domingo, 24 de abril de 2011

O mesmo olhar positivista


A seletividade do sistema e a diferenciação no tratamento se revela desde a detenção por "atitude suspeita", aos preconceitos quanto à moradia nas favelas, à família popular e ao trabalho nos laudos dos técnicos, até as penas impostas, que variam de acordo com a etnia e classe social dos jovens.


Vera Malaguti Batista
Em recente trabalho sobre drogas no Brasil, expus os rastros de sangue deixados na história da criminologia, do positivismo à criminologia crítica. Para empreender a tarefa fundamental da criminologia que, como nos ensinou Baratta, é a teoria crítica da realidade social do Direito, debrucemo-nos sobre sua história.
Na virada do século XIX surge na Europa a criminologia, nova disciplina, ancorada nas teorias patológicas da criminalidade que, a partir das características biológicas e psicológicas, classificava a humanidade entre normais e criminosos, estes últimos observados em minuciosas experiências "científicas" nas instituições totais. O delito como conceito jurídico definido pela filosofia liberal clássica dos séculos XVIII e XIX é substituído pelo delito natural de Garofalo, no paradigma do positivismo naturalista, do determinismo biológico. O início dessa nova "disciplina científica" estatui seu objeto no homem delinqüente. Classificações exaustivas são realizadas por Lombroso para detecção dos "sinais antropológicos" e sua associação às teorias racistas hierarquizantes provenientes do socialdarwinismo.
É claro que a teoria mimética colonizada dos trópicos adaptou a explicação patológica da criminalidade à nação mestiça. "Não havia como escapar ao rigor de uma cultura científica obcecada por identificar, quantificar e categorizar deformidades, enfermidades e atavismos, passo indispensável à confecção de sinais manifestos de sua condição subalterna". Nina Rodrigues lançou-se a esta tarefa, associando-se às elites brasileiras na construção do "perigosismo social" que municiou a República brasileira para a sua vocação histórica de exclusão e extermínio. Nina Rodrigues resume em sua vida e sua obra a cooperação corporativa dos médicos e dos juristas (e também da antropologia) para a medicina-legal, que definiu o povo brasileiro estigmatizado pela inferioridade inscrita no código da raça, no suporte da natureza, fazendo com que o negro deixasse de ser apenas "máquina de trabalho" para convertê-lo em "objeto da ciência". Mariza Corrêa analisa essa disputa entre médicos, policiais e juristas pela medicina-legal no contexto da fundação da antropologia no Brasil. Vozes dissonantes, como Tobias Barreto, pagaram seu preço no ostracismo e no degredo intelectual a que foram submetidos em seu tempo.
Mas a história continua. Algumas décadas depois, Freud inaugura a psicanálise, que ilumina as teorias da criminalidade com uma inversão da perspectiva de investigação criminológica. O foco sai do fenômeno para a reação social ao desvio. Através da negação do conceito tradicional da culpabilidade, a psicanálise entende a função punitiva da sociedade identificada com o criminoso, bem como as fontes afetivas desta função punitiva. Desvela-se o caráter simbólico dos procedimentos jurídicos e, depois de "Totem e Tabu", "Mal-Estar na Civilização", "Psicologia das Massas" e "Análise do Eu", nunca mais a pena seria a mesma.
Mas o golpe mortal no conceito de crime natural, o novo paradigma criminológico, surgiria nas décadas de 60 e 70 deste século com o rotulacionismo (labeling approach) ou enfoque da reação social. Nada seria como antes. O objeto da criminologia, antes o homem delinqüente, depois o desvio, se movimenta em outra direção, a da produção social do desvio e do delinqüente. Para explicar a criminalidade, é necessária a compreensão da ação do sistema penal na construção do status do delinqüente, numa produção de etiquetas e de identidades sociais. Recuperando a definição da escola clássica em que o delito é produto do direito e não da natureza, os técnicos do labeling, na efervescência política e cultural daquelas décadas, apontam suas baterias para o sistema penal em si, analisando as construções sociais empregadas para definir o criminoso. Se a pergunta era "quem é o criminoso", agora passa a ser "quem é definido como criminoso"(Baratta, 1999).
