segunda-feira, 30 de maio de 2011

Ruptura no Estado democrático


Curiosamente, ambas as instituições – Judiciário e Ministério Público – não contam com legitimidade democrática direta, o que é resultado de uma construção teórica que visaria assegurar sua independência e autonomia para que pudessem garantir os pressupostos liberais, incluindo as liberdades de expressão, organização e manifestação. Se em tese deveriam defender o Estado Democrático de Direito promulgado na Constituição de 1988, na prática o que se nota é o inverso: a negação da expressão popular legítima, do debate e da diferença de opinião.

Otávio Dias de Souza Ferreira
A decisão do último dia 27.05.2011 de um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo que impôs a proibição da chamada “Marcha da Liberdade” é um seríssimo ataque à democracia e ao Estado de Direito brasileiro.
A pedido do Ministério Público do Estado de São Paulo, decidiu-se sumariamente, nas últimas horas da véspera do dia da manifestação – propositadamente, para impedir qualquer recurso –, a vedação do protesto que seria pela liberdade de expressão e contra a repressão violenta a manifestações populares pacíficas. Pelo julgado, apesar de tais motes serem claríssimos em todos os cartazes de divulgação e nas chamadas difundidas através da internet, representantes do Ministério Público e do Judiciário teriam presumido que a multidão queria mesmo era fazer apologia aos crimes relacionados às drogas ilícitas (“Justiça de SP proíbe Marcha da Liberdade”, Folha.com).
Ironicamente a tentativa de repressão da expressão popular através do Judiciário ocorre num momento em que as multidões saem às ruas ao redor do mundo  contra regimes ditatoriais e clamando por democracia. E logo num país onde a cultura de cidadania política – que deve ir muito além do direito de voto periódico – quase sempre foi negada à sua população.
Vejamos os fatos.
Por parecer um pouco espinhoso para alguns e por estar indiretamente relacionada com a “Marcha da Liberdade”, a acusação de apologia ao crime feita para a “Marcha da Maconha” merece alguns esclarecimentos. Inicialmente, não é só de “maconheiros vagabundos” que é feito esse movimento. Longe disso! Há muita gente trabalhadora que não é nem sequer usuária de drogas ilícitas que defende a “Marcha da Maconha” no intuito de proteger filhos ou outros entes queridos da repressão policial, da prisão e do envolvimento com relações perigosas à margem da lei. Questiona-se a fracassada política “war on drugs” e todos os seus custos sociais, incluindo a violência. Acredita-se que esse tratamento só  agrava a situação de usuários de drogas que porventura precisem de ajuda. Pelas leis penais brasileiras, a apologia ao crime estaria ligada à defesa de um fato criminoso ou de criminoso condenado em juízo, o que não era, definitivamente o caso dessa manifestação. Defende-se mudanças na lei para que as condutas de uso, comércio e plantio de maconha e de outras drogas ilícitas deixem de ser consideradas da alçada da polícia, para serem atribuições das áreas de saúde e educação.
Na “Marcha da Maconha” não se defende propriamente o uso de drogas ilícitas, mas o controle do Estado dessas condutas através de outras agências que não as de Segurança e de Administração Penitenciária, da mesma forma como quem defende a descriminalização do aborto não sustenta que se saia por aí a promover a interrupção precoce indiscriminada de toda e qualquer gravidez, mas sim o tratamento desses casos pelos sistemas públicos de assistência social, educação e saúde. Na mesma lógica, num passado recente, quem sustentasse o fim do crime de adultério, não preconizaria que todos os consortes saíssem por aí na promiscuidade a trair suas esposas e maridos. Concorde ou não, é uma proposta razoável de uma política pública diferente que visa equacionar, muito mais do que a liberdade individual, os mesmos problemas que os conservadores utilizam corriqueiramente na defesa da manutenção da  lógica proibicionista: a defesa da saúde e da segurança pública. Nada tão despropositado que justificasse a gravíssima sanção da restrição da liberdade de expressão. Tanto não é apologia ao crime esse evento, que o Judiciário de outros estados da federação (como de PE, RJ e RS) concedeu “habeas corpus” preventivos permitindo que manifestações idênticas ocorressem no território sob sua jurisdição e que esse movimento costuma ocorrer simultaneamente em centenas de cidades ao redor do planeta.
Cientes da decisão de proibição da “Marcha da Maconha”, do dia 20.05.2011, os dirigentes daquele movimento negociaram com a polícia para que os manifestantes que comparecessem ao vão livre do MASP (a decisão fora tomada também nas últimas horas da véspera e não haveria nem sequer tempo hábil para que fosse comunicada aos manifestantes) pudessem marchar, mas em nome da liberdade de expressão, sem poderem pronunciar palavras ou mostrar cartazes relativos à legalização da maconha. Os membros da sociedade civil presentes naquele ato em 21.05.2011 cumpriram sua parte no trato, mas só eles. Os representantes do Estado  reprimiram duramente o protesto em cenas grotescas que seriam divulgadas em toda a imprensa nacional, senão também na internacional. Até o Governador do Estado de São Paulo daria declarações à imprensa admitindo a existência de abusos.
Mas ao contrário do quer fazer parecer tal político, a violência policial a uma manifestação social pacífica no Estado de São Paulo está longe de ser um caso isolado em sua gestão e nas de seus correlegionários que o precederam. Hora é contra a manifestação do movimento negro, horas contra os movimentos pela redução das tarifas de ônibus e hora até contra seus próprios colegas de polícia, no momento em que decidiram reivindicar condições mais dignas de trabalho. E esses casos citados costumam aparecer na grande mídia porque ocorrem geralmente no centro da cidade ou em algum bairro nobre. Porque quando é, por exemplo, um protesto pela regularização do fornecimento de água em um bairro periférico, a repressão costuma ser ainda mais bárbara e (quase) ninguém fica sabendo.
Essa verdadeira institucionalização da violência contra movimentos sociais pacíficos precisa ser combatida urgentemente e possivelmente a forma mais adequada para forçar as autoridades a tocarem nessa ferida seja através do protesto popular nas ruas.
Diante dos fatos, é fácil compreender porque as motivações da “Marcha da Liberdade” seriam a defesa da liberdade de expressão na forma exata esculpida no art. 5º, XVI, da Constituição (“todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente”) e o fim da repressão violenta policial a manifestações pacíficas. A repressão à marcha da maconha, pelo Judiciário e pelo Executivo, através de sua força policial, foi apenas o estopim da outra marcha. Não haveria nela nenhum apelo relacionado a drogas ilícitas.
Na tarde de 28.05.2011, os manifestantes compareceram aos milhares no vão livre do MASP, local marcado para a saída desta marcha dali a pouco– apesar da ordem judicial. A tensão era enorme diante da grande presença dos mesmos policiais algozes do sábado anterior. A organização tratou de estabelecer nova negociação com os policiais, cuja palavra já não inspirava mais alguma confiança. Parecia se anunciar mais uma tragédia... Mas não é que as forças de segurança paulistas surpreenderam positivamente desta vez ao não promover mais um espetáculo de violência e covardia?
Mesmo sendo dois eventos bem diferentes – não apenas nos nomes – a justificativa da decisão que proibiu a realização de uma marcha, foi a mesma utilizada para impedir a outra. É notório que o principal argumento latente por traz do discurso proibicionista usado nos dois casos é de ordem moral e religiosa, com sua linguagem contaminada por verdades incontestáveis de caráter absolutista; uma linguagem incompatível com aquela da política que seria a da abertura,da  tolerância, do diálogo, da revisão e a da negociação por um resultado construído em conjunto. Como ensina Michael Walzer, quando aquela linguagem se alastra para os domínios desta, é sinal de que a política se deteriorou  (“Pensar Politicamente”). Cega-se qualquer racionalidade na apreciação de opiniões diferentes, inviabilizando-se prematuramente o debate.
Além disso, a decisão escancara a enorme distância da sociedade civil e dos movimentos populares em que as instituições do Judiciário e do Ministério Público de São Paulo vivem. Curiosamente, ambas as instituições não contam com legitimidade democrática direta, o que é resultado de uma construção teórica que visaria assegurar sua independência e autonomia para que pudessem garantir os pressupostos liberais, incluindo as liberdades de expressão, organização e manifestação. Se em tese deveriam defender o Estado Democrático de Direito promulgado na Constituição de 1988, na prática o que se nota é o inverso: a negação da expressão popular legítima, do debate e da diferença de opinião.


