terça-feira, 30 de agosto de 2011

Atualidades da questão agrária



Para que o assunto reforma agrária pudesse ser considerado superado, seria necessário primeiramente que houvesse oferta de traba­lho produtivo e bem remunerado para toda a população rural; em seguida, que a agricultura praticada não destru­ísse o meio ambiente; logo, que existisse um equilíbrio entre a produção de alimentos e a produção de commo­dities para exportação; e, finalmente, que os litígios sobre terra não chegassem a disputas marcadas por violência.


Plínio de Arruda Sampaio
Como se pode considerar ultrapassado um problema que não sai do noticiário dos jornais? Para que o assunto reforma agrária pudesse ser considerado superado, seria necessário primeiramente que houvesse oferta de traba­lho produtivo e bem remunerado para toda a população rural; em seguida, que a agricultura praticada não destru­ísse o meio ambiente; logo, que existisse um equilíbrio entre a produção de alimentos e a produção de commo­dities para exportação; e, finalmente, que os litígios sobre terra não chegassem a disputas marcadas por violência.
Nada disso acontece, exatamente por causa dos defei­tos da estrutura de distribuição da posse e da proprieda­de da terra no Brasil.
É a extrema concentração da posse e a não distribuição adequada da terra a principal responsável pela miséria da população rural, pela adoção de tecnologia agrícola alta­mente destruidora do meio ambiente e pela insegurança alimentar da nação. Essa estrutura formou-se no período colonial, consolidou-se no império e na república e está atualmente - pasme-se! – tornando-se ainda mais injusta.
Sobre a miséria da população rural, não há necessi­dade de oferecer números, porque “facta notória non sunt probandum”. Sobre a relação dessa pobreza com a estrutura fundiária, basta dizer que a existência de uma enorme população rural sem oportunidades de trabalho é o fator principal dos baixos salários e das condições insalubres das habitações rurais, bem como da exploração dos pequenos agricultores pelos que co­mercializam sua produção.
Não há também comparação entre a poluição causada pela pequena agricultura e a provocada pela monocultura do agronegócio, que emprega enormes quantidades de agrotóxicos. O poder que o domínio de grandes exten­sões de terra confere a uma classe de agricultores – os latifundiários, tanto do tipo tradicional como do moderno agronegócio – dá a esse grupo meios para subornar os agentes do Estado, encarregados de fiscalizar o respeito às normas de preservação do meio ambiente. A incapa­cidade da população pobre do campo - os primeiros a sofrer as consequências da poluição - de tomar qualquer atitude contra aqueles dos quais dependem economica­mente contribui para que o suborno dos agentes do go­verno fique impune.
Circula sem contestação, até em meios acadêmicos, o mito de que a agricultura brasileira está capacitada a fornecer alimentos em quantidade suficiente para aten­der às necessidades de toda a população. É a tese da flexibilidade do setor, tão cara aos intelectuais a serviço do latifúndio. Com base nesse mito, forjou-se a tese da superação do problema agrário. Não é difícil desmascará-lo: não há atualmente falta de alimentos no mercado pela simples razão de que boa parte da população não tem poder de compra para chegar a esse mesmo mercado. Essa população come pouco e se alimenta, sobretudo, com produtos de menor qualidade nutritiva.
Finalmente, a violência: pode-se considerar normal uma estrutura agrária que provoca frequentemente con­flitos fundiários? Mais de mil mortos e feridos, entre os envolvidos anualmente nesses conflitos, fazem de certas regiões do campo brasileiro o local de uma guerra civil não declarada.
Não há dúvida alguma: a questão agrária está na agen­da política do país, sobretudo agora que o governo federal tomou a decisão de ceder a Amazônia para que os gigan­tescos agrobusiness montem, na região, uma economia exportadora de quatro commodities: cana-de-açúcar para produção de álcool; soja; madeira e carne bovina.



Plínio de Arruda Sampaio – Presidente da Associação Brasileira de Re­forma Agrária (Abra), procurador de Justiça aposentado e ex-deputado federal constituinte
IN “MPD Dialógico” (Revista do Ministério Público Democrático) – ANO VI, N. 29 –  http://www.mpd.org.br/img/userfiles/image/Dialogico29.pdf

sábado, 27 de agosto de 2011

A era do preconceito


Bode expiatório, o fundamentalismo islâmico foi o primeiro acusado pelos atentados na Noruega.

Celso Amorim
Nesta era da internet a informação é instantânea. A desinformação também. A notícia sobre os trágicos atentados de Oslo chegou-me enquanto eu navegava pelos sites que costumo frequentar para me atualizar sobre o que ocorre no mundo. Pus-me imediatamente em busca dos detalhes. Abri a página de uma respeitada revista internacional. Além de alguns pormenores, obtive também a primeira explicação, que veria em seguida nas versões eletrônicas dos jornais brasileiros, segundo a qual o perpetrador dos atos terríveis era alguém a serviço de um movimento fundamentalista islâmico. Dois dias depois do acontecido, quando ficou claro que, na verdade, se tratava de um extremista de direita que pertenceu a movimentos neonazistas, ainda é possível encontrar, mesmo com ressalvas (porque a internet comete essas “traições”), a mesma interpretação apressada, baseada no preconceito contra muçulmanos.
No caso da revista internacional, a interpretação não se limitou a essa caracterização genérica. Deu “nome e endereço” do facínora, que seria um iraquiano curdo ligado a sunitas fanáticos, vivendo no exílio desde 1991. O articulista foi mais longe. Apontou as possíveis motivações do crime hediondo, que estariam relacionadas com a presença de tropas norueguesas no Afeganistão e com a percepção, por parte dos tais fundamentalistas, da cumplicidade da imprensa norueguesa com caricaturas ofensivas ao Profeta.
Evidentemente, tudo isso era muito plausível, à luz do ocorrido no 11 de Setembro, descartando-se as hipóteses conspiratórias sobre aquele trágico episódio. Mas era igualmente plausível a hipótese, que acabou confirmada, de que se tratasse de outro tipo de fundamentalista, do gênero “supremacista branco”. O alvo do ataque era um governo da esquerda moderada, visto como tolerante em relação a imigrantes e aberto ao diálogo com as mais diversas facções em situações conflituosas, inclusive no Oriente Médio. Para sublinhar a natureza ideológico-religiosa do ato de violência, o terrorista visou também a juventude do partido, pacificamente acampada em uma ilha.
Algo semelhante havia ocorrido seis anos antes do atentado contra as Torres Gêmeas, quando outro fanático havia feito explodir um prédio público na cidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. Daquela feita, o Estado – e tudo o que ele simboliza como limitação ao indivíduo, percebido como independente e antagônico em relação à sociedade – foi o objeto da ira destruidora. Também naquela época, quando a Al-Qaeda ainda não havia ganhado notoriedade, as primeiras análises apontaram para os movimentos islâmicos.
Não ponhamos, porém, a culpa na internet. Ela apenas faz com que visões baseadas em preconceitos, que não deixam de refletir certo tipo de fundamentalismo, se espalhem mais rapidamente, com o risco de gerarem “represálias” contra o suposto inimigo. Felizmente, neste caso, a eficiente ação da polícia norueguesa impediu que isso ocorresse. Mas o risco existe de que, em outras situações, as tragédias se multipliquem, por vezes com o apoio de movimentos marginais inconsequentes, que buscam tirar partido dos eventos, assumindo responsabilidade por algo que não fizeram.
Não é possível ignorar que, no caso da invasão do Iraque, o preconceito, e não apenas a manipulação deliberada (que também existiu), estava por trás de vinculações absurdas, usadas para justificar decisões que causaram centenas de milhares de vítimas (há quem fale em 1 milhão). O suposto elo entre Saddam Hussein e o terrorismo nunca se comprovou, da mesma forma que eram falsas as alegações quanto à posse por Bagdá de armas de destruição em massa. Num primeiro momento, contudo, essas justificativas foram aceitas pela maioria da população norte-americana.
Não sejamos inocentes. Interesses econômicos e políticos, e não apenas preconceitos, motivaram a decisão de atacar o Iraque. Mas o pano de fundo de uma visão particularista do mundo, em que “diferente” se torna sinônimo de “inimigo”, ajuda a criar o caldo de cultura de que se valem os líderes para obter, das populações que governam, o indispensável apoio às suas custosas aventuras bélicas.
A Noruega não corre esse risco. Como disse o primeiro-ministro Stoltenberg, o terrorismo insano não destruirá a democracia do país nórdico, que, ademais, se tem notabilizado por importantes iniciativas em favor da paz. Aliás, é o ódio às pessoas que promovem a paz e o entendimento, além da intolerância e do fanatismo, que está na raiz desse bárbaro atentado. Infelizmente, não só o orgulho, como queria a romancista inglesa, mas também o ódio costuma ser um companheiro inseparável do preconceito.


