segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Alunos beneficiados pelo Bolsa Família no Norte e Nordeste têm aprovação maior que média brasileira


A taxa de aprovação desses alunos é 82,3% no Norte e 82,7% no Nordeste, enquanto a taxa brasileira é 75,2%.

Mariana Tokarnia
Costa do Sauípe (BA) – Estudantes beneficiados pelo programa governamental Bolsa Família nas regiões Norte e Nordeste têm rendimento melhor do que a média brasileira no ensino médio das escolas públicas. A taxa de aprovação desses alunos é 82,3% no Norte e 82,7% no Nordeste, enquanto a taxa brasileira é 75,2%.
Os números são do cruzamento de dados de 2011 do Ministério da Educação (MEC) e do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) apresentados hoje (16) pela ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, no 14º Fórum Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime).
“Os mais pobres tiveram um desempenho melhor do que a média”, constata Tereza Campello. “Não só conseguimos garantir que essas crianças não saiam mais da escola, mas conseguimos garantir que elas consigam ir melhor na escola”. Ela atribui o rendimento ao fato de que os estudantes beneficiados pelo programa não podem ter uma taxa de frequência inferior a 85%. Para os demais alunos, a taxa é 75%. “Além disso, esses estudantes são superestimulados, as famílias entendem que é um ganho muito grande”, diz a ministra.
No Brasil, esses estudantes também se destacam.  A taxa de abandono escolar brasileira no ensino médio era 10,8% em 2011, mas entre os alunos beneficiados pelo Bolsa Família, a taxa foi 7,1%. A taxa de aprovação entre os beneficiados foi 79,9% em comparação à taxa nacional de 75,2%. 
No ensino fundamental, estudantes beneficiados do Norte e Nordeste tiveram taxa de rendimento um pouco inferior à taxa nacional. No Norte, a taxa de aprovação dos beneficiados foi 84,4% em 2011 e  82% no Norte, em comparação à taxa nacional de 86,3%.  No Brasil, a taxa geral de aprovação dos beneficiados foi 83,9%. O abandono nacional nessa etapa do ensino foi 3,2%. Entre os beneficiados, também foi inferior, 2,9%.
A ministra também apresentou dados que mostram a maior presença dos 20% mais pobres da população brasileira no sistema de ensino. Em 2001, 17,3% dos jovens com 16 anos, que fazem parte desse grupo, tinham ensino fundamental completo. O número passou para 42,7%, em 2011. No Brasil, em 2001, 43,8% dos jovens nessa faixa etária tinham o ensino fundamental completo, e em 2011, 62,6%.
Entre os 20% mais pobres do país, os jovens de 15 a 17 anos na escola passaram de 71,1%, em 2001, para 81,1%. No Brasil, a porcentagem de jovens nessa faixa etária na escola passou de 81% para 83,7%. Entre os 20% mais pobres de 15 a 17 anos no ensino médio, - a idade adequada a essa etapa de ensino - a taxa passou de 13,6% para 35,9%. A variação nacional foi  37,4% para 51,7%. “Houve uma melhora no fluxo escolar e são os mais pobres que estão puxando esses indicadores para cima”, constata Tereza.


Mariana Tokarnia – Repórter enviada especial da Agência Brasil, viajem realizada a convite da Undime – 16.05.2013




1,69 milhão de famílias abrem mão do Bolsa Família


Famílias beneficiadas declararam voluntariamente que ultrapassaram a renda limite de R$ 140 por pessoa.
12% das famílias beneficiadas pelo Bolsa Família deixaram voluntariamente o programa.

Redação Revista Forum
Dados fornecidos pelo ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome mostram que 1,69 milhão de famílias beneficiadas pelo Bolsa Família deixaram espontaneamente o programa, declarando que sua renda já ultrapassava o limite de R$ 140 por pessoa. Estas famílias representam 12% de um total de 13,8 milhões de famílias atendidas. Os dados abrangem todo o período de existência do Bolsa Família, entre outubro de 2003 e fevereiro de 2013.
Os dados do ministério contrariam a alegação dos críticos do Bolsa Família de que o programa de transferência de renda estimularia os beneficiados a não procurar emprego e melhores condições de vida.
De acordo com o secretário de Renda e Cidadania, Luís Henrique Paiva, estas famílias declararam ultrapassar a renda limite na atualização cadastral, realizada pelas prefeituras a cada dois anos. Por sua vez, a fiscalização excluiu 483 mil beneficiários flagrados com renda superior a permitida pelo programa.
Mãe de cinco filhos, a diarista Selma Patrícia da Silva, de 42 anos, é uma das beneficiadas que deixaram espontaneamente o Bolsa Família após melhorar sua condição de vida. Na época em que fazia bicos como doméstica, e o marido com pedreiro, Selma era beneficiária do Auxílio Gás, Bolsa Escola e Bolsa Família. Depois de construir a sua casa, a diarista decidiu devolver o cartão que garantia o benefício.
“Pensei assim: da mesma forma que serviu para os meus filhos, vai ajudar outras pessoas. Acho muita covardia a pessoa não necessitar e ficar recebendo. Entreguei o cartão na mão da primeira-dama (do município), que começou a chorar”, disse Selma em entrevista ao jornal O Globo.
Hoje, Selma, de Formosa (GO), trabalha como faxineira, fez cursos de artesanato e manicure nos últimos anos e costura bonecas e adereços de pano, vendidos em feiras na vizinhança.




