sábado, 30 de abril de 2011

Antecedentes criminais



Justiça concede indenização por danos morais em razão da exigência de certidão de antecedentes criminais para a contratação de atendente de call center.


Valor Econômico
A Justiça do Trabalho concedeu a uma atendente de call center uma indenização por danos morais no valor de R$ 5 mil, com juros e correção monetária, porque lhe foi exigida a apresentação de certidão de antecedentes criminais para a sua contratação. Ao examinar o caso, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve a decisão, ao não conhecer do recurso das empresas condenadas - Mobitel e Vivo. Segundo o ministro Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, relator do recurso contra decisão proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho (TRT) do Paraná, a relação de emprego destinada ao teleatendimento de clientes escapa de possíveis casos em que a exigência de certidão de antecedentes criminais se justifique, dentro de padrões de razoabilidade. Nessa situação, a prática patronal resultou em dano moral à trabalhadora e a ilicitude do comportamento, explica o ministro, "dispensa prova de dano, que é presumido, estabelecendo-se pronto nexo de causalidade". O relator esclarece ainda que, ao exigir essa certidão, "sem que tal providência guarde pertinência com as condições objetivamente exigíveis para o trabalho oferecido, o empregador põe em dúvida a honestidade do candidato ao trabalho, vilipendiando a sua dignidade e desafiando seu direito ao resguardo da intimidade, vida privada e honra, valores constitucionais".



Valor Econômico – 29.04.2011
IN "Destaques" do caderno “Legislação & tributos” – http://www.airesadv.com.br/Default.aspx?tabid=57&ItemId=2079



quarta-feira, 27 de abril de 2011

A democracia pós-moderna

A democracia pós-moderna é "democracia sem democratas". Substituiu o sujeito da intimidade por uma identidade pessoal sem pessoa, baseada não em valores morais admiráveis e dignos de renome, mas no modelo das celebridades e dos "conselheiros em comunicação".


Olgária Mattos

A democracia moderna se expressa na idéia de espaço público, cuja certidão de nascimento foi a polis grega. Inventora da política, esta significou o advento da isonomia (as mesmas regras válidas para todos os cidadãos), da isegoria (todos podendo tomar a palavra em público) e da democracia, porque todos igualmente legisladores. Findava então o poder privado, cujos modelos foram o pater familias, o comandante militar e o chefe religioso. Por isso, a democracia moderna se fundava em leis pan-inclusivas e universalizantes, baseadas no indivíduo considerado racional e livre. Suas instituições mediavam conflitos e acordos, como partidos, sindicatos, federações patronais, movimentos sociais e organizações de base, que produziam uma determinada representação de si constituindo, assim, sua identidade.

A democracia pós-moderna é "democracia sem democratas". Substituiu o sujeito da intimidade por uma identidade pessoal sem pessoa, baseada não em valores morais admiráveis e dignos de renome - como Sócrates que, por seu modo de vida filosófico, tornou-se o patrono da filosofia -, mas no modelo das celebridades, a que, na política, correspondem "conselheiros em comunicação". Se a democracia moderna valia-se do “decoro e do discreto”, estes indicavam o que deveria estar “ fora do campo de visão”— o obsceno, o “excluído da cena, o intolerável ao olhar ou ao pudor (assassinatos, grandes deformidades corporais, crueldades, pornografia, sentimentos pessoais, emoções, preferências religiosas ou sexuais). A democracia pós-moderna, ao contrário, promove a desinibição, triunfando a visibilidade total, uma vez que tudo merece ser visto, tanto o palco quanto os bastidores, o corpo, a consciência e o inconsciente. Da sala de estar ao quarto de dormir, tudo deve ser “democratizado” porque neles também há injustiça, poder e dominação, como na sociedade.

Desaparece a Lei moderna que postulava os homens responsáveis e iguais, de modo que a justiça pós-moderna os entende “particularizados” em grupos. Porque a pós-modernidade é a da sociedade de massa, do consumo e do espetáculo, a individualidade se faz segundo o que Freud denominou “narcisismo das pequenas diferenças” e René Girard de “rivalidade mimética”. Todos desejam as mesmas coisas porque um outro já as desejou antes de nós e é seu possuidor, devendo, como concorrente, ser destruído.

A justiça moderna investigava a “verdade” para estabelecer o dano e a reparação. A pós-moderna preocupa-se apenas com a formalidade das condições em que ela veio a público. Não que prescinda da lei, mas a cumpre no âmbito de insegurança jurídica, dando espaço a ilegalidades. De onde a objetividade do mundo ter-se convertido em negociações entre vítima e juiz, de que decorrem os pedidos de indenização material. Tudo se torna objeto de legislação: assédios, discriminações raciais, religiosas, de sexo, no espaço público, na esfera privada e da intimidade. Nos EUA, a legislação anti-tabagista ingressa no recinto da própria residência do fumante, que pode ser denunciado por familiares ou vizinhos descontentes.

A idéia de igualdade pós-moderna é a da proliferação de regulamentações, adaptadas ao consumo de direitos em uma sociedade que não é mais moderna - a do contrato social - mas pós-moderna - a da guerra de todos contra todos. A democracia pós-moderna associou política e dissimulação, resultando o prestígio da "sinceridade". Assim, se a política moderna se exercia na "distância" do governante no espaço público, a pós-moderna é a da intimidade midiática que exibe o "autêntico". O representante político é construído como "homem comum", com seus vícios e virtudes, para ser amado ou odiado. Aqui operam os mecanismos de massa que fazem do governante o “bode expiatório”, como mostram Michel Aglietta e André Orléan em "A Violência da Moeda".

A igualdade moderna supunha diferenças - sexuais, étnicas, raciais ou religiosas - a serem reconciliadas, a pós-moderna as estabelece positivadas. Nessa entidade sedentária, há o direito à diferença mas visando a igualdade de inclusão social no mercado onde sobrevive o mais “apto” a conquistar seus “ privilégios” (privus lex, private legus, sendo, justamente, “lei privada”, o “favor” no direito medieval europeu). O mercado requer dissolução da individualidade, compreendida como obstáculo ao consumo e ao mercado padronizador. De onde o fim da diferença - entre as gerações, entre os sexos, entre a linguagem oral e a escrita, entre os comportamentos formais e os informais.

Todos cedem à palavra de ordem “flexibilidade”, a primeira e a última qualidade que o mercado exige de cada um.

Olgária Mattos – Filósofa e professora – 25.11.2009

domingo, 24 de abril de 2011

O mesmo olhar positivista


A seletividade do sistema e a diferenciação no tratamento se revela desde a detenção por "atitude suspeita", aos preconceitos quanto à moradia nas favelas, à família popular e ao trabalho nos laudos dos técnicos, até as penas impostas, que variam de acordo com a etnia e classe social dos jovens.