A difusão tardia do livro de Rusche ("Punição e Estrutura Social") e sua atualização por Kirchheimer põe em circulação a idéia da relação histórica entre as condições sociais, a estrutura do mercado de trabalho, os movimentos da mão-de-obra e a execução penal, inscrevendo as construções do estereótipo nas condições objetivas, estruturais e funcionais da lógica de acumulação do capital, historicizando a realidade comportamental. É neste terreno sólido que Foucault avança para a compreensão do caráter simbólico do sistema penal sobre as ilegalidades populares, a disciplina e sua "arte de distribuições" e a implantação de uma "tecnologia minuciosa e calculada de sujeição".
Daí ergue-se a criminologia crítica e a superação do paradigma etiológico, aonde a criminalidade não é ontológica mas atribuída, num processo de dupla seleção, distribuída desigualmente de acordo com a hierarquização decorrente do sistema sócio-econômico. No entanto, a força desse novo paradigma não é suficiente para abalar o funcionamento do sistema penal no seu eterno trabalho de seleção e estigmatização. Afinal, as famosas condições objetivas não só não mudaram, como se aprofundaram na lógica de reprodução do capital.
O desafio para os estudiosos do crime, hoje, é compreender a função do sistema penal e seu discurso num mundo globalizado, com o enfraquecimento do Estado e o poder aparentemente infinito do mercado. Além desse grande desafio, é importante compreender o papel que esse sistema e esse discurso penal desempenham, em países como o Brasil, objeto e não sujeito da globalização. Zaffaroni define genialmente o problema ao estender o conceito foucaultiano de instituições de seqüestro ao continente latino-americano como um todo. Para ele "a projeção genocida de um tecno-colonialismo correspondente à última revolução (tecno-científica) faria empalidecer a cruel história dos colonialimos anteriores".
Zygmunt Bauman, em recente trabalho, trata da "colocação em ordem" posta em marcha na "pós-modernidade" para dar conta das "novas anormalidades", tratando de identificar, traçar e criar constantemente fronteiras para os novos impuros, os consumidores falhos, já que o novo critério de pureza, ou de reordenamento, é a aptidão e a capacidade de consumo.
Raúl Zaffaroni, em recente curso de criminologia, afirma que o medo é o eixo de todos os discursos criminológicos. Para ele, o risco da criminologia é ser "saber e arte de despejar perigos discursivos". A criminologia foi fundada no discurso científico do perigosismo social elaborado pelo trabalho médico jurídico, o que Evaristo de Moraes denominou "medicina-policial".
A questão criminal e a administração do perigosismo social passam a ser alvo de intensa disputa a partir da criação e autonomização das corporações no século XVIII. É por isso que o discurso jurídico-penal se adapta ao discurso biológico, quando o social darwinismo passa a ser o discurso hegemônico. O discurso criminológico está sempre no marco histórico do poder mundial, seja na revolução mercantil, seja na revolução industrial, e depois na tecnológica exercida como globalização. Para Zaffaroni, o discurso criminológico médico-policial de natureza biológico do século XIX permaneceu hegemônico até hoje na Europa, nos Estados Unidos e principalmente na América Latina. Historicamente, a América Latina foi (como colônia) uma espécie de instituição total: apareceu como seqüestro institucionalizado de milhões de seres humanos. Assim, a prisão nas colônias seria uma instituição de seqüestro menor, dentro de outra muito maior, um apartheid criminológico natural. Em nossa região o sistema penal adquire características genocidas de contenção, diferentes das características disciplinadoras dos países centrais.