Redação Revista Forum – 09.05.2013
Com informações do jornal O Globo.

sábado, 28 de dezembro de 2013

Procuradoria-Geral colombiana destitui prefeito de Bogotá


Gustavo Petro foi eleito pelo Movimento Progressista nas eleições municipais colombianas de outubro de 2011. Ex-guerrilheiro do grupo guerrilheiro M-19, ele já foi senador e é um dos maiores adversários da direita colombiana, especialmente do ex-presidente Álvaro Uribe. (...)
Petro disse que a sanção foi equivalente a um “golpe de Estado”.  (...) “Peço ao mundo solidariedade, estou diante de um golpe de Estado contra um governo progressista”

Leandra Felipe
Bogotá - A Procuradoria-Geral da Colômbia destituiu Gustavo Petro do cargo de prefeito de Bogotá. A decisão, em primeira instância, proferida pelo procurador-geral, Alejandro Ordóñez, foi justificada pelas irregularidades, qualificadas como “gravíssimas” na administração de Petro, no que se refere às mudanças no sistema de coleta de lixo que ele implementou no fim do ano passado. 
Além da destituição, Ordóñez decidiu tornar a Gustavo Petro inelegível para cargos públicos por 15 anos. O procurador disse que as razões para a decisão foram a “improvisação” nas mudanças do sistema de coleta de lixo da capital; a criação de um modelo “fora da lei” ao fazer as alterações por decreto. Ele também alegou que o prefeito “sabia que estava tomando uma medida ilegal e que não era necessário que fosse criado um “novo esquema” de coleta de lixo.
Com relação à improvisação, o procurador justificou: “Houve deliberada improvisação na compra e aluguel de compactadores novos e usados que geraram gastos e depois, com a ineficiência, a prefeitura teve que voltar a contratar operadores privados”, disse. 
O prefeito tem 20 dias para recorrer da decisão. Ao tomar conhecimento da destituição do cargo, Petro disse que a sanção foi equivalente a um “golpe de Estado”. Usuário frequente do microblog Twitter, ele convocou a população a protestar na Praça de Bolívar, em frente à prefeitura de Bogotá. “Peço ao mundo solidariedade, estou diante de um golpe de Estado contra um governo progressista”, declarou.
Nas redes sociais, partidários de Petro, políticos, analistas e a população comentaram a decisão. Alguns disseram que houve “abuso” por parte do procurador e que a decisão foi “equivocada”. Na Praça Bolívar, moradores se manifestam desde o início da tarde com cartazes.
Gustavo Petro foi eleito pelo Movimento Progressista nas eleições municipais colombianas de outubro de 2011. Ex-guerrilheiro do grupo guerrilheiro M-19, ele já foi senador e é um dos maiores adversários da direita colombiana, especialmente do ex-presidente Álvaro Uribe. Petro é um representante importante da esquerda colombiana e apoiava o presidente Juan Manuel Santos no processo de paz. 
O presidente Santos se manifestou sobre a decisão e disse “respeitar a decisão do procurador, assim como respeita o direito de Petro a recorrer da sanção”.
É a segunda vez, em dois anos, que Bogotá tem a destituição de um prefeito. Em 2011, Samuel Moreno Rojas foi destituído após investigação de denúncias de contratação irregulares e superfaturamento de obras públicas.
A lei colombiana permite que o Ministério Público do país, além de receber denúncia de improbidade contra gestores de cargos políticos, como prefeitos e governadores, tem poder para destituí-los.

 Leandra Felipe – Correspondente da Agência Brasil/EBC – 09.12.2013

 

 

A destituição do prefeito de Bogotá viola o direito internacional


Se não se respeita o direito internacional, a linha que separa as democracias das ditaduras pode tornar-se muito nebulosa. (...)
Atualmente, Chile, México e Peru têm disposições legais semelhantes às da Colômbia e Venezuela que autorizam suspender os direitos políticos das pessoas por meio de decisões de menor instância que uma sentença judicial. 

