacionais, as cifras mostram que os europeus não têm como escapar do fato de que o envelhecimento da população e os benefícios sociais prometidos são custosos demais para serem mantidos. "A idade de aposentadoria dos gregos, de 55 anos, é insustentável", exemplifica o economista-chefe da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), Carlo Pier Padoan.
Mas os políticos não conseguem vender os planos de ajuste doloroso aos eleitores. E a insatisfação se manifestou no voto que derrubou os governos na Irlanda e em Portugal, humilhando também os socialistas no poder em eleições regionais dos socialistas na Espanha. No Reino Unido, a coalizão conservadores/liberais enfrentará greve de mais de um milhão de funcionários públicos no dia 30, a maior em décadas. A direita populista ganha terreno na Europa, sem uma receita menos dolorosa.
Enquanto as críticas aumentam sobre a incapacidade da Europa de se governar, numa verdadeira catástrofe política, o presidente do Eurogrupo (ministros de finanças), Jean-Claude Junker, adverte para o risco de contágio da crise para a Bélgica e Itália. E Kenneth Rogolf, ex-economista chefe do FMI, acusa os planos de austeridade de serem cada vez menos realistas. Ele insiste que a Europa precisa reestruturar a carga da dívida da sua periferia.


Assis Moreira – 20.06.2011
IN “Valor Econômico” – http://www.valoronline.com.br/impresso/internacional/99/444057/europa-se-distancia-de-paz-social-e-economica

sábado, 16 de julho de 2011

Os bacharéis de Paraty

por aqui, o trabalho de um intelectual é justamente o contrário: dizer as coisas mais elementares de maneira empolada e abstrusa, dando ao público a sensação de ser duplamente inteligente: primeiro, ao conseguir decodificar o murundu; depois, ao descobrir que as ideias dentro do embrulho eram exatamente iguais às que ele já tinha, pelo senso comum.

Antonio Prata
O neurocientista Miguel Nicolelis cometeu um erro crasso em sua palestra, na quinta-feira (na Flip 2011): explicou as coisas mais complexas do mundo de forma simples e compreensível. O establishment cultural torceu o nariz. Nicolelis foi chamado de populista, simplificador, acusado de "jogar para a torcida".
Talvez, por ter morado muitos anos nos Estados Unidos, o professor tenha se esquecido de que, por aqui, o trabalho de um intelectual é justamente o contrário: dizer as coisas mais elementares de maneira empolada e abstrusa, dando ao público a sensação de ser duplamente inteligente: primeiro, ao conseguir decodificar o murundu; depois, ao descobrir que as ideias dentro do embrulho eram exatamente iguais às que ele já tinha, pelo senso comum.
O neurocientista Miguel Nicolelis cometeu um segundo erro crasso.
Falou de suas pesquisas de modo apaixonado, chegou a lacrimejar quando mencionou a possibilidade de alguém voltar a andar por conta de suas descobertas. Ora, não sabe Nicolelis que, por aqui, emoção é coisa de menina? O homem cultivado é blasé, já viu tudo e desencantou-se; o mundo, seu objeto de estudo, só é tocado envolto por três camadas do Magipack da ironia.
No fim, Nicolelis cometeu o último e imperdoável erro: falou bem do Brasil. Enalteceu o passado, lembrando-se de Santos Dumont, e imaginou um futuro glorioso. Risadinhas sarcásticas ecoaram na plateia.
Nicolelis é tido com um gênio pelo MIT, pela revista "Science", talvez ganhe um Nobel. Mas, ao que parece, ainda não está à altura dos bacharéis de Paraty.

Antonio Prata – Escritor, cronista – 09.07.2011
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/cotidian/ff0907201126.htm

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Imprensa amarela, mídia marrom


A França não perdeu o comando do FMI e ainda pode recuperar o único candidato capaz de bater Sarkozy. Sua língua deixou de ser o idioma da cultura, sua cultura já não espelha a nossa civilização. Sua imprensa perdeu densidade, desqualificou-se, no entanto pode tornar-se o reduto de uma nova Resistência – contra o terror do sensacionalismo.