Vera Malaguti Batista
Em recente trabalho sobre drogas no Brasil, expus os rastros de sangue deixados na história da criminologia, do positivismo à criminologia crítica. Para empreender a tarefa fundamental da criminologia que, como nos ensinou Baratta, é a teoria crítica da realidade social do Direito, debrucemo-nos sobre sua história.
Na virada do século XIX surge na Europa a criminologia, nova disciplina, ancorada nas teorias patológicas da criminalidade que, a partir das características biológicas e psicológicas, classificava a humanidade entre normais e criminosos, estes últimos observados em minuciosas experiências "científicas" nas instituições totais. O delito como conceito jurídico definido pela filosofia liberal clássica dos séculos XVIII e XIX é substituído pelo delito natural de Garofalo, no paradigma do positivismo naturalista, do determinismo biológico. O início dessa nova "disciplina científica" estatui seu objeto no homem delinqüente. Classificações exaustivas são realizadas por Lombroso para detecção dos "sinais antropológicos" e sua associação às teorias racistas hierarquizantes provenientes do socialdarwinismo.
É claro que a teoria mimética colonizada dos trópicos adaptou a explicação patológica da criminalidade à nação mestiça. "Não havia como escapar ao rigor de uma cultura científica obcecada por identificar, quantificar e categorizar deformidades, enfermidades e atavismos, passo indispensável à confecção de sinais manifestos de sua condição subalterna". Nina Rodrigues lançou-se a esta tarefa, associando-se às elites brasileiras na construção do "perigosismo social" que municiou a República brasileira para a sua vocação histórica de exclusão e extermínio. Nina Rodrigues resume em sua vida e sua obra a cooperação corporativa dos médicos e dos juristas (e também da antropologia) para a medicina-legal, que definiu o povo brasileiro estigmatizado pela inferioridade inscrita no código da raça, no suporte da natureza, fazendo com que o negro deixasse de ser apenas "máquina de trabalho" para convertê-lo em "objeto da ciência". Mariza Corrêa analisa essa disputa entre médicos, policiais e juristas pela medicina-legal no contexto da fundação da antropologia no Brasil. Vozes dissonantes, como Tobias Barreto, pagaram seu preço no ostracismo e no degredo intelectual a que foram submetidos em seu tempo.
Mas a história continua. Algumas décadas depois, Freud inaugura a psicanálise, que ilumina as teorias da criminalidade com uma inversão da perspectiva de investigação criminológica. O foco sai do fenômeno para a reação social ao desvio. Através da negação do conceito tradicional da culpabilidade, a psicanálise entende a função punitiva da sociedade identificada com o criminoso, bem como as fontes afetivas desta função punitiva. Desvela-se o caráter simbólico dos procedimentos jurídicos e, depois de "Totem e Tabu", "Mal-Estar na Civilização", "Psicologia das Massas" e "Análise do Eu", nunca mais a pena seria a mesma.
Mas o golpe mortal no conceito de crime natural, o novo paradigma criminológico, surgiria nas décadas de 60 e 70 deste século com o rotulacionismo (labeling approach) ou enfoque da reação social. Nada seria como antes. O objeto da criminologia, antes o homem delinqüente, depois o desvio, se movimenta em outra direção, a da produção social do desvio e do delinqüente. Para explicar a criminalidade, é necessária a compreensão da ação do sistema penal na construção do status do delinqüente, numa produção de etiquetas e de identidades sociais. Recuperando a definição da escola clássica em que o delito é produto do direito e não da natureza, os técnicos do labeling, na efervescência política e cultural daquelas décadas, apontam suas baterias para o sistema penal em si, analisando as construções sociais empregadas para definir o criminoso. Se a pergunta era "quem é o criminoso", agora passa a ser "quem é definido como criminoso"(Baratta, 1999).
A difusão tardia do livro de Rusche ("Punição e Estrutura Social") e sua atualização por Kirchheimer põe em circulação a idéia da relação histórica entre as condições sociais, a estrutura do mercado de trabalho, os movimentos da mão-de-obra e a execução penal, inscrevendo as construções do estereótipo nas condições objetivas, estruturais e funcionais da lógica de acumulação do capital, historicizando a realidade comportamental. É neste terreno sólido que Foucault avança para a compreensão do caráter simbólico do sistema penal sobre as ilegalidades populares, a disciplina e sua "arte de distribuições" e a implantação de uma "tecnologia minuciosa e calculada de sujeição".
Daí ergue-se a criminologia crítica e a superação do paradigma etiológico, aonde a criminalidade não é ontológica mas atribuída, num processo de dupla seleção, distribuída desigualmente de acordo com a hierarquização decorrente do sistema sócio-econômico. No entanto, a força desse novo paradigma não é suficiente para abalar o funcionamento do sistema penal no seu eterno trabalho de seleção e estigmatização. Afinal, as famosas condições objetivas não só não mudaram, como se aprofundaram na lógica de reprodução do capital.
O desafio para os estudiosos do crime, hoje, é compreender a função do sistema penal e seu discurso num mundo globalizado, com o enfraquecimento do Estado e o poder aparentemente infinito do mercado. Além desse grande desafio, é importante compreender o papel que esse sistema e esse discurso penal desempenham, em países como o Brasil, objeto e não sujeito da globalização. Zaffaroni define genialmente o problema ao estender o conceito foucaultiano de instituições de seqüestro ao continente latino-americano como um todo. Para ele "a projeção genocida de um tecno-colonialismo correspondente à última revolução (tecno-científica) faria empalidecer a cruel história dos colonialimos anteriores".
Zygmunt Bauman, em recente trabalho, trata da "colocação em ordem" posta em marcha na "pós-modernidade" para dar conta das "novas anormalidades", tratando de identificar, traçar e criar constantemente fronteiras para os novos impuros, os consumidores falhos, já que o novo critério de pureza, ou de reordenamento, é a aptidão e a capacidade de consumo.
Raúl Zaffaroni, em recente curso de criminologia, afirma que o medo é o eixo de todos os discursos criminológicos. Para ele, o risco da criminologia é ser "saber e arte de despejar perigos discursivos". A criminologia foi fundada no discurso científico do perigosismo social elaborado pelo trabalho médico jurídico, o que Evaristo de Moraes denominou "medicina-policial".
A questão criminal e a administração do perigosismo social passam a ser alvo de intensa disputa a partir da criação e autonomização das corporações no século XVIII. É por isso que o discurso jurídico-penal se adapta ao discurso biológico, quando o social darwinismo passa a ser o discurso hegemônico. O discurso criminológico está sempre no marco histórico do poder mundial, seja na revolução mercantil, seja na revolução industrial, e depois na tecnológica exercida como globalização. Para Zaffaroni, o discurso criminológico médico-policial de natureza biológico do século XIX permaneceu hegemônico até hoje na Europa, nos Estados Unidos e principalmente na América Latina. Historicamente, a América Latina foi (como colônia) uma espécie de instituição total: apareceu como seqüestro institucionalizado de milhões de seres humanos. Assim, a prisão nas colônias seria uma instituição de seqüestro menor, dentro de outra muito maior, um apartheid criminológico natural. Em nossa região o sistema penal adquire características genocidas de contenção, diferentes das características disciplinadoras dos países centrais.
O fim do século XX assiste ao declínio do poder político e à ascensão do poder econômico transnacionalizado. O poder político nacional é drasticamente reduzido e não dá conta da conflitividade gerada pela exclusão e desamparo da nova ordem econômica planetária. Para Zaffaroni a revolução tecnológica do século XX abre caminho "a uma nova etapa de poder mundial (a globalização) em que condutas tradicionalmente criminalizadas tendem a ser monopolizadas pelo poder econômico e pelas agências políticas nacionais". O poder político em queda não dispõe de um discurso criminológico hegemônico. É um poder político "que não pode reduzir a violência que a sua impotência gera". Este poder precisa mais do que um discurso, precisa de "um libreto para seu espetáculo". Estamos falando da discussão deste novo ator social, a mídia e as agências de comunicação social. A luta pela hegemonia do discurso criminológico dá-se na esfera das comunicações, e o que se observa é a subordinação do discurso político às agências de comunicação. Os políticos não pautam, são pautados.
A nova ordem mundial pode ser entendida à luz do conceito de "barbarização secundária", acerca do impacto da metrópole na periferia do mundo. A liberdade irrestrita do capital financeiro despedaçou as redes de segurança societárias, detonando um processo de polarização que não pode mais ser contido pelas estruturas legais do welfare state, criando condições de desigualdade assustadoras. Loïc Wacquant afirma que com o desmantelamento do welfare state, iniciado por Reagan, começa nos EUA uma popularização de medidas policiais e jurídicas que instaura uma "caça aos pobres" e um processo de penalização da precariedade.
Para Wacquant, a destruição deliberada do Estado Social e a hipertrofia crescente do Estado Penal nos últimos vinte e cinco anos são processos concomitantes e complementares. Tanto Bauman como Wacquant associam as taxas de encarceramento a esta forma contemporânea de encarar o social. Wacquant faz um paralelo entre os inimigos cômodos, criados pelas ondas de criminalização na América (entre os negros) e na Europa (imigrantes do terceiro mundo).
Bauman nos fala que a pobreza não é mais exército de reserva de mão-de-obra; tornou-se uma pobreza sem destino, precisando ser isolada, neutralizada e destituída de poder. Esses resultados seriam alcançados através da "estratégia bifurcada da incriminação da pobreza e da brutalização dos pobres". Os novos inimigos da ordem pública (ontem terroristas, hoje traficantes) são submetidos diuturnamente ao espetáculo penal, às visões de terror dos motins penitenciários e dos corredores da morte. Não é coincidência que a política criminal de drogas, hegemônica no planeta, dirija-se aos pobres globais indiscriminadamente: sejam eles jovens favelados no Rio, camponeses na Colômbia ou imigrantes indesejáveis no hemisfério norte. Para Bauman a combinação de estratégias de exclusão, criminalização e brutalização dos pobres impede a condensação de um sentimento de injustiça capaz de rebelar-se contra o sistema.
Analisando os processos de adolescentes criminalizados por drogas nos arquivos do Juizado de Menores, de 1964 a 1988, pude acompanhar a construção deste novo inimigo no sistema penal. A seletividade do sistema e a diferenciação no tratamento se revela desde a detenção por "atitude suspeita", aos preconceitos quanto à moradia nas favelas, à família popular e ao trabalho nos laudos dos técnicos, até as penas impostas, que variam de acordo com a etnia e classe social dos jovens em questão. Podemos concluir então que, se por um lado temos uma problemática criminal contemporânea que envolve milhares de jovens, temos, por outro, os mesmos procedimentos, as mesmas alternativas e o mesmo olhar positivista e lombrosiano que tínhamos no começo da República.
Assim, o social-darwinismo, positivista e perigosista da fundação da criminologia, cumpre o seu papel na pós-modernidade. É ele que municia o discurso dos operadores do sistema penal que irão construir, cientificamente, o argumento de exclusão, levando até as últimas conseqüências o que Nilo Batista denominou "uma política criminal com derramamento de sangue"; espetáculo de horror levado ao ar, ao vivo e a cores.


