quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Provocações


 Luis Fernando Veríssimo
A primeira provocação ele agüentou calado. Na verdade, gritou e esperneou. Mas todos os bebês fazem assim, mesmo os que nascem em maternidade, ajudados por especialistas. E não como ele, numa toca, aparado só pelo chão.
A segunda provocação foi a alimentação que lhe deram, depois do leite da mãe. Uma porcaria. Não reclamou porque não era disso.
Outra provocação foi perder a metade dos seus dez irmãos, por doença e falta de atendimento. Não gostou nada daquilo. Mas ficou firme. Era de boa paz.
Foram lhe provocando por toda a vida.
Não pode ir a escola porque tinha que ajudar na roça. Tudo bem, gostava da roça. Mas aí lhe tiraram a roça.
Na cidade, para aonde teve que ir com a família, era provocação de tudo que era lado. Resistiu a todas. Morar em barraco. Depois perder o barraco, que estava onde não podia estar. Ir para um barraco pior. Ficou firme.
Queria um emprego, só conseguiu um subemprego. Queria casar, conseguiu uma submulher. Tiveram subfilhos. Subnutridos. Para conseguir ajuda, só entrando em fila. E a ajuda não ajudava.
Estavam lhe provocando.
Gostava da roça. O negócio dele era a roça. Queria voltar pra roça.
Ouvira falar de uma tal reforma agrária. Não sabia bem o que era. Parece que a idéia era lhe dar uma terrinha. Se não era outra provocação, era uma boa.
Terra era o que não faltava.
Passou anos ouvindo falar em reforma agrária. Em voltar à terra. Em ter a terra que nunca tivera. Amanhã. No próximo ano. No próximo governo. Concluiu que era provocação. Mais uma.
Finalmente ouviu dizer que desta vez a reforma agrária vinha mesmo. Para valer. Garantida. Se animou. Se mobilizou. Pegou a enxada e foi brigar pelo que pudesse conseguir. Estava disposto a aceitar qualquer coisa. Só não estava mais disposto a aceitar provocação.
Aí ouviu que a reforma agrária não era bem assim. Talvez amanhã. Talvez no próximo ano... Então protestou.
Na décima milésima provocação, reagiu. E ouviu espantado, as pessoas dizerem, horrorizadas com ele:
- Violência, não!


Luis Fernando Veríssimo – escritor brasileiro

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

A hora da verdade

Renato Lessa

O deputado Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República com cerca de 55% de votos válidos, pouco mais de um terço do eleitorado e um quarto da população. É suficiente para a investidura. Mas não para si mesmo. 

A conquista, diz, materializa a verdade e a vontade divina. Três fundamentos da soberania compõem um quadro um tanto confuso: substrato popular, expresso pela vontade majoritária; alucinação dogmática, pela autoidentificação com a verdade; e autolegitimação teocrática.

Os que se apegam ao primeiro aspecto regozijam-se com a “solidez da democracia” brasileira. Debitam os demais na cota de excentricidades e retórica. Ledo engano. O personagem nada tem de excêntrico; ademais, o repertório não é suficiente para estruturar algo que pareça um argumento. O homem, quando espontâneo, fala pelo fígado. Com efeito, mais que nervos, parece ter fígado de aço.

Desconhecemos ainda o prazo de validade, mas não parece descabido dizer que se trata do primeiro líder popular da direita brasileira, desde que povo há por cá. A trajetória da política popular no Brasil teve início com a República de 1946.

Sua história testemunhou o fracasso renitente da direita eleitoral, nas campanhas do brigadeiro Eduardo Gomes (1945 e 1950), contra Dutra e Getúlio, e do marechal Juarez Távora, que se opôs a Juscelino em 1955. O espasmo janista, em 1960, foi o que foi: um experimento etílico falhado.

Carlos Lacerda foi abatido pelo “movimento” que ajudara a deflagrar em 1964, quando acreditava ter uma das mãos na taça para a eleição cancelada de 1965. O regime de 1964, por dispensar o povo, dispensou, por lógica, lideres populares, inclusive os da direita.

Com a democracia, aberta em 1985, Collor viria a ocupar de modo efêmero a função, mas deu-se o que se deu: um experimento tóxico falhado. Do brigadeiro a Collor, impõe-se dizer, por dever de justiça, que nenhum deles teve verdugos como inspiradores.

De lá para cá, a direita brasileira valeu-se de interpostas pessoas, em candidatos que não possuíam DNA direitista originário, por mais que para tal possam ter se esforçado. 

Dada a natureza binária da competição política nacional, desde 1989, o PSDB cumpriu importante papel de canalização, para o âmbito da vida constitucional, de parcela significativa do voto à direita do centro. Um dos desastres inscritos no processo político recente é o da implosão desse elemento de filtragem.

Mas era mesmo questão de tempo que, em cenário de competição aberta, a direita brasileira encontrasse expressão eleitoral direta. Há algum sentido na coisa.

Saímos da ditadura, em 1985, inclinados à esquerda. O pacto constitucional de 1988, com suas cláusulas pétreas, entre as quais direitos fundamentais dos brasileiros, bem o indica. Década e meia de governos à esquerda, por sua vez, deram passagem à inclinação à direita, que ora se materializa do modo mais nítido e brutal. 

Um naturalista diria que a hegemonia de um campo acaba por preparar, na ordem do tempo e das coisas, o trajeto hegemônico do oposto. Esse truísmo naturalista não está aqui a serviço da crença apaziguadora de que somos governados cosmicamente por movimentos pendulares. Como tudo na vida, o tempo também pode dar defeito, e a espera da volta do pêndulo, mais do que demorada, pode ser em vão.

Não há nada que garanta que o candidato vitorioso em 2018 seja o desaguadouro natural e verdadeiro da direita brasileira. O genérico “direita brasileira”, por sua vez, está longe de ser um compacto dotado de nitidez absoluta.

Há muitas correntes formadoras do caudal, desde verdugos recalcados até pacatos cidadãos de centro-direita. Como de hábito, a unidade é função da ojeriza a algum “inimigo”, produzida por uma repulsa que ultrapassa o diferendo político ordinário e toma a forma de um estranhamento existencial. 