Alberto Dines
Há muito tempo que a França não tinha razão, desnorteada havia algumas décadas apesar da multissecular herança cartesiana. Graças à “loucura americana” que sumariamente condenou Dominique Strauss-Kahn como estuprador, a França levanta-se aliviada, honra lavada diante da sociedade mundial.
Não se trata de machismo, chauvinismo, nem de antiamericanismo tardio. A reação francesa à surpreendente reviravolta da justiça nova-iorquina tem raízes históricas. Está no DNA da França esta proteína liberal, legalista, organicamente tolerante.
Em 1759, no Candide, Voltaire revoltava-se contra a crueldade da inquisição portuguesa que executou o jesuíta Gabriel Malagrida por ter escrito um panfleto denunciando a perversidade humana como a culpada pela ira divina que destruiu Lisboa no terremoto de 1755. O mesmo Voltaire, quatro anos depois (1763), insurgiu-se contra a igreja católica que martirizou e matou Jean Calas como assassino do seu filho. Ele era inocente, o filósofo iluminista estava certo.
Contra o sensacionalismo
O repúdio ao fanatismo de massas ganhou na modernidade francesa um horror ao linchamento midiático. A vítima precursora foi o capitão Alfred Dreyfus, desonrado, humilhado e deportado para a Ilha do Diabo, em 1895, por culpa da imprensa da ultradireita nacionalista e clerical. Quem o reabilitou foi a grande imprensa liberal, a partir da mais famosa manchete de todos os tempos – “J’Accuse”, no jornal L’Aurore – com texto de Émile Zola.
Dreyfus tornou-se símbolo da inocência e os pasquins que o acusaram assumiram-se como os fantasmas que atormentam a consciência francesa.
O caso Dreyfus não está esquecido, plasmou-se para sempre no imaginário político francês. Os vexames da Segunda Guerra Mundial começaram naquele momento. A clamorosa injustiça cometida nas primeiras condenações do capitão humilhou aqueles que acreditavam numa França justa, culta, defensora dos direitos humanos. Rui Barbosa, então exilado em Londres, foi um dos seus primeiros defensores.
Em 1936, na época da Frente Popular de Leon Blum, outra abjeta cruzada de calúnias da imprensa de ultradireita levou ao suicídio o ministro socialista Roger Salengro. No 1º de maio de 1993, o ex-primeiro ministro Pierre Bérégovoy, também socialista, suicidou-se com um tiro na cabeça atormentado pelas denúncias de corrupção jamais comprovadas. (Uma das teorias atribuía aos socialistas radicais a campanha de difamação contra “Béré”, defensor de “um socialismo realizável, a esquerda do possível”).
Este pode ser o verão da indignação, os franceses não se conformam com o vexame imposto a um experimentado político, brilhante intelectual, competente administrador, respeitado economista, igualmente socialista, admirado em todos os quadrantes do espectro político.
A França não perdeu o comando do FMI e ainda pode recuperar o único candidato capaz de bater Sarkozy. Sua língua deixou de ser o idioma da cultura, sua cultura já não espelha a nossa civilização. Sua imprensa perdeu densidade, desqualificou-se, no entanto pode tornar-se o reduto de uma nova Resistência – contra o terror do sensacionalismo.
Rede de simplificações
Strauss-Kahn foi sumariamente julgado e condenado pela satânica associação da imprensa amarela – tablóides locais – com a mídia marrom – do ciberespaço –, que se impuseram a uma instituição outrora gloriosa, hoje combalida, por ironia classificada como Grande Imprensa.
O grande jornalismo americano enfrentou e derrotou presidentes estúpidos, enfrentou e derrotou o reacionarismo de uma sociedade baseada exclusivamente em valores materiais, mas acovardou-se diante de um monstro por ela mesma criado: o mito do fim do papel. Se o papel desaparece, se a imprensa deixa de ser referência material e torna-se nuvem dissipável, então vale tudo. E este vale-tudo poderia ter levado Strauss-Kahn ao suicídio, como aconteceu antes como Salengro e Bérégovoy.
A mídia americana entregou-se às consultorias de marketing das empresas de tecnologia, só pensa nos novos modelos de maquinetas que serão lançadas, aposta todas as suas fichas nos gadgets. Ela própria é um gadget que, um dia, um cracker de 13 anos desligará por brincadeira.
As redes sociais são imbatíveis, a internet derruba muralhas, os déspotas estão em pânico, o sigilo acabou. Hugo Chávez, o caudilho venezuelano, provou o contrário. Durante o mês que permaneceu em Havana quase não tuitou, ninguém sabia o que se passava com ele, a Venezuela estava acéfala, em situação de ilegalidade, e nada mudou. O culto dos aparelhos criou uma formidável rede de simplificações – esta sim, invencível.