Celso Amorim – Ex-ministro das Relações Exteriores – 29.07.2011
IN “Carta Capital” – http://www.cartacapital.com.br/politica/a-era-do-preconceito

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Poder em pane


Todos, em algum momento, fizeram algo que não gostariam de mostrar na esfera pública. Mas cabe ao jornal decidir quem vai ser exposto e quem será conservado, quem vai para a primeira página e quem vai para a nota do canto.
A lei "dois pesos, duas medidas" transforma-se em uma regra, adequando-se às exigências de uma sociedade do espetáculo.

Vladimir Safatle

No último domingo, um dos jornais de maior tiragem no Reino Unido deixou de circular. Criado há 168 anos, o tabloide "News of the World" fechou as portas depois de descoberta a maneira peculiar com que conseguia seus furos de reportagem.
Especializado em escândalos políticos ou de alcova, destruição de reputações, furos sensacionalistas, o jornal contratava, desde há muito, um detetive particular para grampear e ter acesso a telefones de políticos, celebridades e mesmo gente comum.
Por trás do jornal estão as marcas de seu dono, Rupert Murdoch. Proprietário do maior conglomerado de mídia do mundo, a News Corporation, Murdoch representa o jornalismo em seu processo de degradação.
Seus canais de comunicação, como a rede de TV Fox News, conseguiram impor o modelo de um jornalismo a serviço das opiniões mais conservadoras, repetidas com a sutileza de quem está em guerra contra qualquer sombra de divergência.
Sua figura representa, ao mesmo tempo, a oligopolização do mercado de mídia e a imposição de uma agenda caricata de debate. Basta lembrarmos do nível dos argumentos dos ditos "âncoras" da Fox News. Basta lembrarmos também de como um dos editores do "News of the World" acabou parando na campanha do atual primeiro-ministro britânico David Cameron.
Que um de seus jornais seja pego aplicando táticas fora de qualquer padrão mínimo de respeito à privacidade, eis algo que não deve nos estranhar. Murdoch tornou a produção de notícias setor de uma luta política onde reina a seletividade do escândalo.
Todos, em algum momento, fizeram algo que não gostariam de mostrar na esfera pública. Mas cabe ao jornal decidir quem vai ser exposto e quem será conservado, quem vai para a primeira página e quem vai para a nota do canto.
A lei "dois pesos, duas medidas" transforma-se em uma regra, adequando-se às exigências de uma sociedade do espetáculo.
Nesse sentido, o fechamento do "News of the World" deveria servir para uma autorreflexão da imprensa mundial. Muito já se disse a respeito da imprensa como quarto poder, mas o que acontece quando esse poder entra em pane?
Pode-se dizer que quem empenha sua credibilidade a serviço da luta política acaba por pagar um preço alto, como nesse caso. Mas quanto tempo é necessário esperar para que a conta seja paga?
Durante anos, o jornal de Murdoch usou da invasão criminosa da privacidade para influenciar a pauta dos escândalos. Mesmo descoberto, o estrago já foi feito.
A população tem o direito de perguntar se não existiria outros veículos que agem como o tablóide de Murdoch.



Vladimir Safatle – Filósofo e professor da USP – 12.07.2011
In “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1207201106.htm

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Não é só o euro, mas a democracia que está em jogo


A Grécia ilustra o perigo de permitir que as agências de classificação de risco, apesar de seu péssimo histórico, dominem o terreno político. Há questões de fundo que devem ser enfrentadas a respeito de como o governo democrático da Europa pode ser minado pelo papel enormemente aumentado das instituições financeiras e das agências de classificação de riscos, que hoje se apropriaram de certas partes do terreno político da Europa. Deter a marginalização da tradição democrática na Europa envolve uma urgência que é difícil de exagerar.