A imagem do outro existencial pode conduzir a cenários macabros. Um de nossos melhores sociólogos, José de Souza Martins, se dedica há tempos à observação do fenômeno dos linchamentos, modalidade sociopática na qual temos destaque internacional.

Com ele aprendemos que uma condição necessária para a ocorrência de linchamentos é a formação instantânea de uma multidão movida por ímpetos tanto eliminacionistas quanto autopurificadores.

Consumada a destruição física do corpo do impuro, elimina-se do mundo dos vivos um vetor de malignidade, ao mesmo tempo em que se purifica a multidão-agente. O ápice da purificação dá-se pela incineração do vitimado e sua redução à pura dimensão inorgânica e mineral. Moral da história: mais que matar, é necessário mineralizar; mais que prender, é necessário fazer apodrecer. 

O mais perturbador é perceber que a multidão que lincha, uma vez decomposta em suas partes individuais, além de incluir assassinos patológicos, conta com gente pacífica e ordinária, que ama os filhos, comparece aos cultos e paga impostos.

Não se trata de sugerir, de modo alarmista, que algo como uma “lynching mob” esteja em formação. É razoável supor que, embora um ânimo eliminacionista e purificador possa permanecer como cláusula pétrea ou “ideal regulador” de segmentos sinceros e radicais, o corpo mais amplo dos apoiadores do presidente eleito reflua para assuntos comuns da vida e nichos ordinários da sociabilidade. 

De todo modo, é fundamental desenvolver um sistema de premonições, avisos precoces e detecção de sinais.

Tal sistema poderia adotar como fulcro a advertência de Primo Levi no prefácio de sua primeira obra-prima, “É Isto um Homem?”: se a proposição “todo estrangeiro é um inimigo” for posta como premissa maior indisputada de um argumento, o campo de extermínio aparece como uma de suas conclusões possíveis.

A ostensão da verdade —coadjuvada pela sanção divina— como elemento de descrição e significação de uma vitória política tem muito mais a ver com a lógica abjeta da “tomada do poder” que da “conquista eleitoral do governo”. Os sinais parecem ser, mais do que inequívocos, primários: a linha demarcatória da verdade distingue o campo da sanidade cívica de um campo estrangeiro composto por sujeitos dispensáveis. 

Luis Fernando Verissimo, em seu humor único de homem cético, no artigo “Os omissos” (O Globo, 1º/11), sugere que aos inimigos seja imposto o uso de uma estrela vermelha, costurada sobre a roupa. Ele acrescenta à sugestão a garantia de que a coisa já deu certo em outras ocasiões. 

Haverá quem julgue que há exagero no que aqui escrevo. Como cético, não faço questão de estar certo, mas creio poder haver no exagero —se for o caso— uma função esclarecedora. O presidente eleito traz em si uma combinação de fatores de expressão imprevisível e perigosa. É importante tentar decompor os seus elementos. 

Os anos que passou no Exército foram diminutos diante do tempo no qual exerceu mandato parlamentar. Há sete legislaturas ocupa uma cadeira na Câmara dos Deputados. Pelo histórico trabalhista, é antes um deputado que um capitão. Como tal, ocupou o mundo do baixo clero legislativo. Seus momentos de destaque se deram por meio de manifestações improferíveis por quem não dispõe de imunidade parlamentar. 

A vitória eleitoral em 2018 traz para o proscênio do país um profissional da periferia do sistema político. Isto é inédito entre nós. Sua dimensão periférica é pelo menos dupla: pelo desempenho como deputado e pela negação do espaço parlamentar como expressão do diverso e do contraditório. Em miúdos: o que se diz na periferia, se repetido no proscênio, produz efeitos devastadores. 

Ao mesmo tempo, seu sucesso eleitoral só se faz possível em cenário de competição política aberta. Foram as regras do sistema representativo que pavimentaram seu trajeto. Em suma: um personagem cujo sucesso dependeu dos valores e das regras de um sistema político aberto, com o qual, para por de modo moderado, manifesta escassa afinidade pessoal e doutrinária. 

A sensação de filme já visto é inevitável, mas pode ser enganadora. Não se trata de usar as regras da democracia para destrui-la, tal como ocorreu na Itália e na Alemanha, mas de reduzir —ou mesmo eliminar— os fundamentos e mecanismos liberais que a ela têm estado associados. 

Para tal, basta associar os termos “democracia” e “verdade”. Basta passar a dizer que a democracia, em sua essência, se realiza quando uma vontade majoritária se afirma, fixando um horizonte de verdade.

Basta dizer que os que foram postos fora da jurisdição da verdade devem ser submetidos a um outro tipo de direito, de natureza punitiva ou coisa ainda pior. Um sistema político fundado na verdade dispensa por natureza a operação de elementos internos de contenção, diante do que pensa poder impor aos desviantes. 

O léxico da contenção do poder foi fixado no nosso horizonte pela tradição liberal, desde o século 17. A captura do liberalismo por gente que veio ao mundo a negócios fez do tema da liberdade existencial dos humanos uma aspiração microeconômica e utilitária.

Em sua expressão paroxística, tal captura não é hostil à possibilidade de supressão de alguns direitos liberais clássicos para que o regime da liberdade econômica possa ter livre curso. 

Por essa via, tal liberalismo “verdadeiro” pode exigir, por exemplo, experimentos de enorme concentração de poder. É ficar a imaginar as reações de Locke, Montesquieu e Tocqueville diante de um superministério da liberdade econômica. 

O regime da verdade, turbinado com a expressão majoritária, impõe a desertificação cívica e cognitiva do país. Não por acaso, dois dos alvos preferenciais da recente emergência da verdade são o ativismo social e a vida intelectual e universitária. Mas, para que eliminem Marx e Gramsci do nosso quadro intelectual e existencial, terão que fazê-lo antes com Locke, Montesquieu e Tocqueville. 

Cada supressão particular e específica de direitos, para que deixe de ter consequências políticas e sociais, exigirá antes um ataque a princípios liberais. A supressão de cada movimento ou identidade específicos implicará o ataque contundente à liberdade genérica de organização e expressão. A defesa da incolumidade desse ordenamento liberal é crucial para o momento. 

Nesse sentido, a decisão unânime do Supremo em condenar ataques “legais” antes cometidos contra universidades nos dá algum alento. Ninguém está a salvo do “esquadrismo” solto nas ruas, mas está nas mãos do presidente eleito escolher entre a desordem do “esquadrismo” e a ordem constitucional.