Javier El-Hage e Alejandro Gutiérrez
O prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, foi destituído e não poderá exercer nenhum cargo público por um período de 15 anos, por decisão do Procurador Geral da República da Colômbia, que o declarou “disciplinarmente responsável” por “irregularidades na prestação do serviço público de limpeza”. A decisão do procurador viola a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pela Colômbia em 1973
Segundo o artigo 23, inciso 2, da Convenção, um Estado partícipe só pode suspender ou privar uma pessoa de seus direitos políticos depois de ela ter sido sentenciada, como produto de um processo judicial ajustado às garantias do devido processo penal. Especificamente, a Convenção estabelece a “condenação por juiz competente, em processo penal” como garantia contra a suspensão ou privação arbitrária dos direitos políticos das pessoas, que incluem os direitos de eleger, ser eleito e exercer cargos públicos de escolha popular.
Esse parâmetro estrito foi confirmado em 2011 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso López Mendoza versus Venezuela, onde a corte, com sede na Costa Rica, analisou o caso de um ex-prefeito opositor que tinha sido impedido de exercer qualquer cargo público por seis anos por decisão do Controlador Geral, que havia determinado a responsabilidade do funcionário em dois casos de suspeita de corrupção. A decisão do controlador venezuelano foi expressa por meio de duas resoluções administrativas em 2006 com base no artigo 105 da Lei Orgânica da Controladoria Geral da República e do Sistema Nacional de Controle Fiscal (LOCGRSNCF).
De modo semelhante, na Colômbia, o Código Disciplinar único (CDU) permite à Procuradoria Geral da Nação impor a penalidade de “destituição e incapacidade geral” nos casos de “falta disciplinar” “gravíssima dolosa” ou com “culpa gravíssima”. Depois de 11 meses de investigação disciplinar contra Petro por supostas “condutas irregulares relacionadas com a prestação do serviço público de limpeza” em 9 de dezembro de 2013, o procurador resolveu destituir e cassar os direitos políticos do prefeito de Bogotá por 15 anos. O caso de Petro não é isolado. Desde 2009, o procurador Alejandro Ordóñez destituiu 13 membros do Congresso colombiano. No ano de 2012, impôs sanções disciplinares a 152 prefeitos, 177 vereadores, 9 governadores, 5 senadores, 2 deputados e 1 representante na Câmara.
Esse tipo de destituição por parte do procurador contradiz os artigos 98 e 122 da Constituição colombiana, segundo os quais “o exercício da cidadania” só pode ser suspenso “em virtude de decisão judicial nos casos que a lei determina” e quando o funcionário “tiver sido condenado […] pela comissão de delitos que afetam o patrimônio do Estado”.
Apesar disso, em outubro de 2013, a Corte Constitucional da Colômbia determinou a constitucionalidade desse procedimento e ratificou a sanção do procurador contra a senadora Piedad Córdoba que, em 2010, foi destituída e teve seus direitos políticos cassados por 18 anos. Com base nesse antecedente, prevê-se que qualquer apelação do prefeito fracasse (seja perante o próprio procurador, um juiz de contencioso administrativo ou a Corte Constitucional).
Na Venezuela, como na Colômbia, a disposição legal que levou à retirada dos direitos políticos de López Mendoza , contradizia o estabelecido na Constituição desse país, cujos artigos 42 e 65 limitavam a “suspensão dos direitos políticos” para os casos em que exista “sentença transitada em julgado” e contra os “condenados por delitos cometidos no exercício de suas funções”. Como na Colômbia em 2008, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela ratificou as resoluções do controlador, tirando os direitos políticos de López Mendoza, de modo que se esgotaram os recursos internos disponíveis e se abriu a possibilidade para que ele leve o caso primeiro à Comissão e depois à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Enquanto se buscava resolver o caso na Costa Rica, a Human Rights Foundation (HRF) apresentou à Corte um termo de amicus curiae  pelo qual se analisa a suspensão dos direitos políticos tanto sob o sistema interamericano como o universal (baseado no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos) e o europeu (cuja referênca é a Convenção Europeia de Direitos Humanos), e se pede à Corte que ratifique o padrão constante no artigo 23, inciso 2 da Convenção. Por meio de sua sentença, em 1 de setembro de 201, a Corte ordenou que a Venezuela deixasse “sem efeito as resoluções” contra o ex-prefeito, e determinou que o Estado “adequasse o artigo 105” da lei que autorizava a ação do controlador. Em seu voto concorrente sobre a mesma sentença, o juiz Eduardo Vio Grossi esclareceu que “se torna claro, simples e categórico” que os direitos políticos podem ser suspensos exclusivamente por condenação por juiz competente, no processo penal.
Atualmente, Chile, México e Peru têm disposições legais semelhantes às da Colômbia e Venezuela que autorizam suspender os direitos políticos das pessoas por meio de decisões de menor instância que uma sentença judicial. Como observou o juiz Vio Grossi, “o fato de que nas legislações de alguns dos Estados Partícipes da Convenção se preveja que uma instância não penal possa impor a pena de cassação dos direitos políticos para a eleição de modo algum demonstra que se trata de uma prática pela qual “conste o acordo das partes sobre a interpretação do tratado”.
O principal argumento esgrimido pelo governo venezuelano foi que a suspensão do ex-prefeito era um esforço para “lutar contra a corrupção”, e assim cumprir com suas obrigações perante a Convenção Interamericana contra a Corrupção (algo que o procurador colombiano também costuma mencionar em suas decisões).
O juiz Vio Grossi esclareceu que, se bem que este tratado “estabelece a obrigação de os Estados partícipes tipificarem como delitos atos de corrupção […], em nenhuma parte dispõe ou contempla que a condenação por esse delito possa ser imposta por uma instância administrativa, e daí se depreende que, de modo algum, constitui […] uma modificação ou interpretação do disposto na Convenção, senão, precisamente todo o contrário.”
Quando foi cassado, as pesquisas apontavam o jovem Leopoldo López Mendonza como favorito para a prefeitura metropolitana de Caracas contra o candidato do então presidente Hugo Chávez, que construiu um governo autoritário, caracterizado por manipular eleições e utilizar o aparato estatal para fustigar a oposição e a imprensa independente. Coerente com o modo como governa, a Venezuela não somente descumpriu a sentença da Corte, mas também em 2012 denunciou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e hoje já não pertence ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
Na Colômbia, o prefeito Petro foi eleito em 2011, assumiu o cargo em 2012, e vinha governando de modo democrático, apesar de seu passado violento (do qual diz não ter remorsos) como membro do grupo terrorista M19, que no ano de 1985 invadiu o Palácio de Justiça da Colômbia, tomou como reféns os magistrados da Corte Suprema e executou 12 deles em razão do contra-ataque do Exército colombiano, que se recusara a negociar.
O direito internacional estabelece que nem Petro nem López Mendoza nem nenhum outro funcionário eleito democraticamente no continente americano pode ser destituído ou casado por uma merca decisão do controlador, mas somente por meio de uma condenação judicial pelo delito cometido no exercício de suas funções
Estados democráticos como o colombiano devem garantir que a luta contra a corrupção ou a incompetência administrativa se realize respeitando o direito internacional dos direitos humanos, pois do contrário a importantíssima linha que separa as democracias das ditaduras pode ir-se tornando cada vez mais nebulosa. .A Colômbia deve se enquadrar no direito e reconduzir o prefeito de Bogotá ao cargo.


Javier El-Hage é diretor jurídico e Alejandro Gutiérrez, advogado associado da Human Rights Foundation, uma organização internacional de direitos humanos com sede em Nova York – 13.12.2013


quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Da justiça à democracia passando pelos sinos


É urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos.


José Saramago
Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda.

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século 16) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu: "Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a expoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...

Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro, mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.

