“Através da história, sempre houve tiranos que, em suas épocas, pareciam invencíveis. No fim, todos eles caíram”. M. Gandhi
José Álvaro Moisés
Um bom tempo atrás, um velho amigo me disse: “Eles vão permanecer no poder uns vinte anos”. A frase me fez estremecer por dentro. Eram os primeiros anos da era do AI-5, todo mundo já começava a se dar conta de que os militares tinham vindo para ficar, e não, como eles costumavam dizer, sem nenhum pudor, apenas “por um pequeno período de exceção”.
Hoje, mais de dez anos depois, transcorridos já quase vinte de regime militar, as frases mudaram, assim como os tempos, e elas já não têm o mesmo efeito de estremecimento de outrora. Se bem, é verdade, que não em um sentido tão liberal quanto o da previsão de Gandhi, os nossos tiranos se demonstraram inviáveis e, se não caindo, estão saindo, voltando para o lugar de onde nunca deveriam ter saído. Mas as suas intenções ainda suscitam dúvidas.
Talvez por essa razão, bombardeado pelas inúmeras e recentes declarações dói chefe do governo e de outros chefes militares, a nos dar conta de que agora os militares vão, mesmo, voltar aos quartéis, outro amigo me indagou, desfiadoramente: “Você não acha que é apenas um movimento tático, isto é, eles estão voltando aos quartéis e entregando o poder aos civis para retornarem, daqui a alguns anos, quando as coisas esquentarem, igual aconteceu na Argentina?”
Eu não acho, respondi, mas lembrei que nunca se deve excluir completamente o retorno do autoritarismo. Queiramos ou não, são os próprios militares que estão definindo as regras de sua volta aos quartéis, o que significa que eles são SOS únicos com força suficiente para fazê-lo, o que não é pouco. Na verdade, todos os protestos e conquistas da sociedade civil ainda não são suficientes para permitir-lhes definir, como seria desejável, a questão militar do nosso tempo. Assim, é melhor encarar a realidade de frente do que escondê-la atrás das nossas ilusões.
Apesar disso, o ciclo dos generais chegou, mesmo, ao fim, com o admitiu recentemente o Presidente Figueiredo. E isso não está, de modo algum, desligado da resistência, ativa ou passiva, que realizou a sociedade ao longo desses anos. Esse ponto se torna mais claro quando recordamos o que, de certa maneira, sugeriu, certa vez, o General Videla, da Argentina, referindo-se ao que chamou “os males da solidão do poder”. A tirania e o despotismo conduzem sempre ao isolamento, à falta de apoio e à ilegitimidade, porque, no final, das contas, os cidadãos lhes negam qualquer credibilidade ou qualquer fundamento ético ou moral.
Ademais, há outras boas razões para verificarmos que a saída dos militares não é só tática, mas obedece a uma verdadeira estratégia. Em primeiro lugar, há o imenso risco de desgaste a que está submetida a instituição militar diante de tantos fracassos econômicos, tanta corrupção e tantos desmandos do poder.
Além disso, é visível que os militares não estão à vontade em face do perigo de divisão representado pelo seu longo envolvimento com o poder. Como se pode ver em varies episódios de sucessão presidencial, quando eles entram na política, a política também entra “neles”, isto é, na sua corporação, fracionando-os e comprometendo a sua hierarquia e a sua disciplina. Haverá algo que os militares mais temem que a sua própria divisão?
Finalmente, há a possibilidade de que tudo isso venha a conduzir a uma verdadeira crise do Estado. Pois no mundo contemporâneo, a burocracia é a alma do poder e as Forças Armadas a sua espinha dorsal. Há razões de sobra, portanto, para que eles deixem a administração direta do poder. P problema mais importantes, então, não é o de deixá-lo, mas em que condições deixar. Este é o foco central da estratégia que começou com o nome de “distensão lenta, gradual e segura”, depois mudou para “abertura política” e, agora, chama-se trégua, conciliação e entendimento.
O processo de reinstitucionalização que estamos vivendo é uma resposta a isso. Os civis são chamados de volta, os partidos readmitidos e, até, se cogita de ampliar a disputa pelo poder. Mas tudo isso deve ser feito de acordo com certas regras que respeitem as opções conservadoras que foram feitas pelos dirigentes do Estado: mudança com continuidade, pede o Presidente Figueiredo, procurando redefinir o sentido que deve ter, em nossos dias, a estratégia de conciliação por cima para evitar que os debaixo emerjam.
Pois bem, até aqui nada de novo. Novo é reconhecer que, se é verdade que as forças da sociedade civil hoje têm poucas condições para definir as regras de volta aos quartéis, não resta outra coisa a pedir-lhes senão que lutem, de fato, para construir as condições de garantia para que, tão cedo, os militares não voltem ao centro da vida política.
Vinte anos é demais, certamente, quase insuportável. Pois estamos perto de perder o sentido da nossa dignidade como povo. Mas, diante de uma tal experiência, como a dos regimes militares, não bastam as intenções, nem os discursos inflamados, incluam eles ou não os brados de “Abaixo a ditadura”. Agora, mais do que nunca, é preciso inventar formas novas de ação coletiva. Precisamos transformar a sociedade, a começar da transformação da nossa própria concepção do que é fazer política.
O pior que poderia acontecer ao Brasil, após todos esses anos, seria voltarmos às formas tradicionais de fazer política e repetir, após o ciclo dos generais, um outro tipo de ciclo, aquele que traduz democracia por um sistema político fechado, uma quantidade de instituições formais, longe do acesso e da vida cotidiana da grande –maioria de nossa população. Que a penosa experiência do passado sirva quando menos par nos ensinar algo, pois um tal tipo de filme nós já vimos entre 1946 e 1964, como vimos, também, quais foram os seus resultados.
Impossível ignorar, portanto, que a grande questão de nossa época é a incorporação das massas populares na política. Nada de fundo terá mudado, entre nós, se o processo de tomada de decisões não se abrir à efetiva participação de milhões e milhões de pessoas, cujo cotidiano é feito de trabalho, carências e miséria. Será utopia pedir isso?^
Eu creio que não. A nova fase que se abriu recentemente com a posse dos novos governadores, alude, de alguma forma, a isso. Não é demais, portanto, saudar os sinais positivos que se anunciam nessa direção: a recente forma de escolha do diretor do Metrô, assim como certos ventos que, aparentemente, começam a bafejar as instituições da justiça em São Paulo, mostram que muito pode ser feito em estímulo à participação popular.
No entanto, o ponto nevrálgico que temos que tocar refere-se a algo que disse, certa vez, Antonio Gramci: a política tem de se transformar, efetivamente, em um instrumento ao alcance de todos ou então, pela nossa prática, eternizarmos a velha separação entre governados e governantes. O problema, portanto, não é criar uma simbologia de participação, mas definir, de uma vez por todas, os mecanismos que tornem permanente a participação e o controle dos homens comuns sobre o governo, os serviços públicos, e, no nosso caso, as empresas estatais.
Claro, todos os partidos são chamados a essa tarefa. Mas, sem passos nessa direção, não haverá democracia. Muito menos participação popular efetiva. Haverá sim, como já sabemos por nossa própria experiência, a frustraçõa de não termos tornado o atual fim do ciclo de generais um verdadeiro fim.
José Álvaro Moisés – Cientista Político e Professor da USP – 05.04.1983
IN “Folha de São Paulo” – MOISES, José Alvaro. “Cenas de política Explícita” – Ed. Marco Zero: São Paulo, 1986.