Vera Malaguti Batista – Socióloga, historiadora e professora - outubro de 2000
IN Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) n. 95, esp.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Um desafio à intelligentzia acadêmica

Ele (José Comblin) é um dos melhores representantes do novo tipo de intelectual que caracteriza os teólogos da libertação e dos agentes de pastoral que estão nesta caminhada: operar a troca de saberes, vale dizer, tomar a sério o saber popular, “de experiências feito”, banhado de suor e sangue mas rico em sabedoria e articulá-lo com o saber acadêmico, crítico e comprometido com as transformações sociais.

Leonardo Boff
No dia 27 de março morreu aos 88 anos de idade perto de Salvador o teólogo da libertação José Comblin. Belga de nascimento, optou por trabalhar na América Latina, pois se dava conta de que o Cristianismo europeu era crepuscular e via em nosso Subcontinente espaço para a criatividade e um novo ensaio da fé cristã articulada com a cultura popular. Ele encarnava o novo modo de fazer teologia, inaugurado pela Teologia da Libertação, que é ter um pé na miséria e outro na academia. Ou dito de outro modo: articular o grito do oprimido com a fé libertadora da mensagem de Jesus, partindo sempre da realidade contraditória e não de doutrinas e buscar coletivamente uma saída libertadora a partir do povo.
Viveu pobre e despojado no Nordeste brasileiro. E mesmo lá, onde se presume não haver condições para uma produção intelectual aprimorada, escreveu dezenas de livros, muitos deles de grande erudição. Logicamente aproveitava as temporadas que passava na Universidade de origem, a de Lovaina, para se reciclar. Assim escreveu um dos melhores livros sobre a Ideologia da Segurança Nacional, dois volumes sobre a Teologia da Revolução, um detalhado estudo sobre o Neoliberalismo: a ideologia dominante na virada do século. E dezenas de livros teológicos, exegéticos e de espiritualidade entre os quais destaco: O Tempo da Ação; Cristãos rumo ao século XXI e Vocação para a Liberdade. Foi assessor de Dom Helder Câmara em sua luta pelos pobres e de Dom Leônidas Proaño, bispos dos índios em Riobamba no Equador.
Devido a suas ideias, foi em expulso do Brasil pelos militares em 1972. Foi trabalhar no Chile de onde os militares também o expulsaram em 1980. De regresso ao Brasil, se dedicou a dar corpo à sua profunda convicção: a de que o novo cristianismo no Brasil deverá nascer da fé do povo. Criou várias iniciativas de evangelização popular que vinham sob o nome de Teologia da Enxada. Inspirou-se no Padre Ibiapina e do Padre Cícero, os grandes missionários do Nordeste, pois mais que administrar sacramentos e fortalecer a instituição eclesiástica, exerciam a pastoral do aconselhamento e da consolação dos oprimidos, coisa que eles mais buscam.
Ele é um dos melhores representantes do novo tipo de intelectual que caracteriza os teólogos da libertação e dos agentes de pastoral que estão nesta caminhada: operar a troca de saberes, vale dizer, tomar a sério o saber popular, “de experiências feito”, banhado de suor e sangue mas rico em sabedoria e articulá-lo com o saber acadêmico, crítico e comprometido com as transformações sociais. Essa troca enriquece a uns e a outros. O intelectual repassa ao povo um saber que o ajuda avançar e o povo obriga o intelectual a pensar os problemas candentes e se enraizar no processo histórico. A Intelligentzia acadêmica possui uma dívida social enorme para com os pobres e marginalizados. Em grande parte as universidades representam macroaparelhos de reprodução da sociedade discricionária e fábricas formadoras de quadros para o funcionamento do sistema imperante. Mas há de se reconhecer também, não obstante seus limites, o fato de que foi e é um laboratório do pensamento contestatário e libertário.
Mas não houve ainda um encontro profundo entre a universidade e a sociedade, fazendo uma aliança entre a inteligência acadêmica e a miséria popular. São mundos que caminham paralelos e não são as extensões universitárias que cobrirão esse fosso. Tem que ocorrer uma verdadeira troca de saberes e de experiências. Ignorante é aquele que imagina ser o povo ignorante. Este sabe muito e descobriu mil formas de viver e sobreviver numa sociedade que lhe é adversa.
Se há algum mérito nos teólogos da libertação (eles existem aqui e pelo mundo afora e Roma não conseguiu exterminá-los) é ter feito este casamento. Por isso não se pode pensar num teólogo da libertação senão metido nos dois mundos, para juntos tentarem gestar uma sociedade mais igualitária que, no dialeto cristão, tenha mais bens do Reino que são justiça, dignidade, direito, solidariedade, compaixão e amor.
O Padre José Comblin nos deixou o exemplo e o desafio.