Mas os sinos, felizmente, não tocavam apenas para planger aqueles que morriam. Tocavam também para assinalar as horas do dia e da noite, para chamar à festa ou à devoção dos crentes, e houve um tempo, não tão distante assim, em que o seu toque a rebate era o que convocava o povo para acudir às catástrofes, às cheias e aos incêndios, aos desastres, a qualquer perigo que ameaçasse a comunidade. Hoje, o papel social dos sinos encontra-se limitado ao cumprimento das obrigações rituais e o gesto iluminado do camponês de Florença seria visto como obra desatinada de um louco ou, pior ainda, como simples caso de polícia. Outros e diferentes são os sinos que hoje defendem e afirmam a possibilidade, enfim, da implantação no mundo daquela justiça companheira dos homens, daquela justiça que é condição da felicidade do espírito e até, por mais surpreendente que possa parecer-nos, condição do próprio alimento do corpo. Houvesse essa justiça, e nem um só ser humano mais morreria de fome ou de tantas doenças que são curáveis para uns, mas não para outros. Houvesse essa justiça, e a existência não seria, para mais de metade da humanidade, a condenação terrível que objectivamente tem sido. Esses sinos novos cuja voz se vem espalhando, cada vez mais forte, por todo o mundo são os múltiplos movimentos de resistência e acção social que pugnam pelo estabelecimento de uma nova justiça distributiva e comutativa que todos os seres humanos possam chegar a reconhecer como intrinsecamente sua, uma justiça protectora da liberdade e do direito, não de nenhuma das suas negações. Tenho dito que para essa justiça dispomos já de um código de aplicação prática ao alcance de qualquer compreensão, e que esse código se encontra consignado desde há cinquenta anos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, aqueles trinta direitos básicos e essenciais de que hoje só vagamente se fala, quando não sistematicamente se silencia, mais desprezados e conspurcados nestes dias do que o foram, há quatrocentos anos, a propriedade e a liberdade do camponês de Florença. E também tenho dito que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, tal qual se encontra redigida, e sem necessidade de lhe alterar sequer uma vírgula, poderia substituir com vantagem, no que respeita a rectidão de princípios e clareza de objectivos, os programas de todos os partidos políticos do orbe, nomeadamente os da denominada esquerda, anquilosados em fórmulas caducas, alheios ou impotentes para enfrentar as realidades brutais do mundo actual, fechando os olhos às já evidentes e temíveis ameaças que o futuro está a preparar contra aquela dignidade racional e sensível que imaginávamos ser a suprema aspiração dos seres humanos. Acrescentarei que as mesmas razões que me levam a referir-me nestes termos aos partidos políticos em geral, as aplico por igual aos sindicatos locais, e, em consequência, ao movimento sindical internacional no seu conjunto. De um modo consciente ou inconsciente, o dócil e burocratizado sindicalismo que hoje nos resta é, em grande parte, responsável pelo adormecimento social decorrente do processo de globalização económica em curso. Não me alegra dizê-lo, mas não poderia calá-lo. E, ainda, se me autorizam a acrescentar algo da minha lavra particular às fábulas de La Fontaine, então direi que, se não interviermos a tempo, isto é, já, o rato dos direitos humanos acabará por ser implacavelmente devorado pelo gato da globalização econômica.

E a democracia, esse milenário invento de uns atenienses ingénuos para quem ela significaria, nas circunstâncias sociais e políticas específicas do tempo, e segundo a expressão consagrada, um governo do povo, pelo povo e para o povo? Ouço muitas vezes argumentar a pessoas sinceras, de boa fé comprovada, e a outras que essa aparência de benignidade têm interesse em simular, que, sendo embora uma evidência indesmentível o estado de catástrofe em que se encontra a maior parte do planeta, será precisamente no quadro de um sistema democrático geral que mais probabilidades teremos de chegar à consecução plena ou ao menos satisfatória dos direitos humanos. Nada mais certo, sob condição de que fosse efectivamente democrático o sistema de governo e de gestão da sociedade a que actualmente vimos chamando democracia. E não o é. É verdade que podemos votar, é verdade que podemos, por delegação da partícula de soberania que se nos reconhece como cidadãos eleitores e normalmente por via partidária, escolher os nossos representantes no parlamento, é verdade, enfim, que da relevância numérica de tais representações e das combinações políticas que a necessidade de uma maioria vier a impor sempre resultará um governo. Tudo isto é verdade, mas é igualmente verdade que a possibilidade de acção democrática começa e acaba aí. O eleitor poderá tirar do poder um governo que não lhe agrade e pôr outro no seu lugar, mas o seu voto não teve, não tem, nem nunca terá qualquer efeito visível sobre a única e real força que governa o mundo, e portanto o seu país e a sua pessoa: refiro-me, obviamente, ao poder económico, em particular à parte dele, sempre em aumento, gerida pelas empresas multinacionais de acordo com estratégias de domínio que nada têm que ver com aquele bem comum a que, por definição, a democracia aspira. Todos sabemos que é assim, e contudo, por uma espécie de automatismo verbal e mental que não nos deixa ver a nudez crua dos factos, continuamos a falar de democracia como se se tratasse de algo vivo e actuante, quando dela pouco mais nos resta que um conjunto de formas ritualizadas, os inócuos passes e os gestos de uma espécie de missa laica. E não nos apercebemos, como se para isso não bastasse ter olhos, de que os nossos governos, esses que para o bem ou para o mal elegemos e de que somos portanto os primeiros responsáveis, se vão tornando cada vez mais em meros “comissários políticos” do poder económico, com a objectiva missão de produzirem as leis que a esse poder convierem, para depois, envolvidas no açúcares da publicidade oficial e particular interessada, serem introduzidas no mercado social sem suscitar demasiados protestos, salvo os de certas conhecidas minorias eternamente descontentes...

Que fazer? Da literatura à ecologia, da fuga das galáxias ao efeito de estufa, do tratamento do lixo às congestões do tráfego, tudo se discute neste nosso mundo. Mas o sistema democrático, como se de um dado definitivamente adquirido se tratasse, intocável por natureza até à consumação dos séculos, esse não se discute. Ora, se não estou em erro, se não sou incapaz de somar dois e dois, então, entre tantas outras discussões necessárias ou indispensáveis, é urgente, antes que se nos torne demasiado tarde, promover um debate mundial sobre a democracia e as causas da sua decadência, sobre a intervenção dos cidadãos na vida política e social, sobre as relações entre os Estados e o poder económico e financeiro mundial, sobre aquilo que afirma e aquilo que nega a democracia, sobre o direito à felicidade e a uma existência digna, sobre as misérias e as esperanças da humanidade, ou, falando com menos retórica, dos simples seres humanos que a compõem, um por um e todos juntos. Não há pior engano do que o daquele que a si mesmo se engana. E assim é que estamos vivendo.

