É um bom momento para a
sociedade brasileira debater o papel da nossa imprensa – uma imprensa que não
admite qualquer limite ou regra, e se coloca acima das demais instituições para
investigar, denunciar, acusar e julgar quem bem lhe convier.
Ricardo Kotscho
Ao voltar de Barretos, o meu correio eletrônico já estava entupido de
mensagens de amigos e leitores comentando e me pedindo para comentar a
reportagem da revista Veja sobre as “atividades clandestinas” do
ex-ministro José Dirceu, um dos denunciados no processo do “mensalão”, que
tramita no Supremo Tribunal Federal e ainda não tem data para ser julgado.
Só agora, no começo da tarde de segunda-feira [29/8], consegui
ler a matéria. Em resumo, como está escrito na capa, sob o título “O Poderoso
Chefão”, ao lado de uma foto em que Dirceu aparece de óculos escuros e
sorridente, a revista afirma:
“O ex-ministro José Dirceu mantém um “gabinete” num hotel de Brasília,
onde despacha com graúdos da República e conspira contra o governo da
presidente Dilma”.
A sustentar a grave “denúncia”, a revista publica dez reproduções de um
vídeo em que, além de Dirceu, aparecem ministros, parlamentares e um presidente
de estatal entrando ou saindo do “bunker instalado na área vip de um hotel cinco
estrelas de Brasília, num andar onde o acesso é restrito a hóspedes e pessoas
autorizadas”.
Nas oito páginas da “reportagem” – na verdade, um editorial da primeira
à última linha, com mais adjetivos do que substantivos – não há uma única
informação de terceiros que não seja guardada pelo anonimato do off ou
declaração dos “acusados” de visitar o bunker de Dirceu confirmando a tese da Veja.
Perguntas sem respostas
Fiel a uma prática cada vez mais disseminada na grande mídia impressa, a
tese da conspiração de Dirceu contra o governo Dilma vem antes da apuração, que
é feita geralmente para confirmar a manchete, ainda que os fatos narrados não a
comprovem.
Para dar conta da encomenda, o repórter se hospedou num apartamento no
mesmo andar do ex-ministro. Alegando ter perdido a chave do seu apartamento,
pediu à camareira que abrisse o quarto de Dirceu e acabou sendo por ela
denunciado ao segurança do hotel Naoum Plaza, que registrou um boletim de
ocorrência no 5º Distrito Policial de Brasília, por tentativa de invasão de
domicílio.
Li e reli a matéria duas vezes e não encontrei nenhuma referência à
origem das imagens publicadas como “prova do crime”, o primeiro dos mistérios
suscitados pela publicação da matéria. O leitor pode imaginar que as cenas
foram captadas pelas câmeras de segurança do hotel, mas neste caso surgem
outras perguntas:
** Se o próprio hotel denunciou o repórter à polícia, segundo O Globo
de domingo, quem foi que lhe teria cedido estas imagens sem autorização da
direção do Naoum?
** Se foi o próprio repórter quem instalou as câmeras, isto não é um
crime que lembra os métodos empregados pela Gestapo e pelo império midiático
dos Murdoch?
** As andanças pelo hotel deste repórter, que se hospedou com o nome e
telefone celular verdadeiros, saiu sem fazer check-out e voltou dando
outro nome, para supostamente entregar ao ex-ministro documentos da prefeitura
de Varginha, são procedimentos habituais do chamado “jornalismo investigativo”?
As dúvidas se tornam ainda mais intrigantes quando se lê o que vai
escrito na página 75 da revista:
“Foram 45 horas de reuniões que sacramentaram a derrocada de Antonio
Palocci e durante as quais foi articulada uma frustrada tentativa do grupo do
ex-ministro de ocupar os espaços que se abririam com a demissão. Articulação
minuciosamente monitorada pelo Palácio do Planalto, que já havia captado sinais
de uma conspiração de Dirceu e de seu grupo para influir nos acontecimentos que
ocorriam naquela semana [6,7 e 8 de junho, segundo as legendas das fotos] –
acontecimentos que, descobre-se agora, contavam com a participação de pessoas
do próprio governo”.
A afirmações contidas neste trecho suscitam outras perguntas.
** Como assim? Quem do governo estava conspirado contra quem do governo?
** Por acaso a revista insinua que foi o próprio governo quem capturou
as imagens e as entregou ao repórter da Veja?
** Por que a reportagem/editorial só publica agora, no final de agosto,
fatos ocorridos e imagens registradas no começo de junho, no momento em que o
diretor de Redação da revista está de férias?
Boa lembrança
Só uma coisa posso afirmar com certeza, depois de 47 anos de trabalho
como jornalista: matéria de tal gravidade não é publicada sem o aval expresso
dos donos ou dos acionistas majoritários. Não é coisa de repórter trapalhão ou
editor descuidado.
Ao final da matéria, a revista admite que “o jornalista esteve mesmo no
hotel, investigando, tentando descobrir que atração é essa que um homem acusado
de chefiar uma quadrilha de vigaristas ainda exerce sobre tantas autoridades
(...) E conseguiu. Mas a máfia não perdoa”.
Conseguiu? Há controvérsias... No elenco de nomes apresentados pela
revista como frequentadores do “aparelho clandestino” de Dirceu, no entanto,
não encontrei nenhum personagem que seja publicamente conhecido como inimigo do
ex-ministro Antonio Palocci.
O texto todo foi construído a partir de ilações e suposições para
confirmar a tese – não de informações concretas sobre o que se discutiu nestes
encontros e quais as consequências efetivas para a queda de Palocci.
Não tenho procuração para defender o ex-ministro José Dirceu, nem ele
precisa disso. Escrevo para defender a minha profissão, tão aviltada
ultimamente pela falta de ética de veículos e profissionais dedicados ao
vale-tudo de verdadeiras gincanas para destruir reputações e enfraquecer as
instituições democráticas.
É um bom momento para a sociedade brasileira debater o papel da nossa
imprensa – uma imprensa que não admite qualquer limite ou regra, e se coloca
acima das demais instituições para investigar, denunciar, acusar e julgar quem
bem lhe convier.
Diante de qualquer questionamento sobre as responsabilidades de quem
controla os meios de comunicação, logo surgem seus porta-vozes para denunciar
ameaças à liberdade de imprensa.
Calma, pessoal. De vez em quando, convém lembrar que repórter não é
polícia e a imprensa não é justiça, e também não deveria se considerar
inimputável como as crianças e os índios. Vejam o que aconteceu com Murdoch, o
ex-todo-poderoso imperador. Numa democracia, ninguém pode tudo.
Ricardo Kotscho – Jornalista – 29.08.2011
IN “Observatório de Imprensa” – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/-reporter-nao-e-policia;-imprensa-nao-e-justica