Para que o assunto reforma agrária pudesse ser considerado superado, seria necessário primeiramente que houvesse oferta de trabalho produtivo e bem remunerado para toda a população rural; em seguida, que a agricultura praticada não destruísse o meio ambiente; logo, que existisse um equilíbrio entre a produção de alimentos e a produção de commodities para exportação; e, finalmente, que os litígios sobre terra não chegassem a disputas marcadas por violência.
Plínio de Arruda Sampaio
Como se pode considerar ultrapassado um problema que não sai do noticiário dos jornais? Para que o assunto reforma agrária pudesse ser considerado superado, seria necessário primeiramente que houvesse oferta de trabalho produtivo e bem remunerado para toda a população rural; em seguida, que a agricultura praticada não destruísse o meio ambiente; logo, que existisse um equilíbrio entre a produção de alimentos e a produção de commodities para exportação; e, finalmente, que os litígios sobre terra não chegassem a disputas marcadas por violência.
Nada disso acontece, exatamente por causa dos defeitos da estrutura de distribuição da posse e da propriedade da terra no Brasil.
É a extrema concentração da posse e a não distribuição adequada da terra a principal responsável pela miséria da população rural, pela adoção de tecnologia agrícola altamente destruidora do meio ambiente e pela insegurança alimentar da nação. Essa estrutura formou-se no período colonial, consolidou-se no império e na república e está atualmente - pasme-se! – tornando-se ainda mais injusta.
Sobre a miséria da população rural, não há necessidade de oferecer números, porque “facta notória non sunt probandum”. Sobre a relação dessa pobreza com a estrutura fundiária, basta dizer que a existência de uma enorme população rural sem oportunidades de trabalho é o fator principal dos baixos salários e das condições insalubres das habitações rurais, bem como da exploração dos pequenos agricultores pelos que comercializam sua produção.
Não há também comparação entre a poluição causada pela pequena agricultura e a provocada pela monocultura do agronegócio, que emprega enormes quantidades de agrotóxicos. O poder que o domínio de grandes extensões de terra confere a uma classe de agricultores – os latifundiários, tanto do tipo tradicional como do moderno agronegócio – dá a esse grupo meios para subornar os agentes do Estado, encarregados de fiscalizar o respeito às normas de preservação do meio ambiente. A incapacidade da população pobre do campo - os primeiros a sofrer as consequências da poluição - de tomar qualquer atitude contra aqueles dos quais dependem economicamente contribui para que o suborno dos agentes do governo fique impune.
Circula sem contestação, até em meios acadêmicos, o mito de que a agricultura brasileira está capacitada a fornecer alimentos em quantidade suficiente para atender às necessidades de toda a população. É a tese da flexibilidade do setor, tão cara aos intelectuais a serviço do latifúndio. Com base nesse mito, forjou-se a tese da superação do problema agrário. Não é difícil desmascará-lo: não há atualmente falta de alimentos no mercado pela simples razão de que boa parte da população não tem poder de compra para chegar a esse mesmo mercado. Essa população come pouco e se alimenta, sobretudo, com produtos de menor qualidade nutritiva.
Finalmente, a violência: pode-se considerar normal uma estrutura agrária que provoca frequentemente conflitos fundiários? Mais de mil mortos e feridos, entre os envolvidos anualmente nesses conflitos, fazem de certas regiões do campo brasileiro o local de uma guerra civil não declarada.
Não há dúvida alguma: a questão agrária está na agenda política do país, sobretudo agora que o governo federal tomou a decisão de ceder a Amazônia para que os gigantescos agrobusiness montem, na região, uma economia exportadora de quatro commodities: cana-de-açúcar para produção de álcool; soja; madeira e carne bovina.
Plínio de Arruda Sampaio – Presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária (Abra), procurador de Justiça aposentado e ex-deputado federal constituinte
IN “MPD Dialógico” (Revista do Ministério Público Democrático) – ANO VI, N. 29 – http://www.mpd.org.br/img/userfiles/image/Dialogico29.pdf