Otávio Dias de Souza Ferreira – 28.05.2011

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Os pecados do Haiti


Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca.


Eduardo Galeano
A democracia haitiana nasceu há um instante. No seu breve tempo de vida, esta criatura faminta e doentia não recebeu senão bofetadas. Era uma recém-nascida, nos dias de festa de 1991, quando foi assassinada pela quartelada do general Raoul Cedras. Três anos mais tarde, ressuscitou. Depois de haver posto e retirado tantos ditadores militares, os Estados Unidos retiraram e puseram o presidente Jean-Bertrand Aristide, que havia sido o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do Haiti e que tivera a louca ideia de querer um país menos injusto.

O voto e o veto


Para apagar as pegadas da participação estadunidense na ditadura sangrenta do general Cedras, os fuzileiros navais levaram 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide regressou acorrentado. Deram-lhe permissão para recuperar o governo, mas proibiram-lhe de exercer o poder. O seu sucessor, René Préval, obteve quase 90 por cento dos votos, mas qualquer chefete de quarta categoria do Fundo Monetário ou do Banco Mundial tem mais poder do que Préval, ainda que o povo haitiano não o tenha eleito com um voto sequer.

Mais do que o voto, pode o veto. Veto às reformas: cada vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede créditos internacionais para dar pão aos famintos, letras aos analfabetos ou terra aos camponeses, não recebe resposta, ou respondem lhe ordenando:

– Recite a lição. E como o governo haitiano não acaba de aprender que é preciso desmantelar os poucos serviços públicos que restam, últimos pobres amparos para um dos povos mais desamparados do mundo, os professores dão o exame por perdido.

O álibi demográfico


Em fins do ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Mal chegaram, a miséria do povo feriu-lhes os olhos. Então o embaixador da Alemanha lhe explicou, em Port-au-Prince, qual era o problema:

– Este é um país superpovoado, disse ele. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode.

E riu. Os deputados calaram-se. Nessa noite, um deles, Winfried Wolf, consultou os números. E comprovou que o Haiti é, ao lado de El Salvador, o país mais superpovoado das Américas, mas está tão superpovoado quanto a Alemanha: tem quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

Durante os seus dias no Haiti, o deputado Wolf não só foi golpeado pela miséria como também foi deslumbrado pela capacidade de beleza dos pintores populares. E chegou à conclusão de que o Haiti está superpovoado... de artistas.

Na realidade, o álibi demográfico é mais ou menos recente. Até há alguns anos, as potências ocidentais falavam mais claro.

A tradição racista

Os Estados Unidos invadiram o Haiti em 1915 e governaram o país até 1934. Retiraram-se quando conseguiram os seus dois objetivos: cobrar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia vender plantações aos estrangeiros. Então Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar a si própria, que tem "uma tendência inerente à vida selvagem e uma incapacidade física de civilização". Um dos responsáveis pela invasão, William Philips, havia incubado tempos antes a ideia sagaz: "Este é um povo inferior, incapaz de conservar a civilização que haviam deixado os franceses".

O Haiti fora a pérola da coroa, a colônia mais rica da França: uma grande plantação de açúcar, com mão-de-obra escrava. No Espírito das Leis, Montesquieu havia explicado sem papas na língua: "O açúcar seria demasiado caro se os escravos não trabalhassem na sua produção. Os referidos escravos são negros desde os pés até a cabeça e têm o nariz tão achatado que é quase impossível deles ter pena. Torna-se impensável que Deus, que é um ser muito sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, num corpo inteiramente negro".

Em contrapartida, Deus havia posto um açoite na mão do capataz. Os escravos não se distinguiam pela sua vontade de trabalhar. Os negros eram escravos por natureza e vagos também por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir o amo e o amo devia castigar o escravo, que não mostrava o menor entusiasmo na hora de cumprir com o desígnio divino. Karl von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, havia retratado o negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes dissolutos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, havia comprovado que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, tal como o papagaio que fala algumas palavras".

A humilhação imperdoável

Em 1803 os negros do Haiti deram uma tremenda sova nas tropas de Napoleão Bonaparte e a Europa jamais perdoou esta humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos tinham conquistado antes a sua independência, mas meio milhão de escravos trabalhavam nas plantações de algodão e de tabaco. Jefferson, que era dono de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas também dizia que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos homens livres levantou-se sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura do açúcar e arrasada pelas calamidades da guerra contra a França, e um terço da população havia caído no combate. Então começou o bloqueio. A nação recém-nascida foi condenada à solidão. Ninguém comprava do Haiti, ninguém vendia, ninguém reconhecia a nova nação.

O delito da dignidade

Nem sequer Simón Bolívar, que tão valente soube ser, teve a coragem de firmar o reconhecimento diplomático do país negro. Bolívar conseguiu reiniciar a sua luta pela independência americana, quando a Espanha já o havia derrotado, graças ao apoio do Haiti. O governo haitiano lhe havia entregue sete naves e muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos, uma ideia que não havia ocorrido ao Libertador. Bolívar cumpriu com este compromisso, mas depois da sua vitória, quando já governava a Grande Colômbia, deu as costas ao país que o havia salvo. E quando convocou as nações americanas à reunião do Panamá, não convidou o Haiti, mas convidou a Inglaterra.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti apenas sessenta anos depois do fim da guerra de independência, enquanto Etienne Serres, um gênio francês da anatomia, descobria em Paris que os negros são primitivos porque têm pouca distância entre o umbigo e o pênis. A essa altura, o Haiti já estava em mãos de ditaduras militares carniceiras, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa. A Europa havia imposto ao Haiti a obrigação de pagar à França uma indenização gigantesca, a modo de perda por haver cometido o delito da dignidade.

A história do assédio contra o Haiti, que nos nossos dias tem dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.



Eduardo Galeano – Narrador, ensaísta, novelista uruguaio – fevereiro de 2010

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Fez-se vingança, não justiça

Não se fez justiça com a morte de Bin Laden. Praticou-se a vingança, sempre condenável."Minha é a vingança" diz o Deus das escrituras das três religiões abraâmicas. Agora estaremos sob o poder de um Imperador sobre quem pesa a acusação de assassinato. E a necrofilia das multidões nos diminui e nos envergonha a todos.

Leonardo Boff
Alguém precisa ser inimigo de si mesmo e contrário aos valores humanitários mínimos se aprovasse o nefasto crime do terrorismo da Al Qaeda do 11 de novembro de 2001 em Nova Iorque. Mas é por todos os títulos inaceitável que um Estado, militarmente o mais poderoso do mundo, para responder ao terrorismo se tenha transformado ele mesmo num Estado terrorista. Foi o que fez Bush, limitando a democracia e suspendendo a vigência incondicional de alguns direitos, que eram apanágio do pais. Fez mais, conduziu duas guerras, contra o Afeganistão e contra o Iraque, onde devastou uma das culturas mais antigas da humanidade nas qual foram mortos mais de cem mil pessoas e mais de um milhão de deslocados.