Amartya Sen
A Europa liderou o mundo no que diz respeito à prática da democracia. É, portanto, preocupante que os perigos para a governabilidade democrática de hoje, que entram pela porta traseira das prioridades financeiras, não recebam a atenção que merecem. Há questões de fundo que devem ser enfrentadas a respeito de como o governo democrático da Europa pode ser minado pelo papel enormemente aumentado das instituições financeiras e das agências de classificação de riscos, que hoje se apropriaram de certas partes do terreno político da Europa.
É preciso separar duas questões diferenciadas. A primeira se refere ao lugar das prioridades democráticas, incluindo o que Walter Bagehot e John Stuart Mill consideravam a necessidade do “governo por meio da discussão”. Suponhamos que aceitemos que os poderosos chefes das finanças possuem uma compreensão realista do que é preciso fazer. Com isso se fortaleceria o argumento favorável a prestar atenção em suas vozes em um diálogo democrático. Mas isso não é o mesmo que deixar às instituições financeiras internacionais e às agências de classificação de risco o poder universal de mandar sobre governos eleitos democraticamente. Em segundo lugar, é difícil ver que os sacrifícios que os comandantes financeiros vêm exigindo dos países em situação precária vão garantir a viabilidade destes países e a continuidade do euro dentro de um modelo sem reformar o setor financeiro e um conjunto de membros sem mudanças dentro do clube do euro.
O diagnóstico dos problemas econômicos por parte das agências de qualificação não é a voz da verdade como pretendem. Vale a pena lembrar que o histórico dessas agências nas instituições de certificação financeira e de negócios antes da crise econômica de 2008 era tal que o Congresso dos EUA debateu seriamente se deviam ser processadas. Dado que grande parte da Europa encontra-se agora empenhada em conseguir uma rápida redução do déficit público mediante a redução drástica do gasto público, é fundamental examinar com realismo que possíveis repercussões poderiam ter essas medidas políticas, tanto no caso da população quanto no da geração de receitas públicas por meio do crescimento econômico.
A alta moral de “sacrifício” tem um efeito embriagante. Esta é a filosofia do corpete “correto”. “Se a senhora se sente muito cômoda com ele, então certamente precisa de um tamanho menor”. No entanto, se as exigências de adequação financeira se vinculam de maneira demasiadamente mecânica aos cortes imediatos, o resultado pode ser o de matar a galinha dos ovos de ouro do crescimento econômico. Essa preocupação se aplica a uma série de países, desde a Inglaterra até a Grécia. A comunidade da estratégia do “sangue, suor e lágrimas” de redução do déficit outorga uma aparente plausibilidade ao que está sendo imposto aos países mais precários como Grécia ou Portugal. Também faz com que seja mais difícil ter uma voz política unida na Europa que possa fazer frente ao pânico gerado nos mercados financeiros.
Além de uma visão mais política, há necessidade de um pensamento econômico mais claro. A tendência a ignorar a importância do crescimento econômico na geração de receitas públicas deveria ser um assunto importante de análise. A sólida conexão entre crescimento econômico e receitas públicas é uma coisa observada em muitos países, como Índia, China, Estados Unidos e Brasil. Também aqui se tiram lições da história. A grande dívida pública de muitos países ao término da Segunda Guerra Mundial provocou uma enorme ansiedade, mas o gravame diminuiu rapidamente graças a um rápido crescimento econômico. Do mesmo modo, o enorme déficit que o presidente Clinton enfrentou quando assumiu seu cargo em 1992 se dissipou durante sua presidência, em grande medida graças à ajuda de um rápido crescimento econômico.
O temor de uma ameaça à democracia não se aplica, com certeza, a Inglaterra, já que estas medidas políticas foram escolhidas por um governo investido pelo poder das eleições democráticas. Apesar de que o desenvolvimento de uma estratégia não revelada no momento das eleições possa ser razão para uma reflexão, este é o tipo de liberdade que um sistema democrático permite aos que saem vencedores nas eleições. Mas com isso não se elimina a necessidade de uma maior discussão pública, mesmo na Inglaterra. Também existe a necessidade de reconhecer de que modo as políticas restritivas resultantes da eleição na Inglaterra parecem dar verossimilhança às medidas ainda mais drásticas impostas a Grécia.
Como os países do euro se meteram nesta enrascada? A rara singularidade de ir na direção de uma moeda única sem uma maior integração política e econômica sem dúvida contribuiu para isso, ainda mais considerando as transgressões financeiras que sem dúvida cometeram no passado países como Grécia ou Portugal (inclusive depois da importante advertência de Mario Monti de que uma cultura de “excessiva deferência” na União Europeia permitiu que essas transgressões ocorressem sem controle). É preciso reconhecer imensamente o governo grego – e Yorgos Papandreu, o primeiro ministro, em particular -0 que está fazendo o que pode apesar da resistência política, mas a vontade aflita de Atenas de cumprir certos termos não elimina a necessidade de os europeus estudarem a razoabilidade desses termos – e os tempos – que estão sendo impostos a Grécia.
Não é nenhum consolo para mim lembrar que me opus firmemente ao euro, apesar de estar fortemente a favor da unidade europeia. Minha preocupação com o euro guardava em parte relação com o fato de que cada país renunciara à liberdade de sua política monetária e dos ajustes na taxa de câmbio, que ajudaram enormemente a países em dificuldade no passado e evitou a necessidade de uma desestabilização massiva de vidas humanas nos frenéticos esforços por estabilizar os mercados financeiros.
Essa liberdade monetária poderia ser permitida mesmo com uma integração política e fiscal (como tem os estados nos EUA), mas a pressa em inaugurar uma casa que estava em construção acabou resultando numa receita desastrosa. Obrigou-se a incorporar à maravilhosa ideia de uma Europa democrática unida um precário programa de incoerente fusão financeira. Reordenar a zona euro suporia muitos problemas, mas as questões difíceis devem ser discutidas de maneira inteligente, ao invés de permitir uma Europa à deriva em meios aos ventos financeiros, alimentada por um pensamento de mentalidade estreita com um terrível histórico.
O processo tem que começar com certa restrição imediata do poder sem oposição das agências classificadoras de emitir mandatos unilaterais. Estas agências são difíceis de disciplinar mesmo com seu péssimo histórico, mas a voz bem refletida dos governos legítimos pode supor uma grande diferença para a confiança financeira enquanto se elaboram soluções, sobretudo se as instituições financeiras internacionais prestarem seu apoio. Deter a marginalização da tradição democrática na Europa envolve uma urgência que é difícil de exagerar. A democracia europeia é importante para a Europa...e para o mundo.



Amartya Sen – Professor na Universidade de Harvard, prêmio Nobel de Economia em 1998 – 07.07.2011
IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18030

domingo, 21 de agosto de 2011

120 mil pessoas dizem não à educação de Pinochet


A bandeira de luta – que se mescla com as dos trabalhadores do setor de mineração do cobre, dos desempregados, dos ecologistas, dos sufocados pelo sistema creditício, entre outros milhares de anônimos cansados dos abusos – é o fim da lógica de mercado no setor, além da volta da gratuidade da educação pública para os setores de menor renda da população. Cerca de 200 mil pessoas saíram tranquilamente às ruas do país para protestar contra um governo de direita que já não os representa.

