sexta-feira, 20 de maio de 2011

A proibição da Marcha da Maconha e o Estado de Exceção


“Deixe que digam, que pensem, que falem”
Jair Rodrigues

Coletivo Marcha da Maconha São Paulo
Sob acusação de apologia ao crime, pelo terceiro ano consecutivo a Marcha da Maconha foi proibida em São Paulo. Depois de negociação com a polícia, os manifestantes puderam marchar, mas em nome da liberdade de expressão, sem poderem pronunciar palavras ou mostrar cartazes relativos à legalização da maconha. Esse evento tem mais importância do que pode parecer, pode nos explicar muito sobre nossa Justiça e nossa sociedade em geral.
A Marcha da Maconha é um movimento mundial, que se organiza de maneira descentralizada em mais de 300 cidades pelo planeta. No Brasil, estava programada para acontecer em ao menos 12 cidades, e somente São Paulo e Fortaleza a proibiram, sob a frágil acusação acima citada. Pelo Código Penal brasileiro, a apologia ao crime (e não apologia às drogas, como muitos dizem) se caracteriza por defesa de fato criminoso ou de criminoso condenado em juízo. Não é esse o caso da manifestação em questão, que defende mudanças na lei para que o fato defendido – uso, comércio e plantio de maconha e de outras drogas ilícitas – exatamente deixe de ser crime.
Nos últimos 40 anos, os Estados Unidos gastaram cerca de 1 trilhão de dólares na chamada “guerra às drogas”. Os resultados dessa estratégia, implementada globalmente desde o começo do século XX através de tratados internacionais, são pífios no que diz respeito ao combate ao uso destas substâncias. No Brasil, por exemplo, o órgão governamental CEBRID aponta que 22,8% dos adultos já experimentaram alguma droga ilícita. Por outro lado, a proibição traz uma série de efeitos danosos, desde a intervenção do Estado sobre condutas privadas de seus cidadãos à violência do crime e do próprio Estado, passando pela corrupção que permeia os três poderes, por tensões políticas internacionais e pelo encarceramento em massa.
No entanto, mandado de segurança impetrado no final do expediente de sexta-feira por promotores de São Paulo, e prontamente acolhido pelo desembargador Sérgio Ribas sem que houvesse tempo para defesa, aponta que a Marcha da Maconha é “um atentado contra a sociedade ordeira”, uma vez que incita prática criminosa através da “balbúrdia social” e defende que as normas sociais devem ser descumpridas. Em nome da ordem, contraria-se o artigo 5º da Constituição, que salvaguarda a livre expressão e a livre manifestação. Em nome da ordem, contraria-se a lei.
Sem entrar no debate de que ordem é essa que mantém cerca de 75 mil pessoas encarceradas pelo comércio de algumas substâncias eleitas como responsáveis por todos os problemas sociais, nem questionar por que a saúde pública é evocada nessa fracassada tentativa de impedir o acesso a algumas drogas mas não é lembrada quando do extermínio constante da população acusada de tráfico, cabe aqui questionar-nos sobre o funcionamento seletivo, preconceituoso, moralista e contraditório de nossa Justiça.
Um conceito interessante para pensarmos sobre a atual conjuntura em que estamos inseridos é o de “Estado de exceção”. Tradicionalmente invocada como suspensão de certos direitos num período crítico, a exceção hoje é a regra, caracterizada por uma lei maleável aplicada seletiva e variavelmente e que coloca os cidadãos numa posição em que abrem mão de parte de seus direitos
em nome de uma democracia que nunca chega. Nas palavras do filósofo Giorgio Aganbem, é um contexto em que “a lei está fora dela mesmo” já que é o soberano (no caso a Justiça) quem tem o poder legal de suspender a lei.
Num ambiente em que “perigosos inimigos” são forjados e superestimados de forma a nublar os verdadeiros problemas de nossa sociedade, torna-se legítima uma política de guerra que se pauta pelo extermínio destes inimigos, hipotecando-se nesse processo preceitos básicos do convívio democrático, como o direito de defesa, a liberdade pensamento e manifestação, a presunção de inocência e leis que se apliquem de maneira equitativa a todos.
O historiador Carlo Ginzburg cita a existência de um grupo de intelectuais franceses e italianos no século XVII chamado “Libertinos Eruditos”, que caracterizavam a religião como uma mentira, mas uma “mentira útil”, sem a qual se desestruturariam as relações sociais. Passados cerca de cem anos da proibição das drogas, é impossível que não vejamos que todas suas promessas se mostraram falsas – ela é uma mentira se encarada como garantia de saúde pública, na medida em que não regula o abuso, evita que se priorizem estratégias de redução de danos, educação e saúde e ainda traz em si tanta violência. No entanto, é uma mentira útil a uma certa ordem, que se crê não só imutável como inquestionável. Se queremos uma democracia que mereça de fato esta nome, não só o caráter mentiroso do proibicionismo deve ser questionado, como também para quê, e para quem, ele é útil.

Coletivo Marcha da Maconha São Paulowww.marchadamaconha.org – Maio de 2010
IN Jornal “Juízes pela Democracia”, Ano 13, nº 49 –    http://www.ajd.org.br/arquivos/publicacao/68_democracia_49.pdf