Cabe renovar a pergunta que quase a ninguém interessa colocar: por que se produziram tais atos terroristas? O bispo Robert Bowman de Melbourne Beach da Flórida que fora anteriormente piloto de caças militares durante a guerra do Vietnã respondeu, claramente, no National Catholic Reporter, numa carta aberta ao Presidente:"Somos alvo de terroristas porque, em boa parte no mundo, nosso Governo defende a ditadura, a escravidão e a exploração humana. Somos alvos de terroristas porque nos odeiam. E nos odeiam porque nosso Governo faz coisas odiosas".

Não disse outra coisa Richard Clarke, responsável contra o terrorismo da Casa Branca numa entrevista a Jorge Pontual emitida pela Globonews de 28/02/2010 e repetida no dia 03/05/2011. Havia advertido à CIA e ao Presidente Bush que um ataque da Al Qaeda era iminente em Nova York. Não lhe deram ouvidos. Logo em seguida ocorreu, o que o encheu de raiva.

Essa raiva aumentou contra o Governo quando viu que com mentiras e falsidades Bush, por pura vontade imperial de manter a hegemonia mundial, decretou uma guerra contra o Iraque que não tinha conexão nenhuma com o 11 de setembro. A raiva chegou a um ponto que por saúde e decência se demitiu do cargo.

Mais contundente foi Chalmers Johnson, um dos principais analistas da CIA também numa entrevista ao mesmo jornalista no dia 2 de maio do corrente ano na Globonews. Conheceu por dentro os malefícios que as mais de 800 bases militares norte-americanas produzem, espalhadas pelo mundo todo, pois evocam raiva e revolta nas populações, caldo para o terrorismo. Cita o livro de Eduardo Galeano, "As veias abertas da América Latina", para ilustrar as barbaridades que os órgãos de Inteligência norte-americanos por aqui fizeram. Denuncia o caráter imperial dos Governos, fundado no uso da inteligiência que recomenda golpes de Estado, organiza assassinato de líderes e ensina a torturar. Em protesto, se demitiu e foi ser professor de história na Universidade da Califórnia. Escreveu três tomos "Blowback" (retaliação) onde previa, por poucos meses de antecedência, as retaliações contra a prepotência norte-americana no mundo. Foi tido como o profeta de 11 de setembro. Este é o pano de fundo para entendermos a atual situação que culminou com a execução criminosa de Osama Bin Laden.

Os órgãos de inteligência norte-americanos são uns fracassados. Por dez anos vasculharam o mundo para caçar Bin Laden. Nada conseguiram. Só usando um método imoral, a tortura de um mensageiro de Bin Laden, conseguiram chegar ao seu esconderijo. Portanto, não tiveram mérito próprio nenhum.

Tudo nessa caçada está sob o signo da imoralidade, da vergonha e do crime. Primeiramente, o Presidente Barak Obama, como se fosse um "deus" determinou a execução/matança de Bin Laden. Isso vai contra o princípio ético universal de "não matar" e dos acordos internacionais que prescrevem a prisão, o julgamento e a punição do acusado. Assim se fez com Hussein do Iraque,com os criminosos nazistas em Nürenberg, com Eichmann em Israel e com outros acusados. Com Bin Laden se preferiu a execução intencionada, crime pelo qual Barak Obama deverá um dia responder. Depois se invadiu território do Paquistão, sem qualquer aviso prévio da operação. Em seguida, se sequestrou o cadáver e o lançaram ao mar, crime contra a piedade familiar, direito que cada família tem de enterrar seus mortos, criminosos ou não, pois por piores que sejam, nunca deixam de ser humanos.

Não se fez justiça. Praticou-se a vingança, sempre condenável."Minha é a vingança" diz o Deus das escrituras das três religiões abraâmicas. Agora estaremos sob o poder de um Imperador sobre quem pesa a acusação de assassinato. E a necrofilia das multidões nos diminui e nos envergonha a todos.

Leonardo Boff – Teólogo e escritor – 10.05.2011  

domingo, 22 de maio de 2011

Uma outra proteção social

Nos últimos anos, a liberalização incide sobre serviços sociais de interesse geral, cujos benefícios são destinados a melhorar as condições de vida das populações. Nesse contexto, os atores da proteção social solidária procuram destacar suas diferenças:no qual, a solidariedade deve ser um compromisso, não generosidade.   