 Alberto Dines – Jornalista – 05.07.2011
IN “Observatório de imprensa” – observatoriodaimprensa.com.br/news/view/imprensa-amarela-midia-marrom

terça-feira, 12 de julho de 2011

O polígono da violência


É nas novas fronteiras econômicas ou nas zonas onde o modelo de exploração da madeira/garimpo está perto do esgotamento que as taxas de homicídio explodem. O fenômeno se repete no norte e oeste de Mato Grosso, em municípios como Apiacás e Colniza, e em Rondônia, em locais como Ariquemes e Buritis.



José Roberto de Toledo
Nova Ipixuna, onde foi assassinado o casal de líderes conservacionistas na semana passada, fica no coração do "polígono da violência", região que se tornou a mais perigosa do Brasil nos últimos anos. Em nenhum outro lugar do País tantos municípios vizinhos compartilham um número tão grande de homicídios proporcionalmente à sua população.
São 13 municípios contíguos no sudeste do Pará (mais Tailândia, um pouco ao norte). Dividem fronteiras e taxas de assassinato superiores a 60 por 100 mil habitantes, na média de 2007 a 2009. O limite de 60 habitantes mortos intencionalmente a cada grupo de 100 mil é simbólico: é a mais alta taxa do planeta e também do Brasil se considerarmos países e Estados.
O "polígono da violência" chegou a 91 homicídios por 100 mil moradores em 2009. Se fosse um Estado, seria 50% mais sangrento do que Alagoas, o atual campeão. Se fosse um país, bateria Honduras e se consagraria como o mais violento do mundo.
Com 84 mil km quadrados, o polígono tem área equivalente à da Áustria. Uma das grandes diferenças é a densidade populacional, 10 vezes maior no país europeu. Outra é o total de homicídios, 20 vezes maior nessa região do Pará.
José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo eram líderes extrativistas, como Chico Mendes. Em vez de sulcar seringueiras, coletavam castanhas. Como Chico Mendes, defendiam a floresta amazônica da devastação e estavam marcados para morrer. Como Chico Mendes, Zé Claudio cansou de falar das ameaças. Não adiantaram os avisos: as profecias se cumpriram, com 22 anos de intervalo.
O casal de preservacionistas foi tragado por uma espiral de violência que se agrava a cada ano na região, sem que nenhuma ação oficial tenha conseguido impedir seu crescimento. A taxa de homicídio no polígono pulou de 53/100 mil em 2002 para 67/100 mil em 2005, 73/100 mil em 2007 e 91/100 mil em 2009.
Nesses oito anos, 4.601 pessoas foram mortas nos 14 municípios do "polígono da violência". O maior número ocorreu em Marabá, a capital do proposto Estado de Carajás e maior cidade da região: 1.408 assassinatos de 2002 a 2009. É também um dos locais mais perigosos, com 133 homicídios por 100 mil habitantes em 2009.
Zé Cláudio era o porta-voz, e sua mulher, a fotógrafa. Juntos, documentavam e denunciavam o corte ilegal de madeira no entorno da reserva onde exploravam a castanha-do-pará. Denunciavam por consciência e por necessidade: a castanheira é uma das maiores árvores da floresta, pode chegar a 50 metros de altura, com tronco de até 5 metros de diâmetro. Vive mais de 1 mil anos, se um madeireiro não a encontrar antes.
O mapa do desmatamento do Ministério do Meio Ambiente revela o estrago provocado pelas motosserras no polígono. A maior parte da mata foi substituída por pastos e umas poucas plantações. As raras manchas de floresta são áreas indígenas. Só na zona urbana de Nova Ipixuna contam-se seis serrarias, cercadas por centenas de pilhas de toras, grandes o suficiente para serem vistas em imagens de satélite.
Com a mata desaparecendo, aumentam os conflitos entre extrativistas, madeireiros e carvoarias. Cada um, a seu modo, tenta aproveitar o pouco de floresta que restou. Uns coletam, outros derrubam.
Ricos e perigosos. A riqueza da região, porém, tem outras fontes. Maior jazida de ferro em exploração no mundo, o complexo de Carajás fica em Parauapebas, segundo maior município do polígono. O terceiro, Paragominas, vive da mineração e pecuária. E o quarto, Tucuruí, é a sede da maior hidrelétrica do norte do País. Todos ricos e perigosos.
O fato de cinco municípios do "polígono da violência" ficarem às margens do lago de Tucuruí levanta preocupação sobre o impacto que novas hidrelétricas, como Belo Monte, podem provocar na violência crescente na Amazônia.
As taxas recorde de homicídio no sudeste do Pará contrastam com o pequeno número de assassinatos nos municípios paraenses mais antigos, situados ao longo do rio Amazonas. A violência é muito maior nas áreas de ocupação recente, principalmente ao longo de rodovias como a Transamazônica e a PA-150, que permitiram a chegada de milhares de migrantes para garimpo, mineração ou corte de madeira.
É nas novas fronteiras econômicas ou nas zonas onde o modelo de exploração da madeira/garimpo está perto do esgotamento que as taxas de homicídio explodem. O fenômeno se repete no norte e oeste de Mato Grosso, em municípios como Apiacás e Colniza, e em Rondônia, em locais como Ariquemes e Buritis.
No sábado, outro agricultor foi morto em Nova Ipixuna. Erenilton Pereira dos Santos, de 25 anos, teria testemunhado a morte de José Cláudio e maria. Sem uma política nacional de segurança para essas regiões, a epidemia de assassinatos só tende a se agravar, e o polígono da violência, a se expandir e se multiplicar pelo interior do Brasil.