A prevalecer o quadro constitucional vigente, na plenitude das suas garantias, Jair Bolsonaro exercerá as funções de presidente da República, pois para tal dispõe dos requisitos legais. Em caso de deslizamento para outra lógica de ocupação do poder, tudo pode acontecer; tais requisitos serão de nula valia. 

O mais provável é que se façam valer os versos da sábia marchinha “Rainha da Cor”, de Angela Maria: “Sargento manda no cabo/ Coronel, no capitão”.



Renato Lessa - Cientista Social Professor Titular da UFF e do IUPERJ - 04.11.2018

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Concertação democrática já!


É URGENTE CRIAR UMA FRENTE DE DEFESA DO ESTADO DE DIREITO.

Marcos Nobre
Quem não vota em Jair Bolsonaro está se sentindo estranho em sua própria terra. São milhões de brasileiras e de brasileiros que estão se sentindo ameaçados de expulsão de seu próprio país. Discursos de extermínio, ataques em bando e ameaças de morte, virtuais e reais, atingem jornalistas, ativistas, juízes, usuários de redes sociais, atingem quem quer que seja marcado pelos exércitos bolsonaristas como inimigo a ser abatido.
Quanto mais o dia da eleição se aproxima, tanto mais Bolsonaro reforça o discurso de exclusão, dividindo o país entre “bons” e “maus” e exigindo o exílio ou a prisão dos “maus”. Qualquer pessoa que ainda mantenha alguma relação com a realidade consegue ver que não há paralelo possível entre esse discurso e o que ficou conhecido como “nós contra eles”. Nenhuma eleição dos últimos trinta anos provocou sensações de ansiedade, exclusão e medo remotamente comparáveis a esta em uma parcela tão ampla da população.
Diante de um pânico social dessa dimensão, não faltam tentativas de tranquilizar as pessoas. Não falta quem pense que esse enorme contingente que não vota em Bolsonaro está se deixando levar por algo como uma histeria coletiva. Não haveria razões para preocupação porque o candidato do PSL fará um governo normal, dentro dos marcos democráticos.
Para quem está em pânico, é secundário supor se um governo Bolsonaro funcionará ou deixará de funcionar. São pessoas que acham que perderam o direito de pensar no futuro, que se veem limitadas ao presente mais imediato de suas vidas, de sua integridade física e moral. O raciocínio do “governo normal” serve apenas para apaziguar quem se decidiu a votar em Bolsonaro, mas precisa se convencer de que não será um governo caótico.
Também não ajuda a dissolver o pânico o discurso de que as instituições democráticas estão firmes e vão se impor, sejam quais forem as intenções de Bolsonaro. Seria algo como a vitória de um princípio democrático de realidade sobre os impulsos agressivos do capitão-candidato e seguidores em seu êxtase destrutivo.
É difícil entender como alguém que tenha morado no Brasil nos últimos anos possa achar que as instituições estão funcionando normalmente. Mas, mesmo que fosse esse o caso, também a ideia de “moderação institucional” não é capaz de ajudar ninguém a controlar a própria ansiedade.
Porque quem entende de instituição é Eduardo Bolsonaro. Em perfeita sintonia com os impulsos destrutivos de seu pai, o filho do capitão-candidato sentenciou: “Se você prender um ministro do STF, você acha que vai ter uma manifestação popular a favor dos ministros do STF, milhões na rua?”
Instituições democráticas não existem no vazio. Não são máquinas que funcionam automaticamente, seja quem for que as opere. E elas só conseguem sobreviver se contarem com uma cultura democrática viva e atuante e com a disposição de milhões de pessoas para defender nas ruas um ministro do STF. Para defender qualquer pessoa ameaçada ou atacada pelo arbítrio. Qualquer pessoa.
Neste momento, a defesa das instituições democráticas exige a criação de uma frente de pessoas e organizações convencidas de que suas diferenças políticas só poderão ser exibidas e exercidas se o espaço das diferenças for preservado, se a democracia for preservada. A única maneira de superar o pânico generalizado é canalizar a ansiedade para a ação. E para a reconstrução das normas básicas de convivência democrática que foram rompidas nesta eleição, que já não existem mais.
Porque a erosão democrática visível dos últimos anos não desaparecerá após apuradas as urnas e proclamados os resultados. Combatê-la exige a criação formal de uma frente da sociedade civil que não se confunda com instituições ou partidos determinados. É preciso criar a Concertação Democrática. Já.
Cada força política que faça seus cálculos eleitorais, mas a Concertação não poderá ter outros objetivos a não ser: combater qualquer ameaça à democracia, reconstruir as instituições e repactuar a democracia desde baixo. Nela devem caber todas as pessoas que temem pela sobrevivência da democracia. Todas.
A ditadura militar não foi derrotada porque seus generais foram derrotados. Foi derrotada porque pessoas e organizações se uniram para lhe retirar legitimidade. A democracia venceu porque o que eram inicialmente pequenos agrupamentos se reuniram em uma frente e convenceram a sociedade de que a democracia era a única forma de governo compatível com a liberdade e com o pleno desenvolvimento de cada pessoa e de cada grupo de pessoas.
Na ditadura, a frente democrática que se formou pensou em instituições que ainda não existiam, pensou as instituições como deveriam ser. A tarefa agora é diferente, mas exige esforço semelhante. As instituições democráticas existem, mas foram erodidas em sua legitimidade, estão em risco de se tornarem árvores ocas e secas.
Defender as instituições democráticas significa hoje reconstruí-las. Em novas bases, repactuadas. O primeiro passo é reunir quem está alarmado, inquieto e construir uma frente como espaço comum de formulação e ação. O passo seguinte é convencer quem ainda não integra esse espaço de que há lugar nessa frente para qualquer pessoa. Se Jair Bolsonaro vencer a eleição, essa repactuação terá de ser feita, como na ditadura militar, inteiramente à margem do governo.
Durante a ditadura militar, um dos métodos de provocar medo e terror nos opositores consistia em levá-los para uma volta de barco. Os meganhas tinham especial predileção por essa ameaça no caso daqueles que não sabiam nadar. Ameaçavam jogar a vítima ao mar da próxima vez, caso não parasse de fazer coisas como compor e cantar como bem entendesse.
O cantor e compositor Jards Macalé, órfão de militar, expulso de colégio militar, não sabia nadar. Decidiu que precisava aprender. E, em 1974, lançou o disco Aprender a nadar.
A sabedoria impura e doída de Jards Macalé nunca desaponta. Ele não apenas sente o cheiro de qualquer ameaça à liberdade, como responde a cada uma delas com a preparação e a aprendizagem que a resistência exige. Precisamos urgentemente aprender a nadar. Juntos. Coletivamente. A Concertação Democrática tem de ser também uma consertação da nossa democracia.




