segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Greve vai muito além da Bahia




Movimentos reivindicatórios levam a extremismos, e cabe às partes mais sensatas, especialmente os governantes, isolá-los em busca de uma situação pacífica



Mair Pena Neto

A situação da greve da Polícia Militar da Bahia é extremamente complexa e não permite juízos definitivos. Por um lado, não se pode aceitar que policiais ajam como bando armado, demonstrando seu poder de fogo, nem que usem crianças como escudos humanos para se precaver contra uma possível invasão da Assembleia Legislativa, onde se concentram. Por outro, não se pode ignorar suas reivindicações, seus baixos soldos, e cercá-los como sequestradores, negando qualquer tipo de diálogo ou futura anistia, parte de qualquer negociação razoável.

Nós já vimos esse filme aqui no Rio de Janeiro. Bombeiros em greve tomaram um quartel da corporação, atitude também equivocada, e o governador os chamou de bandidos. Depois, com o nível de organização dos grevistas e com o apoio popular que conquistaram, o governador não só fez passar uma anistia na assembleia estadual, como também a Câmara Federal a aprovou.

Movimentos reivindicatórios levam a extremismos, e cabe às partes mais sensatas, especialmente os governantes, isolá-los em busca de uma situação pacífica. Assim como Cabral, o governador da Bahia, Jaques Wagner, não se mostrou muito hábil no espocar da crise e reagiu com o radicalismo oposto ao dos grevistas. Enviou tropas do Exército para cercar a assembleia legislativa e fez discurso duro contra os policiais, responsabilizando-os até por algumas mortes que vinham ocorrendo em Salvador.

Tanto o governo baiano quanto o federal mencionaram a existência de um modus operandi no movimento dos policiais no país, que incluiria atentados e até assassinatos para atemorizar a população. Nenhuma cartilha ou prova foi apresentada, o que se serviu para aumentar a tensão. Pelo lado dos policiais, um ex-soldado, que atua em Brasília pela votação da proposta de emenda constitucional que criaria um piso nacional para a classe, também ajudou a botar lenha na fogueira, dizendo que policiais não são trabalhadores quaisquer, pois portam armas.

Criminalizar o movimento dos policiais não parece a estratégia adequada. Surpreende até que governos mais à esquerda, como o da Bahia e o federal, recorram a esse tipo de atitude, repetindo o padrão de comportamento da direita, que vemos constantemente em São Paulo.

O que os policiais pretendem é um aumento salarial. É uma reivindicação legítima de toda categoria, mesmo que a forma de ação pareça errada. Nos grandes centros urbanos, quase todo mundo reconhece que os policiais militares ganham pouco diante dos riscos da função que exercem. Este senso comum talvez tenha sido o que originou maior apoio popular à greve dos bombeiros no Rio.

A greve na Bahia, que sucede as já ocorridas no Rio, Ceará e Maranhão, revelam que a insatisfação é nacional e exige bem mais que soluções locais. O momento seria o de debater o papel das polícias e sua desmilitarização, que cria a situação anormal de impedi-las de se organizarem e de se manifestarem, justamente por serem militares.

Diferentemente dos bombeiros, policiais militares não são vistos com simpatia pela população, porque sempre agiram contra ela dentro de uma lógica militar. A reestruturação da polícia e a mudança de seu caráter não só contribuiria para a resolução de questões de classe, como a que vemos agora, como poderia aproximá-la da população, conquistando o respeito que desfruta em outros países, onde a morte de um policial é, muitas vezes, motivo de comoção nacional.





Mair Pena Neto – Jornalista – 10.02.2012

Publicado por Redecastorphoto a partir o Direto da Redação

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Grécia, a receita infalível para destruir um país


O FMI e as autoridades financeiras da União Europeia aumentam a pressão sobre a Grécia e dizem que país "ainda não reúne todas as condições" para receber ajuda. Querem mais cortes de gastos públicos. Enquanto isso, na Grécia, crescem os casos de abandono de crianças e de desnutrição infantil, o desemprego bate na casa dos 20%, as camas dos hospitais foram reduzidas em 40%, alunos não receberam livros escolares e cidadãos deficientes, inválidos ou portadores de doenças raras tiveram subsídios e medicamentos cortados. Saiba como destruir um país e seu povo em nome da austeridade.



