Muitos que hoje lamentam por Mandela
detestam manifestações públicas e mudanças no status quo.
Adoram um revolucionário quando este é
reconhecido internacionalmente e aparece em estampas de camisetas, mas repudiam
quem ocupa propriedades, por exemplo, “impedindo o progresso''.
Leonardo
Sakamoto
Precisamos de mais pessoas como Mandela.
Pessoas que são capazes de usar a força quando
necessário e adotar uma atitude conciliadora quando preciso. Mas que não
descartam qualquer uma das duas acões políticas.
Por conta da morte de Mandela, estamos sendo
soterrados por reportagens que louvam apenas um desses lados e esquece o outro,
como se as folhas de uma árvore existissem sem o seu tronco e os galhos. O
apartheid não morreu apenas por conta do sorriso bonito e das falas
carismáticas do líder sul-africano, mas por décadas de luta firme contra a
segregação coordenada por uma resistência que ele ajudou a estruturar.
É fascinante como regimes execrados pelo Ocidente
foram, muitas vezes, os únicos que estenderam a mão a Mandela e à luta contra o
apartheid. E como, décadas depois, muitos países prestam suas homenagens a ele,
sem um mísero mea culpa por seu papel covarde durante sua
prisão. Ou, pior: como veículos de comunicação desse mesmo Ocidente ignoram a
complexidade da luta de Mandela, defendendo que o pacifismo foi o seu caminho.
Desculpem, mas a necessária conciliação para curar
feridas ou a tolerância são diferentes de injustiça. E ser pacifista não
significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência
civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as
situações em que um grupo de pessoas é aviltado por outro.
“Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e
democrática, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com
oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e o qual espero
alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou pronto para
morrer'', disse ele, ao ser condenado a 27 anos de prisão.
As histórias das lutas sociais ao redor do mundo
são porcamente ensinadas. Ao ler o que os jovens aprendem nas carteiras
escolares ou no conteúdo trazido por nós jornalistas, fico com a impressão que
a descolonização da Índia, o fim do apartheid na África do Sul ou a
independência de Timor Leste foram obtidas apenas através de longas discussões
regadas a chá e um pouco de desobediência. Dessa forma, a interpretação dos
fatos, passada adiante, segue satisfatória aos grupos no poder.
Muitos que hoje lamentam por Mandela detestam
manifestações públicas e mudanças no status quo.
Adoram um revolucionário quando este é reconhecido
internacionalmente e aparece em estampas de camisetas, mas repudiam quem ocupa
propriedades, por exemplo, “impedindo o progresso''.
Leio reclamações da violência de protestos quando
estes vêm dos mais pobres entre os mais pobres – “um estupro à legalidade” –
feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa,
como enxadas, foices e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar
fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na
maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência. Ou ainda professores que
exigem melhores salários e resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e
pressionar para que o poder público mude o comportamento. Todos eles são uns
vândalos.
Daí, essa pessoa que ama Mandela, mas não sabe quem
ele é, pensa: poxa, por que essa gente maltrapilha simplesmente não sofre em
silêncio, né?
Muitas das leis criticadas em protestos e ocupações
de terra ou mesmo no apartheid não foram criadas pelos que sofrem em
decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estavam ou estão na
raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está. Nem sempre a
legalidade é justa. E essa frase assusta muita gente.
Mandela é a inspiração. Com ele, é possível
acreditar que manifestações populares e ocupações resultem nos pequenos
vencendo os grandes. E, com o tempo, os rotos e rasgados sendo capazes de
sobrepujar ricos e poderosos.
Por isso, o desespero inconsciente presente em
muitas reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos. Ou
na tentativa de reescrever a história editando aquilo que não interessa.
Enquanto isso, mais um indígena foi morto no Mato
Grosso do Sul. Mas tudo bem. Devia ser apenas mais um vândalo, não um homem de
bem como Mandela.
Enfim, precisamos de mais pessoas como Mandela.
Pois os bons do século 20 estão morrendo antes que realmente entendamos suas
mensagens.
Leonardo Sakamoto – 06.12.2013
IN
Blog do Sakamoto – http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/12/06/chora-por-mandela-mas-acha-um-absurdo-pobre-querer-os-mesmos-direitos/