Christian Palma
Mais de 120 mil pessoas participaram da última marcha convocada pelo movimento estudantil – já foram sete desde que começaram as ocupações e greves em colégios e universidades – que exige uma reforma estrutural no modelo educacional vigente no Chile há mais de 30 anos. A bandeira de luta – que se mescla com as dos trabalhadores do setor de mineração do cobre, dos desempregados, dos ecologistas, dos sufocados pelo sistema creditício, entre outros milhares de anônimos cansados dos abusos – é o fim da lógica de mercado no setor, além da volta da gratuidade da educação pública para os setores de menor renda da população. Cerca de 200 mil pessoas saíram tranquilamente às ruas do país para protestar contra um governo de direita que já não os representa.
A nova mobilização demonstrou a ampliação do apoio aos estudantes e o suporte que sustenta um movimento que já dura dois meses e que se fortaleceu com o apoio de 80% da sociedade às reivindicações estudantis, segundo as pesquisas.
E os números se concretizaram nas ruas. Na manifestação desta terça-feira, participaram também alunos de colégios privados do setor mais acomodado de Santiago, diversos professores, apoderados, trabalhadores públicos e representantes de sindicatos empresariais que aumentaram sua solidariedade com os estudantes, após a feroz repressão do governo de Sebastian Piñera na semana passada. Foram detidos mais de 600 jovens, devido à estratégia das autoridades de não autorizar a marcha para aumentar a raiva e criminalizar o movimento social.
O dia ensolarado de ontem ajudou a criatividade dos estudantes. Jovens disfarçados como o ex-presidente Salvador Allende, simbolizavam o que era o Chile antes do golpe militar de 1973: uma sociedade menos opulenta no consumo de bens e serviços, mas com um sistema educacional grátis para todos. “E vai cair, a educação de Pinochet”, escutava-se em meio à fila interminável de manifestantes”. Algumas quadras além, um avô mostrava com orgulho um cartaz que dizia: “marcho para que meus netos tenham educação gratuita como eu tive”.
O eixo das reivindicações do movimento estudantil é justamente uma demanda estrutural que foi bloqueada por décadas, desde o governo militar, passando pelos governos da Concertação. Por isso, nos desfiles de cada marcha, encontram-se grandes bonecos que são réplicas dos últimos quatro presidentes desde que, em 1990, o Chile retornou à democracia, representando as reformas cosméticas feitas na educação, aprofundando a participação do setor privado em um bem social.
Esse é também um dos motivos pelos quais a paciência dos cidadãos e estudantes está se esgotando: os bancos são os grandes protagonistas na histórica do lucro na educação, porque com o papel subsidiário do Estado, imposto por Pinochet, o setor financeiro privado pode administrar os recursos fiscais aplicados em uniformes para os jovens, mas com a cobrança adicional de juros mensais superiores inclusive aos cobrados sobre créditos imobiliários. Juan, um jovem formado em Direito, afirmava com outro cartaz: “estudei 5 anos e terei que pagar 20”.
Outras jovens universitárias, carregando uma bandeira chilena, reclamavam a mesma coisa: “É a mesma coisa que se eu tivesse comprado uma casa”, dizia uma delas.
Atualmente, mais de 100 mil estudantes encontram-se em situação de inadimplência, com uma dívida média de 2.700.000 milhões de pesos chilenos (mais de US$ 5.000). Em um país em que mais de um milhão de pessoas recebe por mês salários mínimos de US$ 377, é perfeitamente possível entender como os mais pobres ficam fora da universidade, enquanto que as classes medidas ficam empobrecidas por décadas.
O desenvolvimento das chamadas universidades-empresa é a cereja do bolo, uma vez que funcionam por meio de direções privadas que não asseguram a adequada informação de qualidade e transparência. Nelas, a gestão da educação obedece à lógica do baixo custo em salários de professores e material acadêmico, e altas receitas das mensalidades, usufruindo dos subsídios de educação fornecidos pelo Estado.
Uma estória a parte neste processo de aperta/afrouxa entre a sociedade civil e o governo de direita é a resposta mínima do presidente Piñera às demandas estudantis. Até o momento, foram feitos tíbios anúncios de maiores recursos (US$ 4 bilhões), sem detalhar, porém, como e a forma de financiamento.
Mostrando o figurino da ortodoxia neoliberal da atual administração, os ministros do setor econômico descartaram uma eventual reforma tributária para aumentar os impostos das empresas, o que significou jogar gasolina no fogo dos estudantes.
A jornada desta terça foi marcada por outro elemento que fez lembrar os piores momentos perpetrados pela ditadura de Pinochet: os supostos “infiltrados” da polícia chilena nas mobilizações.
Segundo as lideranças estudantis, em cada marcha há policiais à paisana nas ruas para incendiar os ânimos e agitar as marchas. Essa suspeita se fortaleceu em Valparaíso, cidade-porto onde se localiza o Congresso Nacional. Durante a marcha, um grupo de manifestantes identificou, denunciou e perseguiu um possível policial infiltrado, que escapou, escondendo-se no Congresso. As autoridades do governo garantiram que investigarão este fato a fundo.
Todos esses temas de fundo cruzam cada marcha dos estudantes chilenos, temperadas agora pelos chamados “panelaços” em apoio às mudanças estruturais na educação realizados por milhões de chilenos há uma semana em todas as cidades do país, tal como se fazia nos protestos contra a ditadura de Pinochet nos anos 80. As únicas pessoas que não ouviram essas demandas trabalham no Palácio de La Moneda, onde o presidente Piñera ainda não se pronunciou.

Christian Palma - 10.08.2011
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18211&boletim_id=980&componente_id=15754

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Crime, território e política


É preciso discutir a relação entre Estado, governabilidade, território e soberania a fim de redefinir a concepção de segurança pública – uma tarefa que não pode mais ser tratada como caso de polícia. É caso de política!

Marcelo Freixo
O debate sobre as milícias ganhou as ruas do Rio. A principal razão do crescimento destes grupos no estado, com crescente força política nos legislativos estadual e municipais, é justamente a postura condescendente adotada por muitos dos que deveriam combatê-los. Em uma defesa ideológica totalmente inadequada, alegou-se que as milícias representavam um “mal menor” e que, diante da falta de policiamento e da precariedade da segurança pública, a ação desses grupos seria preferível ao poder dos traficantes. No entanto, a CPI das milícias concluiu que em 65% das comunidades que hoje estão sob o controle dos milicianos não havia antes atividade de tráfico de drogas. Em locais onde as milícias são menores, ainda sem braços políticos e com maior limitação econômica, o mercado ilegal de entorpecentes continua a existir.
As leis estabelecidas em lugares onde o Estado se mostra ausente não são votadas na Assembléia Legislativa. O “tribunal” que julga os conflitos ocorridos nesses espaços nada tem a ver com o judiciário. Isso vale tanto para as áreas dominadas pelas milícias quanto para aquelas em que facções criminosas controlam o varejo das drogas ilícitas. E esse complexo domínio de território envolve a vida de, aproximadamente, um terço da população do Rio de Janeiro, que fica muitas vezes sem ter a quem recorrer.
As milícias são compostas por agentes públicos que afirmam seu poder alegando serem representantes da lei. Reafirmam a figura do xerife, valorizando a ostentação da carteira funcional, do distintivo e da arma oficial. Mesmo em plena atividade criminosa, se apresentam como integrantes do Estado, tirando proveito de apelos morais como o fim das drogas, das badernas, dos assaltos e dos roubos. Em troca dessa suposta tranqüilidade impõem um preço. “Eu lhe protejo de mim mesmo”, ou seja, o meio de persuasão é a capacidade de terror que a própria milícia produz. Quem não aceita é vítima da barbárie.
O objetivo final é o lucro, obtido através de atividades ilícitas ocorridas no vácuo do poder público. Mas não se trata de um Estado paralelo, e sim de um Estado leiloado, que atende a interesses particulares. Uma vez controlada a região, as milícias passam a impor aos moradores um comércio de serviços ilegais, como gatonet, gás, água, transporte alternativo e “segurança” – sempre mediante cobranças de taxas. Em diversas regiões, também praticam a especulação imobiliária, arrecadando altos percentuais sobre a venda de imóveis pertencentes a moradores.
Dois indiciados por chefiar milícias na região de Jacarepaguá declararam à CPI que autoridades da segurança pública do governo estadual anterior fizeram campanha eleitoral em áreas reconhecidamente dominadas por esses grupos, e se elegeram parlamentares.
A CPI das milícias concluiu seus trabalhos vencendo a batalha pedagógica de entendimento do que elas representam para o Rio de Janeiro. Chefes milicianos começam a ser presos, a publicidade das ações contra esses grupos criminosos está nas ruas, braços econômicos começam a ser quebrados. Esse conjunto de avanços pode dar sustentação a proposições legislativas que criem instrumentos legais para reforçar a responsabilidade do Estado e da sociedade no enfrentamento as milícias.
É preciso discutir a relação entre Estado, governabilidade, território e soberania a fim de redefinir a concepção de segurança pública – uma tarefa que não pode mais ser tratada como caso de polícia. É caso de política!
Nas regiões pobres, o poder público se faz presente apenas por meio da repressão. Não há escolas, postos de saúde e políticas sociais para a juventude. A lógica da segurança pública é a da ditadura militar, da busca de inimigos, em uma reafirmação da lógica da guerra, na qual a meta é derrotar o inimigo. Esse cenário enfraquece o poder público e faz com que sua soberania seja limitada. A milícia é fruto dessa deformidade, claro sinal de um perigoso processo de privatização da segurança. Necessitamos, todos, de uma política de segurança calcada numa cultura de defesa dos direitos. Precisamos reafirmar a luta de classes na defesa da vida e da dignidade humana.