Marco Aurélio Weissheimer

A Grécia deveria prestar atenção no que está acontecendo em Portugal, onde o governo decidiu cumprir tudo o que a troika (Fundo Monetário Internacional, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) exigiu e a situação econômica do país só está piorando. A advertência foi feita por Landon Thomas, colunista econômico do jornal The New York Times, em um artigo intitulado Portugal’s Debt Efforts May Be Warning for Greece. Portugal, diz Thomas, vem fazendo tudo o que a troika exigiu em troca dos 78 bilhões de euros de “resgate” liberados em maio de 2011. No entanto, o resgate está fazendo a economia do país afundar cada vez mais no buraco. Neste momento, a Grécia está sendo pressionada a seguir o mesmo caminho para garantir um “resgate” de 130 bilhões de euros.

Em Portugal, o portal Esquerda.net destacou a advertência de Landon Thomas que vem apoiada em um dado eloquente: quando Portugal fechou o acordo para receber o “resgate” de 78 bilhões, a relação dívida/PIB do país era de 107%. Agora, a expectativa é que ela suba para 118% até 2013. Na opinião do colunista do New York Times, isso não se deve ao fato de que a dívida de Portugal está crescendo, mas sim ao encolhimento da economia do país. “Sem crescimento, a redução da dívida torna-se quase impossível”, resume. Os números mais recentes ilustram bem essa tese. O PIB português caiu 1,5% em 2011, sendo que, no último trimestre do ano passado, a queda foi de 2,7%. A taxa de desemprego no país chegou a 13,6% e o governo admite que esses números não devem melhorar em 2012.



Grécia “ainda não reuniu todas as condições”

A resistência da Grécia em aceitar os termos exigidos pelo FMI e pela União Europeia está fazendo aumentar o tom das ameaças dirigidas contra o país. Os ministros de Finanças da zona do euro cancelaram uma reunião marcada para terça-feira (14) para discutir a situação grega alegando que o país “ainda não reuniu todas as condições” para conseguir um novo empréstimo. As autoridades monetárias europeias querem que o governo grego especifique em que áreas serão executados cortes para atingir a meta de 325 milhões anuais exigida pelo bloco europeu. O problema é onde cortar na penúria? A cobertura jornalística sobre a crise na Grécia e em outros países europeus é abundante em números, mas escassa em relatos sobre os dramas sociais cada vez maiores.

Uma exceção nessa cobertura é uma matéria da BBC que fala sobre como a crise financeira grega causou tamanho desespero em algumas famílias que elas estão abrindo mão dos próprios filhos. Há casos de abandono de crianças em centros de juventude e instituições de caridade em Atenas. “No último ano, relatou à BBC o padre Antonios, um jovem sacerdote ortodoxo grego, “recebemos centenas de casos de pais que querem deixar seus filhos conosco por nos conhecerem e confiarem em nós. Eles dizem que não têm dinheiro, abrigo ou comida para suas crianças e esperam que nós possamos prover-lhes isso”. Até há bem pouco tempo, a Aldeias Infantis SOS da Grécia costumava cuidar de crianças afastadas de seus país por problemas com álcool e drogas. Agora, o problema principal é a pobreza.



Crescem casos de abandono e desnutrição infantil

Segundo os responsáveis pelas Aldeias SOS está crescendo o caso também de crianças abandonadas nas ruas. De acordo com as estatísticas oficiais, 20% da população grega está vivendo na pobreza e cerca de 860 mil famílias estão vivendo abaixo da linha da pobreza. No final de janeiro, o governo grego anunciou que iria começar a distribuir vales-refeição para as crianças após quatro casos de desmaios em escolas por desnutrição. A medida, segundo o governo, seria aplicada principalmente nos bairros mais afetados pela crise econômica e pelo desemprego. Em um segundo momento, também receberiam os vales as famílias em situação econômica mais grave. “Há casos de alunos de famílias pobres que passam o dia todo na escola sem comer nada”, denunciou, em dezembro de 2011, Themis Kotsifakis, secretário geral da Federação de Professores de Ensino Médio.