Não tenho mais que dizer. Ou sim, apenas uma palavra para pedir um instante de silêncio. O camponês de Florença acaba de subir uma vez mais à torre da igreja, o sino vai tocar. Ouçamo-lo, por favor.



José Saramago – Escritor português – 05.02.2002

domingo, 22 de dezembro de 2013

La doctrina Obama


durante siete décadas Estados Unidos ha encabezado al mundo en agresión y subversión, derrocando gobiernos electos e imponiendo despiadadas dictaduras, apoyando crímenes horrendos, socavando acuerdos internacionales y dejando estelas de sangre, destrucción y miseria. (…)
En suma, el excepcionalismo y elaislacionismo estadunidenses vienen a ser variaciones tácticas de una religión secular, cuya fascinación extraordinaria va más allá de la ortodoxia religiosa normal en cuanto apenas si es posible percibirla. Puesto que ninguna alternativa es concebible, esta fe se adopta por reflejo.

Noam Chomsky
La reciente escaramuza Obama-Putin con respecto al excepcionalismo estadunidense volvió a encender el debate sobre la doctrina Obama: ¿se dirige el presidente hacia el aislacionismo o portará con orgullo la bandera del excepcionalismo?
El debate es más estrecho de lo que parece. Existe considerable terreno común entre las dos posiciones, como expresó con claridad Hans Morgenthau, fundador de la escuela realista de relaciones internacionales, exenta de sentimentalismos, que domina hoy día.
A lo largo de su obra, Morgenthau describe a Estados Unidos como único entre las potencias pasadas y presentes, en cuanto tiene un propósito trascendente que debe defender y promover en todo el mundo: la instauración de la igualdad y la libertad.
Los conceptos en competenciaexcepcionalismo y aislacionismoaceptan esta doctrina y sus diversas elaboraciones, pero difieren en cuanto a su aplicación.
Un extremo fue defendido con vigor por el presidente Obama en su mensaje del pasado 10 de septiembre a la nación: Lo que hace diferente a Estados Unidos, lo que lo hace excepcional, dijo, es que estamos dedicados a actuar,con humildad, pero con decisión, cuando detectamos violaciones en alguna parte.
Durante casi siete décadas, Estados Unidos ha sido el sostén de la seguridad global, papel que ha significado más que forjar acuerdos internacionales: ha significado asegurar que se apliquen.
El aislacionismo, en cambio, sostiene que ya no podemos darnos el lujo de realizar la noble misión de correr a apagar los fuegos que otros encienden. Toma en serio una advertencia emitida hace 20 años por el columnista Thomas Friedmanm, del New York Times, de que conceder al idealismo una influencia casi exclusiva en nuestra política exteriorpuede conducirnos a desdeñar nuestros intereses por nuestra devoción a las necesidades de otros.
Entre estos dos extremos se da el acalorado debate sobre política exterior.
En los márgenes, algunos observadores rechazan las premisas compartidas y sacan a relucir el registro histórico: por ejemplo, el hecho de que durante siete décadas Estados Unidos ha encabezado al mundo en agresión y subversión, derrocando gobiernos electos e imponiendo despiadadas dictaduras, apoyando crímenes horrendos, socavando acuerdos internacionales y dejando estelas de sangre, destrucción y miseria.
Morgenthau dio respuesta a esas criaturas desorientadas. Académico serio, reconoció que Estados Unidos ha violado con consistencia su propósito trascendente, pero explica que oponer esa objeción es cometer el error del ateísmo, que niega la validez de la religión con fundamentos similares.
La realidad, sostiene, es el propósito trascendente de Estados Unidos; el registro histórico no es más que el abuso de la realidad.
En suma, el excepcionalismo y elaislacionismo estadunidenses vienen a ser variaciones tácticas de una religión secular, cuya fascinación extraordinaria va más allá de la ortodoxia religiosa normal en cuanto apenas si es posible percibirla. Puesto que ninguna alternativa es concebible, esta fe se adopta por reflejo.
Otros expresan la doctrina con mayor crudeza. Jeane Kirkpatrick, quien fue embajadora del ex presidente Reagan ante la Organización de Naciones Unidas, desarrolló un nuevo método para desviar las críticas a los crímenes de Estados Unidos. Los que se oponían a considerarlos meros tropiezos oingenuidad inocente podían ser acusados del equivalente moral a afirmar que Estados Unidos no es diferente de la Alemania nazi o de cualquier demonio que esté en boga. Esta argucia ha sido usada en muchos casos para proteger el poder ante cualquier escrutinio.
Hasta la academia seria se amolda. Así, en el número más reciente de la revista Diplomatic History, el erudito Jeffrey A. Engel reflexiona sobre la significación de la historia para quienes trazan las políticas.
Engel cita Vietnam, donde,dependiendo de la persuasión política que se tenga, la lección es “evitar las arenas movedizas de la intervención –aislacionismo– o la necesidad de dar rienda suelta a los comandantes militares para que operen libres de presión política” al cumplir la misión de llevar estabilidad, igualdad y libertad destruyendo esos países y dejando un reguero de millones de cadáveres.
La cuota mortal de Vietnam continúa creciendo hasta el presente a causa de la guerra química que el ex presidente Kennedy montó allá, al mismo tiempo que aumentaba su apoyo a una dictadura asesina para un ataque en gran escala, el peor caso de agresión ocurrido durante las siete décadas de Obama.
Otra persuasión política es imaginable: una indignación como la que adoptaron los estadunidenses cuando Rusia invadió Afganistán o cuando Saddam Hussein invadió Kuwait. Pero la religión secular nos impide vernos a nosotros mismos bajo una lente similar.
Un mecanismo de autoprotección es lamentar las consecuencias de nuestras omisiones. Así, el columnista del New York Times David Brooks, al reflexionar sobre el deslizamiento de Siria hacia un horror semejante a Ruanda, concluye que el asunto de fondo es la violencia sunita-chiíta que destroza a esa nación.
Esa violencia, afirma, es testimonio del fracaso de la reciente estrategia estadunidense de retirarse y dejar una presencia ligera y de la pérdida de lo que el ex funcionario del servicio exterior Gary Grappo llama la influencia moderadora de las fuerzas estadunidenses.
Los que aún se dejan engañar por elabuso de la realidad –eso es, de hecho– podrían recordar que la violencia sunita-chiíta fue resultado del peor crimen de agresión del nuevo milenio: la invasión estadunidense de Irak. Y los cargados de memorias más ricas podrían recordar que en los juicios de Nuremberg se sentenció a criminales a la horca porque, según el tribunal, la agresión es el crimen internacional supremo, diferente de otros crímenes de guerra sólo en que contiene en sí mismo el mal acumulado del todo.
Ese mismo lamento es tema de un celebrado estudio de Samantha Power, la nueva embajadora de Washington ante Naciones Unidas. En Un problema del infierno: Estados Unidos en la era del genocidio, Power escribe sobre los crímenes de otros y nuestra inadecuada respuesta. Dedica una oración a uno de los pocos casos durante las siete décadas que podría calificar como genocidio: la invasión de Timor Oriental por Indonesia, en 1975. Trágicamente, Estados Unidosmiró para otro lado, informa Powers.
Daniel Patrick Moynihan, quien la precedió en el cargo ante la ONU en tiempos de la invasión, vio el asunto de modo diferente. En su libro A dangerous place, describió con gran orgullo cómo llevó a la ONU a ser del todo inefectiva en las medidas que tomó para parar la agresión, porque Estados Unidos deseaba que las cosas resultaran de ese modo.
Y de hecho, lejos de mirar a otro lado, Washington dio luz verde a los invasores indonesios y les proporcionó de inmediato equipo militar letal. Estados Unidos impidió actuar al Consejo de Seguridad de la ONU y continuó prestando firme apoyo a los agresores y sus actos genocidas, entre ellos las atrocidades de 1999, hasta que el entonces presidente Bill Clinton marcó el alto, lo cual pudo haber ocurrido en cualquier momento de los 25 años anteriores.
Pero eso es mero abuso de la realidad. Es muy fácil continuar, pero no tiene caso. Brooks tiene razón en insistir en que deberíamos ir más allá de los terribles sucesos que tenemos a la vista y reflexionar en los procesos subyacentes y las lecciones que derivan de ellos.
Entre éstas, ninguna tarea es más urgente que liberarnos de las doctrinas religiosas que condenan al olvido los hechos de la historia y refuerzan de ese modo nuestros fundamentos para nuevosabusos de la realidad.