Leonardo Boff – teólogo, filósofo e escritor – 08.04.2011

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Entre desejos e despejos


Ao ocuparem quatro prédios no centro de São Paulo no fim de 2010, os sem-teto que lutam por moradia digna se aproximam de seu maior desejo: trocar o isolamento da periferia por uma região privilegiada da metrópole. A desapropriação de 53 prédios do centro pode significar o fim dos frequentes despejos.

 
Danilo Mekari
Vinte quilômetros de muita capital separam o número 925 da Avenida Ipiranga, no centro de São Paulo, da rua Henrique Perdigão, localizada no bairro de Cidade Líder, na zona leste. A distância, porém, pode ser percorrida de duas maneiras: não se trata de carros, ônibus ou Metrô, mas de sentimentos como esperança e frustração, que se alternam de acordo com o ponto final do trajeto. Fátima Gomes de Oliveira é prova disso.
Quando seu caminho, assim como de centenas de outros sem-teto paulistanos, foi de ida ao centro – especificamente para a Avenida Ipiranga, no edifício recém-ocupado pelo movimento por moradia –, havia a compreensão de que aquele deslocamento poderia significar mudanças estruturais em suas vidas; entretanto, a inevitável reintegração de posse e o retorno à favela desmoronam grande parte destas expectativas. Mas não todas.
No Jardim Ipanema, a rua Henrique Perdigão é uma das vias que cercam a ocupação Eletropaulo, que desde 2002 tornou-se destino para quem fosse despejado de outras ocupações próximas. Por isso, a favela já conta com 700 famílias que, além das parcas condições de habitação e saneamento, têm de conviver com torres de eletricidade da empresa que dá nome ao local. Quando venta e chove, o perigo aumenta; as torres emitem zunidos de alta potência, impedindo o sono dos moradores – isso quando as goteiras não encharcam suas habitações, além do perigo de um desmoronamento quase iminente.
A família de dona Fátima, 55, já montou dois barracos na área. O primeiro veio abaixo após “uma chuva que nem era forte” – na mesma noite, um mutirão de colegas ajudou-a a levantar o segundo. Mas não tem jeito: “aqui chove mais dentro do que fora”, suspira Daniela, sua filha, enquanto a mãe não para de tossir; quando o faz, porém, não pode beber muita água. “É tudo por causa do chagas, essa doença que eu tenho”, revela. A doença de chagas, transmitida por insetos, é uma infecção que, entre muitos sintomas, enfraquece os batimentos cardíacos; o excesso de água faria com que o rim se sobrecarregasse na função de expeli-la, também forçando o coração a bater mais rápido. Dona Fátima logo retoma: “meu barraquinho ta caindo, tenho o maior medo”.
Mesmo as luzes de Natal não aliviam o incômodo da situação. Os móveis da família estão empilhados na cama de casal, sustentada por diversas caixas de plástico. Além de outros barracos, Fátima tem como vizinho um esgoto e um pequeno morro. O medo de deslizamento não a deixa dormir, e desabafa: “tenho certeza que esqueceram a gente daqui”.
O chaguismo, porém, não foi suficiente para impedir dona Fátima de participar da recente ocupação do prédio 925 da Avenida Ipiranga, no coração de São Paulo, e lutar por melhores condições de moradia. Orgulhosa de ter se instalado o primeiro andar do edifício, ela não se contém: “Quer me ver no jornal?”. Com cuidado, desdobra a página em que aparece sua foto sob a manchete “Sem-teto invadem prédios do centro”. “Era bom morar na cidade. Queria ter ficado lá”, lamenta.
Apesar do retorno à favela, dona Fátima saiu vitoriosa da ocupação: sua família receberá da Prefeitura de São Paulo uma bolsa-auxílio de R$300 por mês para o aluguel de uma nova moradia. “Minha menina viu uma casinha hoje cedo, mas vamos ter que mudar as crianças de escola, pois não é muito perto daqui”. A ajuda financeira será entregue durante 30 meses; após esse período, existe a possibilidade da sua família ter uma moradia definitiva através do programa federal Minha Casa Minha Vida – segundo a Associação dos Moradores do Jardim Ipanema, há um projeto sendo avaliado na Cidade Líder que abrigaria 160 famílias de baixa renda.
Desapropriando o centro
As últimas ocupações no centro de São Paulo aconteceram no dia 4 de outubro de 2010, quando quatro prédios ociosos foram tomados por sem-teto de uma série de movimentos pela moradia. Não apenas vazios, os edifícios ocupados acumulam dívidas de anos de IPTU (Imposto sobre Propriedade Predial e Territorial Urbana) não pagos: o número 340 da rua Mauá ignora o imposto desde 1974, com R$ 1,5 milhão de débito, enquanto na Avenida Prestes Maia, 911, o saldo negativo chega a R$ 4 milhões. O prédio do INSS, na Avenida 9 de Julho, deve 400 mil para seus concessionários (Sabesp e Eletropaulo).
No edifício da Avenida Ipiranga, mais de 1200 pessoas preenchiam a ocupação, que teve reintegração de posse no fim de novembro. Os sem-teto também se reintegraram e, despejados, montaram um acampamento em frente à Câmara dos Vereadores para continuar pressionando o poder público para cumprir as desapropriações. Por fim, 111 famílias serão beneficiadas com o auxílio-moradia.
“Para quem vive numa favela lá no fim do mundo, esse dinheiro [auxílio-moradia] é uma vitória. Tem que comemorar e lutar pra não chegar ao fim desse período de 30 meses sem nada na mão. É tão grande o esmagamento, a desigualdade e a segregação que conseguir isso já é uma vitória. E, recentemente, nós não estamos comemorando muitas vitórias”, argumenta Ermínia Maricato, professora titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e secretária de Habitação de São Paulo na gestão Erundina (1989-1992). Ela acredita que as próximas mudanças só acontecerão se o movimento pela moradia não se acomodar com tais medidas paliativas. “Eles não teriam essas vitórias se não tivessem força. Essa mudança não vem se não houver luta social – não falo só da luta de quem não tem moradia, mas também dos urbanistas e dos ambientalistas”.
O atual secretário de Habitação da prefeitura paulistana, Ricardo Pereira Leite, crê que as ocupações não são o melhor jeito para a resolução do problema. “A gente não faz acordo com quem ocupa prédio que nós estamos desapropriando, pois consideramos isso nocivo à política habitacional”.
Resultados do último Censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam que, em São Paulo, existem 290.317 moradias não-ocupadas, equivalente a 7,4% do total de domicílios da capital; desse montante, é difícil precisar a quantidade de prédios que estão inteiramente desocupados. Atualmente, está em vigor um projeto de desapropriação de 53 edifícios ociosos no centro da cidade, resultando num total de 2500 unidades, que seriam destinadas à habitação de interesse social.
Mas o secretário lembra que há entraves a serem superados: “a maioria dos prédios que estamos desapropriando são das décadas de 1940 e 50. Hoje, eles pertencem a três espólios diferentes. A complexidade jurídica é enorme”. Além disso, existem os problemas estritamente físicos dos edifícios, que na maioria eram comerciais (sem banheiro e sem acesso a veículos) e hotéis. “Os projetos serão todos adaptados para preservar ao máximo a tipologia atual”, diz Ricardo.
Segundo Ermínia, “os pobres não cabem na cidade legal, e eles não são minoria. Isso é uma coisa que não se fala: sobre a escala da ilegalidade à que é relegada a população de baixa renda – não é pouca gente. No município de São Paulo, quase um quarto da população mora ilegalmente”. Por isso, ela ressalta que a desapropriação dos prédios no centro não vai resolver o problema, mas acredita no lado simbólico da ação: “isso está apontando para outras possibilidades”.
O centro ainda distante      
Na favela Eletropaulo, não foi só dona Fátima que fez e refez o itinerário “zona leste/centro” durante as ocupações. Enquanto arruma as trancinhas coloridas no cabelo escuro, Elizabete relembra como foi difícil manter os seis filhos no prédio da Ipiranga. “Todas as crianças faltaram na escola, mas não tinha jeito, imagina levar e buscar todo o dia?”, questiona. “Elas vão ficar de recuperação”, mas mesmo assim Elizabete não se arrepende – seus filhos também estiveram no acampamento em frente à Câmara. No rádio, escolhe a música Vida Loka (parte II), dos Racionais MC’s (“sempre quis um lugar / gramado e limpo, assim verde como o mar / cercas brancas, uma seringueira com balança / desbicando pipa, cercado de criança”), e explica que vai assinar o contrato do auxílio-moradia nos próximos dias; a expectativa é grande. “A luz acaba toda hora. Já ficamos dois meses sem água. Sabe o que é abrir a torneira e não cair um pingo d’água?”.
A radiação gerada pelas torres de eletricidade da Eletropaulo é outro fator que complica a situação da favela – o risco de câncer é elevado, principalmente para quem mora ao lado delas. É o caso de Joana Darc, que divide um barraco com seus dois filhos e algumas partes da torre. “Arrumaram esse lugar de última hora, voltando de uma ocupação despejada”, revela. Joana não pôde participar das últimas ações dos sem-teto no centro, mas garante que estará nas próximas “sem falta, para ter a chance de conseguir o aluguel”. Para Elenita, sua vizinha, também só falta assinar o contrato de auxílio-aluguel; suas filhas, que também estiveram na ocupação, agora brincam no varal improvisado dentro da torre elétrica.
Mas o desejo de habitar o centro da cidade ainda está distante. As famílias da favela auxiliadas pela prefeitura procuram moradias próximas de onde moram, devido ao baixo valor do aluguel que poderão pagar. “Um dos méritos desse movimento pela moradia que ocupou o centro é justamente querer morar no centro, onde se encontra a melhor situação de acessibilidade e mobilidade da região metropolitana”, argumenta Ermínia. Segundo o secretário de Habitação, os edifícios desapropriados serão destinados às faixas de renda de zero a dez salários mínimos e também para a terceira idade. “As faixas de renda menor (zero a três salários mínimos), que não conseguem comprar a moradia, provavelmente serão atendidas com programas de locação social. As faixas de renda mais alta vão comprar de acordo com o valor de avaliação”, diz Ricardo.
Enquanto os moradores da favela Eletropaulo dividem barracos com água de chuva e torres de eletricidade, o prédio que foi ocupado da Avenida Ipiranga continua às moscas – os 20 quilômetros sempre os separarão do centro da cidade. Apenas a manutenção da luta pela moradia digna pode aproximá-los, aos poucos, do seu desejado destino. O primeiro passo já foi dado, e dona Fátima garante: “vou te convidar pra tomar um café na minha nova casa”.
Quem sabe no primeiro andar do número 925 da Avenida Ipiranga?