Apesar desses relatos, para as autoridades do FMI, do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia, a Grécia ainda não reuniu todas as condições para receber uma nova ajuda. A perversidade embutida neste discurso anda de mãos dadas com o cinismo. No dia 24 de janeiro deste ano, Sonia Mitralia, membro do Comitê Grego contra a Dívida e do Comitê para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo (CADTM), denunciou, diante da Comissão Social da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, em Estrasburgo, a crise humanitária sem precedentes que está sendo vivida na Grécia. Segundo ela, as medidas de austeridade propostas pela troika representam um perigo para a democracia e para os direitos sociais.



“Dizimaram toda uma sociedade europeia para nada

Mitralia lembrou que as próprias autoridades financeiras admitem que, se suas políticas de austeridade fossem 100% eficazes, o que não é o caso, a dívida pública grega seria reduzida para 120% do PIB nacional, em 2020, ou seja, a mesma percentagem de 2009 quando iniciou o processo de agravamento da crise. “Em resumo, o que nos dizem agora cinicamente, é que dizimaram toda uma sociedade europeia...absolutamente para nada!”. Estamos vendo agora, acrescentou, “o sétimo memorando de austeridade e destruição de serviços públicos, depois dos seis primeiros terem provado sua total ineficácia. Assiste-se a mesma cena em Portugal, na Irlanda, na Itália, na Espanha e um pouco por toda a Europa, disse ainda Mitralia: afundamento da economia e das populações numa recessão e num marasmo sempre mais profundos.

Além do abandono de crianças e da desnutrição infantil, Mitralia aponta outros deveres de casa que estão sendo cobrados da Grécia e cuja execução é considerada insuficiente: o desemprego é de 20% da população e de 45% entre os jovens; as camas dos hospitais foram reduzidas em 40%; já não há nos hospitais públicos curativos ou medicamentos básicos, como aspirinas; em janeiro de 2012, o Estado grego não foi capaz de fornecer aos alunos os livros do ano escolar começado em setembro passado; milhares de cidadãos gregos deficientes, inválidos ou que sofrem de doenças raras tiveram seus subsídios e medicamentos cortados. Mas, para o FMI e a União Europeia, a Grécia ainda não está fazendo o suficiente...







Marco Aurélio Weissheimer – Jornalista – 15.02.2012

IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=19620          















Solidariedade com a Grécia alastra



Multiplicam-se as ações de solidariedade com o povo grego por toda a Europa. Para Lisboa e Porto, estão convocadas ações para a próxima segunda feira às 18 horas, no Largo de S. Domingos e Praça da Batalha, respetivamente.



Esquerda.net

Por toda a Europa estão a existir ações de solidariedade com o povo grego, a maior parte das quais convocadas através do facebook. Palavras de ordem como “Somos todos gregos” e “Grécia não estás só” têm sido gritadas em diversas línguas e cidades.

Para os próximos dias estão marcadas ações para:

Portugal - Lisboa, segunda feira 20 de fevereiro, às 18 horas no Largo de S. Domingos; Porto, segunda 20 de fevereiro, às 18 horas na Praça da Batalha; https://www.facebook.com/events/151000555019135/




Finlândia - Helsínquia (18/02) https://www.facebook.com/events/250535518360698/






Estados Unidos - Nova Iorque (18/02) Zuccotti Park



Iniciativas de solidariedade já realizadas:














Esquerda.net – 17.02.2012





quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Uma nova concepção para ensinar exatas



O erro é acreditar que a ciência e a matemática são pré-requisitos para a invenção; na verdade, são simultâneas a ela