José Roberto de Toledo – 30.05.2011

domingo, 10 de julho de 2011

Estômago e bolso das togas

No país do Bolsa Família, os juízes vão receber auxílio-alimentação

Carta Capital
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – proclamado erroneamente como de controle externo, mas composto na sua maioria por magistrados – acaba de aprovar resolução a garantir aos juízes brasileiros em atividade dois benefícios: auxílio-alimentação e venda de férias trabalhadas.
A resolução do CNJ deveu-se a uma provocação feita pela Associação de Juízes Federais (Ajufe). Com base na isonomia, equivalência, a associação pediu benefícios já percebidos por membros do Ministério Público. Convém lemprar que cada juiz federal vence, em média, 23 mil reais, ou seja, não se trata de remuneração famélica. Num Brasil de baixos salários, com um mínimo não ideal e com programas como o Bolsa Família para minimizar a miséria, o tal auxílio-alimentação aos bens nutridos juízes soa como escárnio, “data venia”.
Por outro lado, nada mais justo indenizar por férias trabalhadas. Só que a categoria goza de dois períodos anuais de descanso. E, pelo justificado há anos, os dois repousos seriam necessários em razão da atividade intelectual desgastante imposta aos magistrados, que, ainda, carecem de tratamento diferenciado para se aperfeiçoar. Só uma coisa soa estranha e gostaríamos de entender. Se, por necessidade e humanidade, dois meses de descanso ao ano são necessários, por que não obrigar os magistrados a gozarem as férias inteiras, em vez de autorizá-los a se esfalfarem e ainda vendê-las?

Carta Capital – 29.06.2011
IN Revista “Carta Capital” – “A semana” – No 652

quinta-feira, 7 de julho de 2011

"Indignados" tomam capitais e protestam contra crise e desemprego

Pelo menos 38 mil  foram às ruas de Madri no domingo; em Lisboa, Bruxelas e Paris centenas protestaram

Vitor Sorano

O movimento que ocupou durante 25 dias a Praça do Sol, em Madri, levou neste domingo (19) ao menos 38 mil pessoas às ruas na cidade – em Barcelona foram pelo menos 20 mil, segundo a polícia. Em outras capitais europeias - como Lisboa, Bruxelas e Paris - centenas ecoaram o protesto contra a classe política e econômica nos países da zona do euro.