Marcelo Freixo Deputado Estadual/RJ – Dezembro 2008
IN Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais/RJ - ano 22 - n° 66 – http://www.torturanuncamais-rj.org.br/Jornal/gtnm_66/pg03.html

terça-feira, 16 de agosto de 2011

TST realizará audiência pública sobre terceirização


Empresários defendem que a terceirização é necessária para trazer eficiência, reduzir custos, melhorar e expandir serviços com tarifas menores.
Trabalhadores, por outro lado, sustentam que a terceirização é sinônimo de precarização do trabalho e fragmentação dos sindicatos.

Maíra Magro
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) definiu na tarde de ontem a data da primeira audiência pública de sua história, para tratar de um dos assuntos mais polêmicos na Justiça Trabalhista atualmente: a terceirização. Nos dias 4 e 5 de outubro, os ministros passarão a manhã e a tarde reunidos com setores diretamente interessados na discussão travada em milhares de ações judiciais. A Corte confirmou que a audiência discutirá a terceirização nos setores de telefonia, tecnologia da informação e instituições financeiras. Há expectativa de que o setor de energia elétrica também seja incluído.
O TST convidará o ministro do Trabalho, Carlos Lupi, o advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, o procurador-geral do Trabalho, Otavio Brito Lopes, e o presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ophir Cavalcante, segundo informações da Secretaria de Comunicação do TST. Também será divulgado um endereço de e-mail, ainda não confirmado, para que os interessados possam se inscrever para participar da audiência. Deverão estar presentes as principais associações das empresas contratantes, das terceirizadas, sindicatos e outras entidades interessadas.
Entre as milhares de ações sobre o tema que tramitam somente no TST, foram separados manualmente mais de 200 processos que poderão ser afetados pelas discussões da audiência. O foco será se o critério da atividade-fim deve permanecer como fator determinante do que não pode ser terceirizado.
Atualmente, o TST autoriza as empresas a subcontratarem suas atividades-meio, ou seja, as que não estão diretamente relacionadas a seu trabalho principal. Alguns exemplos são serviços de limpeza e segurança. Mas a jurisprudência trabalhista proíbe a terceirização das atividades-fim, ou seja, tudo o que está vinculado ao objeto principal da empresa. Esse critério vem sendo questionado fortemente pelo empresariado. Algumas empresas chegaram a conseguir liminares favoráveis no Supremo Tribunal Federal (STF).
A notícia da audiência pública começou a correr na tarde de ontem, com uma intensa movimentação de empresas interessadas em atuar, coordenadamente, nos debates. Estamos nos preparando com estudos e pareceres, para apresentar contribuições técnicas e mostrar, do ponto de vista jurídico e sociológico, o impacto disso, afirma Nelson Fonseca Leite, presidente da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee).
A Abradee contratou pareceres do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Velloso, do ex-ministro do TST Arnaldo Lopes Süssekind, além de um estudo da LCA - Luciano Coutinho e Associados. Todos defendem a tese de que a terceirização é necessária para trazer eficiência, reduzir custos, melhorar e expandir serviços com tarifas menores. Empresas de energia e telefonia também formaram um grupo de trabalho conjunto para fortalecer a argumentação.
Trabalhadores, por outro lado, sustentam que a terceirização é sinônimo de precarização do trabalho e fragmentação dos sindicatos. Esse cenário deverá ser apresentado pelos representantes de empregados, que esperam ter a oportunidade de participar da audiência, conforme declararam ao Valor representantes da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Telecomunicações (Fittel), assim que o TST anunciou a intenção de abrir as portas para a sociedade.
Esta é primeira vez que a Corte promove uma reunião desse tipo - a exemplo do que já ocorre no Supremo Tribunal Federal -, extrapolando a análise de aspectos jurídicos para ouvir, diretamente, a opinião dos afetados pelos julgamentos. Não será hora de eu, como advogado, ir ao TST falar sobre o artigo 25 da lei que trata das concessionárias de serviço público, diz o advogado trabalhista Daniel Chiode, do Demarest & Almeida Advogados, em referência ao dispositivo que trata da terceirização. É hora de discutir os efeitos da decisão, as particularidades desconhecidas pelo Judiciário. O tribunal está se abrindo para ouvir todo mundo que tenha legitimidade para falar e possa sofrer as consequências de suas decisões.


Maíra Magro – 04.08.2011
IN “Valor Econômico” – http://www.valoronline.com.br/impresso/legislacao-tributos/106/466859/tst-realizara-audiencia-publica-sobre-terceirizacao

domingo, 14 de agosto de 2011

O culto que está destruindo os EUA


 O que seria necessário para que esses comentaristas e organizações de mídia rompessem com a convenção de que os dois lados têm culpa igual? 