Noam Chomsky  - Profesor emérito de Lingüística y Filosofía en el Instituto de Tecnología de Massachussets en Cambridge, Mass – 13.10.2013
Distributed by The New York Times Syndicate.
Traducción: Jorge Anaya



quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Insólitas prisões


A crítica ao "modus operandi" das prisões (da ação penal 470) não implicam tolerância ao crime; pelo contrário, ela pressupõe que sentenças legais não autorizam sua execução ilegítima.
  
Maria Sylvia Carvalho Franco
"Quatro da madrugada: instante entre a noite e o amanhecer, quando as decisões lá no topo já se firmaram, quando o que deverá acontecer já aconteceu. Alguém bate à porta, urgente. Quem é? Não se sabe."
Com essa matriz política, Jan Kott abre sua reflexão sobre o golpe de Estado urdido em "Ricardo 3º", peça em que a violência dilacera as tramas do cotidiano: súbito, a força física e a intimidação moral irrompem nos afazeres, no lazer, no sono. "Quem dentre nós, pelo menos uma vez na vida, não foi assim despertado?" O ensaio de Kott sobre "Ricardo 3º" faz dessa figura uma grande metáfora da "húbris" política, desvelando a essência do ato despótico e sua perene ameaça.
Assistimos, aqui e agora, à reiteração dessas práticas. As detenções dos réus da ação penal 470 ocorreram após um processo transparente, mas o foram com bizarria do prisma ético. Sua imposição intempestiva, em longo feriado, valeu-se do emblemático Dia da República e da suspensão, no calendário, de três dias úteis. Pergunta-se o porque da pressa: Joaquim Barbosa valeu-se do recesso para decidir sozinho, ignorando seus pares?
A efetivação repentina dessas prisões, após um lento processo, insere o monopólio estatal da força física no cotidiano das pessoas. Noite que enseja emboscadas, ou feriado que paralisa a vida pública e privada, ambas as situações cancelam as garantias constitucionais.
Não visamos, aqui, a procedência das prisões, mas seu arbitrário "modus faciendi". O uso do feriado não é inédito nas práticas políticas autoritárias: entre nós, basta citar os ardilosos planos econômicos, como o de Collor. Há mesmo uma história dessas tocaias: nas imagens acentuadas por Kott, o golpe de Ricardo 3º condensa-se na semana de Todos os Santos e Finados, tropos polissêmicos onde o dia dos mortos e o morticínio do tirano conjugam-se: os assassinatos, processos e decapitações não por acaso efetivam-se quando a vida social está suspensa, em luto. Inglaterra elisabetana ou República brasileira, a conivência com tais condutas resulta na mesma inversão de valores e práticas já presentes na democracia grega e sintetizadas por Platão como raízes do poder tirânico.
Por fim, completando os atentados à cidadania, juntas médicas ratificaram o desrespeito a um preso doente. No laudo sobre a saúde de José Genoino, afirma-se que ele pode suportar o cárcere: bastam remédios, dieta, exercícios regulares e (pasme-se!) evitar "fatores psicológicos estressantes". Os doutores ironizam ou ignoram o que significa uma prisão, enunciando um oximoro: cadeia sem trauma.
As juntas que se pronunciaram sobre Genoino --e talvez as que examinam Jefferson-- esqueceram-se de que avaliam prisioneiros cujas vidas não se assemelham à dos pacientes abstratos cujos diagnósticos pautam-se pelos parâmetros rotinizados oferecidos pela tecnologia médica. Lendo seus pareceres, tem-se o sentimento de que a submissão aos poderosos avalizou tais contrassensos. Tanto mais grave torna-se essa conduta quando distinguimos a atual crise nos meios médicos brasileiros e lembramos o quanto a bioética vem sendo debatida mundialmente.
Após a renúncia de Genoino, as circunstâncias de sua captura podem parecer episódicas, mas, nelas, o imprudente uso do poder evidencia o vezo, perene no Estado brasileiro, de afrontar o cidadão.
A crítica ao "modus operandi" das prisões não implicam tolerância ao crime; pelo contrário, ela pressupõe que sentenças legais não autorizam sua execução ilegítima.
Vale recordar que as denúncias contra a democracia martelam a tese de que nela é ínsita a impunidade. Já dizia Platão ao invectivar o regime ateniense das liberdades que, na polis "licenciosa", condenados à morte ou ao exílio não "deixam a praça, circulam em público, como se fossem indiferentes a todos, invisíveis, como fantasmas de heróis". Pelo visto, alguns magistrados são platônicos e gostariam de banir a democracia para sempre.