Os números indicam um crescimento dos “indignados”, como são chamados. O protesto do último dia 15 de maio, que deu início ao acampamento madrilenho, reuniu 20 mil pessoas na cidade, segundo o jornal espanhol El País. “Está crescendo e acho que vai continuar”, disse ao Opera Mundi a consultora de web Maria, de 37 anos, que participou da manifestação em Madri neste domingo.

Uma proposta para uma greve geral é pensada agora como o próximo passo. “Está sendo discutido, mas nenhuma decisão foi tomada ainda”, afirmou Maria. Os debates devem ocorrer, segundo ela, em assembleias distritais que o movimento quer promover.

Sem uma estrutura formal central, e baseados em redes sociais como o Facebook, os protestos dos “indignados” europeus têm bandeiras variadas. O principal ponto em comum é a acusação de que o atual sistema político “não nos representa”- como gritaram na Espanha. O lema “Democracia Verdadeira, Já” foi utilizado por grupos que promoveram protestos neste domingo também em outros países.

“É mais fácil dizer o que não é a verdadeira, que é essa. A pessoa vota e os eleitos fazem o contrário e não podem ser destituídos”, afirmou o carioca Otávio Raposo, de 32 anos, um dos cerca de 150 que participaram do protesto em Lisboa. O grupo desceu a Avenida da Liberdade até o Rossio – mesmo caminho feito pelo protesto conhecido como Geração Enrascada e que reuniu cerca de 200 mil pessoas em março, no que é considerada a maior manifestação desde a Revolução dos Cravos, em 1974.

Outro ponto em comum é o calote dos países. “A dívida não é nossa”, gritavam em Paris, de acordo com o jornal Libération, cerca de 450 pessoas que se reuniram junto ao Hotel de Villê, onde fica a prefeitura da cidade. Parte dos manifestantes – o jornal El País fala em uma centena - foi detida por tentar continuar o protesto para além do que estava permitido.

Grupo equivalente caminhou até a Praça de Luxemburgo – sede do Parlamento Europeu em Bruxelas, segundo o jornal belga l'Avenir. Houve confronto com a polícia, que jogou gás lacrimogêneo e foi alvo de arremesso de objetos.

Depois de críticas em razão da violência – na última quarta-feira (15/06), manifestantes cercaram o Parlamento catalão e houve confronto com a polícia - não houve ocorrências em Madri, segundo o El País. Em Barcelona, segundo o La Vanguardia, apenas uma. Na cidade, 20 mil pessoas foram às ruas, segundo o jornal, e 98 mil segundo o El País. Em Lisboa não houve ocorrências, informou a Polícia de Segurança Pública.

Plataformas do movimento “Democracia Verdadeira, Já” na Espanha afirmam que houve protestos em 98 cidades. As manifestações ocorrem a uma semana do Conselho Europeu, do qual participam os chefes dos 27 países da UE (União Europeia). Na pauta do evento está um controle mais integrado da política econômica dos Estados-Membros. A Alemanha, por exemplo, propõe que as idades mínimas de aposentadoria convirjam – o que pode levar à elevação do limite em países como Portugal.

Desemprego e austeridade

A Espanha tem a maior taxa de desemprego dos 17 países do Euro. Portugal tem a quarta – os dados da Grécia não foram divulgados. Entre as pessoas com menos de 25 anos, quatro em cada 10 espanhóis e dois em cada 10 portugueses estão desempregados. Além disso, nos dois países a proporção de empregos temporários, considerado precários, atinge entre os jovens 58,6% e 57,3%, respectivamente.

"Consegui trabalho há uma semana", disse o catalão Victor Rovira, 27 anos, que acompanhava o protesto em Lisboa. "Gostaria muito de estar em Barcelona, então vim fazer aqui o que não podia fazer em casa”. Com mestrado em gestão de patrimônio cultural, está dando aulas de castelhano em uma escola de línguas, sem contrato.

“Os investimentos em educação não estão se traduzindo em oportunidades de trabalho. O jovem não consegue encontrar um emprego minimamente qualificado e bem pago. Há uma sobrequalificação”, afirmou o sociólogo Elísio Estanque, pesquisador da Universidade de Coimbra, que estima em 50 mil os licenciados desempregados.

