Com a metade dos votos – e
uma vantagem de 40% sobre seus adversários –, Cristina Kirchner, presidente da
Argentina, venceu com sobras a primária de 14 de agosto. A menos que ocorra uma
grande surpresa, ela deve ser eleita para um segundo mandato no dia 23 de
outubro. Sua política, entretanto, não é uma unanimidade
Cécile Raimbeau
Sejamos francos! Néstor e Cristina tomaram medidas que nem mesmo os
governos socialistas tomaram!”, lança Valdemar, advogado de meia-idade que
adora provocar. Sua reflexão surpreende o bando de amigos, reunidos em um
modesto galpão em Florencio Varela, na periferia de Buenos Aires. Nesse dia de
julho, a algumas semanas das prévias das eleições presidenciais (que acontece
no dia 23 de outubro), a conversa esquenta com o tema dos Kirchner: os “K”,
como dizem os argentinos para evocar o casal na Presidência do país desde 2003.
Ele, que assumiu o cargo com a promessa de “consolidar a burguesia nacional”,1
depois, desde 2007, ela, comprometida com as mudanças na continuidade e,
atualmente, candidata à reeleição.
Assim como Neka e seu companheiro Alberto, os anfitriões, Valdemar fez
parte de uma organização de extrema esquerda que rejeitava o conjunto da
“classe política”. Seu objetivo era “mudar o mundo sem tomar o poder”.
Portanto, nada predispõe esse militante a estar de acordo com os “K” ou
apoiá-los. Mas os mais “antigos” da organização – que nunca contou com mais de
quatrocentos membros – terão o mesmo discurso de Valdemar hoje em dia?
“Todos!”, afirma ele, talvez com um pouco de exagero: “A sociedade é tão
polarizada que, se você não se opõe aos K, todo mundo considera que você os apoia”.
Vinte anos atrás, a Argentina era como a menina dos olhos do FMI. Desde
sua chegada à Presidência, em 1989, Carlos Menem optou pelo neoliberalismo,
agradando milhares no setor financeiro. Durante seu governo, vendeu uma grande
parte das empresas públicas para investidores estrangeiros e, decidido a acabar
com a inflação, instaurou uma paridade fixa entre o dólar e o peso. A inflação
caiu, assim como as exportações: pressionada pela moeda supervalorizada, a
produção nacional deixou de ser competitiva. A dívida explodiu: de US$ 7,6
bilhões no início dos anos 1970, passou a US$ 132 bilhões em 2001 − uma alta de
1.700%. O desemprego logo chegou a oficiais 18%.2 Quando, no dia 5
de dezembro de 2001, o FMI se recusou a fazer um acordo com o governo argentino
para um empréstimo, o país já não podia mais honrar com suas obrigações. Crise
da dívida, pânico bancário: a economia estava paralisada. Os argentinos não
demoraram a sair para as ruas. O Movimento dos Trabalhadores Desocupados de
Solano (MTD), do qual participavam Neka, Alberto e Valdemar, fazia parte de uma
miríade de organizações de piqueteiros (desempregados militantes), unidos em
torno das palavras de ordem: “¡Que se vayan todos!” [Que saiam todos!].
“Nos enganamos em 2001. Não deveríamos ter esperado que fossem embora.
Não, deveríamos ter expulsado todos!”, intervém Alberto. No país, e nesse grupo
de velhos amigos, o debate permanece vivo: a “classe política” contra a qual os
cidadãos se revoltaram ao som de panelaços realmente se renovou? Em outras
palavras, os Kirchner representam uma ruptura ou a continuidade?
Após dois anos de instabilidade política, Néstor Kirchner ascendeu ao
poder em 2003. Pouco conhecido (governava o estado de Santa Cruz, na
Patagônia), encarnou a ideia de mudança graças a um discurso de tradição
peronista,3 que clamava pela defesa dos interesses nacionais. Desde
os primeiros meses de seu mandato, obteve na Corte Suprema a anulação das leis
de anistia e a reabertura dos processos de militares suspeitos de crime de
Estado na época da ditadura (1976-1983): sua popularidade estava garantida. Em
2011, sua esposa está no topo das pesquisas de opinião e pode assumir um
terceiro mandato “K”.
“Se o MTD Solano se dissolveu em 2005, isso se deve, em parte, à
repressão e à política contrainsurreição de Néstor Kirchner”, afirma Alberto,
antigo padre que passou à militância política, sugerindo que os piqueteiros que
não se dissolveram foram cooptados. Neka modera: “Sim, os K vampirizaram
algumas organizações populares, dividiram outras, mas sua política teve origem
em nossa rebelião”. E Valdemar lembra as medidas tomadas pelos “K”. Como bom
advogado, começa pelos direitos trabalhistas, em particular pela assinatura de
mais de mil convenções coletivas, principalmente no setor industrial. Para conter
os protestos sociais, o governo reatou relações com a Confederação Geral dos
Trabalhadores (CGT), herdeira de um sindicalismo burocrático, verdadeira coluna
vertebral do governo na história peronista. As reuniões paritárias levadas
adiante pelo governo, esse poderoso sindicato e o patronato permitiram a
negociação de melhores condições de trabalho nos setores de couro, alimentação,
transporte e comunicações.
