Carlos Benedito Martins
As universidades estão numa encruzilhada. No plano mais imediato,
contingente, a polarização de opiniões existente em diversas sociedades
penetra o ambiente de ensino (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/05/1881549-o-que-oseua-podem-ensinar-ao-brasil-na-implantacao-da-base-curricular.shtml),
provoca cisões na convivência
entre docentes e discentes e corrói laços sociais. Grupos das mais variadas
inclinações politicas, identitárias ou ideológicas agem de forma pontual para
estabelecer as suas pautas específicas e interditar o livre debate de ideias.
O fenômeno é cada vez mais notado no Brasil, mas não se restringe a este
país. Com as especificidades de cada local, reproduz-se também nos Estados
Unidos e na Europa e tem estimulado universidades a buscar meios de
preservar a coexistência de diferentes visões de mundo e o respeito pela
diversidade de opiniões.
Num plano mais estrutural, o caminho da autonomia acadêmica se cruza
com o das múltiplas demandas econômicas, políticas e de movimentos
sociais. De forma legítima ou não, diversos atores procuram interferir nos rumos das universidades para extrair delas o que cada um considera o
melhor resultado.
Voltando sua atenção para o plano estrutural, este texto se concentra no
surgimento de um modelo de ensino superior pautado por uma lógica que
tende a priorizar reivindicações do campo econômico. Esse movimento, que
altera de modo significativo algumas das características históricas com as
quais as universidades foram identificadas ao longo de sua trajetória, tem
seus esboços iniciais em meados da década de 1970 e, hoje, dissemina-se
mundialmente.
A difusão em escala global de determinadas características desse modelo não
surpreende. Nas últimas décadas do século 20, economia, política e cultura,
entre outros exemplos, moveram-se para além das fronteiras nacionais. Da
mesma forma, a dinâmica da universidade contemporânea não se restringe
mais aos limites territoriais de cada país. Ao lado dos sistemas nacionais de
ensino superior que se estruturaram segundo seus respectivos contextos
regionais formou-se um novo locus de atuação: a esfera transnacional.
Uma constelação de eventos contribui para isso, entre os quais a expansão
mundial de instituições, a crescente instalação de universidades estrangeiras
em outros países, o incremento da mobilidade acadêmica internacional de
estudantes e pesquisadores e a emergência de dezenas de rankings globais.
Ao mesmo tempo, cada vez mais atores em cargos decisórios na área
educacional de seus países circulam nesse espaço transnacional;
organizações internacionais (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, a OCDE; Banco Mundial; Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco etc.) tornamse
mais presentes, e suas agendas reverberam direta ou indiretamente nos
diversos sistemas acadêmicos nacionais; inúmeros provedores privados de
ensino superior atravessam fronteiras, carregando consigo práticas movidas
por um ethos comercial.
Dentro desse contexto, surgem duas novas características. De modo geral, na contramão de suas histórias, tem-se priorizado nas universidades uma dimensão utilitária,
ou seja, a expectativa de que elas exerçam papel
proeminente no processo de competitividade econômica e tecnológica entre
os países.
Observa-se, além disso, acentuado processo de concorrência entre
instituições educacionais no interior de cada país e no cenário internacional,
em busca de reconhecimento acadêmico e social, impulsionado por uma
variedade de rankings. Cada vez mais os docentes são estimulados a
valorizar publicações indexadas; as atividades de ensino, que vêm deixando
de constituir critério relevante em termos de prestígio, tendem a assumir
papel secundário.
Não se deve perder de vista, por fim, que uma parte do ensino superior
tornou-se objeto de empreendimento econômico lucrativo em vários países.
Universidades de prestígio internacional, como Columbia, Stanford e
Chicago, nos EUA, e London School of Economics, na Inglaterra, formaram
um consórcio para explorar comercialmente a oferta de seus serviços em
escala global.
Décadas atrás, as informações disponíveis sobre as instituições de ensino
eram divulgadas em catálogos de circulação limitada; hoje, é comum o uso
ostensivo do marketing por universidades mundo afora, reforçando a luta
concorrencial entre elas.