Para Estanque, a existência dessa camada de jovens qualificados, mas sem trabalho é um dos fatores que explica o surgimento dos movimentos atuais na forma como acontecem, sem ligação com partidos políticos e sindicatos ou organização formal. Outra questão é o distanciamento dessas instituições da realidade desse público.

“As estruturas tradicionais não estão sabendo dar saída", disse o sociólogo. “Os partidos políticos se burocratizaram. A democracia representativa não tem permitido a democracia participativa. Os sindicatos também se burocratizaram e não têm dado resposta aos precários”, concluiu.



 
Vitor Sorano (Opera Mundi) – 20.06.2011
IN “Brasil de Fato” - http://www.brasildefato.com.br/node/6617

segunda-feira, 4 de julho de 2011

O fim do ciclo de generais. E o nosso começo?


“Através da história, sempre houve tiranos que, em suas épocas, pareciam invencíveis. No fim, todos eles caíram”. M. Gandhi

José Álvaro Moisés
Um bom tempo atrás, um velho amigo me disse: “Eles vão permanecer no poder uns vinte anos”. A frase me fez estremecer por dentro. Eram os primeiros anos da era do AI-5, todo mundo já começava a se dar conta de que os militares tinham vindo para ficar, e não, como eles costumavam dizer, sem nenhum pudor, apenas “por um pequeno período de exceção”.
Hoje, mais de dez anos depois, transcorridos já quase vinte de regime militar, as frases mudaram, assim como os tempos, e elas já não têm o mesmo efeito de estremecimento de outrora. Se bem, é verdade, que não em um sentido tão liberal quanto o da previsão de Gandhi, os nossos tiranos se demonstraram inviáveis e, se não caindo, estão saindo, voltando para o lugar de onde nunca deveriam ter saído. Mas as suas intenções ainda suscitam dúvidas.
Talvez por essa razão, bombardeado pelas inúmeras e recentes declarações dói chefe do governo e de outros chefes militares, a nos dar conta de que agora os militares vão, mesmo, voltar aos quartéis, outro amigo me indagou, desfiadoramente: “Você não acha que é apenas um movimento tático, isto é, eles estão voltando aos quartéis e entregando o poder aos civis para retornarem, daqui a alguns anos, quando as coisas esquentarem, igual aconteceu na Argentina?”
Eu não acho, respondi, mas lembrei que nunca se deve excluir completamente o retorno do autoritarismo. Queiramos ou não, são os próprios militares que estão definindo as regras de sua volta aos quartéis, o que significa que eles são SOS únicos com força suficiente para fazê-lo, o que não é pouco. Na verdade, todos os protestos e conquistas da sociedade civil ainda não são suficientes para permitir-lhes definir, como seria desejável, a questão militar do nosso tempo. Assim, é melhor encarar a realidade de frente do que escondê-la atrás das nossas ilusões.
Apesar disso, o ciclo dos generais chegou, mesmo, ao fim, com o admitiu recentemente  o Presidente Figueiredo. E isso não está, de modo algum, desligado da resistência, ativa ou passiva, que realizou a sociedade ao longo desses anos. Esse ponto se torna mais claro quando recordamos o que, de certa maneira, sugeriu, certa vez, o General Videla, da Argentina, referindo-se ao que chamou “os males da solidão do poder”. A tirania e o despotismo conduzem sempre ao isolamento, à falta de apoio e à ilegitimidade, porque, no final, das contas, os cidadãos lhes negam qualquer credibilidade ou qualquer fundamento ético ou moral.
Ademais, há outras boas razões para verificarmos que a saída dos militares não é só tática, mas obedece a uma verdadeira estratégia. Em primeiro lugar, há o imenso risco de desgaste a que está submetida a instituição militar diante de tantos fracassos econômicos, tanta corrupção e tantos desmandos do poder.
Além disso, é visível que os militares não estão à vontade em face do perigo de divisão representado pelo seu longo envolvimento com o poder. Como se pode ver em varies episódios de sucessão presidencial, quando eles entram na política, a política também entra “neles”, isto é, na sua corporação, fracionando-os e comprometendo a sua hierarquia e a sua disciplina. Haverá algo que os militares mais temem que a sua própria divisão?