Marcos Nobre - Professor da Unicamp e Pesquisador do CEBRAP - 24.10.2018.

IN Revista Piaui. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/concertacao-democratica-ja/ 

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Adeus, Humboldt?

Carlos Benedito Martins

As universidades estão numa encruzilhada. No plano mais imediato, contingente, a polarização de opiniões existente em diversas sociedades penetra o ambiente de ensino (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/05/1881549-o-que-oseua-podem-ensinar-ao-brasil-na-implantacao-da-base-curricular.shtml), provoca cisões na convivência entre docentes e discentes e corrói laços sociais. Grupos das mais variadas inclinações politicas, identitárias ou ideológicas agem de forma pontual para estabelecer as suas pautas específicas e interditar o livre debate de ideias.


O fenômeno é cada vez mais notado no Brasil, mas não se restringe a este país. Com as especificidades de cada local, reproduz-se também nos Estados Unidos e na Europa e tem estimulado universidades a buscar meios de preservar a coexistência de diferentes visões de mundo e o respeito pela diversidade de opiniões. Num plano mais estrutural, o caminho da autonomia acadêmica se cruza com o das múltiplas demandas econômicas, políticas e de movimentos sociais. De forma legítima ou não, diversos atores procuram interferir nos rumos das universidades para extrair delas o que cada um considera o melhor resultado. Voltando sua atenção para o plano estrutural, este texto se concentra no surgimento de um modelo de ensino superior pautado por uma lógica que tende a priorizar reivindicações do campo econômico. Esse movimento, que altera de modo significativo algumas das características históricas com as quais as universidades foram identificadas ao longo de sua trajetória, tem seus esboços iniciais em meados da década de 1970 e, hoje, dissemina-se mundialmente. A difusão em escala global de determinadas características desse modelo não surpreende. Nas últimas décadas do século 20, economia, política e cultura, entre outros exemplos, moveram-se para além das fronteiras nacionais. Da mesma forma, a dinâmica da universidade contemporânea não se restringe mais aos limites territoriais de cada país. Ao lado dos sistemas nacionais de ensino superior que se estruturaram segundo seus respectivos contextos regionais formou-se um novo locus de atuação: a esfera transnacional. Uma constelação de eventos contribui para isso, entre os quais a expansão mundial de instituições, a crescente instalação de universidades estrangeiras em outros países, o incremento da mobilidade acadêmica internacional de estudantes e pesquisadores e a emergência de dezenas de rankings globais. Ao mesmo tempo, cada vez mais atores em cargos decisórios na área educacional de seus países circulam nesse espaço transnacional; organizações internacionais (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a OCDE; Banco Mundial; Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco etc.) tornamse mais presentes, e suas agendas reverberam direta ou indiretamente nos diversos sistemas acadêmicos nacionais; inúmeros provedores privados de ensino superior atravessam fronteiras, carregando consigo práticas movidas por um ethos comercial.


Dentro desse contexto, surgem duas novas características. De modo geral, na contramão de suas histórias, tem-se priorizado nas universidades uma dimensão utilitária,

ou seja, a expectativa de que elas exerçam papel proeminente no processo de competitividade econômica e tecnológica entre os países. Observa-se, além disso, acentuado processo de concorrência entre instituições educacionais no interior de cada país e no cenário internacional, em busca de reconhecimento acadêmico e social, impulsionado por uma variedade de rankings. Cada vez mais os docentes são estimulados a valorizar publicações indexadas; as atividades de ensino, que vêm deixando de constituir critério relevante em termos de prestígio, tendem a assumir papel secundário. 

Não se deve perder de vista, por fim, que uma parte do ensino superior tornou-se objeto de empreendimento econômico lucrativo em vários países. Universidades de prestígio internacional, como Columbia, Stanford e Chicago, nos EUA, e London School of Economics, na Inglaterra, formaram um consórcio para explorar comercialmente a oferta de seus serviços em escala global. Décadas atrás, as informações disponíveis sobre as instituições de ensino eram divulgadas em catálogos de circulação limitada; hoje, é comum o uso ostensivo do marketing por universidades mundo afora, reforçando a luta concorrencial entre elas. Percebe-se também que, consciente ou inconscientemente, docentes e alunos utilizam as redes sociais de forma rotineira para promover um marketing pessoal, divulgar suas publicações e projetar uma imagem positiva de suas realizações, passando a atuar como verdadeiros microempresários acadêmicos de si mesmos. É claro que, apesar de ser possível identificar eixos comuns aos mais diversos países, torna-se necessário ponderar que a presença efetiva desse modelo de ensino superior varia consideravelmente de um lugar a outro, em função das especificidades nacionais e das relações de forças no interior de cada instituição de ensino (por exemplo, diferentes atores podem manifestar uma atitude mais positiva ou mais de recusa diante dessas transformações).


Feita a ressalva, vários autores, como Darren O'Byrne, Lawrence Busch e Steven Ward |1|, analisam essa mudança significativa na natureza das universidades, com o confronto entre o modelo intelectual, que historicamente norteou a vida acadêmica, e o que vem sendo chamado de modelo gerencial ("managerial model"), que tende a privilegiar a dimensão funcional e utilitária do saber e valorizar uma formação voltada para o mercado de trabalho. De certa forma, o modelo intelectual compreende uma extensa linhagem de reflexão a respeito da identidade institucional da academia: começa no século 19, com John Henry Newman, adquire maior formalização nas ideias de Wilhelm von Humboldt (que esteve à frente da criação da Universidade de Berlim, em 1810) e Karl Jaspers e prolonga-se hoje no pensamento de Jürgen Habermas, Zygmunt Bauman e Stephen Ball, entre outros. 