Paul Krugman
Ao ver nosso sistema lidar com a crise do teto do endividamento--uma crise autoimposta, mas que pode ter consequências desastrosas--, torna-se cada vez mais óbvio que o que estamos vendo é a influência destrutiva de um culto que realmente envenenou o nosso sistema político. 
E, não, eu não estou falando do fanatismo da direita. Bem, isso também. Mas minha sensação com aquelas pessoas é que elas são o que elas são; é como denunciar lobos por serem carnívoros. Loucura é o que eles fazem e loucos é o que eles são. 
Não, o culto que eu vejo refletindo um verdadeiro fracasso moral é o culto do equilíbrio, do centrismo. 
Pensem no que está acontecendo agora. Temos uma crise na qual a direita está fazendo exigências insanas, enquanto o presidente e os Democratas do Congresso fazem malabarismos para acomodá-las -- oferecendo planos que são só de corte de gastos e sem imposto nenhum, planos que estão bem à direita da opinião pública. 
E o que diz a maioria das reportagens? Retrata uma situação em que os dois lados são igualmente partidários, igualmente intransigentes -- porque reportagens sempre fazem isso.  E temos esses comentaristas influentes reclamando por um novo partido centrista, um novo presidente centrista, que nos tire dos horrores do partidarismo. 
A realidade, claro, é que já temos um presidente centrista -- na verdade, um presidente conservador moderado. Mais uma vez, a reforma da saúde -- sua única grande mudança no governo -- foi modelada em planos Republicanos, planos, inclusive, que vieram da Heritage Foundation. E tudo o mais -- incluindo-se a ênfase equivocada na austeridade face ao desemprego alto -- tem estado de acordo com o livrinho de regras conservadoras. 
O que isso significa é que não há nenhuma punição pelo extremismo, pelo menos não para a maioria dos eleitores, que pegam sua informação na pressa, sem fazer estudo cuidadoso das questões, para entender o que realmente está acontecendo. 
Você teria que se perguntar: o que seria necessário para que esses comentaristas e organizações realmente rompessem com a convenção de que os dois lados têm culpa igual? Esta é a mais nítida, clara dessas situações, além de uma guerra civil. Se isto não o está fazendo, nada vai. 
E, sim, acredito que esta é uma questão moral. A turma do "os dois lados têm a culpa" teria que ter mais juízo. Se eles se recusam a dizer o que há que se dizer, é por alguma combinação de ego e medo, de não estar disposto a sacrificar sua adorada pose de figura acima da turba. 
É uma coisa muito triste de se assistir, e nossa nação pagará o preço. 



Paul Krugman – Economista estadunidense – 27.07.2011
Tradução de Idelber Avelar
IN Site da Revista “Forum” – http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_noticia.php?codNoticia=9400/o-culto-que-esta-destruindo-os-eua

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Espírito de advogado


o que fixa o maior horror da litteratura de advogado não é esse crescer e multiplicar de palavras inúteis, cujo motivo econômico nos explica Adam Smith: é o não sei que de kabalistico dos despachos, das petições, e até de alguns tratados de direito, de commentario e interpretação das leis. São uns como Veddas do occidente – esses tratados de direito: mysticos ao seu jeito, para que  de sua kabala, de sua mystica, do seu artifício de sciencia transcedental, vivam e se alimentem brahmanes de fraque e beca.

Gilberto Freyre
A actividade do advogados me parece mental e moralmente inferior. Mas o lado moral – abandono-o aos moralistas.
Intellectualmente, ella me parece inferior por mais de uma razão: é o processo de pretender o julgamento das cousas, não nos seus valores íntimos, mas segundo preceitos e formulas – segundo umas como regras de orthographia; o processo de persuadir por meio de malabarismo verbal ou lógico – raro pela sondagem profunda das cousas.
Dahi ser a imaginação nos grandes advogados e às vezes até nos juristas o que um critico já uma vez chamou “tópica ou vocabular”
A litteratura do advogado repugna pelo freqüente sacrifício da concentração – que é a força e o rythmo dos grandes estylos – à dispersão – que é a força e o rythmo da oratória.
Relendo um desses dias Adam Smith – aliás filho de advogado – que hei de encontrar a paginas tantas da veneranda “Wealth of Nationas”? A explicação de ser o estylo da literattura dos advogados o “grande horror” denunciado por Daniel Defoe.
O bom Smith attribue o phenomeno a razão economica; e eu não saberia fugir ao prazer de o citar aqui no próprio inglez. “It has been the custom in modern Europe – escreve o Adão dos economistas modernos – to regulate upon most occasions, the payment of attornies and clercks of court, according to the number of pages which they had occasion to write… In order to increase their payment, the attornies and clercks have contrived to multiply words beyond all necessity, to the corruption of the language of law”. Em bom portuguez: o velho Smith associava o verbalismo jurídico ao facto dos advogados, pagos a tanto por pagina, se esforçarem para multiplicar as palavras além do necessario.
Terá sido esta a razão de nunca ter escripto o nosso glorioso Ruy Barbosa sinão em dez ou vinte paginas o que a continencia intellectual mandava escrever em simples meia pagina; e de terem Defoe e Stevenson fugido da advocacia com a mesma repugnância do estudante de Goethe? A litteratura do advogado é um processo de arithmetica verbal: o do Genesis. Comprehende-se, pois, que lhe repugne a expressão das cousas – mesmo as mais rasas – em simples meias paginas.
Mas o que fixa o maior horror da litteratura de advogado não é esse crescer e multiplicar de palavras inúteis, cujo motivo econômico nos explica Adam Smith: é o não sei que de kabalistico dos despachos, das petições, e até de alguns tratados de direito, de commentario e interpretação das leis. São uns como Veddas do occidente – esses tratados de direito: mysticos ao seu jeito, para que  de sua kabala, de sua mystica, do seu artifício de sciencia transcedental, vivam e se alimentem brahmanes de fraque e beca.
Esse kabalistico de linguagem constitue talvez para a litteratura jurídica e para os seus cultores, a principal condição da vida. Já um delles perguntou a que ficariam reduzidos os advogados “no dia em que um Lycurgo se dispuzesse a promulgar um código de porcesso, em que os aggravos e outros recursos obstructores fossem reduzidos a expressão mais simples, de modo que todo o mundo pudesse requerer em juízo e defender por si as próprias causas?” A que ficariam reduzidos então os advogados e legistas? Estou a emigrar para a India ou para o Egypto – a praticar outras formas de kabala, à sombra doutros caciques e doutras palmeiras.


Gilberto Freyre – Sociólogo, Escritor e ex-Deputado – Publicado entre 1922 e 1925
IN “Diário de Pernambuco” – FREYRE, Gilberto. “Artigos  de Jornal”. Edições Mozart, Recife.

Uma homenagem crítica, com uma pitadinha de acidez, neste "Dia do Advogado".