Danilo Mekari – Jornalista – 17.01.2011

sexta-feira, 15 de abril de 2011

A Líbia e a esquerda mundial


O aspecto mais negligenciado da situação é a profunda divisão na esquerda mundial. Vários estados latino-americanos de esquerda, e nomeadamente a Venezuela, são extravagantes no seu apoio ao coronel Khadafi. Mas os porta-vozes da esquerda mundial no Médio Oriente, na Ásia, na África, na Europa e mesmo na América do Norte não estão, decididamente, de acordo com eles.

Immanuel Wallerstein
Vários estados latino-americanos de esquerda, e nomeadamente a Venezuela, são extravagantes no seu apoio ao coronel Khadafi.
Há tanta hipocrisia e tanta análise confusa do que está a ocorrer na Líbia, que dificilmente se sabe por onde começar. O aspecto mais negligenciado da situação é a profunda divisão na esquerda mundial. Vários estados latino-americanos de esquerda, e nomeadamente a Venezuela, são extravagantes no seu apoio ao coronel Khadafi. Mas os porta-vozes da esquerda mundial no Médio Oriente, na Ásia, na África, na Europa e mesmo na América do Norte não estão, decididamente, de acordo com eles.
A análise de Hugo Chávez parece centrar-se principalmente, até exclusivamente, no facto de os Estados Unidos e a Europa Ocidental terem feito ameaças e condenações do regime de Khadafi. Khadafi, Chávez, e alguns outros insistem em que o mundo ocidental pretende invadir a Líbia e "roubar" o seu petróleo. Toda a análise esquece inteiramente o que aconteceu, e reflecte exclusivamente o julgamento de Chávez – e a sua reputação na esquerda mundial.
Antes do mais , na última década e até algumas semanas, Khadafi só tinha boa imprensa no mundo ocidental. Ele tentava de todas as formas provar que de forma alguma era defensor do "terrorismo", e que só desejava estar plenamente integrado nas principais correntes geopolíticas e económicas mundiais. A Líbia e o mundo ocidental têm feito acordos lucrativos um após outro. É difícil para mim ver Khadafi como um herói do movimento anti-imperialista mundial, pelo menos na última década.
O segundo ponto em que erra a análise de Hugo Chávez é que não vai haver qualquer envolvimento militar significativo do mundo ocidental na Líbia. As declarações públicas são todas palavreado que tem o objectivo de impressionar a opinião doméstica. Não haverá nenhuma resolução do Conselho de Segurança porque a Rússia e a China não a apoiam. Não haverá nenhuma resolução da Nato porque a Alemanha e alguns outros não alinham. Mesmo a posição militante anti-Khadafi de Sarkozy está a encontrar resistência na França.
E, acima de tudo, a oposição a uma acção militar nos Estados Unidos vem tanto do público quanto, e mais importante, dos militares. O secretário da Defesa, Robert Gates, e o presidente do Chefe do Estado-Maior conjunto, almirante Mullen, têm declarado publicamente a sua oposição à instituição de uma zona de exclusão aérea. De facto, o secretário Gates foi mais longe. Em 25 de Fevereiro, dirigiu-se aos cadetes de West Point dizendo-lhes: "Na minha opinião, qualquer futuro secretário da Defesa que aconselhe o presidente novamente a enviar um grande exército terrestre americano para a Ásia, o Médio Oriente, ou a África deveria fazer um exame à cabeça."
Para sublinhar este ponto-de-vista dos militares, o general reformado Wesley Clark, antigo comandante das forças da NATO, escreveu um artigo de opinião no Washington Post, em 11 de Março, sob o título "A Líbia não cumpre o critério para uma acção militar dos EUA". Assim, apesar do apelo dos falcões para o envolvimento dos EUA, o presidente Barack Obama vai resistir.
A questão, portanto, não é uma intervenção militar ocidental ou não. A questão são as consequências para a segunda revolta árabe da tentativa de Khadafi de suprimir toda a oposição da forma mais brutal. A Líbia está abalada por causa das revoltas vitoriosas na Tunísia e no Egipto. E, se há alguma conspiração, é entre Khadafi e o Ocidente para desacelerar, até mesmo anular, a revolta árabe. Se Khadafi for bem-sucedido, estará a enviar uma mensagem a todos os outros déspotas ameaçados da região, dizendo que o caminho a seguir é a dura repressão, em vez de concessões.
Isso é o que vê a esquerda no resto do mundo, mas não alguns governos de esquerda na América Latina. Como aponta Samir Amin na sua análise da revolta egípcia, havia quatro componentes distintos entre os manifestantes – a juventude, a esquerda radical, democratas de classe média, e os islamistas. A esquerda radical é composta de partidos de esquerda proibidos e de movimentos sindicais revitalizados. Na Líbia há sem dúvida uma muito, muito menor esquerda radical, e um exército muito mais fraco (por causa de uma política deliberada de Khadafi). O resultado é, portanto, muito incerto.
Os líderes reunidos da Liga Árabe pode m condenar publicamente Khadafi, mas muitos, mesmo a maioria, podem estar a aplaudi-lo em privado – e a copiá-lo.
Pode ser útil terminar com dois testemunhos da esquerda mundial. Helena Sheeham, activista marxista irlandesa bem conhecida em África pelo seu trabalho de solidariedade com a maioria dos movimentos mais radicais, foi convidada pelo regime de Khadafi para dar na Líbia uma palestra na universidade. Chegou no período em que começou a mobilização. As palestras na universidade foram canceladas, e ela acabou por ser simplesmente abandonada pelos seus anfitriões, e teve de ir-se embora pelos próprios meios. Fez um diário onde, no último dia, 8 de Março, escreveu: "Qualquer ambivalência em relação a este regime, acabou, acabou, acabou. É brutal, corrupto, traiçoeiro, delirante."
Podemos ver também o comunicado da COSATU, a principal federação sindical da África do Sul, e porta-voz da esquerda. Depois de elogiar as conquistas sociais do regime líbio, a COSATU disse: "A COSATU não aceita, contudo, que estas conquistas de qualquer forma desculpem o massacre daqueles que protestam contra a ditadura opressora do coronel Khadafi, e reafirma o seu apoio à democracia e aos direitos humanos na Líbia e em todo o continente. "
Vamos manter-nos atentos. A luta fundamental actual em todo o mundo é a segunda revolta árabe. Vai ser muito duro obter um resultado verdadeiramente radical nesta luta. Khadafi é um grande obstáculo para a esquerda árabe e mesmo mundial. Talvez devêssemos lembrar a máxima de Simone de Beauvoir: "Querer ser-se livre significa querer que os outros sejam livres."

Immanuel Wallerstein – Sociólogo e professor estadunidense – 18.03.2011
Tradução de Luis Leiria, revista pelo autor.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Identidades vazias

Eleger a internet como exemplo democrático é esconder diferenças sociais, institucionais e psicológicas entre as vidas “real” e “virtual.”