Essa vertente defende a universidade como espaço social e intelectual (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/07/brasil-sabe-de-cor-como-fazer-exclusao-social-diz-ex-ministro-daeducacao.shtml) sui generis, no qual professores e estudantes cultivam de forma apaixonada o conhecimento e procuram preservá-lo como substância a priori, ou seja, como atividade voltada fundamentalmente para a produção do saber. Por volta de 1900, o modelo de universidade concebido por Humboldt —que busca articular ensino, pesquisa e liberdade acadêmica— levou a Alemanha a uma posição de liderança na pesquisa científica. Vários países adotaram alguns de seus elementos constitutivos. A Inglaterra incorporou a pesquisa de laboratório, a Universidade de Tóquio, criada em 1877, inspirou-se em larga medida no modelo alemão, as "research universities" (universidades de pesquisa) americanas criadas no final do século 19 também se basearam na experiência da universidade alemã. Em meados da década de 1970, o ensino superior brasileiro, estruturado inicialmente pelo modelo napoleônico —que priorizava instituições visando tão somente a formação profissional—, também incorporou determinados princípios do modelo humboldtiano.


Um pouco antes, em 1963, há um marco do embate com o modelo de universidade concebida por Humboldt. Naquele ano foi publicado o livro "Os Usos da Universidade" (lançado no Brasil em 2005 pela editora da UnB), trabalho clássico de Clark Kerr, que exerceu o cargo de presidente da Universidade da Califórnia. O autor afirmou que, por volta da metade do século 20, delineou-se uma nova concepção de universidade, denominada por ele de multiversidade: além de cuidar do ensino e da pesquisa, o ambiente acadêmico começou a assumir uma pluralidade de funções e um papel relevante no crescimento das economias nacionais. Para Kerr, o novo modelo passaria a formar especialistas em várias profissões e deixaria para trás a universidade concebida por Humboldt e sua vocação de formação do intelectual humanista. A partir da década de 1960, surgiram diversos trabalhos que, apesar de diferenças na abordagem, também se distanciam do modelo intelectual de ensino e atribuem uma dimensão instrumental para o conhecimento produzido na universidade. Os livros "Landmarks of Tomorrow" (balizas do amanhã), de 1959, e "Uma Era de Descontinuidade", de 1968 (lançado no Brasil pela Zahar em 1976), de Peter Drucker, professor de administração da Universidade Harvard, introduziram o conceito de sociedade do conhecimento ("knowledge society"), hoje bastante difundido, tanto em documentos de agências internacionais quanto em artigos acadêmicos. Na visão do autor, as mudanças que ocorriam na sociedade pós-industrial sinalizavam para a emergência de uma nova economia, na qual o conhecimento seria um fator estratégico no processo de produção econômica. Publicado em 1973, "O Advento da Sociedade Pós-Industrial (lançado no Brasil em 1977 pela Cultrix), clássico de Daniel Bell, então professor de sociologia em Harvard, caminhava na mesma direção ao acentuar que o conhecimento gerado nas instituições de ensino superior constituía importante fator de produção e fonte de inovação no processo econômico no contexto da sociedade pós-industrial.


Na década de 1990, quando a globalização se tornava mais explícita, vários trabalhos reafirmaram esse aspecto. Paul Romer, então professor de economia da Universidade de Chicago, ressaltou que o crescimento econômico estava diretamente relacionado à habilidade das nações de gerar novas ideias —e assinalou que a academia tinha papel crucial nesse processo. Os trabalhos denominados tríplice hélice ("triple helix"), realizados por Loet Leydesdorff ("The Knowledge-Based Economy", a economia baseada no conhecimento, de 2006) e Henry Etzkowitz, ("The Triple Helix: University, Industry, Government Innovation in Action", a tríplice hélice: universidade, indústria e governo: a inovação em ação, de 2008) aprofundaram a ênfase discursiva na dimensão instrumental do conhecimento ao analisar as relações possíveis entre governo, universidade e indústria. Num período mais recente, Kathryn Mohrman, da Universidade Johns Hopkins, e David Baker, da Universidade da Pensilvânia, cujas publicações possuem visibilidade no campo do ensino superior, vêm formulando o conceito de "emerging global model" (modelo global emergente) numa perspectiva normativa —eles prescrevem uma nova rota para as universidades. Mohrman e Baker sustentam que as universidades devem atuar além de suas fronteiras nacionais, formando indivíduos capazes de agir nos quatro cantos do mundo. Indicam que elas devem privilegiar a pesquisa, que tem caráter incremental no processo econômico. Propõem que diversifiquem a captação de recursos pela cobrança de anuidades, por meio de parcerias com governos e corporações e mediante a criação de empresas para explorar comercialmente novos produtos ou serviços de alta tecnologia. Sugerem mudanças na cultura acadêmica e no comportamento de dirigentes, docentes e alunos, através da prática de uma atitude gerencial e empreendedora. De certa forma, essas recomendações normativas apresentadas no "emerging global model" estão presentes em agências multilaterais, tais como as já citadas OCDE, Unesco e Banco Mundial, que possuem capilaridade global para difundir ideias e propostas. Além de elaborarem documentos sobre ensino superior, elas promovem seminários e reuniões com atores de diversos países, tais como reitores, "policy makers" (agentes em cargos estratégicos na administração pública) e especialistas em ensino superior. Suas agendas de trabalho ainda incluem encontros informais que propiciam a criação de redes de intercâmbio entre seus participantes. A despeito de eventuais diferenças quanto ao teor das recomendações, observam-se certas convergências em suas análises: expressões como "knowledge society" e "knowledge economy" são utilizadas de forma recorrente em seus documentos. A título de ilustração, os relatórios produzidos pela OCDE e denominados "Universities under Scrutiny" (universidade sob escrutínio) e "The Knowledge-Based Economy" (a economia baseada em conhecimento) ressaltam a necessidade de criar uma interação mais explícita (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/por-que-a-filosofia-e-importante-no-ensino-de-ciencia-nasuniversidades.shtml) entre o conhecimento elaborado nas universidades e as demandas do campo econômico. Para tanto, as instituições de ensino superior precisariam adotar novos procedimentos em seu cotidiano: substituir a administração colegiada por uma gestão mais centralizada, integrada por um corpo profissional de gestores capazes de imprimir métodos mais eficazes de comando; introduzir critérios de avaliação da produtividade de seus docentes; criar produtos e disponibilizá-los para suas sociedades etc. 