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

As balas mataram o medo


Enfrentamentos recentes entre sunitas e alauitas em Homs expuseram os riscos de guerra civil na Síria. Entretanto, a maioria dos manifestantes rejeita tais desvios e reclama por democracia. O poder reafirma querer reformas profundas, mas a sua credibilidade está minada pela violência da repressão

Alain Gresh
Hama não é toda a Síria. A cidade de 150 mil habitantes, combativa desde a independência em 1946, destruída pelas bombas de 1982 após a insurreição da Irmandade Muçulmana e relegada ao ostracismo, tornou-se o centro das atenções desde a explosão das revoltas no país, em março. O primeiro-ministro turco, Recep Erdogan, havia colocado Damasco em estado de atenção contra uma eventual reedição do massacre de 1982. A mídia internacional reuniu os rumores mais estapafúrdios sobre a simbólica cidade e os divulgou sem checar as informações.
Chegar à cidade, situada 200 quilômetros ao norte de Damasco – por uma estrada bem cuidada –, revelou-se mais fácil do que o previsto. Apenas um ponto de controle do exército vigia a entrada. Nos bairros periféricos, meia dúzia de tanques ficam como que dissimulados nos acostamentos. Hama está deserta. Alguns táxis com famílias deixam a cidade. Nosso veículo é obrigado a passar por uma gincana de obstáculos acumulados na entrada de cada rua: um conjunto de blocos de cimento, galhos, pedregulhos, lixo. De um lado, um ônibus queimado; do outro, uma carcaça de automóvel. As frágeis barricadas têm como objetivo impedir qualquer incursão surpresa das forças da ordem na cidade “libertada”. Nas bandeiras, palavras de ordem clamam: “O povo quer a queda do regime!”, “1982 não se repetirá”.
Nosso veículo está bloqueado e é preciso explicar-se diante dos jovens que impedem a passagem. Um deles entra no carro para nos guiar pelo labirinto de ruas e ruelas e ajudar a remover os obstáculos. Primeira parada: sentamos, somos rodeados, respondem às nossas perguntas. Dezenas de pessoas participam da conversa e nos interpelam. Cada um traz fotos de mártires (um irmão, um primo, um amigo) ou cenas registradas por telefone celular, algumas difíceis de suportar – cérebros em pedaços, cabeças esmigalhadas. Uma imagem mostra dois corpos esmagados por um tanque, de acordo com um homem. Mas seu vizinho retifica: “Não, não, por um carro grande: olhe bem as marcas”.

“Nossa revolução é silmiyya”
Por que as ruas estão vazias? Fora os dias de manifestação, às sextas-feiras cada um fica em sua casa. Os homens se revezam em turnos de guarda, alguns dormem de dia, outros de noite. Quanto às mulheres, algumas deixaram a cidade, assim como muitos outros habitantes que temiam a repetição de 1982. E esse ônibus queimado? “São as forças da ordem que ateiam fogo e jogam a responsabilidade para cima de nós. Eles mentem e dizem que queremos criar um emirado islâmico; plantam armas nas mesquitas para nos incriminar.”
“Nossa revolução é silmiyya[pacífica]”: a melhor arma das manifestações, do Egito ao Bahrein, passando pelo Iêmen. Nenhuma das pessoas com as quais cruzamos está armada, exceto por alguns bastões irrisórios. De fato, há grupos armados em outras regiões, reforçados por “combatentes árabes” do Líbano ou do Iraque que, inclusive, se vingam localmente de oficiais e soldados, mas são fenômenos minoritários. Um panfleto datado de 1º de junho, em Hama, fornece instruções precisas aos manifestantes: evitar a desordem, respeitar os edifícios públicos, não insultar ou provocar as forças da ordem. “Protestamos contra a opressão, e não queremos oprimir ninguém.”
Quem são as pessoas aglomeradas ao nosso redor? Um é diplomado em filosofia, outro em medicina, um terceiro em engenharia. Todos afirmam querer um regime “civilizado”: em primeiro lugar, acabar com a arbitrariedade e a humilhação, e instituir o respeito pela dignidade (karama). “Eles podem levar tudo, menos nossa karama.” A experiência das prisões com maus tratos e tortura gerou traumas. “Decidimos que para a prisão não vamos. Há duas alternativas: a liberdade ou o cemitério”, exclama um deles. Há centenas de prisioneiros políticos oriundos de Hama, de 10 a 15 mil em todo o país. Enquanto se desenrola nossa discussão, jovens voluntários recolhem o lixo das ruas. Um dos responsáveis tenta colocar ordem na profusão de testemunhos e intervenções, e retoma a sequência dos acontecimentos desde o início dos levantes na Síria. Ainda marcada pelo espectro de 1982, Hama tomou seu tempo antes de juntar-se ao movimento. No fim de abril, apareceram as primeiras manifestações, as primeiras mortes; mas o diálogo ainda é possível. “Uma delegação da cidade encontrou-se com o presidente Bashar al Assad no dia 11 de maio. Ele nos prometeu que os responsáveis pelas mortes serão julgados e que o exército não entrará na cidade. E então aconteceu o episódio do dia 3 de junho.”

Em resposta às flores, vieram balas
Sentados à sombra, pela temperatura que alcança quase 45 graus, escutamos os relatos às vezes divergentes em alguns detalhes, mas convergentes no essencial. Na sexta-feira, dia 3 de junho de 2011, “dia dos filhos da liberdade”, milhares de manifestantes pacíficos saíram às ruas, armados com flores para oferecê-las aos oficiais e soldados da ordem. Em resposta às flores, vieram balas. Foram contabilizados entre 150 e 230 mortos. “Contudo, três dias depois aceitamos participar de novo encontro com o presidente. Novamente, prometeu punir os culpados e o responsável pelas forças de repressão, Mohamed Muflih, foi chamado em Damasco para depor”, continua nosso interlocutor.
A esses episódios, seguiu-se um período de calma com o recuo das forças armadas até o imenso agrupamento da sexta-feira 1º de julho: 800 mil pessoas, de acordo com alguns meios de comunicação (uma vez e meia o número de habitantes de Hama!), porém mais provável que fossem cerca de 200 mil, enquanto um jornalista próximo às autoridades falava em 70 mil. O regime exasperou-se, destituiu o governador Ahmed Abdelaziz, favorável a uma gestão pacífica, e nomeou para o cargo o oficial Muflih, após ele ser promovido. Todos esperavam uma ofensiva quando, nos dias 4 e 5 de julho (segunda e terça-feiras), as forças da ordem tentaram invadir a cidade. Dezenas de pessoas foram presas, e quatro, assassinadas. “Fizemos eles recuarem. No dia 7 de julho, os embaixadores norte-americano e francês nos ajudaram a desvendar o plano do governo.” A relação de confiança estava rompida. “O presidente havia afirmado duas vezes que o exército não atiraria contra a população. O único governador que respeitou esse acordo foi destituído! Agora, exigimos a queda do regime.”
Outro cruzamento, outra parada e mais um encontro. Os relatos assustadores se repetem, com a mesma hospitalidade, o mesmo apelo vibrante à opinião internacional e a recusa a qualquer intervenção militar estrangeira. Insistem em nos tirar das banquetas para sentar em poltronas, oferecem bebidas, sanduíches e mesmo flores. “Não somos salafistas, somos partidários de um islamismo moderado”, explica um dos anfitriões. Sem dúvida, trata-se de uma cidade conservadora, mas que se afirma aberta, notadamente à minoria cristã. “Somos como os dedos da mesma mão”. Um cristão, motorista de caminhão, dá seu testemunho: “Os jovens que vocês veem são meus filhos, eles me chamam de tio”. E as posições de hierarquia ocupadas pelas autoridades? “Os religiosos têm autoridade sobre assuntos religiosos, não sobre a política. Na minha família, convivem diversas orientações políticas e não é a Igreja que pode desautorizá-las.” Essa visão é um pouco idílica: os discursos de ódio circulam por baixo do pano, principalmente contra os alauitas (minoria xiita à qual pertencem vários dirigentes), mas muitas vezes são denunciados pelos coordenadores, os tansiquiyat, como são chamados aqui.

