Desde o surgimento dos meios de comunicação
eletrônicos no país, a promiscuidade entre radiodifusores e políticos
determinou a prevalência de interesses privados no rádio e na TV.
Apoiada numa legislação frágil, a farra das concessões assumiu faces
diferentes ao longo das últimas décadas, respeitando, porém, o mesmo critério
desde os anos 50: a prevalência de interesses privados de empresas e políticos.
Coletivo Intervozes
A confusão encabeçada
pelo próprio Executivo Federal nas concessões,autorizações e permissões de
outorgas de rádio e TV tem origem quase concomitante ao aparecimento dos veículos
de comunicação eletrônica no Brasil. Apoiada numa legislação cheia de brechas,
a farra das concessões assumiu faces diferentes ao longo das últimas décadas,
respeitando, porém, o mesmo critério desde os anos 50: a supremacia de
interesses privados de empresas e políticos.
O marco legal que dá
início à promiscuidade na relação entre o público e o privado nas Comunicações
é o Código Brasileiro de Telecomunicações (CBT), aprovado em 27 de agosto de
1962. Ele facilitou ao máximo a ocupação das freqüências previstas, abrindo espaço
para um enorme crescimento do setor privado.
Coincide com esse
período a fundação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão
(Abert), formada a partir da reunião de radiodifusores que começavam a mostrar
seu poder político no Congresso.
Na aprovação do
Código, a Abert foi responsável pela derrubada de cada um dos 52 vetos do
presidente João Goulart, que tentava
barrar o caráter excessivamente liberalizante da Lei. Um dos vetos dizia respeito
ao artigo que determinava que a concessão seria renovada automaticamente em
caso de não haver irregularidades comprovadas contra a emissora.
Em 1963, dois
decretos (52.795 e 52.026) regulamentaram o CBT, estabelecendo, entre outras
questões, o período de validade das concessões de rádio para 10 anos e de TV
para 15 anos. Em 1967, foi promulgado o Decreto-lei 236, que determinou
condições para as outorgas de TVs educativas. Além dessas condições, o decreto
faz menção de limites de detenção de concessões, mas é omisso em relação a princípios
para evitar o uso privado deste bem público.
A década de 70 é
marcada por uma aliança do governo militar com a Rede Globo de Televisão. Foco de uma CPI que considerou ilegal o aporte
de dinheiro do grupo Time-Life na sua estrutura, a Rede Globo cumpriu o
estratégico papel de unidade nacional, sendo subserviente à censura do Regime,
o que contribuiu sobremaneira com as vistas grossas do Estado em relação à
expansão não controlada do setor. Data dessa época o crescimento dos nove
maiores grupos de comunicação do país que até hoje controlam 90% dos canais de
rádio e TV existentes.
Durante o governo Figueiredo (1979-1985), foram
concedidos nada menos do que 634 canais de radiodifusão, 295 rádios AM, 299 rádios
FM e 40 emissoras de TV. Com a “transição democrática” e a condução de Tancredo
Neves à Presidência da República, a Abert voltou a entrar em cena para garantir
que a ausência de critérios e regras claras permanecesse. Tancredo recebeu de
três congressistas um documento com propostas progressistas de mudança nas
políticas de comunicação. Os parlamentares também mostraram preocupação com a
possibilidade da indicação de Antônio
Carlos Magalhães ao cargo de ministro e com a manutenção de Rômulo Villar Furtado na Secretaria Geral
do Ministério das Comunicações. Furtado
era homem de confiança da Globo, e estava no cargo desde 1974. A pressão política,
no entanto, não surtiu efeito.
Ao assumir o
Ministério das Comunicações, ACM tentou
dar um caráter de moralidade nas concessões distribuídas por Figueiredo e
prometeu “promover estudos para fixar critérios de concessão de emissoras de
rádio e TV”. Em março de 85, ele assina a portaria 128, que suspende as
concessões dadas a partir de outubro de 84. As concessões ficam suspensas até o
final do ano, mas ACM acaba chancelando os pedidos e dá início a uma das maiores distribuições de outorgas a políticos
da história brasileira.
Com a instalação da Constituinte, a partir de 1987, Sarney e ACM encontraram nas concessões uma maneira de agradar os seus
aliados políticos e utilizaram-nas para troca de favores. Em três anos e meio –
de 15/03/85 a 5/10/88 –, Sarney distribuiu 1.028 outorgas, sendo 25% delas
no mês de setembro de 1988, que antecedeu a promulgação da Constituição. O
Diário Oficial da União do dia 29/9/88, seis dias antes de promulgada a
Constituição, trouxe 59 outorgas em um só dia, todas assinadas na noite
anterior.
Com raras exceções,
os beneficiados foram parlamentares, que direta ou indiretamente (por meio de
seus familiares ou sócios) receberam as outorgas em troca de apoio político
a projetos de Sarney, especialmente para a extensão do mandato do presidente para
cinco anos. Dos 91 constituintes que foram premiados com pelo
menos uma concessão de rádio ou televisão, 84 (92,3%) votaram a favor do
presidencialismo e 82 (90,1%) votaram a favor do mandato de cinco anos.
No início do governo FHC, o ministro das Comunicações, Sérgio Mota, promoveu algumas mudanças
no sentido de dar transparência ao processo. Duas delas aparecem no Decreto
1720/95, estabelecendo a necessidade de licitação e o pagamento pelo uso da
concessão. A norma, porém, passou a privilegiar empresas com maior poder
econômico, dando ao preço do outorga um peso maior do que as definições sobre a
programação.