Determinados relatórios do Banco Mundial (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/02/reformas-para-o-brasil-ganhar-espaco-no-tabuleiro-mundial.shtml) —por exemplo, o "Higher Education: The Lessons of Experience" (ensino superior: lições da experiência) e "Knowledge for Development" (conhecimento para o desenvolvimento)— reafirmam o pressuposto de que o conhecimento representa um fator estratégico para o desenvolvimento econômico. As universidades ocupam posição relevante nesse processo, na medida em que podem habilitar os países a competir numa economia cada vez mais globalizada. 

"Toward Knowledge Societies" (em direção à sociedade do conhecimento), relatório elaborado pela Unesco, também destaca a importância do conhecimento para o desenvolvimento no contexto da sociedade do conhecimento. Por todos esses fatores, o modelo gerencial alcança forte circulação em várias partes do mundo. Na trajetória de sua construção e difusão, não apenas se afastou de princípios centrais do modelo intelectual como também, direta e indiretamente, subestimou a relevância acadêmica e social deste, sugerindo que sua concepção de universidade possui escassa efetividade hoje em dia. O modelo intelectual, no entanto, longe de desaparecer, encontra-se presente em vários países. No Brasil, exerce influência acadêmica em determinadas áreas do conhecimento no interior de universidades públicas (federais e estaduais) e privadas confessionais, entre as quais destacam as universidades católicas. Numa época de crescente complexidade, em que os esquemas de pensamentos usados no dia a dia são constantemente desafiados, as universidades adquirem papel importante na orientação cultural de suas respectivas sociedades —quanto mais autonomia elas tiverem, quanto maior a sua capacidade de reflexão crítica, melhores serão as suas contribuições. Não obstante, a dimensão profícua do modelo intelectual necessita ser revista, pois sua gênese coincidiu com a existência de uma universidade destinada basicamente a um pequeno círculo, uma elite detentora de posses econômicas ou culturais. Hoje em dia não é razoável conceber a academia como uma instituição isolada de questões econômicas, políticas e culturais relevantes, seja no âmbito nacional, seja no mundial. Por suas próprias características históricas desde Humboldt, a universidade assim concebida tende a não pautar sua conduta em termos normativos, mas sim procurando incorporar em seu interior diversas vozes advindas da sociedade que a circunda. Também tende a ser um espaço que não apenas se permite mas também se propõe um constante autoquestionamento de seus rumos.


Por fim, o modelo intelectual compreende que a universidade constitui um ambiente plural, no qual circulam diferentes ideias e visões de mundo que, a princípio, são confrontadas a partir de discussões calcadas em argumentos racionais. As ideias contidas neste modelo podem contribuir para uma reflexão visando estabelecer uma convivência profícua entre os diversos atores na academia, uma vez que tende a sugerir que os vínculos intelectuais duradouros entre eles repousam no compromisso de desenvolver em conjunto novos conhecimentos, enquanto um bem público. Por ser um espaço social sui generis, ancorado em sua relativa autonomia institucional e liberdade de pensamento, a academia não pode ser capturada por interesses sociais, econômicos, políticos e identitários particulares, a não ser a custo de trair seus fundamentos institucionais. Ela representa um dos raros espaços da vida contemporânea em que se pode refletir criticamente sobre a sociedade que a circunda e, ao mesmo tempo, sobre si mesma. 



|1| Os livros de Ward e Busch fornecem excelente apanhado sobre mudanças em curso na esfera educacional: 'Neoliberalism and the Global Restructuring of Knowledge and Education' (neoliberalismo e a reestruturação global do conhecimento e da educação) e 'Les Marché aux Connaisances: Neoliberalisme, Enseigment et Recherche' (a marcha do conhecimento: neoliberalismo, ensino e pesquisa), respectivamente. O artigo de O'Byrne oferece interessante discussão sobre os modelos gerencial e intelectual: 'Back to the Future: the Idea of a University Revisited' (de volta para o futuro: a ideia de universidade revisitada). 



Carlos Benedito Martins - Doutor em sociologia pela Universidade de Paris, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e presidente da Sociedade Brasileira de Sociologia - 19.08.2018.

In Folha de S. Paulo, Ilustríssima (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/08/universidade-nao-pode-virar-refem-de-pautas-politicas-diz-sociologo.shtml) .

segunda-feira, 18 de junho de 2018

A pacificadora

Conrado Hübner Mendes

A ministra Cármen Lúcia, dois anos atrás, em discurso de posse na presidência do STF, destacou a necessidade de fazer a “travessia para tempos pacificados, travessia em águas em revolto e cidadãos em revolta”. Há poucas semanas, ela concedeu entrevista em que fez balanço de sua gestão: “Não consegui a pacificação social, pelo menos do que era minha atribuição”.

Alguns comentaristas se deixaram impressionar por essa ambição pacificadora, aparentemente fora de lugar. Deram-se ao trabalho de alertar que a grandiosa tarefa caberia à política, não à Corte. Caíram na armadilha de levar a sério demais uma expressão vazia de significado, um mantra de cartilhas jurídicas que juristas entoam sem muito compromisso com o mundo real. Nada mais raro no Direito do que a pacificação: ele até pode facilitar a emancipação de grupos vulneráveis; mas pode também, com maior frequência na história, legitimar e cristalizar relações de violência e dominação. Num e noutro caso, para o bem ou para o mal, nada há de pacífico nesses processos que o Direito ajuda a desencadear.

A ministra, contudo, parecia dizer algo mais. A pacificação não seria apenas papel do Direito, mas do STF em especial. Ingênua ou não, essa pretensão ecoa a antiga ideia de atribuir ao STF o lugar de poder moderador, de árbitro dos conflitos de alta voltagem política. Seria uma bússola que dá direção, previsibilidade e estabilidade constitucional à sociedade. Se era essa a meta que Cármen Lúcia queria perseguir, sua prática radicalizou no sentido oposto. Entre as marcas de sua gestão estão a forma errática e aleatória de definição de pauta e a falta de senso de oportunidade para escolher casos que não ajudem a tensionar ainda mais a situação política do país. Sua pauta flutua conforme as pressões de ocasião, para prejuízo do tribunal.