Maria Sylvia Carvalho Franco – Professora titular aposentada de filosofia da USP e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – 08.12.2013

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Um país, dois modelos


Dispêndios estaduais em pesquisa e desenvolvimento revelam fosso entre São Paulo e as outras unidades da federação.

Fabrício Marques
Os investimentos dos estados brasileiros em pesquisa e desenvolvimento (P&D) cresceram nos últimos anos, mas persiste um forte contraste entre a realidade de São Paulo, que ostenta um constante e significativo volume de dispêndios em P&D em suas três universidades estaduais, e as demais unidades da federação, com sistemas universitários menos desenvolvidos sustentados por investimentos ainda modestos. Um levantamento divulgado pelos Indicadores Nacionais de Ciência e Tecnologia, do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), é revelador desse fosso. A compilação de dados comparou os dispêndios em P&D de instituições estaduais de ensino superior. Dos R$ 4,5 bilhões investidos pelo conjunto de estados brasileiros em 2010, São Paulo respondeu por quase R$ 3,9 bilhões, ou 86% do total. “São Paulo é um estado que investe muito em ciência e tecnologia quando comparado com o restante do país”, observa Marco Antonio Zago, pró-reitor de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP). “Isso é resultado de uma política de estado que teve início há muito tempo, e não da estratégia de um governador”, afirma. Em segundo lugar no levantamento aparece o Rio de Janeiro, com dispêndios estaduais em P&D das instituições de ensino superior na casa dos R$ 208 milhões em 2010, seguido pelo Paraná (R$ 183 milhões), Bahia (R$ 68 milhões) e Santa Catarina (R$ 46,9 milhões).
Um total de 9,57% do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) arrecadado em São Paulo é destinado para a manutenção das três universidades estaduais e se distribui de acordo com o tamanho de cada uma das instituições, sendo 2,344% para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), 2,195% para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e 5,029% para a USP. “Esses recursos, gerenciados de forma autônoma, garantiram uma base muito forte para as universidades estaduais, propiciando laboratórios de qualidade, docentes em regime de dedicação exclusiva e técnicos de pesquisa”, afirma Zago, que faz uma ressalva: “Embora essa distribuição seja feita segundo o tamanho da instituição e não de forma competitiva, os recursos da FAPESP, investidos em projetos de pesquisa e bolsas, cumprem essa finalidade. Os pesquisadores têm de submeter projetos e são avaliados. E os projetos de qualidade é que são contemplados”, afirma o pró-reitor. Em 2010, o desembolso da FAPESP com bolsas e apoio à pesquisa foi de R$ 780 milhões, pouco mais de R$ 100 milhões superior ao patamar de 2009.
A USP, que é a universidade latino-americana mais bem colocada em rankings internacionais, respondeu sozinha por quase a metade de todos os recursos investidos em P&D nos sistemas universitários estaduais, de acordo com os Indicadores do MCTI. Foram R$ 2,2 bilhões em 2010. Já a Unicamp alcançou R$ 1 bilhão, enquanto a Unesp recebeu R$ 655 milhões. A Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto aparece na tabela do MCTI com R$ 7,7 milhões aplicados em 2010. A metodologia adotada pelo MCTI abrange os gastos com pós-graduação, atividade das universidades identificada com pesquisa. O cálculo é feito relacionando-se os recursos executados pelas instituições com o número de docentes envolvidos com pós-graduação. Despesas com ensino, técnicos, manutenção de instalações e aposentadorias ficaram fora da conta do ministério, pois não são consideradas dispêndios em P&D. Pesquisa e desenvolvimento, na definição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é a categoria “que se refere ao trabalho criativo realizado de forma sistemática com o objetivo de aumentar o estoque de conhecimento e usá-lo para desenvolver novas aplicações”. Os dispêndios em P&D são a parcela dos recursos investidos em ciência e tecnologia que, por meio da pesquisa básica e aplicada, ajuda a capacitar os países para a inovação.