O fim do século XX assiste ao declínio do poder político e à ascensão do poder econômico transnacionalizado. O poder político nacional é drasticamente reduzido e não dá conta da conflitividade gerada pela exclusão e desamparo da nova ordem econômica planetária. Para Zaffaroni a revolução tecnológica do século XX abre caminho "a uma nova etapa de poder mundial (a globalização) em que condutas tradicionalmente criminalizadas tendem a ser monopolizadas pelo poder econômico e pelas agências políticas nacionais". O poder político em queda não dispõe de um discurso criminológico hegemônico. É um poder político "que não pode reduzir a violência que a sua impotência gera". Este poder precisa mais do que um discurso, precisa de "um libreto para seu espetáculo". Estamos falando da discussão deste novo ator social, a mídia e as agências de comunicação social. A luta pela hegemonia do discurso criminológico dá-se na esfera das comunicações, e o que se observa é a subordinação do discurso político às agências de comunicação. Os políticos não pautam, são pautados.
A nova ordem mundial pode ser entendida à luz do conceito de "barbarização secundária", acerca do impacto da metrópole na periferia do mundo. A liberdade irrestrita do capital financeiro despedaçou as redes de segurança societárias, detonando um processo de polarização que não pode mais ser contido pelas estruturas legais do welfare state, criando condições de desigualdade assustadoras. Loïc Wacquant afirma que com o desmantelamento do welfare state, iniciado por Reagan, começa nos EUA uma popularização de medidas policiais e jurídicas que instaura uma "caça aos pobres" e um processo de penalização da precariedade.
Para Wacquant, a destruição deliberada do Estado Social e a hipertrofia crescente do Estado Penal nos últimos vinte e cinco anos são processos concomitantes e complementares. Tanto Bauman como Wacquant associam as taxas de encarceramento a esta forma contemporânea de encarar o social. Wacquant faz um paralelo entre os inimigos cômodos, criados pelas ondas de criminalização na América (entre os negros) e na Europa (imigrantes do terceiro mundo).
Bauman nos fala que a pobreza não é mais exército de reserva de mão-de-obra; tornou-se uma pobreza sem destino, precisando ser isolada, neutralizada e destituída de poder. Esses resultados seriam alcançados através da "estratégia bifurcada da incriminação da pobreza e da brutalização dos pobres". Os novos inimigos da ordem pública (ontem terroristas, hoje traficantes) são submetidos diuturnamente ao espetáculo penal, às visões de terror dos motins penitenciários e dos corredores da morte. Não é coincidência que a política criminal de drogas, hegemônica no planeta, dirija-se aos pobres globais indiscriminadamente: sejam eles jovens favelados no Rio, camponeses na Colômbia ou imigrantes indesejáveis no hemisfério norte. Para Bauman a combinação de estratégias de exclusão, criminalização e brutalização dos pobres impede a condensação de um sentimento de injustiça capaz de rebelar-se contra o sistema.
Analisando os processos de adolescentes criminalizados por drogas nos arquivos do Juizado de Menores, de 1964 a 1988, pude acompanhar a construção deste novo inimigo no sistema penal. A seletividade do sistema e a diferenciação no tratamento se revela desde a detenção por "atitude suspeita", aos preconceitos quanto à moradia nas favelas, à família popular e ao trabalho nos laudos dos técnicos, até as penas impostas, que variam de acordo com a etnia e classe social dos jovens em questão. Podemos concluir então que, se por um lado temos uma problemática criminal contemporânea que envolve milhares de jovens, temos, por outro, os mesmos procedimentos, as mesmas alternativas e o mesmo olhar positivista e lombrosiano que tínhamos no começo da República.
Assim, o social-darwinismo, positivista e perigosista da fundação da criminologia, cumpre o seu papel na pós-modernidade. É ele que municia o discurso dos operadores do sistema penal que irão construir, cientificamente, o argumento de exclusão, levando até as últimas conseqüências o que Nilo Batista denominou "uma política criminal com derramamento de sangue"; espetáculo de horror levado ao ar, ao vivo e a cores.


Vera Malaguti Batista – Socióloga, historiadora e professora - outubro de 2000
IN Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) n. 95, esp.