A grande maioria dos brasileiros permanece excLuída da plena cidadania e a discriminação serve para manter as barreiras sociais que garantem a partilha desigual de direitos e deveres.
Heloísa Fernandes1
Certa vez, meu pai, Florestan Fernandes, reconheceu que a pesquisa mais importante que fez foi aquela que ele realizou com Roger Bastide, entre 1947 e 1951, sobre as relações raciais no Brasil. Penso que a pesquisa propiciou um doloroso reencontro com sua infância de menino pobre, com o “poviléu sem eira nem beira”2, com a “gentinha” largada ao léu e ao desamparo. Mas foi também a pesquisa na qual o sociólogo enfrentou o desafio de entender uma sociedade em que a abolição da escravidão representou mais uma espoliação que os negros sofreram e não a sua conquista da cidadania3. Por isso, a escravidão persistirá como padrão de relação entre as classes sociais, mantendo-se no modo de exploração brutal da força de trabalho e na forma autocrática e violenta como são tratados os trabalhadores.
Da pesquisa, Florestan retirou uma interpretação que nunca mais abandonou: o padrão escravista subsistiu e converteu a “dominação de classe em equivalente da dominação estamental e de casta”.4 Por isso mesmo, não estamos sob o império da igualdade formal de todos perante a lei; somos uma sociedade cindida em dois mundos cujas relações são marcadas pela discriminação, pela violência e pelo preconceito.
Um dos efeitos cruéis da discriminação é a invisibilidade. Os excluídos da plena cidadania são invisíveis nos espaços reservados aos cidadãos do mundo de cima, ou só estão presentes quando e porque desempenham funções subalternas.
A lógica da exclusão é violenta. Em 2007, um movimento político de oposição ao governo Lula ganhou seu momento de glória quando um dos militantes declarou que “se o Piauí deixar de existir, ninguém vai ficar chateado”. Só uma mentalidade excludente poderia proferir uma tal sentença: Piauí (o Estado da federação remetendo a nordestinos5, negros, índios, camponeses, a todos esses estrangeiros no seu próprio país) pode desaparecer (morrer) que ninguém (os que contam, os mais iguais, os de cima) vai dar a mínima, pois não haveria perda nem afronta moral!6
Uma operação comum à mentalidade excludente deriva da lógica da inversão graças à qual se atribui à própria vítima a responsabilidade por seu infortúnio. Na pesquisa, Florestan entrevistou uma mulher branca para a qual os negros são culpados do preconceito que sofrem. “Eles tratam a gente como se ainda fossem escravos. Em tudo, eles agem servilmente diante do branco”.7 Subentende-se que é o que se espera daqueles que sabem aceitar o seu lugar subalterno. Aliás, essa é a diferença entre negro (reservado aos rebeldes) e preto (usado para os submissos).8
Para Florestan, a pesquisa revelou que não somos uma sociedade democrática porque continuamos cindidos em “duas nações superpostas”.9 A grande maioria dos brasileiros permanece excluída da plena cidadania e a discriminação serve para manter as barreiras sociais que garantem a partilha desigual de direitos e deveres.
É verdade que os de baixo são até mesmo pranteados quando são apresentados como retirantes, desgraçados e mortos de fome. Mas abaixo da hipocrisia da igualdade, permanece um recalcado condenado ao retorno. Onde quer e sempre que a “gentinha” invisível se tornar visível, ousando afirmar sua própria identidade, reconhecendo seus iguais como líderes, explicitando suas preferências e opções, em desacordo com aquelas que dominam no mundo de cima, assistimos às explosões violentas de preconceito. Quando, e sempre que, os de baixo exigem respeito e dignidade, são recebidos como se tivessem declarado guerra! Nesses momentos, muitos não têm pejo de afirmar que os de baixo não são mesmo gente.10
Nas últimas eleições para a presidência, uma jovem paulistana, estudante de Direito, não teve dúvida de aclamar publicamente: “Nordestino não é gente! Faça um favor a São Paulo, mate um nordestino afogado”! Seu apelo desumano encontrou milhares de simpatizantes e inúmeros defensores!
Notas
1 Esse artigo é dedicado a Maria Rita Kehl, que ousou denunciar os dois pesos e as duas medidas, e foi punida por delito de opinião.
2 FERNANDES, Florestan, Que tipo de república? São Paulo: Globo, 2007, p.296.
3 FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, 2007, p.296.
4 FERNANDES, F. Circuito Fechado. São Paulo: Hucitec, 1976, p.77.
5 Neste contexto, o termo “nordestino” discrimina o pobre. Alguns nordestinos do mundo de cima fazem depoimentos sobre a inexistência de um preconceito que evidentemente não sofreram; a seu modo, são os novos filhos do “narcisismo branco”. BASTIDE, R. e FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo. São Paulo: Global, 2008, p. 202.
6 Florestan constatou que, especialmente nas famílias tradicionais, achava-se que o “negro não é gente” e que a sua inferioridade era moral, mental e social. Mesmo após a abolição, a polícia recusava-se a prender certos assassinos com a justificativa de “não ser crime matar-se os pretos” ( BASTIDE, R. e FERNANDES, F., ob.cit.,p 140 e 147)
7 Biblioteca Florestan Fernandes, Universidade Federal de São Carlos, ficha de 11 de setembro de 1951.
8 A escola (seja pelas punições, seja pelas brincadeiras humilhantes) é a instituição que inicia o processo procurando “dar ao preto um espírito de submissão, ensinar-lhe bem cedo a se conformar, a aceitar sua situação inferior”; não por acaso, muitas crianças negras fogem da escola e não querem mais estudar. BASTIDE, R. e FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo, ob.cit. p.202. Ainda neste ano de 2010, após ouvir na sua escola o depoimento de Eva Schloss sobre o holocausto, Jonatas, um menino da sexta série, disse “para gente como eu, não é preciso colocar uma estrela amarela na roupa, porque a cor da pele já me identifica. ‘Tição, carniça, macaco, negrinho da macumba’, eu já ouvi isto um milhão de vezes”. CAPRIGLIONE, L. Holocausto visto pelo gueto, Folha de S.Paulo, 19/11/2010.
9 FERNANDES, F. A ditadura em questão. São Paulo: TAQueiroz, 1982, p. 121.
10 O MST é uma das grandes vítimas da violência desta concepção de mundo; em 2005, o Manifesto de São Gabriel incitava contra os Sem Terra afirmando que a cidade não podia aceitar ser “maculada pelos pés deformados e sujos da escória humana (...). Estes ratos precisam ser exterminados”.
Heloísa Fernandes - Professora associada do Departamento de Sociologia da USP e professora voluntária da Escola Nacional Florestan Fernandes – janeiro/março de 2011
IN Jornal “Juízes pela Democracia” – Ano 14, nº 52