Há muitos exemplos. Na semana passada, a ministra pautou caso que discute a possibilidade de instaurar, por Emenda Constitucional, o parlamentarismo. O caso é de 1997, já passou por seis relatores e nunca foi a julgamento. A ministra o recolocou na mesa no meio do ano eleitoral mais incerto em três décadas, em que o presidente em exercício tem índices históricos de impopularidade e risco de não terminar o mandato. Fez apenas alimentar teorias conspiratórias sobre uma grande trama para esvaziar o voto popular e sufocar o papel das eleições. Dias mais tarde, retirou-o da pauta. Não deu explicações para uma coisa ou outra.

Por sua própria inépcia, deixou de pautar ação que trata da execução provisória da pena após condenação em segunda instância e esperou o tema explodir na mesa do Supremo por ocasião do habeas corpus de Lula. Na mesma época, permitiu que o ministro Luiz Fux tirasse da pauta o caso do auxílio-moradia de juízes (que ele mesmo, como relator, já havia segurado por três anos) sob o pretexto de que um processo de conciliação seria instaurado entre magistratura e governo. Nem Cármen Lúcia nem Luiz Fux explicaram a origem da saída exótica: se uma prática tem sua constitucionalidade sob suspeita, não há o que “conciliar”.

O estilo de Cármen Lúcia escancarou um costume perverso do STF: a total arbitrariedade do que entra e do que sai de pauta.

A agenda constitucional do país tornou-se agenda do STF, e quem manda nela é uma única pessoa. Essa pessoa não precisa explicar seus atos, como qualquer agente público deve fazer. Na pauta do mês que vem, pode entrar caso que está há 20 anos na gaveta ou há 30 dias. Isso já é sério o suficiente. Para agravar, os casos podem sair da pauta e voltar para a gaveta sem motivo explícito. Um Parlamento define sua pauta conforme a habilidade de aglutinar coalizões político-partidárias e estabelecer prioridades. Isso é próprio da política. Uma Corte não pode funcionar assim.

Cármen Lúcia não está só. A mesma dissonância cognitiva se percebe também em Michel Temer. Depois da greve dos caminhoneiros, Temer declarou que foi à “Assembleia de Deus para comemorar a pacificação do país”, conseguida por sua virtude do diálogo.

Se esses são nossos pacificadores, quem serão os incendiários?


Conrado Hübner Mendes - Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - 07.06.2018.
IN Revista Época [ https://epoca.globo.com/politica/Conrado-Hubner/noticia/2018/06/pacificadora.html ]

domingo, 17 de junho de 2018

A ficha caiu

Fernando Limongi

O governo entrou em sua fase terminal. Com a greve dos caminhoneiros e a saída de Pedro Parente, Temer perdeu a capa de respeitabilidade que ainda o protegia. Velhos aliados aproveitaram a deixa para abandonar o barco e se eximir de responsabilidade pelo desastre.

O governo Temer veio ao mundo amparado por ampla coalizão. A aliança abrigou todos que viam em Dilma e no PT a causa última da crise vivida pelo país. Simplificando, as pastas ministeriais foram entregues a dois grandes grupos. De um lado, os 'profissionais', como viria a nomeá-los Moreira Franco e, de outro, o 'Dream Team' capitaneado por Henrique Meirelles.

Romero Jucá, um expoente dos 'profissionais', explicou melhor do que ninguém as razões que levaram o grupo a abandonar Dilma: era preciso estancar a sangria, traçar o círculo que dividiria os que já haviam caído nas malhas da Lava Jato dos que ainda poderiam se salvar.

O 'dream team' se juntou ao governo para recuperar a economia. Prometeu fazer a 'lição de casa' depois de anos de gestão macroeconômica heterodoxa imposta pelo PT. Os 'fundamentos' seriam respeitados, reformas implementadas e, liberado das amarras e distorções, o mercado responderia e a atividade econômica seria retomada. A economia voltaria a crescer. Essa foi a promessa feita quando o grupo assumiu as rédeas da economia.


Ao longo de todo o governo Temer, a ortodoxia imposta por Meirelles e sua equipe nunca deixou de contar com a confiança do mercado. Mais do que isso, nunca se questionou o acerto do receituário aplicado. Bastaria fazer a lição de casa, respeitar os fundamentos e o Brasil voltaria a crescer. A politica adotada pelo 'Dream Team' nunca foi questionada.

A agenda reformista não encontrou resistências no Congresso e reformas, como a PEC do teto dos gastos e a trabalhista, foram aprovadas. Os avanços foram saudados pelos analistas econômicos, que não se cansaram de dizer que suas consequências podiam ser divisadas na esquina. Era questão de paciência, de dar tempo ao tempo e os efeitos seriam sentidos no bolso dos cidadãos.

O episódio Joesley, assim como vários outros contratempos causados pelos 'profissionais', não rompeu a aliança. Gerou, é certo, algumas dúvidas no mercado sobre a capacidade do governo levar à frente a agenda reformista, mas essas interrogações se dissiparam rapidamente. 'A economia se descolou da política', passou-se a dizer.

Assim, a completa desmoralização dos 'profissionais' não atingiu o 'Dream Team'. Ao contrário, a dependência do governo para com a equipe de Meirelles aumentou. Promover reformas passou a ser a única forma de justificar a sobrevivência do governo. Mais do que isso, todas as acusações contra o governo passaram a ser vistas como artimanhas para minar a agenda reformista.

Mesmo quando a Reforma da Previdência foi deixada para as calendas, os oráculos capazes de interpretar os humores do mercado não deixaram de reafirmar sua confiança no 'Dream Team'. A promessa seria cumprida. O Brasil voltaria a crescer, talvez com menos força e intensidade, mas a economia não tardaria a dar sinais de vitalidade.

Henrique Meirelles, de sua parte, tampouco demonstrou ter qualquer dúvida sobre o sucesso da sua gestão e, muito menos, das suas repercussões eleitorais. Migrou do PSD para o MDB e obteve o aval do presidente para se apresentar como o candidato da continuidade. Orgulhoso, gabou-se de ser uma espécie de solucionador geral das crises.

