Curiosamente, ambas as instituições – Judiciário e Ministério Público – não contam com legitimidade democrática direta, o que é resultado de uma construção teórica que visaria assegurar sua independência e autonomia para que pudessem garantir os pressupostos liberais, incluindo as liberdades de expressão, organização e manifestação. Se em tese deveriam defender o Estado Democrático de Direito promulgado na Constituição de 1988, na prática o que se nota é o inverso: a negação da expressão popular legítima, do debate e da diferença de opinião.
Otávio Dias de Souza Ferreira
A decisão do último dia 27.05.2011 de um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo que impôs a proibição da chamada “Marcha da Liberdade” é um seríssimo ataque à democracia e ao Estado de Direito brasileiro.
A pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo, decidiu-se sumariamente, nas últimas horas da véspera do dia da manifestação – propositadamente, para impedir qualquer recurso –, a vedação do protesto que seria pela liberdade de expressão e contra a repressão violenta a manifestações populares pacíficas. Pelo julgado, apesar de tais motes serem claríssimos em todos os cartazes de divulgação e nas chamadas difundidas através da internet, representantes do Ministério Público e do Judiciário teriam presumido que a multidão queria mesmo era fazer apologia aos crimes relacionados às drogas ilícitas (“Justiça de SP proíbe Marcha da Liberdade”, Folha.com).
Ironicamente a tentativa de repressão da expressão popular através do Judiciário ocorre num momento em que as multidões saem às ruas ao redor do mundo contra regimes ditatoriais e clamando por democracia. E logo num país onde a cultura de cidadania política – que deve ir muito além do direito de voto periódico – quase sempre foi negada à sua população.
Vejamos os fatos.
Por parecer um pouco espinhoso para alguns e por estar indiretamente relacionada com a “Marcha da Liberdade”, a acusação de apologia ao crime feita para a “Marcha da Maconha” merece alguns esclarecimentos. Inicialmente, não é só de “maconheiros vagabundos” que é feito esse movimento. Longe disso! Há muita gente trabalhadora que não é nem sequer usuária de drogas ilícitas que defende a “Marcha da Maconha” no intuito de proteger filhos ou outros entes queridos da repressão policial, da prisão e do envolvimento com relações perigosas à margem da lei. Questiona-se a fracassada política “war on drugs” e todos os seus custos sociais, incluindo a violência. Acredita-se que esse tratamento só agrava a situação de usuários de drogas que porventura precisem de ajuda. Pelas leis penais brasileiras, a apologia ao crime estaria ligada à defesa de um fato criminoso ou de criminoso condenado em juízo, o que não era, definitivamente o caso dessa manifestação. Defende-se mudanças na lei para que as condutas de uso, comércio e plantio de maconha e de outras drogas ilícitas deixem de ser consideradas da alçada da polícia, para serem atribuições das áreas de saúde e educação.
Na “Marcha da Maconha” não se defende propriamente o uso de drogas ilícitas, mas o controle do Estado dessas condutas através de outras agências que não as de Segurança e de Administração Penitenciária, da mesma forma como quem defende a descriminalização do aborto não sustenta que se saia por aí a promover a interrupção precoce indiscriminada de toda e qualquer gravidez, mas sim o tratamento desses casos pelos sistemas públicos de assistência social, educação e saúde. Na mesma lógica, num passado recente, quem sustentasse o fim do crime de adultério, não preconizaria que todos os consortes saíssem por aí na promiscuidade a trair suas esposas e maridos. Concorde ou não, é uma proposta razoável de uma política pública diferente que visa equacionar, muito mais do que a liberdade individual, os mesmos problemas que os conservadores utilizam corriqueiramente na defesa da manutenção da lógica proibicionista: a defesa da saúde e da segurança pública. Nada tão despropositado que justificasse a gravíssima sanção da restrição da liberdade de expressão. Tanto não é apologia ao crime esse evento, que o Judiciário de outros estados da federação (como de PE, RJ e RS) concedeu “habeas corpus” preventivos permitindo que manifestações idênticas ocorressem no território sob sua jurisdição e que esse movimento costuma ocorrer simultaneamente em centenas de cidades ao redor do planeta.