Slavoj Zizek

Na edição de 25 de dezembro da revista “Time”, o prêmio tradicional de “Pessoa do Ano” não foi concedido a Mahmoud Ahmadinejad [presidente do Irã], Kim Jong-Il [ditador norte-coreano], Hugo Chávez [presidente venezuelano] ou qualquer outro membro da gangue dos usuais suspeitos, mas a “você”: a todos e a cada um de nós… usuários e criadores de conteúdo na web. A capa mostra um teclado branco com um espelho para uma tela de computador onde cada um de nós, leitores, pode ver seu reflexo. Para justificar a escolha, os editores mencionaram a transição das instituições para os indivíduos, que estão ressurgindo como cidadãos da nova democracia digital.
Há coisas que os olhos não conseguem ver, nessa escolha, e em um sentido mais amplo do que o comum nessa expressão. Se algum dia já houve uma escolha ideológica, esse é um caso que merece perfeitamente a classificação: a mensagem -uma nova democracia cibernética na qual milhões podem se comunicar e organizar diretamente, contornando o controle estatal centralizado- encobre uma série de brechas e tensões perturbadoras.
A primeira e mais evidente das ironias é que cada pessoa que olhe a capa da “Time” não verá as demais pessoas com quem supostamente se relaciona diretamente, e sim um reflexo de sua própria imagem. Não admira que Leibniz [1646-1716] seja uma das referências filosóficas preferenciais dos teóricos do ciberespaço: afinal, a imersão das pessoas no ciberespaço não se enquadra perfeitamente à nossa redução a uma mônada leibniziana que, embora “sem janelas” capazes de se abrir diretamente para as realidades externas, espelha em si mesma todo o universo?
Será que o típico internauta atual, sentado sozinho diante da tela de seu computador, não representa mais e mais uma mônada sem janelas diretas para a realidade, envolvido apenas com simulacros virtuais, e no entanto mais e mais imerso na rede mundial, e se comunicando de maneira sincrônica com todo o planeta?
Uma das mais recentes modas entre os radicais do sexo são as maratonas de masturbação, eventos coletivos nos quais centenas de homens e mulheres se autopropiciam satisfação sexual para fins de caridade. A masturbação cria uma coletividade a partir de indivíduos dispostos a compartilhar uns com os outros… o quê?
O solipsismo de uma diversão estúpida. Seria possível propor que as maratonas de masturbação são a forma de sexualidade que se enquadra de maneira mais perfeita às coordenadas do ciberespaço.
Mas isso é apenas uma parte da história. O que se torna preciso acrescentar é que o “você” que se reconhece enquanto imagem em uma tela padece de uma profunda divisão: eu jamais me limito a ser a persona que assumo na máquina. Primeiro, existe o (bastante evidente) excesso do eu como pessoa corpórea “real” além da persona virtual.
Ética virtual
Os marxistas e outros pensadores de inclinações críticas gostam de apontar para o fato de que a igualdade do ciberespaço é enganosa – ela ignora todas as complexas disposições materiais (meu patrimônio, minha posição social, meu poder ou falta dele etc.). A inércia da vida real desaparece magicamente na navegação pelo ciberespaço, desprovida de fricção. No mercado atual, encontramos toda uma série de produtos privados de suas propriedades malignas: café sem cafeína, creme sem gordura, cerveja sem álcool… ciberespaço. A realidade virtual simplesmente generaliza esse procedimento: cria uma realidade privada de substância. Da mesma maneira que o café descafeinado tem cheiro e gosto semelhantes aos do café sem ser café, minha persona na rede, o “você” que vejo lá, é sempre um “eu” descafeinado. Por outro lado, existe também o excesso oposto, e muito mais perturbador: o excedente de minha persona virtual com relação ao meu “eu” real. Nossa identidade social, a pessoa que presumimos ser em nosso intercurso social, já é uma máscara, já envolve a repressão de nossos impulsos inadmissíveis, e é precisamente nessas condições de “só uma brincadeira”, quando as regras que regulam os intercâmbios de nossas vidas reais estão temporariamente suspensas, que podemos nos permitir a exibição dessas atitudes reprimidas.
Basta lembrar do mitológico sujeito tímido e impotente que, participando de um jogo virtual interativo, adota a identidade de um assassino sádico e sedutor irresistível. Seria simples demais afirmar que essa identidade é apenas um suplemento imaginário, uma fuga temporária de sua impotência na vida real. Na verdade, o que importa é que, porque ele sabe que o jogo virtual é “apenas um jogo”, ele se sente capaz de exibir “seu eu real”, fazer coisas que nunca fez em interações reais -sob a capa de uma ficção, a verdade sobre ele se articula.
O fato mesmo de que eu perceba minha auto-imagem virtual como simples brincadeira me permite, assim, suspender os obstáculos que usualmente impedem que eu realize meu “lado escuro” na vida real -meu “id eletrônico” ganha asas, dessa forma. E o mesmo se aplica aos meus parceiros na comunicação via ciberespaço. Não há como ter certeza de quem sejam, de que sejam “realmente” como se descrevem, ou de saber se existe uma pessoa “real” por trás da persona on-line. A persona on-line é uma máscara para uma multiplicidade de pessoas? A pessoa “real” com quem converso possui e manipula mais personas no computador, ou estou simplesmente me relacionando com uma entidade digitalizada que não representa pessoa “real” alguma?
Existência sublimada
Para resumir, “interface” quer dizer exatamente que minha relação com o outro nunca acontece face a face, que sempre há a mediação de uma maquinaria digital interposta cuja estrutura é labiríntica: eu “navego”, eu me perco sem muito rumo nesse espaço infinito onde mensagens circulam livremente sem destino fixo, enquanto seu Todo -esse imenso circuito de murmúrios- continua para sempre além do escopo de minha compreensão. O obverso da democracia direta do ciberespaço é essa caótica e impenetrável magnitude de mensagens e seus circuitos, que nem mesmo o maior esforço de minha imaginação é capaz de compreender -o filósofo Immanuel Kant [1724-1804] teria classificado o ciberespaço como “sublime”.