Ao longo de maio, contudo, as projeções do crescimento do PIB foram revistas diversas vezes, sempre para baixo. O otimismo cedeu lugar ao realismo e, ao fim do mês, ao pessimismo. A reversão de expectativas se completou com o anúncio oficial do PIB para o primeiro trimestre. O cenário internacional trouxe outras más notícias, como crise na Argentina e pressões sobre o câmbio. As certezas foram para o ralo. A recuperação da economia faltou ao encontro.

Na última sexta-feira, Armínio Fraga, o oráculo dos oráculos, foi direto ao ponto: "caiu a ficha do mercado". Demorou, mas caiu e a fanfarra desafinou: "O mercado está vendo que os fundamentos mostram o país em uma tremenda dificuldade fiscal".

O governo fracassou. O 'Dream Team' não entregou os resultados prometidos. Simples assim. Outro ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, já havia entoado o réquiem: 'Nem ordem, nem progresso', foi o título da sua coluna de segunda última.

Mas não se espere autocrítica dos ortodoxos. Para estes, fracassos servem apenas para reforçar convicções. Por exemplo, a crise do setor de transportes se deveria aos subsídios de Dilma, que teria gerado excesso de oferta de fretes. A fraca demanda que a prometida recuperação da economia deveria gerar não entra na explicação.

Além disso, sempre é possível jogar a culpa nos aliados. O problema de fundo, afirmou Loyola, é que a classe política não tem "incentivo algum para apoiar reformas que signifiquem perdas de privilégios para certos grupos da sociedade. Preferem, ao contrário, continuar distribuindo 'meias entradas', a torto e a direito, principalmente com o intuito de auferir dividendos eleitorais." Ou seja, Meirelles nunca teve em mente colher 'dividendos eleitorais' e, se falhou, é porque seus aliados o impediram de ser tão radicalmente reformista como deveria.

Os liberais se eximem de culpa e a única solução que enxergam para a crise é a radicalização de seu programa: "O mais desalentador é que o enfrentamento da crise pelo governo Temer mostrou que o aprendizado tem sido nulo. Erros se repetem, o populismo se mantém, assim como o apelo a remendos que trazem distorções maiores ainda ao mercado", conclui Loyola.

Os aliados abandonam o barco, ignoram os velhos companheiros de aventura e sua contribuição para o fracasso do governo. Estamos por conta de Temer e seus 'profissionais'. Assim acabam os governos.



Fernando Limongi - Professor do DCP/USP e pesquisador do Cebrap - 11.06.2018.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

Judiciário, crise e fascismo

Fábio Wanderley Reis
Fui gentilmente convidado por esta Folha para um debate sobre a eleição presidencial e a conjuntura. Publicada em 24 de maio, breve notícia inicial sobre o assunto limita-se, quanto à minha participação, a combinar a informação sobre a associação que faço entre a Operação Lava Jato e riscos para a democracia com a qualificação de "fascistoide" dirigida ao juiz Sergio Moro —como diz o texto, por causa de "um artigo acadêmico de 2004 em que Moro defendeu a busca de apoio da opinião pública como parte essencial de uma estratégia de combate à corrupção".

O debate tomou rumo polêmico, e com certeza usei a qualificação. Mas a menção feita a Moro remetia a uma reveladora passagem do tal artigo(para quem quiser conferir, "Operação Mani Pulite", Revista CEJ, 2004, p. 61). Nela, recorrer à democracia —note-se!— para o combate à corrupção é assimilado à possibilidade de contornar "a carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal" e ao "salutar substitutivo" que a opinião pública pode constituir, "tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo".

Ou seja: como provar crime é difícil, levemos, em nome da democracia, a opinião pública a condenar. É patente o caráter pouco democrático desse suposto recurso à democracia, em que o clamor da opinião pública manipulada atropela direitos garantidos em lei. Esse caráter marca várias ações ilegais de Moro, objeto de crítica e rechaço do próprio Supremo Tribunal Federal —embora, como os efeitos da crise certamente alcançam os escalões mais altos do Poder Judiciário, daí não tenham resultado sanções.

Mas, num aspecto central do que procurei dizer no debate, tratando justamente da opinião pública, procurava contrapor-me à leitura de outro participante, Carlos Pereira.

Vendo a opinião pública como entidade singular e expressão unânime do que pensa o país em dado momento, o que propunha Pereira redundava em santificá-la e torná-la o suporte sadio da redefinição punitivista que se vem manifestando no Ministério Público e no Judiciário —incluído, sem dúvida, o STF, onde ministros como Luís Roberto Barroso e a própria presidente Cármen Lúcia reclamam atenção, com insistência, para coisas como o "sentimento da cidadania".

O que aí se omite é que há opiniões públicas e "sentimentos" diversos na cidadania, de modo especial em correspondência com divergências políticas. Ainda que nossa desigualdade leve a que os cidadãos de classe média ou acima tendam a ser também os formuladores e operadores da opinião pública mais vocal —e, assim, a tornar ocasionalmente dominante uma opinião classista—, é preciso lembrar que, menos mal, todos os cidadãos dispõem do voto e que um Judiciário orientado pela opinião pública dominante estará benzendo judicialmente algo nítido em nossa crise atual: a opinião pública a se colocar contra o eleitorado. Fará, pois, política, e com frequência política de elite.

Quanto a fascismo, cabe ainda uma evocação dramática: a da decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, de 22 de setembro de 2016, que mereceria maior repercussão do que teve. Ela se refere justamente às ações ilegais de Moro, que serviam de base para o pedido de seu afastamento por 19 advogados.

Por voto de 13 contra apenas 1 dos 14 desembargadores participantes (o do desembargador Rogério Favreto), o tribunal acompanhou o que propôs o relator do processo, desembargador Rômulo Pizzolatti. Reclamou-se a suspensão da relevância do "regramento genérico" vigente —incluída, naturalmente, a da própria Constituição— e invocou-se, como apontou Favreto, a teoria fascista do estado de exceção. Ficou mais fácil, depois, condenar Lula.


Fábio Wanderley Reis - Cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA) e professor emérito da UFMG -  06.06.2018.

IN Folha de São Paulo [ https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2018/06/fabio-wanderley-reis-judiciario-crise-e-fascismo.shtml?loggedpaywall ]