Experiências progressistas
Valdemar cita também as reformas da lei de falência de empresas (junho
de 2011), mais favoráveis à autogestão e às cooperativas: ela permite que os
assalariados utilizem suas indenizações de demissão para adquirir as máquinas e
os edifícios das empresas falidas onde trabalhavam. “É certo, mas poderíamos
ter ido mais longe!”: a lei de falência não responde às demandas de
expropriação a favor dos trabalhadores que recuperaram as empresas nos anos de
crise.4
É possível citar também a nova lei de meios de comunicação (outubro de
2009), que atravanca a formação de monopólios e atribui um terço do espectro
eletromagnético às organizações sem fins lucrativos; a lei do casamento de
homossexuais (julho de 2010); e a renacionalização das aposentadorias
privatizadas por Menem (novembro de 2008).5 Sem mencionar os novos
programas sociais.
Em 2002, nas periferias os piqueteiros sobreviviam graças aos
restaurantes populares que impulsionavam coletivamente. “Hoje, com a Pensão
Universal por Filho e o programa Argentina Trabalha, não falamos em abundância,
mas a fome está erradicada”, testemunha Neka. Criado há dois anos, o auxílio
por filho (Asignación Universal por Hijo, em espanhol) é a medida mais
aplaudida: essa realocação de recursos públicos equivale a 230 pesos (R$ 97)
por filho e é concedida a 1,8 milhão de lares. Contrariamente aos planos
sociais anteriores, em geral considerados “favores” a um número restrito de
pobres, esse se tornou um direito. Quanto ao programa Argentina Trabalha,
trata-se de incentivo financeiro a empregos dentro do espectro da economia
social e do cooperativismo. Mais de 200 mil postos de trabalho foram abertos na
Região Metropolitana de Buenos Aires. Contudo, apesar das remunerações
inferiores ao salário mínimo (cerca de 2.300 pesos, ou R$ 970), algumas
organizações de desocupados se queixam do clientelismo na atribuição do
incentivo.
A Argentina, contudo, despertou o sonho europeu com o crescimento
superior a 9% de 2010. Esse sucesso tem origem em uma medida tomada antes da
chegada de Kirchner ao poder: o abandono da paridade dólar-peso no fim de 2001.
Subitamente liberada, a moeda nacional afundou. O valor real médio dos salários
caiu 30%, e a desvalorização reaqueceu o comércio exterior. Ao mesmo tempo, a
decolagem do preço mundial das matérias-primas beneficiou o setor primário,
cada vez mais dedicado à exportação de soja transgênica. O PIB, que havia caído
mais de 10% em 2002, subiu 8% no ano seguinte. Com essa onda positiva, os “K”
financiaram uma política de redistribuição de renda. Os gastos públicos
alimentam um “círculo virtuoso” econômico. Até quando?
Desde 2002, os “especialistas” estão alarmados. De 2005 a 2008, observa
o economista Pierre Salama, “não houve um ano sequer em que as previsões [sobre
o crescimento argentino] não fossem extremamente pessimistas”.6
Ainda hoje, esses “ortodoxos” aliados à oposição liberal preveem graves
dificuldades e o retorno da hiperinflação. Aplaudem, contudo, e à sua maneira,
a reestruturação das dívidas levada adiante pelo casal Kirchner, o que permitiu
a redução dos gastos públicos.
Em 2005, a equipe de Kirchner conseguiu convencer seus credores privados
a trocar seus títulos, em queda, por um abatimento de 60%. Em 2006, com o apoio
da Venezuela – que emprestou US$ 2,5 bilhões ao país –, o governo reembolsou de
maneira antecipada a totalidade de sua dívida, de US$ 9,8 bilhões, com o FMI,
economizando, assim, US$ 900 milhões em juros. A instituição que até então
ditava as políticas no país viu sua influência consideravelmente reduzida. De
qualquer forma, a política econômica “K” não é desprovida de ambiguidades. Cinco
anos depois, a presidente propõe uma nova troca aos detentores de títulos que
recusaram a oferta de 2005 – investidores esses que haviam sido alertados por
Néstor de que não seriam reembolsados... “À exceção de alguns empréstimos
novos, a dívida atual é a mesma que a contraída na ditadura, declarada
ilegítima por um tribunal federal em 2000. Foi reciclada e refinanciada por um
mecanismo absurdo, cheio de contratos ilegais, do qual participa o sistema
financeiro internacional”, revolta-se Olmos, partidário de uma auditoria da
dívida argentina, como o exemplo lançado pelo equatoriano Rafael Correa.
