Sob o incentivo propulsor da iniciativa popular (pouco visível por trás das emendas dos constituintes) e do trabalho original destes, processou-se um refinamento progressivo, que não levou a uma constituição ótima (ou a uma “boa constituição”, na linguagem dos psicólogos gestaltianos), mas nos deu uma constituição satisfatória, com vários pontos altos.
Florestan Fernandes
O processo constituinte foi cercado de condições negativas insanáveis. Algumas provêm da sociedade civil. Dominada por categorias sociais privilegiadas e dirigida pelas elites de classes burguesas conservadoras, a sociedade civil deteriorou o processo constituinte de duas maneiras. A primeira, porque determinou a composição da maioria parlamentar. Dados os tipos de partidos políticos que possuímos, a vigência de uma “transição democrática”, que é uma transição conservadora, e o peso econômico das classes dominantes nos processos eleitorais, tal sociedade civil só podia gerar uma maioria parlamentar de “centro direita” (eufemismo pelo qual a reação dissimula a sua verdadeira face). A segunda, porque ela dispõe de uma capacidade de pressão tentacular. Ela define e impõe, como moeda corrente, o que entende como natureza “pacífica” e “moderada” do Povo brasileiro. E, acima das contingências, manipula todas as instituições-chave, da escola, da Igreja, e da empresa ao Estado. Podem-se introduzir algumas limitações aos privilégios. Mas não suprimi-los. A Assembléia Nacional Constituinte curvou-se a esse arco convencional imbatível e tentou conciliar a “modernização conservadora” com os “interesses estabelecidos pela ordem existente”. Nas atuais condições históricas, isso era sociologicamente fatal.
Para quem participa do processo constituinte, a estrutura que foi programada, das subcomissões às comissões temáticas, À comissão de sistematização e ao plenário, fazia prever uma fragmentação das correntes inovadoras e o fortalecimento concomitantes dos “moderados”. O ambiente criado pela “transição democrática” e as interferências de um governo empenhado em impedir a sua “derrota” (estranhamente posta no desenvolvimento normal do processo constituinte) agravaram esse efeito. Em um dado momento, parecia que o Brasil estava condenado a ter uma “constituição possível” (e muitos chegaram a proclamar que ela seria pior do que a de 1946 e, mesmo, do que as de 1967 e 1969, frutos da ditadura militar).
Outros constrangimentos vinham da tradição parlamentar brasileira. A debilidade dos partidos corre paralelamente com o vigora das lideranças e o despotismo dos líderes. O fator pessoa decisivo é sempre o líder, elemento autocrático predominante e um um processo parlamentar subdemocrático. A Assembléia Nacional Constituinte absorveu e imprimiu grande vitalidade aos papéis constitutivos e negativos da liderança e da figura do líder. Obedeceu-se , de modo estrito, ao princípio da proporcionalidade, da representação , o que era extremamente vantajoso ao PMDB. E os acordos entre os partidos (de fato, acordo entre lideranças e, por vezes, entre certos líderes) fez com que a competência fosse subestimada em função da autoridade. O Sr. Mário Covas não escolheu arbitrariamente os presidentes e os relatores da subcomissões e das comissões temáticas. Ele compôs habilmente as indicações que tinham essa origem (de partido para partido e entre correntes mais ou menos decisivas dentro do PMDB). A sorte (ou o azar) gerou, assim, o perfil final da composição do quadro dirigente e eventualmente de maior influência daquelas entidades, e condicionou a formação do núcleo fundamental da comissão de sistematização. As lideranças dos partidos maiores escolheram os critérios pelos quais iriam ser selecionados seus representantes nessa comissão. O PMDB e o PFL tiveram espaço para alçar vôo, e os partidos pequenos viram-se esmagados pela proporcionalidade, pois tinham de se virar, com uma representação diminuta, reduzida ao líder, ao vice-líder (como suplente) e ao relator (se chegassem a ter algum). Se compararmos esses critérios, por exemplo, com os que orientaram a elaboração da Constituição de Weimar, descobriremos que estrangulamos o talento e a competência profissional ( ou técnica) e realçamos a liderança e a autoridade como princípios organizativos e de produção intelectual.