Finalmente, há a possibilidade de que tudo isso venha a conduzir a uma verdadeira crise do Estado. Pois no mundo contemporâneo, a burocracia é a alma do poder e as Forças Armadas a sua espinha dorsal. Há razões de sobra, portanto, para que eles deixem a administração direta do poder. P problema mais importantes, então, não é o de deixá-lo, mas em que condições deixar. Este é o foco central da estratégia que começou com o nome de “distensão lenta, gradual e segura”, depois mudou para “abertura política” e, agora, chama-se trégua, conciliação e entendimento.
O processo de reinstitucionalização que estamos vivendo é uma resposta a isso. Os civis são chamados de volta, os partidos readmitidos e, até, se cogita de ampliar a disputa pelo poder. Mas tudo isso deve ser feito de acordo com certas regras que respeitem as opções conservadoras que foram feitas pelos dirigentes do Estado: mudança com continuidade, pede o Presidente Figueiredo, procurando redefinir o sentido que deve ter, em nossos dias, a estratégia de conciliação por cima para evitar que os debaixo emerjam.
Pois bem, até aqui nada de novo. Novo é reconhecer que, se é verdade que as forças da sociedade civil hoje têm poucas condições para definir as regras de volta aos quartéis, não resta outra coisa a pedir-lhes senão que lutem, de fato, para construir as condições de garantia para que, tão cedo, os militares não voltem ao centro da vida política.
Vinte anos é demais, certamente, quase insuportável. Pois estamos perto de perder o sentido da nossa dignidade como povo. Mas, diante de uma tal experiência, como a dos regimes militares, não bastam as intenções, nem os discursos inflamados, incluam eles ou não os brados de “Abaixo a ditadura”. Agora, mais do que nunca, é preciso inventar formas novas de ação coletiva. Precisamos transformar a sociedade, a começar da transformação da nossa própria concepção do que é fazer política.
O pior que poderia acontecer ao Brasil, após todos esses anos, seria voltarmos às formas tradicionais de fazer política e repetir, após o ciclo dos generais, um outro tipo de ciclo, aquele que traduz democracia por um sistema político fechado, uma quantidade de instituições formais, longe do acesso e da vida cotidiana da grande –maioria de nossa população. Que a penosa experiência do passado sirva quando menos par nos ensinar algo, pois um tal tipo de filme nós já vimos entre 1946 e 1964, como vimos, também, quais foram os seus resultados.
Impossível ignorar, portanto, que a grande questão de nossa época é a incorporação das massas populares na política. Nada de fundo terá mudado, entre nós, se o processo de tomada de decisões não se abrir à efetiva participação de milhões e milhões de pessoas, cujo cotidiano é feito de trabalho, carências e miséria. Será utopia pedir isso?^
Eu creio que não.  A nova fase que se abriu recentemente com a posse dos novos governadores, alude, de alguma forma, a isso. Não é demais, portanto, saudar os sinais positivos que se anunciam nessa direção: a recente forma de escolha do diretor do Metrô, assim como certos ventos que, aparentemente, começam a bafejar as instituições da justiça em São Paulo, mostram que muito pode ser feito em estímulo à participação popular.
No entanto, o ponto nevrálgico que temos que tocar refere-se a algo que disse, certa vez, Antonio Gramci: a política tem de se transformar, efetivamente, em um instrumento ao alcance de todos ou então, pela nossa prática, eternizarmos a velha separação entre governados e governantes. O problema, portanto, não é criar uma simbologia de participação, mas definir, de uma vez por todas, os mecanismos que tornem permanente a participação e o controle dos homens comuns sobre o governo, os serviços públicos, e, no nosso caso, as empresas estatais.
Claro, todos os partidos são chamados a essa tarefa. Mas, sem passos nessa direção, não haverá democracia. Muito menos participação popular efetiva. Haverá sim, como já sabemos por nossa própria experiência, a frustraçõa de não termos tornado o atual fim do ciclo de generais um verdadeiro fim.


José Álvaro Moisés – Cientista Político e Professor da USP – 05.04.1983
IN “Folha de São Paulo” – MOISES, José Alvaro. “Cenas de política Explícita” – Ed. Marco Zero: São Paulo, 1986.