Entre 2002 e 2009, a pobreza despencou de 45% para 11% da população,
segundo a Comissão Econômica das Nações Unidas para América Latina e Caribe
(Cepal).7 Mas a desigualdade segue gritante. Ademais, 36% da
população ativa ainda trabalha no setor informal. “Uma melhora substancial foi
registrada em todas as dimensões do desenvolvimento humano, mas, a partir de
2008, a criação de empregos estagnou, e essas melhoras chegaram ao teto”, expõe
Dan Adaszko, pesquisador do Observatório da Dívida Social da Universidade
Católica Argentina (UCA). A causa: alta dos preços. O governo minimizou essa
realidade antes de reconhecer a inflação, estimada por organismos independentes
em cerca de 25% ao ano.
Nem Menem, nem Perón
Para combater a alta de preços, Cristina busca conter as reivindicações
salariais por meio do diálogo social, com apoio da CGT. “O controle da alta dos
salários beneficia principalmente as empresas”, sublinha Eduardo Lucita, da
organização Economistas de Esquerda. Apesar da alta dos salários, o custo da
mão de obra praticamente estagnou desde 2001, em razão do aumento de 25% da
produtividade por trabalhador. De acordo com Lucita, a inflação decorre, em
grande parte, das taxas de benefícios absurdas de um punhado de corporações
dominantes. Esse assunto também revolta Julio Gambina, professor de Economia
Política e membro da Associação pela Taxação das Transações Financeiras para
Auxílio dos Cidadãos (Attac) na Argentina: “Desde 2003, a economia continua a se
concentrar nas mãos de algumas grandes empresas, das quais grande parte é
estrangeira e cujos lucros são repatriados!”.
Inúmeros coletivos denunciam também a extensão crescente da cultura de
soja transgênica, que já cobre mais da metade da superfície cultivada do país
(ou seja, 18 milhões de hectares) e avança expulsando camponeses e indígenas
para bairros precários nas cidades. Da mesma forma, a luta contra as minas a
céu aberto que utilizam mercúrio e cianetos enfrenta muitos obstáculos: uma lei
de proteção aos glaciares foi votada no Congresso, mas foi bloqueada por um
veto da presidente. Suspeita-se da intervenção da empresa canadense Barrik
Gold, que pretende extrair cerca de 500 toneladas de metal precioso da
cordilheira, sem muita preocupação com o derretimento desse patrimônio natural.
À esquerda, muitos militantes gostariam de ver o Estado impor “mais
força” diante dos interesses transnacionais. Os “K” sempre tentaram manter a
imagem de capitalismo “sério” e “produtivo”. “Os correios e a companhia aérea
Aerolineas Argentinas, duas entidades com a saúde debilitada, foram
renacionalizadas, mas não os grandes serviços públicos privatizados nos anos
1990”, lamenta Gambina. Ele evoca as subvenções que o governo concede às
empresas privadas de transporte e do setor energético para baixar os custos do
consumidor. “Mas a exploração de riquezas – gás, petróleo, minas – continua nas
mãos de grandes empresas europeias ou norte-americanas!”, insiste o professor,
sublinhando que a presidente Kirchner passa longe dos intervencionismos
realizados por Juan Domingo Perón, o modelo evocado pelos “K”. Perón, pelo
menos em seu primeiro mandato, criou um Banco de Crédito Industrial, uma Frota
Mercante do Estado e a Aerolineas Argentinas. Também nacionalizou o Banco
Central, as estradas de ferro, a telefonia, a eletricidade, o gás...
1 Citado por Raúl Zibechi, “Globalización o burguesía nacional”
[Globalização ou burguesia nacional], Alai.net, 9 out. 2003.
2 Ler Carlos Gabetta, “Crise totale en Argentine”, Le Monde
diplomatique, jan. 2002.
3 Do nome de Juan Domingo Perón, presidente argentino de 1946 a 1955 e
de 1973 a 1974. Seu primeiro mandato encarnou uma forma de nacionalismo
político, caracterizado por uma forte intervenção do Estado na economia.
4 Ler “En Argentine, occuper, résister, produire!” [Na Argentina,
ocupar, resistir, produzir!], Le Monde diplomatique, set. 2005.
5 Ler Manuel Riesco, “Séisme sur les retraites en Argentine et au Chili”
[Terremoto nas aposentadorias na Argentina e no Chile], Le Monde
diplomatique,dez. 2008.
6 Artigo a ser publicado, cujo título é “Croissance et inflation en
Argentine sous les mandatures Kirchner” [Crescimento e inflação na Argentina
sob os mandatos Kirchner], em Problèmes d’Amérique Latine, Paris, n.82,
out. 2011.
7 Segundo o Observatório da Dívida Social da Universidade Católica
Argentina (UCA), a pobreza atingiria cerca de 30% da população.
Cécile Raimbeau – Jornalista, autora de Argentine rebelle, un laboratoire de
contre-puvoirs, Paris, Éditions Alternatives, 2006 – 30.09.2011
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” – http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=1027