Denis Stokkink
Todos os países da União Europeia dispõem de um sistema de proteção social. No entanto, por razões históricas, culturais e políticas, nenhum sistema nacional é idêntico ao do vizinho. Ainda assim, é possível agrupá-los em cinco famílias.
A primeira, própria da França, Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Holanda, está ligada ao modelo chamado de bismarckiano. Ele baseia-se na solidariedade profissional, sendo gerido de forma paritária por empregadores e empregados. Os benefícios são concedidos aos próprios cidadãos que contribuem para o sistema: portanto, é necessário trabalhar e pagar as contribuições para ter direito ao seguro-desemprego ou à pensão por aposentadoria.
A segunda família insere-se no modelo de Beveridge, que corresponde ao sistema liberal predominante na Grã-Bretanha e Irlanda. Ele só cobre as necessidades básicas, sendo financiado pelos impostos. É um sistema que oferece uma proteção social mínima e bastante “assistencial”, amplamente concebido para as populações mais pobres. Seus benefícios são uniformes, sem nenhuma ligação proporcional com as cotizações sociais, e concedidos aos necessitados. Outros benefícios de proteção social ficam a cargo de seguros privados.
O modelo escandinavo financia, majoritariamente através de impostos, benefícios e serviços sociais universais e de alto nível. O Estado encarrega-se de tudo, e a proteção constitui um direito uniforme de todos os cidadãos. A redistribuição é igualitária (em oposição ao modelo bismarckiano, no qual ela depende das cotizações realizadas). Se o sistema anglo-saxão é minimalista, o escandinavo é maximalista.
O modelo latino, que se observa na Itália, Espanha, Grécia e Portugal, é historicamente baseado no apoio familiar, local e religioso. Originalmente, a proteção é concedida somente aos necessitados, e o Estado desempenha um papel menor. O modelo dos países da ex-comunista Europa central, por sua vez, assenta em serviços sociais historicamente desenvolvidos e em uma cobertura muito maior do que em qualquer outra parte da Europa. Ainda hoje, a licença-maternidade chega a dois anos, às vezes até a três. Mas já se pode constatar um declínio dos serviços sociais garantidos pela comunidade.
Todas essas famílias de proteção social convergem e tendem a se fundir em um modelo amplamente liberal, no qual coabitam um sistema fortemente sustentado pelo Estado – mais “assistencial”, concedendo benefícios aos necessitados – e um sistema de proteção social profissional limitado aos serviços básicos. Por toda a Europa está posto o debate sobre o caráter solidário ou individualista da proteção social.
Múltiplos sistemas
A diversidade de sistemas, apesar de tudo, continua grande no continente. Muito poucos esforços de harmonização têm sido empreendidos. Os Estados continuam soberanos; os tratados praticamente não preveem meios de ação da União Europeia no campo social. Mas devemos lembrar que o Tratado de Lisboa instaura uma cláusula social “horizontal” que impõe a consideração das exigências sociais em todas as políticas da UE. Pode-se apontar também a busca por uma coordenação no quadro da circulação das pessoas: regulamentos que entraram em vigor em 2010 garantem aos cidadãos que estejam se deslocando no interior da União Europeia a preservação de seus direitos em matéria de seguro-saúde, pensão, seguro-desemprego e assistência à família. Desde o Tratado de Maastricht, em 1992, a União Europeia dispõe também de uma base jurídica para intervir, de forma impositiva, no domínio da saúde pública.
Nos últimos anos, a liberalização incide sobre os serviços sociais de interesse geral (SIG), cujos benefícios são destinados a melhorar as condições de vida das populações. A norma “serviços”, que entrou em vigor em 2006, deixou na verdade um mar de interpretações, criando uma situação de insegurança jurídica: para alguns, os serviços sociais poderiam ser equiparados a serviços econômicos1.
Nesse contexto, os atores da proteção social solidária procuram destacar suas diferenças em relação aos demais: “A solidariedade deve ser considerada um compromisso, não uma generosidade”, insiste Dominique Boucher, delegado-geral do Instituto de Proteção Social Europeu (Ipse), que reúne as instituições paritárias nascidas do diálogo social e as associações de mutualidade representativas da economia social. “Em um mundo no qual as normas tendem a colocar todos os atores de proteção social no mesmo saco, nós queremos marcar nossa diferença e mostrar que trabalhamos no terreno da solidariedade, onde não se escolhem nem os riscos, nem os indivíduos, e onde os seguros não se limitam a estabelecer contratos.”
Com dois exemplos, Boucher explica que seus membros não são apenas “torneiras de benefícios”: “Uma associação de mutualidade portuguesa oferece lugares de emancipação para as mulheres, prestando serviços que lhes permitam posicionar-se no mercado de trabalho, aconselhamento para que consigam conciliar trabalho e vida privada etc. Na França, a Pro BTP criou ‘cafés sociais’, locais onde trabalhadores imigrantes aposentados podem se encontrar e buscar apoio administrativo e psicológico”.
Para esclarecer o leque de exigências que caracteriza a solidariedade e mostrar como o interesse geral exprime-se em suas atividades, os membros do Ipse trabalham na elaboração de uma carta europeia de proteção social solidária. Ela pretende ser um descritivo de seus compromissos em termos de organização (solidariedade entre saudáveis e doentes, entre gerações), de transparência de gestão (fluxo de cotizações e de benefícios), de eficácia, e também em termos das especificidades que a distingue do mercado de seguros.
O financiamento é uma questão crucial: “Dada a estrutura e o modo de financiamento de nossos sistemas de proteção social, eles assentam essencialmente na renda dos trabalhadores. Isso significa que a batalha para que a proteção social mantenha seus objetivos de solidariedade é também uma batalha pelo emprego e sua qualidade. Nós estamos preocupados porque a maioria dos empregos criados ao longo dos últimos dez anos na UE são por tempo determinado, temporários ou de meio período. Isso não favorece os sistemas de proteção social. E também significa que é necessário continuar procurando outras fontes de financiamento além do trabalho”, avalia Henri Lourdelle, conselheiro da Confederação Europeia de Sindicatos.
Entre as questões relacionadas à proteção social, as que dizem respeito à saúde são tão numerosas que exigem uma hierarquização das prioridades. Etienne Caniard, presidente da Federação Nacional de Mutualidade Francesa (FNMF)2, define as questões essenciais: a desigualdade e a pobreza, que devem ser a principal preocupação de qualquer política de saúde. “Também sabemos que as características sociais (nível de renda, educação, moradia, condições de trabalho) são determinantes da exposição aos fatores ambientais adversos e, mais importante, moldam os comportamentos frente aos riscos.” Outro desafio será o de definir um estatuto europeu para as sociedades de mutualidade. “É indispensável que o direito europeu autorize a criação de associações de mutualidade europeias, para que elas possam desenvolver armas em pé de igualdade com as empresas. Para serem socialmente benéficas, é necessário que sejam economicamente eficazes”, afirma Gérard Andreck, presidente do Grupo de Empresas de Mutualidade (Gema)3. Com os sistemas de proteção social convergindo para um modelo liberal, isso acaba sendo, em comparação com o que hoje vigora nos Estados Unidos, proteção para os cidadãos.

1. Ler Didier Minot, "Menace sur la liberté d'association en France". Ameaça à liberdade de associação na França", Le Monde Diplomatique, janeiro de 2011.
2. Etienne Caniard, "La Dimension sociale de la santé durable". A dimensão social da saúde durável", in Agir por une santé durable, Les Cahiers de la Solidarité. n° 25, Paris, Janeiro de 2011.
3. Dossiê "La Spécificité des sociétes mutuelles dans un contexte européen".  Les Cahiers de la Solidarité. n° 23, Paris, abril de 2010.

Denis Stokkink - Presidente do grupo de Trabalho Europeu pela Solidariedade – 04.03.2011

sexta-feira, 20 de maio de 2011

A proibição da Marcha da Maconha e o Estado de Exceção


“Deixe que digam, que pensem, que falem”
Jair Rodrigues

Coletivo Marcha da Maconha São Paulo
Sob acusação de apologia ao crime, pelo terceiro ano consecutivo a Marcha da Maconha foi proibida em São Paulo. Depois de negociação com a polícia, os manifestantes puderam marchar, mas em nome da liberdade de expressão, sem poderem pronunciar palavras ou mostrar cartazes relativos à legalização da maconha. Esse evento tem mais importância do que pode parecer, pode nos explicar muito sobre nossa Justiça e nossa sociedade em geral.
A Marcha da Maconha é um movimento mundial, que se organiza de maneira descentralizada em mais de 300 cidades pelo planeta. No Brasil, estava programada para acontecer em ao menos 12 cidades, e somente São Paulo e Fortaleza a proibiram, sob a frágil acusação acima citada. Pelo Código Penal brasileiro, a apologia ao crime (e não apologia às drogas, como muitos dizem) se caracteriza por defesa de fato criminoso ou de criminoso condenado em juízo. Não é esse o caso da manifestação em questão, que defende mudanças na lei para que o fato defendido – uso, comércio e plantio de maconha e de outras drogas ilícitas – exatamente deixe de ser crime.
Nos últimos 40 anos, os Estados Unidos gastaram cerca de 1 trilhão de dólares na chamada “guerra às drogas”. Os resultados dessa estratégia, implementada globalmente desde o começo do século XX através de tratados internacionais, são pífios no que diz respeito ao combate ao uso destas substâncias. No Brasil, por exemplo, o órgão governamental CEBRID aponta que 22,8% dos adultos já experimentaram alguma droga ilícita. Por outro lado, a proibição traz uma série de efeitos danosos, desde a intervenção do Estado sobre condutas privadas de seus cidadãos à violência do crime e do próprio Estado, passando pela corrupção que permeia os três poderes, por tensões políticas internacionais e pelo encarceramento em massa.
No entanto, mandado de segurança impetrado no final do expediente de sexta-feira por promotores de São Paulo, e prontamente acolhido pelo desembargador Sérgio Ribas sem que houvesse tempo para defesa, aponta que a Marcha da Maconha é “um atentado contra a sociedade ordeira”, uma vez que incita prática criminosa através da “balbúrdia social” e defende que as normas sociais devem ser descumpridas. Em nome da ordem, contraria-se o artigo 5º da Constituição, que salvaguarda a livre expressão e a livre manifestação. Em nome da ordem, contraria-se a lei.
Sem entrar no debate de que ordem é essa que mantém cerca de 75 mil pessoas encarceradas pelo comércio de algumas substâncias eleitas como responsáveis por todos os problemas sociais, nem questionar por que a saúde pública é evocada nessa fracassada tentativa de impedir o acesso a algumas drogas mas não é lembrada quando do extermínio constante da população acusada de tráfico, cabe aqui questionar-nos sobre o funcionamento seletivo, preconceituoso, moralista e contraditório de nossa Justiça.
Um conceito interessante para pensarmos sobre a atual conjuntura em que estamos inseridos é o de “Estado de exceção”. Tradicionalmente invocada como suspensão de certos direitos num período crítico, a exceção hoje é a regra, caracterizada por uma lei maleável aplicada seletiva e variavelmente e que coloca os cidadãos numa posição em que abrem mão de parte de seus direitos
em nome de uma democracia que nunca chega. Nas palavras do filósofo Giorgio Aganbem, é um contexto em que “a lei está fora dela mesmo” já que é o soberano (no caso a Justiça) quem tem o poder legal de suspender a lei.
Num ambiente em que “perigosos inimigos” são forjados e superestimados de forma a nublar os verdadeiros problemas de nossa sociedade, torna-se legítima uma política de guerra que se pauta pelo extermínio destes inimigos, hipotecando-se nesse processo preceitos básicos do convívio democrático, como o direito de defesa, a liberdade pensamento e manifestação, a presunção de inocência e leis que se apliquem de maneira equitativa a todos.
O historiador Carlo Ginzburg cita a existência de um grupo de intelectuais franceses e italianos no século XVII chamado “Libertinos Eruditos”, que caracterizavam a religião como uma mentira, mas uma “mentira útil”, sem a qual se desestruturariam as relações sociais. Passados cerca de cem anos da proibição das drogas, é impossível que não vejamos que todas suas promessas se mostraram falsas – ela é uma mentira se encarada como garantia de saúde pública, na medida em que não regula o abuso, evita que se priorizem estratégias de redução de danos, educação e saúde e ainda traz em si tanta violência. No entanto, é uma mentira útil a uma certa ordem, que se crê não só imutável como inquestionável. Se queremos uma democracia que mereça de fato esta nome, não só o caráter mentiroso do proibicionismo deve ser questionado, como também para quê, e para quem, ele é útil.