Percebe-se também que, consciente ou inconscientemente, docentes e
alunos utilizam as redes sociais de forma rotineira para promover um
marketing pessoal, divulgar suas publicações e projetar uma imagem
positiva de suas realizações, passando a atuar como verdadeiros
microempresários acadêmicos de si mesmos.
É claro que, apesar de ser possível identificar eixos comuns aos mais diversos
países, torna-se necessário ponderar que a presença efetiva desse modelo de
ensino superior varia consideravelmente de um lugar a outro, em função das
especificidades nacionais e das relações de forças no interior de cada
instituição de ensino (por exemplo, diferentes atores podem manifestar uma
atitude mais positiva ou mais de recusa diante dessas transformações).
Feita a ressalva, vários autores, como Darren O'Byrne, Lawrence Busch e
Steven Ward |1|, analisam essa mudança significativa na natureza das
universidades, com o confronto entre o modelo intelectual, que
historicamente norteou a vida acadêmica, e o que vem sendo chamado de
modelo gerencial ("managerial model"), que tende a privilegiar a dimensão
funcional e utilitária do saber e valorizar uma formação voltada para o
mercado de trabalho.
De certa forma, o modelo intelectual compreende uma extensa linhagem de
reflexão a respeito da identidade institucional da academia: começa no
século 19, com John Henry Newman, adquire maior formalização nas ideias
de Wilhelm von Humboldt (que esteve à frente da criação da Universidade de
Berlim, em 1810) e Karl Jaspers e prolonga-se hoje no pensamento de Jürgen
Habermas, Zygmunt Bauman e Stephen Ball, entre outros.
Essa vertente defende a universidade como espaço social e intelectual
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/07/brasil-sabe-de-cor-como-fazer-exclusao-social-diz-ex-ministro-daeducacao.shtml)
sui generis, no qual professores e estudantes cultivam de forma
apaixonada o conhecimento e procuram preservá-lo como substância a
priori, ou seja, como atividade voltada fundamentalmente para a produção
do saber.
Por volta de 1900, o modelo de universidade concebido por Humboldt —que
busca articular ensino, pesquisa e liberdade acadêmica— levou a Alemanha a
uma posição de liderança na pesquisa científica. Vários países adotaram
alguns de seus elementos constitutivos. A Inglaterra incorporou a pesquisa
de laboratório, a Universidade de Tóquio, criada em 1877, inspirou-se em
larga medida no modelo alemão, as "research universities" (universidades de
pesquisa) americanas criadas no final do século 19 também se basearam na
experiência da universidade alemã.
Em meados da década de 1970, o ensino superior brasileiro, estruturado
inicialmente pelo modelo napoleônico —que priorizava instituições visando
tão somente a formação profissional—, também incorporou determinados
princípios do modelo humboldtiano.
Um pouco antes, em 1963, há um marco do embate com o modelo de
universidade concebida por Humboldt. Naquele ano foi publicado o livro "Os
Usos da Universidade" (lançado no Brasil em 2005 pela editora da UnB),
trabalho clássico de Clark Kerr, que exerceu o cargo de presidente da
Universidade da Califórnia.
O autor afirmou que, por volta da metade do século 20, delineou-se uma
nova concepção de universidade, denominada por ele de multiversidade:
além de cuidar do ensino e da pesquisa, o ambiente acadêmico começou a
assumir uma pluralidade de funções e um papel relevante no crescimento
das economias nacionais. Para Kerr, o novo modelo passaria a formar
especialistas em várias profissões e deixaria para trás a universidade
concebida por Humboldt e sua vocação de formação do intelectual
humanista.
A partir da década de 1960, surgiram diversos trabalhos que, apesar de
diferenças na abordagem, também se distanciam do modelo intelectual de
ensino e atribuem uma dimensão instrumental para o conhecimento
produzido na universidade.
Os livros "Landmarks of Tomorrow" (balizas do amanhã), de 1959, e "Uma
Era de Descontinuidade", de 1968 (lançado no Brasil pela Zahar em 1976), de
Peter Drucker, professor de administração da Universidade Harvard,
introduziram o conceito de sociedade do conhecimento ("knowledge
society"), hoje bastante difundido, tanto em documentos de agências
internacionais quanto em artigos acadêmicos. Na visão do autor, as
mudanças que ocorriam na sociedade pós-industrial sinalizavam para a
emergência de uma nova economia, na qual o conhecimento seria um fator
estratégico no processo de produção econômica.