Pouco mais de uma década atrás, havia um brilhante comercial inglês de cerveja. A primeira parte reproduzia a conhecida história de uma moça que caminha ao longo de um riacho, vê um sapo, o toma nas mãos e beija, e o sapo miraculosamente se transforma em príncipe. Mas a história não acabava assim. O jovem olhava a moça de um jeito cobiçoso, a tomava nos braços, a beijava e ela se transformava em uma garrafa de cerveja, que ele exibia em um gesto triunfante.
Assombração na rede
A moça fantasiava sobre um sapo que na verdade era príncipe, o rapaz sobre uma moça que na verdade era uma garrafa de cerveja: para a mulher, seu amor e afeto (sinalizado pelo beijo) poderiam fazer de um sapo um príncipe, enquanto para o homem, tudo não passa de um esforço para reduzir a mulher ao que os psicanalistas designam como “objeto parcial” -aquilo que, em você, me faz desejar você (é claro que um argumento feminista óbvio seria que as mulheres, em sua experiência amorosa cotidiana, em geral experimentam a passagem oposta: beijam um belo jovem e, quando o vêem de perto, ou seja, tarde demais, descobrem que ele é um sapo…).
O casal real de homem e mulher, portanto, vive assombrado por essa bizarra figura de um sapo abraçando uma garrafa de cerveja. O que a arte moderna propicia é exatamente esse espectro subjacente. É perfeitamente possível imaginar um quadro do pintor surrealista Magritte no qual um sapo abraça uma garrafa de cerveja, com um título como “Homem e Mulher” ou “Casal Ideal” (a associação com a famosa cena surrealista do burro morto ao piano [do filme "O Cão Andaluz"] fica completamente justificada, nesse caso).

É essa a ameaça do ciberespaço e de seus jogos, no plano mais elementar: quando um homem e uma mulher interagem nele, podem se ver assombrados pelo espectro do sapo que abraça a cerveja. Já que nenhum dos dois está consciente disso, as discrepâncias entre o que “você” realmente é e o que “você” aparenta ser no espaço digital podem resultar em violência homicida.

Slavoj Zizek – Filósofo esloveno – 07.01.2007

domingo, 10 de abril de 2011

Ativista do movimento de moradia, Gegê é absolvido após nove anos

A decisão foi anunciada depois de o promotor Roberto Tardelli, responsável pela acusação, ter defendido a inocência do líder do movimento de moradia, classificando como "temerária" sua condenação.

Suzana Vier
São Paulo – Luiz Gonzaga da Silva, o Gegê, foi absolvido em júri popular no final da tarde desta terça-feira (5), segundo dia de julgamento, no Fórum Criminal da Barra Funda, na capital paulista. A decisão foi anunciada depois de o promotor Roberto Tardelli, responsável pela acusação, ter defendido a inocência do líder do movimento de moradia, classificando como "temerária" sua condenação.
A sessão do júri popular, iniciada na segunda-feira (4), foi acompanhada por vereadores, deputados e um senador. Gegê é membro do Movimento de Moradia no Centro (MMC) e da Central de Movimentos Populares (CMP). A acusação era vista como uma tentativa de criminalização dos movimentos sociais.
Em 2002, Gegê foi acusado de dar carona ao assassino de um homem que morava no acampamento sob coordenação do MMC. Em parte desse período, o ativista teve momentos em que foi considerado foragido da Justiça. Ele se dizia condenado por ter sido impedido de viver com dignidade nos últimos nove anos.
Após a sentença, Gegê afirmou que vai precisar se preocupar com a própria segurança por ter inimigos nas ruas. Claramente entristecido, apesar do resultado, ele explicou que teme agora pela própria vida e não sabe ainda exatamente o que vai fazer. "Estou em liberdade, mas não sei o que está por trás das inimizades fabricadas durante o processo. O caso todo mostra que houve interesses e pessoas que quiseram me incriminar", avisa.

Para o ex-ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos Paulo Vannuchi, o julgamento foi positivo, mas não há lugar para uma "explosão de alegria". "Gegê passou por uma odiosa perseguição por nove anos em que se configurou uma armação policial para criminalizar os movimentos sociais. Armação esta com repercussão judicial", critica. Ele lembra que esse tipo de fato tira anos das pessoas e dos movimentos, ao jogá-los na clandestinidade. "O caso mostra o quanto o Judiciário precisa avançar", pontua.

Adriano Diogo (PT-SP), deputado estadual, lamentou a demora no julgamento do caso. "O inocente ficou 'condenado sem julgamento' por esse tempo todo e sequer a polícia foi atrás do mandante."
Durante a sessão do júri, além do parecer de Tardelli, o advogado de defesa, Guilherme Madi, pediu absolvição lembrando que havia interesse de um grupo com relações estreitas com o tráfico de drogas em dominar o acampamento onde houve o crime, pelo qual Gegê foi acusado de coautoria. O MMC, do qual Gegê é uma das lideranças, estabelecia diretrizes para o acampamento, entre elas a de não haver bebida alcóolica, drogas e violência no local. O interesse desse grupo em encriminá-lo era permitir o controle do acampamento. A postura de Gegê, contrária à circulação de entorpecentes no local, provocou inimizades.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Políticas frágeis colocam vidas em risco

O programa de proteção a ativistas ameaçados patina por falta de verba.(...) Diferentemente das ações convencionais para testemunhas em risco (como o Provita), nas quais o Estado garante escolta policial e residência segura às vítimas em potencial, esse programa visa dar amparo aos militantes ameaçados no local onde eles atuam politicamente, uma forma de garantir que os líderes de movimentos sociais ou ativistas de direitos humanos possam continuar seu trabalho.