Continuidade
A pró-reitora de Pesquisa da Unesp, Maria José Giannini, observa que uma das vantagens do modelo de São Paulo é a sua garantia de continuidade. “Evidentemente há muitos pesquisadores altamente competentes em universidades federais, mas é comum que o trabalho deles seja impactado pelo contingenciamento de verbas para a pesquisa. Nas universidades estaduais paulistas nós temos amplas condições de estimular os pesquisadores a apresentarem projetos e buscarem recursos, pois a FAPESP sempre prestigia quem tem mérito”, diz ela. Segundo dados da Unesp, nos últimos quatro anos o número de projetos regulares e temáticos aprovados na FAPESP dobrou em relação ao quadriênio anterior. O total de recursos captados pela Unesp em 2011 foi de R$ 151 milhões, diante de R$ 70 milhões em 2007. No caso da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o aumento na captação de recursos foi de 230% no quadriênio.
Ronaldo Pilli, pró-reitor de Pesquisa da Unicamp, enfatiza que as universidades estaduais paulistas têm cumprido um papel importante ao fornecer quadros para o desenvolvimento do país. “Não causa surpresa que os números mostrem uma predominância de investimentos em São Paulo. Mas seria bem-vindo que as empresas ampliassem sua participação no setor de pesquisa e desenvolvimento, pois uma base de recursos humanos nós temos a oferecer”, afirma.
Ainda assim, São Paulo é um caso único de estado brasileiro em que o investimento em P&D das empresas supera os investimentos públicos (62% do total, de acordo com os Indicadores de ciência, tecnologia e inovação em São Paulo, publicado em 2011 pela FAPESP). Da mesma forma, o dispêndio público estadual em P&D em São Paulo, de R$ 3,7 bilhões em 2008, supera o do governo federal no estado (R$ 2 bilhões). Essa composição é bem diferente da observada no Brasil, em que os investimentos federais em P&D  são majoritários (veja quadro na página ao lado).
No caso da Unicamp, Pilli destaca o papel da FAPESP, responsável por 40% dos recursos para a pesquisa captados pela universidade. “Aumentamos a captação de recursos para pesquisa de R$ 220 milhões em 2007 para R$ 350 milhões em 2011. Os recursos da Fundação cresceram de R$ 80 milhões em 2007 para R$ 131 milhões no ano passado. No mesmo período, os recursos do CNPq foram reduzidos e os da Capes cresceram de R$ 52 milhões para R$ 61 milhões”, afirma.
A predominância do investimento paulista não ofusca o fato de que vários estados ampliaram seus investimentos em ciência e tecnologia num passado recente. Em 2008 o Rio de Janeiro ampliou para 2% o quinhão da arrecadação de impostos destinado ao orçamento da Fundação Estadual de Amparo à Pesquisa, a Faperj. “Com isso, e também graças ao aumento da arrecadação do estado, o orçamento da Faperj saltou de R$ 100 milhões para R$ 300 milhões”, diz o secretário estadual de Ciência e Tecnologia, Luiz Edmundo Costa Leite. Segundo o levantamento do MCTI, os dispêndios em P&D do governo do Rio em suas duas universidades, a Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), foram de R$ 208 milhões em 2010, mais do que o dobro do que os R$ 100 milhões contabilizados em 2005. A Uerj se destaca, com dois terços dos dispêndios em 2010. O número de docentes da Uerj, cerca de 1.800, chega perto do contingente de professores da Unicamp, ainda que o número de alunos de pós-graduação (2.800) seja uma décima parte do registrado na universidade paulista. “Com o aumento da arrecadação do estado, houve um esforço para recuperar a capacidade das universidades estaduais”, diz Leite.

Articulação
A maioria das universidades públicas do Rio de Janeiro é federal, como a Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Federal Fluminense (UFF), a Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e a Federal do Estado do Rio (Unirio). “Mas as federais e as estaduais atuam articuladas. E a Faperj investe boa parte de seus recursos em projetos das universidades federais. Temos apenas um edital, voltado para equipar laboratórios, que é aberto apenas para as estaduais”, diz o secretário. Ele afirma que uma circunstância histórica moldou o sistema universitário fluminense da forma como ele é conhecido. “O Rio de Janeiro foi a capital do país por 200 anos e várias universidades foram criadas pelo governo federal. Outras instituições de pesquisa de grande tradição também surgiram no Rio, como a Fundação Oswaldo Cruz. Já em São Paulo, o crescimento do sistema de pesquisa dependeu de um esforço do estado e, com seu crescimento econômico, as universidades estaduais se consolidaram”, compara.
Minas Gerais tem uma trajetória parecida com a do Rio. Em 2010, o estado investiu R$ 10,2 milhões em pesquisa e desenvolvimento em duas instituições, a Universidade Estadual de Minas Gerais (Uemg) e a Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes). O montante, embora ainda modesto, mais do que triplicou em relação aos R$ 2,9 milhões contabilizados em 2007, o primeiro ano com registro de investimentos segundo o MCTI. O secretário estadual de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Minas Gerais, Narcio Rodrigues, explica que esse crescimento é fruto da decisão, tomada em 2007, de fazer valer a regra legal de investir 1% da arrecadação tributária em ciência, por meio da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais. “Nossa estratégia tem sido a de garantir que não haja retrocesso no cumprimento dessa norma e de alavancar os recursos fazendo parcerias com o governo federal e a iniciativa privada, que participam com contrapartidas”, afirma Rodrigues. Ele explica que as universidades estaduais são apenas duas porque, no passado, a tarefa de promover o sistema universitário mineiro foi abraçada pelo governo federal. “Nosso sistema tem 14 instituições de ensino superior, sendo 12 federais, mas funcionamos como um sistema articulado”, diz. A maior delas é a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Nossas universidades têm forte atuação no desenvolvimento regional. A Unimontes, que é a principal instituição estadual, é bastante ativa na região mais pobre de Minas Gerais. Esse sistema regionalizado é importante para o desenvolvimento do estado, mas, claro, o ideal seria mesclá-lo com o vigente em São Paulo, onde o governo estadual abraçou a missão de promover a educação superior e consolidou instituições de peso nacional”, diz Narcio Rodrigues.

Fabrício Marques – setembro de 2012
IN Revista Pesquisa Fapesp, ed. 199 - http://revistapesquisa.fapesp.br/2012/09/14/um-pais-dois-modelos/