Publicado em 1973, "O Advento da Sociedade Pós-Industrial (lançado no
Brasil em 1977 pela Cultrix), clássico de Daniel Bell, então professor de
sociologia em Harvard, caminhava na mesma direção ao acentuar que o
conhecimento gerado nas instituições de ensino superior constituía
importante fator de produção e fonte de inovação no processo econômico no
contexto da sociedade pós-industrial.
Na década de 1990, quando a globalização se tornava mais explícita, vários
trabalhos reafirmaram esse aspecto. Paul Romer, então professor de
economia da Universidade de Chicago, ressaltou que o crescimento
econômico estava diretamente relacionado à habilidade das nações de gerar
novas ideias —e assinalou que a academia tinha papel crucial nesse
processo.
Os trabalhos denominados tríplice hélice ("triple helix"), realizados por Loet
Leydesdorff ("The Knowledge-Based Economy", a economia baseada no
conhecimento, de 2006) e Henry Etzkowitz, ("The Triple Helix: University,
Industry, Government Innovation in Action", a tríplice hélice: universidade,
indústria e governo: a inovação em ação, de 2008) aprofundaram a ênfase
discursiva na dimensão instrumental do conhecimento ao analisar as
relações possíveis entre governo, universidade e indústria.
Num período mais recente, Kathryn Mohrman, da Universidade Johns
Hopkins, e David Baker, da Universidade da Pensilvânia, cujas publicações
possuem visibilidade no campo do ensino superior, vêm formulando o
conceito de "emerging global model" (modelo global emergente) numa
perspectiva normativa —eles prescrevem uma nova rota para as
universidades.
Mohrman e Baker sustentam que as universidades devem atuar além de suas
fronteiras nacionais, formando indivíduos capazes de agir nos quatro cantos
do mundo. Indicam que elas devem privilegiar a pesquisa, que tem caráter
incremental no processo econômico. Propõem que diversifiquem a captação
de recursos pela cobrança de anuidades, por meio de parcerias com
governos e corporações e mediante a criação de empresas para explorar
comercialmente novos produtos ou serviços de alta tecnologia. Sugerem
mudanças na cultura acadêmica e no comportamento de dirigentes,
docentes e alunos, através da prática de uma atitude gerencial e
empreendedora.
De certa forma, essas recomendações normativas apresentadas no
"emerging global model" estão presentes em agências multilaterais, tais
como as já citadas OCDE, Unesco e Banco Mundial, que possuem capilaridade global para difundir ideias e propostas. Além de elaborarem
documentos sobre ensino superior, elas promovem seminários e reuniões
com atores de diversos países, tais como reitores, "policy makers" (agentes
em cargos estratégicos na administração pública) e especialistas em ensino
superior. Suas agendas de trabalho ainda incluem encontros informais que
propiciam a criação de redes de intercâmbio entre seus participantes.
A despeito de eventuais diferenças quanto ao teor das recomendações,
observam-se certas convergências em suas análises: expressões como
"knowledge society" e "knowledge economy" são utilizadas de forma
recorrente em seus documentos.
A título de ilustração, os relatórios produzidos pela OCDE e denominados
"Universities under Scrutiny" (universidade sob escrutínio) e "The
Knowledge-Based Economy" (a economia baseada em conhecimento)
ressaltam a necessidade de criar uma interação mais explícita
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/06/por-que-a-filosofia-e-importante-no-ensino-de-ciencia-nasuniversidades.shtml)
entre o conhecimento elaborado nas universidades e as
demandas do campo econômico.
Para tanto, as instituições de ensino superior precisariam adotar novos
procedimentos em seu cotidiano: substituir a administração colegiada por
uma gestão mais centralizada, integrada por um corpo profissional de
gestores capazes de imprimir métodos mais eficazes de comando; introduzir
critérios de avaliação da produtividade de seus docentes; criar produtos e
disponibilizá-los para suas sociedades etc.