Cientes da decisão de proibição da “Marcha da Maconha”, do dia 20.05.2011, os dirigentes daquele movimento negociaram com a polícia para que os manifestantes que comparecessem ao vão livre do MASP (a decisão fora tomada também nas últimas horas da véspera e não haveria nem sequer tempo hábil para que fosse comunicada aos manifestantes) pudessem marchar, mas em nome da liberdade de expressão, sem poderem pronunciar palavras ou mostrar cartazes relativos à legalização da maconha. Os membros da sociedade civil presentes naquele ato em 21.05.2011 cumpriram sua parte no trato, mas só eles. Os representantes do Estado reprimiram duramente o protesto em cenas grotescas que seriam divulgadas em toda a imprensa nacional, senão também na internacional. Até o Governador do Estado de São Paulo daria declarações à imprensa admitindo a existência de abusos.
Mas ao contrário do quer fazer parecer tal político, a violência policial a uma manifestação social pacífica no Estado de São Paulo está longe de ser um caso isolado em sua gestão e nas de seus correlegionários que o precederam. Hora é contra a manifestação do movimento negro, horas contra os movimentos pela redução das tarifas de ônibus e hora até contra seus próprios colegas de polícia, no momento em que decidiram reivindicar condições mais dignas de trabalho. E esses casos citados costumam aparecer na grande mídia porque ocorrem geralmente no centro da cidade ou em algum bairro nobre. Porque quando é, por exemplo, um protesto pela regularização do fornecimento de água em um bairro periférico, a repressão costuma ser ainda mais bárbara e (quase) ninguém fica sabendo.
Essa verdadeira institucionalização da violência contra movimentos sociais pacíficos precisa ser combatida urgentemente e possivelmente a forma mais adequada para forçar as autoridades a tocarem nessa ferida seja através do protesto popular nas ruas.
Diante dos fatos, é fácil compreender porque as motivações da “Marcha da Liberdade” seriam a defesa da liberdade de expressão na forma exata esculpida no art. 5º, XVI, da Constituição (“todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”) e o fim da repressão violenta policial a manifestações pacíficas. A repressão à marcha da maconha, pelo Judiciário e pelo Executivo, através de sua força policial, foi apenas o estopim da outra marcha. Não haveria nela nenhum apelo relacionado a drogas ilícitas.
Na tarde de 28.05.2011, os manifestantes compareceram aos milhares no vão livre do MASP, local marcado para a saída desta marcha dali a pouco– apesar da ordem judicial. A tensão era enorme diante da grande presença dos mesmos policiais algozes do sábado anterior. A organização tratou de estabelecer nova negociação com os policiais, cuja palavra já não inspirava mais alguma confiança. Parecia se anunciar mais uma tragédia... Mas não é que as forças de segurança paulistas surpreenderam positivamente desta vez ao não promover mais um espetáculo de violência e covardia?
Mesmo sendo dois eventos bem diferentes – não apenas nos nomes – a justificativa da decisão que proibiu a realização de uma marcha, foi a mesma utilizada para impedir a outra. É notório que o principal argumento latente por traz do discurso proibicionista usado nos dois casos é de ordem moral e religiosa, com sua linguagem contaminada por verdades incontestáveis de caráter absolutista; uma linguagem incompatível com aquela da política que seria a da abertura,da tolerância, do diálogo, da revisão e a da negociação por um resultado construído em conjunto. Como ensina Michael Walzer, quando aquela linguagem se alastra para os domínios desta, é sinal de que a política se deteriorou (“Pensar Politicamente”). Cega-se qualquer racionalidade na apreciação de opiniões diferentes, inviabilizando-se prematuramente o debate.
Além disso, a decisão escancara a enorme distância da sociedade civil e dos movimentos populares em que as instituições do Judiciário e do Ministério Público de São Paulo vivem. Curiosamente, ambas as instituições não contam com legitimidade democrática direta, o que é resultado de uma construção teórica que visaria assegurar sua independência e autonomia para que pudessem garantir os pressupostos liberais, incluindo as liberdades de expressão, organização e manifestação. Se em tese deveriam defender o Estado Democrático de Direito promulgado na Constituição de 1988, na prática o que se nota é o inverso: a negação da expressão popular legítima, do debate e da diferença de opinião.
Otávio Dias de Souza Ferreira – 28.05.2011