Rodrigo Martins

A irmã Maria Henriqueta Cavalcante, da Comissão de Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), está jurada de morte há dois anos. A religiosa contribuiu para os trabalhos da CPI da Pedofilia da Assembleia Legislativa do Pará, que resultaram na condenação do ex-deputado estadual Luiz Sefer a 21 anos de prisão. Desde então, recebe telefonemas ameaçadores. Em 2009, a missionária recorreu ao Programa Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, mas ainda não recebeu escolta policial.
A irmã Maria faz parte de um grupo de 13 ativistas ameaçados de morte no Pará e com os pedidos de proteção autorizados, mas que ainda não receberam assistência por falta de efetivo policial. “Temos apenas sete militantes protegidos no estado. A falta de estrutura nos impede de garantir a segurança de mais gente”, afirma o defensor público Márcio Cruz, coordenador regional do programa. “A Secretaria de Segurança Pública alega não ter agentes treinados. É preocupante. Diante dos conflitos que temos no Pará, a tendência é a demanda aumentar.”
A trágica situação paraense não é um caso isolado, alertam entidades de direitos humanos. Com um exíguo orçamento de 2 milhões de reais, o programa de proteção não tem conseguido atender à demanda e enfrenta uma série de obstáculos. Um dos principais é a baixa adesão dos governos estaduais, que atuam como parceiros (o governo federal oferece assistência técnica e recursos, enquanto os estados providenciam a escolta policial). Atualmente, apenas sete das 27 unidades federativas estão conveniadas: Pará, Espírito Santo, Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Os ativistas ameaçados em estados que não firmaram a parceria com a União podem solicitar apoio da Polícia Federal ou da Força Nacional. Mas nem sempre isso ocorre como deveria.
O líder quilombola Manoel Costa, de 35 anos, passou três meses à espera de proteção policial num hotel de Brasília, isolado de sua comunidade do interior do Maranhão. Alvo de conflito fundiário, o quilombo onde vive foi vítima de incêndios criminosos e ataques de pistoleiros. Em outubro de 2010, o colega Flaviano Pinto Neto, de 45 anos, foi executado com sete tiros de pistola 380. Logo em seguida, Manoel abandonou a região. Seria acolhido pelo programa de proteção em meados de dezembro. “À época, o governo federal providenciou agentes da Força Nacional para garantir minha segurança, mas a governadora Roseana Sarney demorou três meses para autorizar o apoio das tropas federais. Minha vida ficou parada por todo esse tempo.”
O programa brasileiro de proteção aos defensores de direitos humanos é considerado pioneiro no mundo. Diferentemente das ações convencionais para testemunhas em risco (como o Provita), nas quais o Estado garante escolta policial e residência segura às vítimas em potencial, esse programa visa dar amparo aos militantes ameaçados no local onde eles atuam politicamente, uma forma de garantir que os líderes de movimentos sociais ou ativistas de direitos humanos possam continuar seu trabalho.
“Nenhum outro país tem um programa semelhante e esperamos levar essa experiência para as Nações Unidas como exemplo a ser seguido”, afirma Maria do Rosário, secretária nacional de Direitos Humanos. O problema, admite a ministra, é o alcance e os recursos limitados. “O atual orçamento nos permite dar assistência apenas aos que estão incluídos no programa, mas a demanda é muito maior.”
De acordo com o governo federal, desde que o projeto foi criado, em 2004, ao menos 240 ativistas foram atendidos e 170 receberam proteção policial. “Entendemos por atendimento não apenas quem recebeu escolta, mas quem teve de se afastar um tempo da cidade e teve a hospedagem paga pelo programa ou quem foi beneficiado com assessoria jurídica”, explica a ministra. Quanto aos ativistas que pediram proteção e não receberam por falta de recursos ou estrutura, Maria do Rosário afirma: “Não temos nenhum levantamento a respeito. Essa situação do Pará não deveria existir. Os estados têm responsabilidades e precisam garantir o efetivo necessário”.
Mesmo quando a proteção depende apenas da União há falhas graves. Em 2009, o advogado e vereador de Itambé (PE) Manoel Mattos foi assassinado. Ele denunciava a atuação de um grupo de extermínio que agia na divisa entre Pernambuco e Paraíba. Por determinação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, recebeu escolta da PF. Mas a proteção foi interrompida um ano antes de ele ser executado. Pior: familiares do ativista continuam ameaçados e sem proteção.
“Chegaram a oferecer escolta da Polícia Militar, mas eu não confio neles, porque o grupo que matou meu filho também era integrado por PMs”, afirma Nair Ávila, mãe de Manoel Mattos e uma das testemunhas no processo. “A PF só dá apoio em alguns deslocamentos, quando tenho de viajar para depor ou votar nas eleições. Mesmo assim, é uma complicação danada. Não pude ir à missa de dois anos da morte do meu filho, em Itambé, por falta de escolta. Alegaram falta de tempo para mobilizar uma equipe.”
Além disso, nem sempre a simples escolta policial é suficiente para garantir a segurança dos ativistas. O presidente da Associação Homens do Mar da Guanabara (Ahomar), Alexandre Anderson de Souza, de 39 anos, afirma sofrer perseguições desde que a comunidade de pescadores passou a se opor à construção de um gasoduto da Petrobras em Magé, confiado ao consórcio GLP Submarino. Em abril de 2009, Souza sofreu um atentado a tiros, mas escapou ileso. Três semanas depois, o tesoureiro da Ahomar, Paulo César dos Santos Souza, foi executado com cinco tiros no rosto. A polícia abriu inquérito, mas ninguém foi preso. Alexandre passou a viver com escolta. Nem por isso se sente seguro. “Ele vive num bairro ermo, suscetível a ataques de pistoleiros. E tem duas famílias, uma ex-mulher com filhos. A escolta pessoal não lhe garante a paz”, diz a advogada Fernanda Vieira, do Centro de Assessoria Jurídica Popular Mariana Criola.
A ministra Maria do Rosário reconhece que o programa precisa ser aprimorado. “Estamos em contato com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, para capacitar agentes da Força Nacional e oficializar o emprego das tropas nessa função. Também negociamos com os governadores para ampliar a cobertura. Além disso, encaminhamos um projeto de lei ao Congresso para transformar o programa, hoje regulamentado com um decreto do ex-presidente Lula, numa política nacional.”
A proposta é bem recebida por organizações de defesa dos direitos humanos. “Se deixar de ser um programa de governo, suscetível às mudanças de gestão ou cortes de recursos, e se transformar numa política pública, com orçamento próprio e metas a serem alcançadas, a chance de o programa cumprir seu papel é bem maior”, afirma Sandra Carvalho, da Justiça Global.

Rodrigo Martins – Jornalista –  09.03.2011