Determinados relatórios do Banco Mundial
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/02/reformas-para-o-brasil-ganhar-espaco-no-tabuleiro-mundial.shtml)
—por exemplo, o "Higher Education: The Lessons of Experience" (ensino
superior: lições da experiência) e "Knowledge for Development"
(conhecimento para o desenvolvimento)— reafirmam o pressuposto de que
o conhecimento representa um fator estratégico para o desenvolvimento
econômico. As universidades ocupam posição relevante nesse processo, na
medida em que podem habilitar os países a competir numa economia cada
vez mais globalizada.
"Toward Knowledge Societies" (em direção à sociedade do conhecimento),
relatório elaborado pela Unesco, também destaca a importância do
conhecimento para o desenvolvimento no contexto da sociedade do
conhecimento.
Por todos esses fatores, o modelo gerencial alcança forte circulação em
várias partes do mundo. Na trajetória de sua construção e difusão, não
apenas se afastou de princípios centrais do modelo intelectual como
também, direta e indiretamente, subestimou a relevância acadêmica e social
deste, sugerindo que sua concepção de universidade possui escassa
efetividade hoje em dia.
O modelo intelectual, no entanto, longe de desaparecer, encontra-se presente
em vários países. No Brasil, exerce influência acadêmica em determinadas
áreas do conhecimento no interior de universidades públicas (federais e
estaduais) e privadas confessionais, entre as quais destacam as universidades
católicas.
Numa época de crescente complexidade, em que os esquemas de
pensamentos usados no dia a dia são constantemente desafiados, as
universidades adquirem papel importante na orientação cultural de suas
respectivas sociedades —quanto mais autonomia elas tiverem, quanto maior
a sua capacidade de reflexão crítica, melhores serão as suas contribuições.
Não obstante, a dimensão profícua do modelo intelectual necessita ser
revista, pois sua gênese coincidiu com a existência de uma universidade
destinada basicamente a um pequeno círculo, uma elite detentora de posses
econômicas ou culturais. Hoje em dia não é razoável conceber a academia
como uma instituição isolada de questões econômicas, políticas e culturais
relevantes, seja no âmbito nacional, seja no mundial.
Por suas próprias características históricas desde Humboldt, a universidade
assim concebida tende a não pautar sua conduta em termos normativos, mas
sim procurando incorporar em seu interior diversas vozes advindas da
sociedade que a circunda. Também tende a ser um espaço que não apenas se
permite mas também se propõe um constante autoquestionamento de seus
rumos.
Por fim, o modelo intelectual compreende que a universidade constitui um
ambiente plural, no qual circulam diferentes ideias e visões de mundo que, a
princípio, são confrontadas a partir de discussões calcadas em argumentos
racionais.
As ideias contidas neste modelo podem contribuir para uma reflexão
visando estabelecer uma convivência profícua entre os diversos atores na
academia, uma vez que tende a sugerir que os vínculos intelectuais
duradouros entre eles repousam no compromisso de desenvolver em
conjunto novos conhecimentos, enquanto um bem público.
Por ser um espaço social sui generis, ancorado em sua relativa autonomia
institucional e liberdade de pensamento, a academia não pode ser capturada
por interesses sociais, econômicos, políticos e identitários particulares, a
não ser a custo de trair seus fundamentos institucionais. Ela representa um
dos raros espaços da vida contemporânea em que se pode refletir
criticamente sobre a sociedade que a circunda e, ao mesmo tempo, sobre si
mesma.
|1| Os livros de Ward e Busch fornecem excelente apanhado sobre mudanças em curso na
esfera educacional: 'Neoliberalism and the Global Restructuring of Knowledge and
Education' (neoliberalismo e a reestruturação global do conhecimento e da educação) e 'Les
Marché aux Connaisances: Neoliberalisme, Enseigment et Recherche' (a marcha do
conhecimento: neoliberalismo, ensino e pesquisa), respectivamente. O artigo de O'Byrne
oferece interessante discussão sobre os modelos gerencial e intelectual: 'Back to the Future:
the Idea of a University Revisited' (de volta para o futuro: a ideia de universidade revisitada).
Carlos Benedito Martins - Doutor em sociologia pela Universidade de Paris, professor
titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília e presidente da Sociedade
Brasileira de Sociologia - 19.08.2018.
In Folha de S. Paulo, Ilustríssima (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2018/08/universidade-nao-pode-virar-refem-de-pautas-politicas-diz-sociologo.shtml) .