o que fixa o maior horror da litteratura de advogado não é esse crescer e multiplicar de palavras inúteis, cujo motivo econômico nos explica Adam Smith: é o não sei que de kabalistico dos despachos, das petições, e até de alguns tratados de direito, de commentario e interpretação das leis. São uns como Veddas do occidente – esses tratados de direito: mysticos ao seu jeito, para que de sua kabala, de sua mystica, do seu artifício de sciencia transcedental, vivam e se alimentem brahmanes de fraque e beca.
Gilberto Freyre
A actividade do advogados me parece mental e moralmente inferior. Mas o lado moral – abandono-o aos moralistas.
Intellectualmente, ella me parece inferior por mais de uma razão: é o processo de pretender o julgamento das cousas, não nos seus valores íntimos, mas segundo preceitos e formulas – segundo umas como regras de orthographia; o processo de persuadir por meio de malabarismo verbal ou lógico – raro pela sondagem profunda das cousas.
Dahi ser a imaginação nos grandes advogados e às vezes até nos juristas o que um critico já uma vez chamou “tópica ou vocabular”
A litteratura do advogado repugna pelo freqüente sacrifício da concentração – que é a força e o rythmo dos grandes estylos – à dispersão – que é a força e o rythmo da oratória.
Relendo um desses dias Adam Smith – aliás filho de advogado – que hei de encontrar a paginas tantas da veneranda “Wealth of Nationas”? A explicação de ser o estylo da literattura dos advogados o “grande horror” denunciado por Daniel Defoe.
O bom Smith attribue o phenomeno a razão economica; e eu não saberia fugir ao prazer de o citar aqui no próprio inglez. “It has been the custom in modern Europe – escreve o Adão dos economistas modernos – to regulate upon most occasions, the payment of attornies and clercks of court, according to the number of pages which they had occasion to write… In order to increase their payment, the attornies and clercks have contrived to multiply words beyond all necessity, to the corruption of the language of law”. Em bom portuguez: o velho Smith associava o verbalismo jurídico ao facto dos advogados, pagos a tanto por pagina, se esforçarem para multiplicar as palavras além do necessario.
Terá sido esta a razão de nunca ter escripto o nosso glorioso Ruy Barbosa sinão em dez ou vinte paginas o que a continencia intellectual mandava escrever em simples meia pagina; e de terem Defoe e Stevenson fugido da advocacia com a mesma repugnância do estudante de Goethe? A litteratura do advogado é um processo de arithmetica verbal: o do Genesis. Comprehende-se, pois, que lhe repugne a expressão das cousas – mesmo as mais rasas – em simples meias paginas.
Mas o que fixa o maior horror da litteratura de advogado não é esse crescer e multiplicar de palavras inúteis, cujo motivo econômico nos explica Adam Smith: é o não sei que de kabalistico dos despachos, das petições, e até de alguns tratados de direito, de commentario e interpretação das leis. São uns como Veddas do occidente – esses tratados de direito: mysticos ao seu jeito, para que de sua kabala, de sua mystica, do seu artifício de sciencia transcedental, vivam e se alimentem brahmanes de fraque e beca.
Esse kabalistico de linguagem constitue talvez para a litteratura jurídica e para os seus cultores, a principal condição da vida. Já um delles perguntou a que ficariam reduzidos os advogados “no dia em que um Lycurgo se dispuzesse a promulgar um código de porcesso, em que os aggravos e outros recursos obstructores fossem reduzidos a expressão mais simples, de modo que todo o mundo pudesse requerer em juízo e defender por si as próprias causas?” A que ficariam reduzidos então os advogados e legistas? Estou a emigrar para a India ou para o Egypto – a praticar outras formas de kabala, à sombra doutros caciques e doutras palmeiras.
Gilberto Freyre – Sociólogo, Escritor e ex-Deputado – Publicado entre 1922 e 1925
IN “Diário de Pernambuco” – FREYRE, Gilberto. “Artigos de Jornal”. Edições Mozart, Recife.
Uma homenagem crítica, com uma pitadinha de acidez, neste "Dia do Advogado".