Coletivo Marcha da Maconha São Paulowww.marchadamaconha.org – Maio de 2010
IN Jornal “Juízes pela Democracia”, Ano 13, nº 49 –    http://www.ajd.org.br/arquivos/publicacao/68_democracia_49.pdf

quarta-feira, 18 de maio de 2011

“Exclusão postergada” dos alunos

Se o objetivo é a inclusão social e a aprendizagem dos alunos, e não apenas atribuir-lhes uma nota, muitas vezes levando-os à reprovações e ao abandono da escola, a simples abolição de qualquer avaliação tampouco contribui para a formação dos estudantes.

Maria Izabel Azevedo Noronha
A Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo) e outras entidades vêm há muito denunciando que a chamada progressão continuada na rede estadual de ensino de São Paulo se configura como uma "aprovação automática" dos estudantes, sucessivamente remetidos às series seguintes no ensino fundamental ainda que não tenham adquirido os conteúdos previstos em cada uma de suas etapas.
Por que, afinal, é tão importante que se discuta a questão da progressão continuada? A função primordial da escola é formar cidadãos, não apenas pela transmissão do conhecimento acumulado mas também pela produção coletiva de novos conhecimentos.
É tarefa central dos educadores articular coletivamente um projeto educacional de concepção humanista, comprometido com a escolarização de todos com qualidade.
A defesa de uma escola sem exclusão social, que garanta o acesso e a permanência de todos os alunos, é premissa necessária para os que lutam pela educação inclusiva -sob todos os aspectos- e de qualidade em nosso país.
A Constituição brasileira assegura a educação como um direito de todos. Ela é requisito fundamental para a construção de uma nação independente e desenvolvida, não só do ponto de vista econômico, mas social, político e cultural.
Se o objetivo é a inclusão social e a aprendizagem dos alunos, e não apenas atribuir-lhes uma nota, muitas vezes levando-os à reprovações e ao abandono da escola, a simples abolição de qualquer avaliação tampouco contribui para a formação dos estudantes.
Da forma como foi implementada, a progressão continuada em São Paulo concretizou, na verdade, a "exclusão postergada" dos alunos, que terão menos chance na vida e no mundo do trabalho.
A vida real não aboliu as avaliações; a "aprovação automática" cria, assim, uma realidade não verdadeira para o aluno. Na acepção correta da progressão continuada, a avaliação deve ser contínua, diagnóstica e cumulativa, propiciando sempre a percepção, pelo educador e pelo próprio educando, do estágio da aprendizagem, suas dificuldades, suas deficiências, subsidiando o replanejamento do trabalho do professor e a organização dos estudos do aluno.
A progressão continuada não pode ser imposta. Para que seja de fato implantada há que se pensar em um processo de envolvimento de pais, alunos e educadores.
Exige professores motivados, bem remunerados, integrantes de carreira justa e atraente. Além disso, precisa de correta relação professor/aluno, não de salas superlotadas como nas escolas estaduais.
Necessita ainda de um programa de formação continuada dos professores no próprio local de trabalho, com jornada e salários que lhes permitam se dedicar a uma única unidade escolar. Não acontecerá sem gestão democrática em que todos os segmentos da comunidade sejam formuladores e gestores do projeto político-pedagógico.
A escola, para a criança e para o jovem, é uma passagem, mas essa passagem não pode terminar em branco; tem que resultar na aquisição de conhecimentos.
É imperativo que a Secretaria da Educação apresente à sociedade uma proposta de como assegurar aos alunos das escolas estaduais o direito que todos têm à aquisição do conhecimento historicamente acumulado e à participação na produção de novos conhecimentos. E um projeto que inclua aquelas crianças e jovens prejudicados pela "aprovação automática".


 
Maria Izabel Azevedo Noronha – Professora e presidente da Apeoesp – 29.01.2011

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Líbia: ilegalidades da "Intervenção Humanitária"


Não é preciso ir muito longe para entender que as motivações "humanitárias" na Líbia não se aplicam a países aliados, como o Bahrein, a Arábia Saudita ou Israel.
(...)
Ao intervir na Líbia, os EUA garantem que, ao menos, terão algum papel na transição e podem ditar algumas regras.