Um segundo elemento negativo interno era ocasional. O presidente e, em particular, os relatores eram componentes nucleares da qualidade do relatório inicial e do substitutivo, que vinha em seguida. A variação foi do ótimo ao sofrível (os exemplos salientados, quanto ao que apareceu de melhor, dizem respeito a José Paulo Bisol, Almir Gabriel ou Severo Gomes e Artur da Távola, apesar da sabotagem dos trabalhos dos dois últimos). Além disso, a Assembléia Nacional Constituinte não coibiu a interferência direta e os “interesses inconfessáveis” corriam soltos. O resultado final foi a incongruência não só ideológica e política, mas de qualidade e prevaricação. O primeiro relatório composto por Bernardo Cabral ilustra esse fato. Era uma concha de retalhos, em que engenho e arte ajudavam; na forma e no fundo, o todo assustava, como um Quasímodo ou mesmo um Frankenstein: a racionalidade sucumbia à contingência. Todos ficaram horrorizados com o monstrengo, e Bernardo Cabral passou maus bocados, segurando um filho que não era seu...
Pois bem, sob o incentivo propulsor da iniciativa popular (pouco visível por trás das emendas dos constituintes) e do trabalho original destes, processou-se um refinamento progressivo, que não levou a uma constituição ótima (ou a uma “boa constituição”, na linguagem dos psicólogos gestaltianos), mas nos deu uma constituição satisfatória, com vários pontos altos. Como explicar isso? De um lado, pelo centro autêntico do PMDB, que ao longo da trajetória se converteu em MUP, o PDT, o PT, o PSB, o PC do B e o PCB). Um partido pequeno como o PT, por exemplo, manteve um combate acesso permanente pelas melhores causas e enervou o processo constituinte. O mesmo ocorreu com a contribuição de outros partidos ou correntes de partidos da “esquerda”. Acresce que, nesta área, o princípio da liderança revelou-se mais construtivo. Tome-se Lula como ponto de referência. Um líder operário na Assembléia Nacional Constituinte! O que falava sempre continha peso político e terminava por polarizar o processo constituinte, compelindo os “moderados” ou os “centristas” a se desnudarem política e ideologicamente. Além disso, as lideranças dessa área colaboraram entre si com relativa organicidade (que declinou ou empalideceu em certos momentos). Juntos, Lula, Brandão Monteiro, Roberto Freire, Haroldo Lima, Jamil Hadad, com quem representasse o MUP (Otávio Elísio, Jorge Hage, Nelton Friedrich, Cristina Tavares ou outros) e a colaboração de Euclides Scalco (ou outros), lograram conduzir os debates para fins que envolviam a qualidade da Constituição – não sua congruência com os interesses patrocinados pela “defesa da ordem”. Esses partidos e grupos mantinham seus quadros e seus corpos de assessores no plenário em atividade constante, elaboravam cooperativamente emendas coletivas e incentivavam a combatividade dos suplentes, o que explica, por exemplo, o êxito marcante de José Genoíno.
Operou-se, assim, a metamorfose do monstrengo em uma constituição com espinha vertebrada e com sentido moderno, e de conteúdo democrático inegável. Os avanços foram feitos em diferentes direções, o que não impediu contradições formais e lógicas ou omissões injustificáveis: a comunicação, os índios e a parte relativa à família, ao menor e ao idoso ficaram sem revisão. Além disso, todos os constituintes foram vitimizados pelo encurtamento progressivo drástico do tempo de duração dos trabalhos da Comissão de Sistematização. Este corte não foi técnico, mas político. Representou um meio para reduzir o alcance inovador (e, para alguns, iconoclasta) da contribuição constitucional dessa comissão. Todos sofremos com isso, mas o golpe fatal foi desfechado sobre o crânio da “ala esquerdista ou radical”. Os que compõem o que se autobatizou de “Centrão” não possuem razão para se sobreporem aos demais e exigir uma mudança das normas do Regimento para recomeçar o jogo. O protesto deveria ter sido feito no momento exato, no qual se consentiu que o presidente da Assembléia Nacional Constituinte baixasse um conjunto de decisões que amputava a massa de destaques indiscriminadamente (segundo acordo com as lideranças, mas, na verdade, de forte cunho pessoal). Agora, o que se busca é um retrocesso. Os “interesses inconfessáveis” ressurgem sob diversas roupagens, com o fito de extirpar certos avanços, como, por exemplo, os conseguidos nos direitos sociais, e de mitigar ou extinguir da Constituição o que ela possui de mais significativo para a implantação de uma sociedade civil civilizada e de um Estado capitalista democrático no Brasil. Há muita gente que não quer dizer adeus à barbárie! Os constituintes não fogem a essa regra, açulados ou não por imperativos dos interesses de classes contrariados, pelo medo de perder suas posições na monopolização do poder político estatal ou por uma tradição de mandonismo obscurantista, ameaçada pelo advento de uma democracia de participação política ampliada.
Florestan Fernandes – Sociólogo, político e professor – 02.11.1987
IN “Jornal do Brasil” (“A Constituição Inacabada” – São Paulo: Estação Liberdade, 1989)