Sociedade dividida
Na véspera, no bairro cristão de Bab Tuma, em Damasco, milhares de pessoas se aglomeraram ao redor de um palco e de um grupo musical em apoio ao presidente Assad. Muitos jovens, homens e mulheres misturados, vestiam camisetas com o rosto do governante, se enrolavam em bandeiras sírias, cantavam, dançavam e gritavam. Os cristãos, que viram milhares de correligionários iraquianos se refugiarem na Síria, clamavam pelo futuro. Uma bandeirola oferecida por um homem de negócios denunciava “as mentiras da Al Jazira, Al Arabiya e seus aliados”. As duas emissoras via satélite – uma financiada pelo Qatar e a outra pela Arábia Saudita – são acusadas de coberturas parciais, de transmitir informações sem verificação e de serem instrumento unilateral de difusão das opiniões contrárias ao regime. Essa visão não é de todo falsa, mas as restrições impostas por Damasco aos jornalistas estrangeiros fomentam os rumores. O regime proibiu o jornal libanês Al Akhbar, que sempre apoiou Damasco e o Hezbollah frente a Israel, mas que condena os assassinatos dos manifestantes pelo regime.
A fachada da estação de Hedjaz lembra que, em 1908, o Império Otomano inaugurou uma estrada de ferro entre Damasco e Medina. Em frente ao edifício, milhares de pessoas denunciam a visita do embaixador norte-americano a Hama e as ingerências ocidentais nos assuntos sírios. Nesse dia de feriado, os jovens que lá estão não são funcionários ou estudantes obrigados a manifestar-se: o regime possui, de fato, apoio de alguns setores, mesmo cada vez menos numerosos.1 Trata-se de parte das minorias, amedrontadas pela eventual subida ao poder dos islâmicos; a burguesia, inclusive a sunita, enriquecida há dez anos graças à abertura econômica. Nem Damasco (onde os manifestantes se encontram na periferia), nem Alep foram tomadas. Paradoxalmente, são as regiões mais pobres – de onde o partido no poder, o Baas, tirou sua força nos anos 60 e 70, como por exemplo Deraa – que se mobilizaram após o abandono de mais de uma década.
Damasco mudou. Centenas de bancas se instalaram nas calçadas, e ninguém ousa tirá-las dali; os automóveis circulam acima do limite de velocidade permitido; edifícios são construídos sem autorização. A polícia se ocupa de outras coisas e a crença na lei se esvai cada vez mais – embora uma campanha publicitária interpele os cidadãos: “Grande ou pequeno, respeito às leis”; “Otimista ou pessimista, respeito às leis”.
“As balas mataram o medo”, diz um de nossos interlocutores. Num restaurante ao ar livre, meia dúzia de opositores sentam ao redor da mesa esta noite, o “grande dia”, sem medo de orelhas indiscretas. Cada um diz que pode ser preso na manhã seguinte, mas os intelectuais, assim como os partidos na clandestinidade, agem abertamente. Os manifestantes devem participar de um diálogo com o regime se o presidente abrir espaço? A maioria se mostra cética a essa possibilidade e apenas um aceitaria a negociação “para que escutem minha voz”. “De que serve discutir as novas leis se nada muda na prática? Será que precisamos de uma nova Constituição para dar liberdade de expressão a personalidades independentes, como o dirigente de um dos três jornais ‘oficiais’?”,2 se pergunta outro. Um terceiro evoca a anistia: “Estive na prisão e, apesar da primeira lei de anistia, não fui libertado, enquanto o promotor fazia uma intervenção em emissora estrangeira. A Constituição proíbe a tortura, porém ela é praticada cotidianamente”.
Boicotado pela oposição, o diálogo internacional é retransmitido ao vivo. Pela primeira vez na televisão oficial, os sírios puderam escutar numerosas vozes denunciarem a “via da segurança”, os abusos da polícia e das milícias Shabbiha, em geral formadas por delinquentes que instituem o terror. O regime se justifica sob o argumento de complô estrangeiro. Seria ingênuo não considerar que seu enfraquecimento e até a queda são objetivos dos Estados Unidos, de Israel, da Arábia Saudita, das forças de direita do Líbano.3 Mas a crise é, antes de mais nada, interna, e pede uma solução igualmente interna.
Para Michel Kilo, adversário de longa data do regime e ex-preso político, trata-se de uma transição que não começará sem duas condições: “o fim da repressão e a participação ‘da rua’ no processo, ou seja, dessas coordenações que, em cada bairro e cidade, organizam a resistência. ‘A rua’ é o verdadeiro ator de nossa revolução, enquanto os partidos da oposição ou os intelectuais, embora atuantes, não representam o grosso da população”.
Seu pseudônimo é Farida. Jovem, diplomada e, apesar de certo nervosismo – ela é procurada pela polícia –, acredita no futuro. Participa da direção nacional das coordenações locais, cujas ações e posições políticas são discutidas e tomadas pela internet. “Não queremos transformar-nos em partido político. Nosso papel é estar presente nas ruas, unificar as palavras de ordem e os pontos de vista, desenvolver um trabalho de informação. Aprendemos a nos conhecer para além dos preconceitos, a trabalhar juntos. Um é irmão muçulmano, outro é laico, outro nacionalista árabe, mas todos queremos a mesma coisa: um Estado civil, sem violência.” E conclui: “Agosto, o ramadã, é o mês mais sagrado para os muçulmanos. Durante esse período, cada noite as preces serão comunitárias, cada dia será sexta-feira”.

1 A melhor análise da crise síria e seus diferentes protagonistas está em dois relatórios publicados em julho de 2011 pelo Grupo Internacional Crisis, “The Syrian people’s slow motion revolution” “A revolução em câmara lenta do povo sírio” e “The Syrian regime’s slow-motion suicide” “O suicídio em câmera lenta do regime sírio”  www.crisisgroup.org
2 Al Baath, o jornal do partido; Tichrin, o do governo; e Al Thawra. Outro jornal, Al Watan, tem como proprietário Rami Makhluf, o primo do presidente e um dos homens mais ricos e odiados do país.
3 P aradoxalmente, uma parte da direita cristã compartilha a crença dos cristãos sírios e se recusam a atacar o regime de Damasco. 


Alain Gresh – Jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa) – 02.08.2011
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” – http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=981