Raphael Tsavkko Garcia
Especialistas divergem sobre a legalidade da intervenção dos EUA e "aliados" na Líbia, sem, porém, sequer chegarem ao fundo da questão, que está além das ações do ditador (até então "presidente" para as potências ocidentais e para a mídia), mas recai sobre a hipocrisia internacional em selecionar a dedo as violações de direitos humanos que lhes interessa punir e criticar.
Paralelos Internacionais?
Uma das razões pela qual as Nações Unidas, através de seu conselho de Segurança, permitiram e apoiaram a intervenção na Líbia está na crise humanitária e na possibilidade de uma resposta armada do governo Líbio "desproporcional" e com exemplar violência contra os rebeldes.
O perigo futuro de uma resposta Líbia (futuro, não imediato) motivou a intervenção. A tentativa de evitar uma crise humanitária que poderia, então, fazer necessária uma ação da ONU para proteger os civis.
O problema em si não se encontra nesta futurologia e na suposta boa vontade da dita comunidade internacional em evitar uma crise humanitária, mas na seletividade desta boa vontade, desta preocupação em defender populações civis de seus ditadores.
Crises humanitárias acontecem todos os dias, sem que nenhuma potência ocidental se prontifique a intervir. A mais recente guerra de Israel contra o Líbano ou mesmo contra Gaza custou a vida de milhares de pessoas, não contou com o apoio de nenhum organismo internacional (ONU nem pensar) e não foi tampouco condenado pelos mesmos países que, hoje, demonstram tanta preocupação com os civis líbios.
Ao mesmo tempo em que ocorre a invasão sobre a Líbia, forças da Arábia Saudita invadem o vizinho Bahrein, mas ao invés da proteção de civis, o objetivo é o de garantir a sobrevivência do regime e protegê-lo da população raivosa. O Bahrein é aliado estratégico dos EUA e do "ocidente" na região. A Líbia, governada ha 40 anos por Khadafi, é inconstante, tende a rompantes de nacionalismo, apoiou o terrorismo internacional de esquerda e hoje é um aliado incômodo da Europa e dos EUA.
Não é preciso ir muito longe para entender que as motivações "humanitárias" na Líbia não se aplicam a países aliados, como o Bahrein, a Arábia Saudita ou Israel.
Intervenção e Guerra Civil
O conflito entre o governo Khadafi e os rebeldes, no início, se desenhava como uma guerra civil e, como tal, não cabia a intervenção de potências estrangeiras.
Conflitos internos entre grupos beligerantes não são passíveis de intervenção, devem ser resolvidos internamente, especialmente quando as potências já haviam escolhido que lado tomar, ao invés de, se as razões fossem mesmo humanitárias, apenas buscar a proteção de civis e no máximo equilibrar o conflito, garantindo o respeito à leis mínimas de guerra.
A noção de "intervenção humanitária", em si, é um contra-senso. Não só por uma intervenção necessariamente levar à morte centenas e milhares de civis, além de destruir boa parte da infra-estrutura de um país, mas também por esta responder apenas a interesses econômicos dos invasores, interessados em se apossar das riquezas do país ou de azeitar sua indústria bélica.
A este último, o pensador marxista Istvan Meszarós deu o nome de Crescimento Canceroso, quando o capitalismo precisa de uma guerra para fazer a economia voltar aos eixos. É preciso não só investir na economia de guerra (indústria bélica e todo o setor que dele depende), mas também aquecer a economia numa posterior reconstrução do país arrasado pelos ataques.
É uma política de ganhos exclusivos para as potências invasoras, em que o país atacado serve como laboratório e ficar a mercê de interesses estrangeiros.
Não se trata de defender Khadafi, mas de denunciar as intenções por detrás da intervenção.
Precedente
Ao intervir na Líbia, os EUA garantem que, ao menos, terão algum papel na transição e podem ditar algumas regras. Com o país destruído, com a infra-estrutura prejudicada, os EUA surgiriam rapidamente como fonte de financiamento e apoio ao país necessitando de investimentos e rumo.

O petróleo viria como bônus.

A intenção dos EUA era a de intervir de qualquer maneira, e já existia um precedente: o Kosovo.

Durante o conflito do Kosovo com a Sérvia os EUA intervieram ilegalmente, junto com a OTAN, para defender o lado Kosovar. A ONU foi forçada a fingir que não via nada e a apoiar posteriormente, constrangida, se responsabilizando pela pacificação posterior e pelo processo de reconstrução do país.
A ilegalidade ficou patente com a falta de reconhecimento posterior por parte mesmo de tradicionais aliados dos EUA, como a Espanha - temerosa de que o reconhecimento pudesse incitar ainda mais o nacionalismo Basco e Catalão (e em menor parte, o Galego), que constantemente ameaçam a unidade do país.

A Ilegalidade da Resolução 1973 e a no-fly zone
Em 17 de março foi aprovada no Conselho de Segurança a Resolução 1973, que aprofundava o embargo econômico e de armas à Líbia e introduzia duas novidades:
A imposição de uma no-fly zone (área de exclusão aérea) e a necessidade por parte dos países membros da ONU de garantir a proteção aos civis, a todo custo. Uma no-fly zone significa uma área em que nenhum avião pode deixar o solo sem a permissão das Nações Unidas, impedindo desta forma ataques com aviões e bombardeios contra os rebeldes e alvos civis no leste da Líbia, região não mais sob controle governamental.
A Resolução 1973 foi aprovada por 10 a 0, com 5 abstenções, deixa clara a permissão aos Estados-membro da ONU não só de proibir o vôo de qualquer aeronave líbia, mas também pode também ser interpretada como permissão para o bombardeio de aeroportos e de infra-estrutura usada para guardar aviões ou pistas usadas para pouso e decolagem.

A resolução, em momento algum, permite às forças dos EUA e aliados atacar palácios de Khadafi ou buscar derrubá-lo, assim como não permite o bombardeio de caminhões, carros e tanques militares em trânsito em qualquer parte da Líbia.
Os ataques "seletivos" que EUA e aliados vem fazendo contra instalações militares sem qualquer relação com a imposição de uma no-fly zone são, enfim, totalmente ilegais. Assim como são os ataques com o objetivo de derrubar Khadafi ou de atacá-lo diretamente.
A intenção da resolução é clara, a de impedir a morte de civis e a de tentar equilibrar o conflito, mas não dá qualquer permissão ao "ocidente" de impor um resultado a este.
Havia a certeza de que os EUA iriam intervir de uma forma ou de outra, logo, melhor que fosse sob os auspícios e limites da ONU, mas, mais uma vez, a ONU demonstrou sua inutilidade e em momento algum nem o secretário geral, nem qualquer outro oficial, repudiou a ilegalidade dos ataques dos EUA contra alvos sem qualquer relação com a resolução 1973.

Resolução a fundo
Resolução aprovada e regras mínimas assinaladas, iniciou-se a intervenção. De início, vimos o uso desproporcional de mísseis contra alvos que, nem de longe, foram os designados pela resolução. Instalações militares aleatórias e mesmo um prédio do complexo onde vive Khadafi foram alvos de bombardeios.
É possível interpretar que, por "defesa da vida de civis", importante ponto da Resolução 1973, entenda-se tomar medidas para garantir sua segurança, mesmo militares, logo, seria legítimo o bombardeio de tropas em vias de atacar áreas civis. Mas isto de forma alguma justifica o ataque a forças militares em Trípole ou em áreas que estão sendo defendidas contra os rebeldes, áreas sob controle governamental e distantes das reais zonas de conflito.
A diferença pode parecer tênue, mas militarmente faz muito sentido. Uma coisa é o ataque justificado a tropas no leste do país, região sob controle ou maior controle rebelde, que se preparam para atacar civis ou mesmo tropas rebeldes, outra bem diferente é atacar tropas estacionadas no oeste do país, região majoritariamente sob controle de Khadafi, logo, tropas que visam defendem o governo.
Não a toa, a China, através de sua imprensa oficial, demonstrou mal estar com os ataques, assim como o Brasil criticou a intervenção e a Rússia não se furtou em criticar as ações.
A decisão de depor Khadafi não está nas mãos da coalizão que agora intervém na Líbia, logo, a destruição de toda a estrutura militar e da infra-estrutura Líbia não está na ordem do dia, ou ao menos não deveria. A destruição das defesas do governo significariam abrir caminho para os rebeldes tomarem o poder, isto se os EUA não tomarem a iniciativa de, eles próprios, derrubarem Khadafi - intenção declarada pelo ministro da defesa inglês em declaração À mídia internacional.
Segundo a resolução, os aliados devem "tomar todas as medidas necessárias (...) para proteger civis e áreas povoadas por civis sob ameaça de ataque". De fato, é extremamente amplo, mas à medida em que se analisa coletivamente todos os demais pontos da resolução, podemos pintar um quadro completo em que a mudança de regime não está na ordem do dia e que, por mera observação, entendemos que matar Khadafi teria exatamente o resultado não-previsto na resolução.
Se por um lado, pode-se interpretar que, a fim de evitar a morte de civis, Khadafi deva ser eliminado - afinal, é o alegado responsável -, por outro não há qualquer permissão para que a decisão de mudar o regime seja tomado por qualquer um a não ser o povo líbio.
Aliás, vale ainda lembrar que não cabe ao Presidente Obama, mas ao Congresso dos EUA aprovar ações militares, o que, desde o início, coloca a intervenção na ilegalidade. Deputados Democratas contra a intervenção consideram até pedir o impeachment de Obama.
Como se vê, a intervenção na Líbia, mesmo com o respaldo da ONU, é um show de erros e ilegalidade, de todos os lados e em todas as direções.