A utilização de
canais de rádio e TV como moeda política logo voltou a aparecer. Com a regra da
licitação valendo apenas para as comerciais, a “negociação” passou a girar em
torno das outorgas para retransmissoras (RTVs) e, em seguida, para as
educativas.
Em 1996, o decreto
2.108 definiu que "é dispensável a licitação para a outorga para a execução
de serviço de radiodifusão com fins exclusivamente educativos".
Em agosto de 2002, a
repórter Elvira Lobato, da Folha de S. Paulo, publicou uma série de reportagens
que revelaram como o governo Fernando Henrique havia dado continuidade à
prática de distribuição de TVs a políticos aliados: Na matéria intitulada “FHC
distribuiu rádios e TVs educativas para políticos”, consta que "em sete
anos e meio de governo, além das 539 emissoras comerciais vendidas por
licitação, FHC autorizou 357 concessões educativas sem licitação. (...) A distribuição
foi concentrada nos três anos em que o deputado federal Pimenta da Veiga (PSDB-MG), coordenador
da campanha [presidencial] de José Serra, esteve à frente do Ministério das
Comunicações. Ele ocupou o cargo de janeiro de 1999 a abril de 2002, quando,
segundo seus próprios cálculos, autorizou perto de cem TVs educativas. Pelo
menos 23 foram para políticos. A maioria dos casos detectados pela Folha é em
Minas Gerais, base eleitoral de Pimenta da Veiga, mas há em São Paulo, Rio de
Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco,
Alagoas, Maranhão, Roraima e Mato Grosso do Sul".
Sem mudanças no
Governo Lula
Na atual gestão do
Ministério das Comunicações, a prática de distribuir outorgas em troca de apoio
político continuou. De forma inédita, integrantes da Comissão de Ciência e
Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados ameaçaram
não renovar e devolver ao Executivo 227 processos de renovação de outorgas em função
da ausência de documentação, necessária para a análise dos pedidos.
Jader Barbalho (PMDB-PA), ex-presidente da Comissão, estava entre
os 10 parlamentares envolvidos com as emissoras cuja não renovação parecia
iminente. Tratou de pedir pessoalmente ao presidente Lula que intercedesse, o
que de fato aconteceu.
Em junho de 2006, o
Executivo pediu os processos de volta, alegando que caberia ao Ministério das
Comunicações, e não ao Congresso, exigir das empresas a complementação dos
documentos. O curioso é que foi o próprio Ministério que repassou a documentação
incompleta para a Câmara.
Com a manobra,
garantiu-se que Barbalho mantivesse em atividade duas emissoras de sua família
com concessões vencidas. Além da Rádio Clube do Pará, que opera sem autorização
há mais de 13 anos, também foram beneficiadas com a medida a Rede Brasil
Amazônia de Televisão (RBA), cuja concessão venceu em 2002, e a Rádio Carajás
FM.
A manobra salvou
também emissoras de outros aliados do governo, como os senadores José Sarney (PMDB-AP), José Maranhão (PMDB-PB) e Flávio Arns (PT-PR), além dos deputados
Marcondes Gadelha (PSB-PB) e Humberto Michiles (PL-AM).
A repórter Elvira
Lobato seguiu com as investigações e, em 2006, publicou que foram distribuídas
pelo menos sete concessões de TV e 27 rádios educativas a fundações ligadas a
políticos:
“Entre políticos
contemplados estão os senadores Magno
Malta (PL-ES) e Leonel Pavan
(PSDB-SC). A lista inclui ainda os deputados federais João Caldas (PL-AL), Wladimir
Costa (PMDB-PA) e Silas Câmara (PTB-AM),
além de deputados estaduais, ex-deputados, prefeitos e ex-prefeitos. Em três
anos e meio de governo, Lula aprovou
110 emissoras educativas, sendo 29 televisões e 81 rádios. Levando em conta somente
as concessões a políticos, significa que ao menos uma em cada três rádios foi parar,
diretamente ou indiretamente, nas mãos deles".
Fato é que permanece
o uso das outorgas como moeda política. Além disso, o cargo mais alto do
Ministério das Comunicações é ocupado por um senador e ex-funcionário da Globo,
notadamente defensor de interesses dos empresários de radiodifusores. Ele mesmo,
dono de uma rádio em Barbacena (MG) e, portanto, violador do princípio constitucional
que proíbe que parlamentares possuam canais de rádio e TV. Foi também Hélio Costa o maestro da implementação
da TV digital no Brasil, que escandalosamente beneficiou os interesses das
emissoras de TV, escolhendo o padrão japonês e dando gratuitamente às atuais
emissoras de televisão um outro canal para a exibição digital. Essa última decisão está sendo questionada
na Justiça por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Superior
Tribunal Federal.
Mais recentemente, o
ministério das Comunicações convocou os concessionários para recadastrarem as
informações de suas empresas. A portaria, publicada no dia 13 de agosto, deu 60
dias para que emissoras de rádio e TV passem para o Ministério dados como a
composição societária das organizações.
O que parece ser um
ato de controle do Executivo só reforça, mais uma vez, a total falta de
conhecimento do governo em relação à utilização das concessões. Por lei, qualquer
mudança no quadro societário e contrato social das empresas deveria ser solicitada
previamente. Pelo visto, não foram.
Coletivo Intervozes – Novembro 2007
IN Informativo Intervozes – Concessões de rádio e
TV: onde a democracia ainda não chegou – http://www.intervozes.org.br/publicacoes/revistas-cartilhas-e-manuais/revista_concessoes_web.pdf