Raphael Tsavkko Garcia - bacharel em Relações Internacionais e mestrando em comunicação – 18.04.2011
 IN “Brasil de Fato” – http://www.brasildefato.com.br/node/6106

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Mudanças no capitalismo global

É nesse novo contexto mundial de mudanças estruturais na dinâmica de funcionamento do capitalismo contemporâneo que a professora Maria Conceição Tavares, mais uma vez de forma corajosa e original, persegue o seu inabalável compromisso com a verdade, questionando os limites do sistema centro-periferia para dar conta de uma realidade distinta da do passado.

Márcio Pochmann
O aparecimento de dois novos elementos reestruturadores do capitalismo na passagem do século XX para o XXI torna ainda mais complexo o entendimento acerca do seu funcionamento. Em primeiro lugar, o movimento de reestruturação do capital global decorre do colapso na liderança dos dois blocos de países que até pouco tempo atrás organizavam o mundo, a partir do final da Segunda Grande Guerra, quando os Estados Unidos assumiram, de fato, a posição de centro hegemônico capitalista. Inicialmente, já na Grande Depressão de 1873 a 1896, houve concomitantemente um avanço da segunda Revolução Tecnológica, a consolidação do ciclo de industrialização retardatária em alguns poucos países, como EUA e Alemanha. Em especial essas duas nações insistiram, por cerca de meio século, na disputa da sucessão hegemônica do antigo centro dinâmico mundial liderado pela Inglaterra desde o século XVIII. A efetivação de duas Guerras Mundiais, intermediada pela Depressão de 1929, propiciou condições mais favoráveis para o protagonismo dos Estados Unidos, que desde o início do século XX se pronunciavam como a maior economia do mundo.
Mas toda essa centralização dinâmica mundial na economia estadunidense, sobretudo a partir do segundo pós-guerra, foi tensionada pela existência da Guerra Fria (1947 – 1991). Depois da bem sucedida Revolução Russa, em 1917, e com a vitória do exército vermelho sobre as forças do nazi-fascismo, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) se constituiu como centro organizador do bloco de países com economia centralmente planejada. No contexto da Guerra Fria, as duas nações líderes trataram de favorecer a integração do conjunto de países- satélite por intermédio da promoção da produção e comércio externo – ainda que desigual e combinada conforme destacada pela perspectiva teórica do sistema centro-periferia.
Algumas economias nacionais nas regiões latino-americana (Argentina, Brasil e México), africana (África do Sul) e asiática (Coreia do Sul, Taiwan e Singapura) vinculadas ao bloco de países capitalistas, bem como aquelas pertencentes ao conjunto das nações de economia centralizadas (China, Polônia e Bulgária), conseguiram avançar – em maior ou menor medida – na direção da internalização do ciclo de industrialização tardia da segunda metade no século XX. Estes países foram os que conseguiram transpassar a condição de periferia, sem chegar, todavia, ao centro do capitalismo mundial. A semi-periferia seria o encaminhamento possível no quadro teórico do sistema centro-periferia, posto que não possuíam plenamente uma moeda de curso internacional, um sistema nacional de produção e difusão tecnológica e um sistema de defesa nacional relevante.
Com o colapso no bloco de economias organizadas pelo planejamento central durante a passagem da década de 1980 para a de 1990, a fragmentação da antiga URSS foi acompanhada pela transição quase imediata à condição de nação capitalista periférica. Ao mesmo tempo, o fim da fase da Guerra Fria nas relações internacionais foi sucedido pela supremacia praticamente imperial dos EUA, pelo menos até 2008, quando a irrupção da crise do capitalismo global impôs o reinício de uma ampla reformulação na dinâmica de integração do conjunto dos países-satélite. Nesse sentido, a crise global estabeleceu o aparecimento forçado de um segundo elemento reestruturador do funcionamento do sistema centro-periferia capitalista. Além dos sinais crescentes de decadência relativa dos EUA, constatam-se também indícios do deslocamento do antigo centro dinâmico capitalista unipolar para a multipolarização geoeconômica mundial (Estados Unidos, União Europeia, Rússia, Índia, China e Brasil). Tudo ainda em fase embrionária, mas já favorecendo a gradual constituição de um novo policentrismo na dinâmica global capitalista em novas bases. Se considerado ainda o curso do processamento de uma revolução tecnológica tem-se os elementos fundadores de mais uma transformação profunda no modo de produção capitalista.
E, em segundo lugar, destaca-se o intenso processo de hipermonopolização do capital, expresso pelo poder inequívoco de não mais de 500 grandes corporações transnacionais a dominar qualquer setor de atividade econômica e responder por cerca da metade do PIB global. O comércio internacional deixa de ocorrer entre nações para assumir cada vez mais a centralidade entre as grandes corporações transnacionais. Nesses termos, não são mais os países que detêm as empresas, mas as grandes corporações transnacionais é que detêm os países, tendo em vista que o valor agregado gerado nelas tende a ser superior ao PIB da maior parte das nações. Essas corporações não podem mais sequer quebrar, sob o risco de colocar em colapso o sistema capitalista, o que exige, por sua vez, a subordinação crescente dos Estados nacionais às suas vontades e necessidades. Sem a regulação pública global, em meio ao esvaziamento das antigas agências multilaterais do sistema das Nações Unidas, o poder privado torna-se praticamente absoluto na determinação da produção e nível de preços, sendo insuficiente a perspectiva teórica de procurar compreender a dinâmica da Divisão Internacional do Trabalho somente pela lógica do comportamento das nações.
É nesse novo contexto mundial de mudanças estruturais na dinâmica de funcionamento do capitalismo contemporâneo que a professora Maria Conceição Tavares, mais uma vez de forma corajosa e original, persegue o seu inabalável compromisso com a verdade, questionando os limites do sistema centro-periferia para dar conta de uma realidade distinta da do passado. Não obstante o seu reconhecimento implícito acerca da importância teórica deste sistema, manifesta dúvidas a respeito de suas possibilidades para permitir a compreensão do capitalismo dos dias de hoje e o de amanhã. Sem o entendimento a esse respeito, qualquer crítica teórica, ainda que necessária e fundamental na perspectiva de fazer avançar o conhecimento e o debate plural e democrático, pode correr o risco da superficialidade, senão o da injustiça. Nesse sentido, só o tempo pode ser o senhor da razão.

Márcio Pochmann – Economista e professor – 23.12.2010
IN “Revista Forum”, Ed. 93 - http://revistaforum.com.br/marciopochmann/?p=22

terça-feira, 10 de maio de 2011

Carajás 15 anos, o massacre presente

Aniversário da chacina lembra a necessidade de punição aos assassinos e de tratamento e indenização às vítimas

Márcio Zonta
Ao andar pelas ruas da vila do assentamento 17 de abril em Eldorado dos Carajás, ainda escuta-se muitas histórias sobre a marcha que culminou no massacre da curva do S, na rodovia PA 150, em Eldorado do Carajás, há 15 anos. Os sobreviventes ainda têm dúvidas quanto ao número oficial de mortos divulgados pelo Estado, pois há crianças, homens e mulheres desaparecidos que não estavam na lista dos mortos e, tampouco, foram encontrados depois. As marcas do massacre persistem tanto na simbologia da conquista das cinco fazendas, parte das 15 existentes no complexo Macaxeira, quanto no corpo dos mutilados ou na cabeça de muitos que viveram aquele 17 de abril de 1996.
“Foi a tarde mais sangrenta da minha vida”, recorda Haroldo Jesus de Oliveira, o primeiro sobrevivente a conversar com a reportagem. Quem o vê trabalhando atencioso e calmo na Casa Digital 17 de abril, monitorando jovens e crianças no manuseio da internet, não imagina as recordações que ele guarda. “Acordamos felizes naquela manhã do dia 17, pois o Coronel Pantoja, junto a uma comissão, do então governador Almir Gabriel (PSDB), disse que daria os ônibus para que fossemos até Belém, onde pressionaríamos o governo para desapropriação dessas terras. Inclusive, já tínhamos desobstruído a rodovia na noite anterior, já que esse era nosso acordo, e preparado a alimentação para as famílias que participavam da marcha”, diz Oliveira.
Onze horas da manhã venceu o prazo do acordo, e em vez de chegar os ônibus, que levariam cerca das 1,8 mil famílias da marcha, chegou o batalhão da Polícia Militar, o que fez com que as famílias retomassem a estrada. “Eu me lembro como se fosse hoje. Estávamos de prato na mão, almoçando, sob uma chuvinha leve, um sereninho bom. Muitos homens começaram a descer dos ônibus da polícia e montar o acampamento, por volta de três da tarde, e ficaram cerca de 90 minutos preparando-se, como se fossem para uma guerra”, relata Oliveira.
Depois de estabelecidos os policiais no local, a mesma comissão disse que não providenciaria os ônibus e que tinha ordens do governador para retirar as famílias da via. “Nós nunca pensamos que poderia acontecer aquilo. Perto das 17 horas, começaram a jogar bombas de efeito moral contra as pessoas e a atirar no chão. Pessoas tomavam tiros nas pernas e caiam. Mas aqueles que iam para cima, eles atiravam no peito mesmo”. A carnificina começou naquele momento e pelas contas de Oliveira durou cerca de cinquenta minutos.
“Tive que sair pelo chão me arrastando para o miolo de gente junto à água da chuva, que se misturava com sangue, tinha muita gente no asfalto ferida, gritando, chorando...”, lembra emocionado Oliveira.

Premeditado
Amanhece no assentamento 17 de abril e, enquanto, muitos agricultores já estão na roça, as 7h, começa a entrada das crianças na escola que leva o nome de Oziel Alves Pereira, sem-terra de 17 anos espancado até a morte no hospital pelos policiais, por gritar palavras de ordem do MST, na noite do dia 17 de abril, em Curianópolis (PA), para onde foram levados os feridos.
Zé Carlos, companheiro de linha de frente junto a Oziel no dia do massacre, confere a mochila do filho na frente da escola, passa algumas recomendações e o beija ao se despedir. Sobre o dia da chacina, que lhe custou uma bala alojada na cabeça e a perda de um olho, Zé Carlos é enfático: “utilizaram-se de táticas de guerra”. Zé lembra que um caminhão que estava parado na estrada, por causa do bloqueio, foi oferecido às famílias como proteção. “O motorista chegou e disse: ‘vou atravessar esse caminhão na pista para ajudar vocês’. Mas estranhamente toda a ação policial iniciou-se atrás desse veículo, sendo o escudo principal deles, tapando nossa visão. Foram os policiais que pediram”, garante.
Zé conta que os policiais vinham do sentido de Parauapebas e Marabá, ambas cidades paraenses interligadas pela rodovia, além dos que saíam do meio da mata dos dois lados da pista. “Nos cercaram para matar mesmo, pois vinham de todas as direções atirando”. Segundo Zé, é difícil para quem esteve no dia aceitar o número de apenas 21 mortos ditos pelo Estado.“Isso é brincadeira. Morreu muita gente, entre homens, mulheres e crianças. Vi muita gente morta, não pode ser, Tenho até medo de falar, deixa isso para lá. Mas garanto que foi muito mais”.

Ao apagar das luzes
Como se um espetáculo tivesse acabado, ao anoitecer no dia 17 de abril, as luzes do município de Eldorado do Carajás foram apagadas e seu cenário de morte, desmontado. Essa é a sensação que teve a jovem Ozenira Paula da Silva, com 18 anos na época do acontecido. “Apagaram as luzes para desmontar o que tinham feito, para limparem a via. Jogavam corpos e mais corpos em caçambas de caminhão, que tomavam rumos diferentes”.
Após os primeiros disparos, Ozenira só teve tempo de pegar os seus três filhos, todos com menos de cinco anos, e correr para a mata ao lado, percebendo momentos depois que tinha sido baleada na perna esquerda, na altura da coxa. “Tinha muita gente escondida na mata, próximo às margens da rodovia e foi justamente essas pessoas que viram muitos corpos sendo desviados para fora do caminho do Instituto Médico Legal (IML), de Marabá, para onde eram levados os mortos”.
Ozenira diz que algo lhe intriga até hoje. “Depois que terminou a matança, uma criança branquinha de uns dois anos foi achada na escuridão do mato, aos prantos, por uma mulher que procurava seus familiares. Essa mulher a recolheu. Sei que essa criança viveu com ela bastante tempo em Curianópolis, mas depois perdi o contato”.
Onde estariam os pais da criança naquela noite? Ozenira responde: “Não tenho como provar, mas tenho quase certeza que estavam em algum caminhão de remoção de cadáveres”, finaliza.

O massacre continua
Poucos mutilados receberam seus direitos de indenização e até hoje, quinze anos depois, muitos nem recebem a pensão mensal de R$346. Ozenira é uma delas. “Fui atendida no hospital apenas no dia do acontecido, depois nunca mais tive atendimento médico, tenho dias de dores horríveis e outros de dormência na perna”, conta.
Já Zé, hoje aos 32 anos, foi um dos únicos a receber, em 2008, uma indenização de R$ 85 mil reais, mais a pensão mensal no valor citado acima. Hoje vive do que seus irmãos plantam em seu lote, já que tem dificuldades para trabalhar em função das sequelas do tiro na cabeça.
Mas, um caso em especial entre os mutilados chama a atenção. Mirson Pereira, um dos únicos que conseguiu uma cirurgia, no Hospital Regional de Marabá, para retirar uma bala alojada na perna esquerda. “Pensei que seria o fim das dores, mas quando voltei da sala de cirurgia o médico disse que havia errado e feito o corte na perna errada, disse que no outro dia realizaria o procedimento na perna certa, mas desisti, fiquei com medo e saí do hospital”. Pereira continua com a bala na perna e ainda aguarda sua indenização.
O descaso do Estado brasileiro em relação ao massacre de Eldorado dos Carajás já gerou contra o governo um processo, em 1998, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede nos Estados Unidos, feita pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL). “O governo brasileiro agiu de duas formas quando foi notificado pela entidade internacional. Primeiramente, culpou os próprios marchantes pelo ocorrido e, num segundo momento, por força da opinião pública, disse que já fazia coisas no assentamento, o que compensava o ocorrido”, explica Viviam Holzhacker, advogada assistente da CEJIL, que acompanha o caso.
No entanto, por pressão internacional, a advogada diz que o governo brasileiro aderiu a um processo, recentemente, de buscar acordo com os mutilados. “São feitas propostas de ambos os lados até chegar a um acordo. Deve levar mais uns cinco anos para ser resolvido o caso de todos”, explica.
Diante deste imbróglio, na ausência de um tratamento médico adequado que cuide do corpo e da mente dos participantes da marcha, Índio, um dos mutilados, com duas balas alojadas na perna esquerda desabafa: “Aconteceu o massacre em 1996. Mas ele terminou? Não! Pois esse grupo [do assentamento] ficou apenas porque o Estado não deu conta de matar no dia. Ficamos para contar a história, sofrer e ir morrendo aos poucos num massacre diário, que só terminará por completo com nossa morte”.


Márcio Zonta – Jornalista –  15.04.2011
IN “Brasil de Fato” – http://www.brasildefato.com.br/node/6102