Paulo Blikstein
Nos Estados Unidos, dos 3,7 milhões que entraram na primeira série em 1984, só 20% declararam interesse em carreiras em ciências exatas na sétima série, e 4,5% se formaram nessa área. Agora, o governo americano percebeu o óbvio e tenta remediá-lo: a escola afasta os jovens das carreiras científicas.
O ensino de ciências exatas nos EUA, como no Brasil, é uma longa preparação para a graduação nessas áreas, ignorando que só 5% vão cursá-las. Fazemos dele uma aborrecida sequência de tópicos sem utilidade ou função cognitiva.
Os alunos nunca fazem ciência ou engenharia de verdade, nunca se aventuram em descobrir algo novo ou resolver um problema real; aprendem só o "básico", que, em grande parte, ignora os avanços científicos dos últimos 50 anos. O resultado é que 80% não se identificam com as ciências exatas já na sétima série -época em que se forma a identidade intelectual da criança.
Um novo tipo de currículo ao mesmo tempo beneficiaria os que não serão engenheiros, já que terão uma experiência positiva com as exatas e não serão adultos com medo de matemática, e aumentaria o número de crianças interessadas em carreiras nos campos da ciência e da engenharia.
O erro é achar que a ciência e a matemática são pré-requisitos para a invenção; na verdade, histórica e cognitivamente, essas disciplinas são simultâneas à invenção. A história da ciência mostra que ela não avança no vácuo, mas sim para resolver problemas reais. É esse o motor cognitivo e motivacional que move o inventor, o cientista e, é claro, o aluno.
Além disso, mesmo um "mau" aluno em matemática pode ser um ótimo engenheiro. A engenharia está cada vez mais próxima do design e mais longe do modelo calculista. Os computadores fazem a "matemática" da engenharia, deixando para o profissional o trabalho criativo. Os currículos mais avançados do mundo estão substituindo habilidades aritméticas e memorização por modelagem matemática e resolução de problemas complexos.
Nossas escolas têm quadras para as aulas de educação física e bibliotecas para estimular a leitura, mas não instituímos um lugar para ensinar invenção, tecnologia e criatividade. É preciso um espaço apropriado para tanto. Em Stanford, criei o projeto FabLab@School: são laboratórios de invenção nas escolas, espaços permanentes, com professores especialmente treinados e materiais didáticos especializados.
Esses laboratórios contam com equipamentos de última geração, com a ajuda dos quais alunos criam projetos de engenharia e teorias científicas, colaborando com colegas espalhados pelo planeta. São lugares projetados para atrair todos os alunos, não exclusivamente os que já nutrem um pendor pelas ciências exatas.
O que escolhemos ensinar nas escolas é só uma parte do conhecimento existente. Teoricamente, ensina-se o que a sociedade acha mais importante, mas o que de fato sobrevive no currículo é o que é fácil de ser medido com provas e o que funciona com aula expositiva.
As vítimas são a ciência e a tecnologia, que só são devidamente aprendidas quando os alunos trabalham em projetos, fora da aula tradicional. Se não percebermos que o que precisamos ensinar no século 21 não se encaixa nesse modelo, ficaremos prisioneiros dos conteúdos que são ensináveis dentro dos limites dele -como algoritmos de aritmética hoje tão úteis como saber ler um relógio de sol.
Sem um lugar e alguns cursos especiais para a invenção e a criatividade, não se desenvolve o entusiasmo pela engenharia. E sem ele, há pouca esperança de que tenhamos mais engenheiros no século 21.




Paulo BlinksteinProfessor na Universidade Stanford – 25.09.2011

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Desemprego vai a 10,4% na zona do euro e bate recorde




Taxa de 2011 é a maior desde criação da moeda comum; Espanha, com 22,9% sem ocupação, tem o pior índice

Divulgação dos dados ocorreu um dia após líderes europeus terem aprovado pacto de austeridade fiscal



Rodrigo Russo

A taxa de desemprego nos 17 países que integram a zona do euro chegou no ano passado ao maior nível desde a criação da moeda: 10,4% da população economicamente ativa, divulgou ontem o órgão oficial de estatísticas da União Europeia.

Quando considerados todos os 27 países do bloco, o índice fica em 9,9%.

Em comparação com o fim de 2010, houve um aumento de 751 mil desempregados na zona do euro, cujo índice era de 10%; na União Europeia, o aumento foi de 923 mil pessoas, e o índice era de 9,5%.

As estatísticas mostram que há disparidades muito grandes entre os países do bloco, onde há cerca de 23,8 milhões de pessoas sem emprego, e aumentam o temor de recessão.

A Alemanha é um dos países com menor índice de desemprego: 5,5%. As menores taxas são as de Áustria (4,1%), Holanda (4,9%) e Luxemburgo (5,2%).

Por sua vez, a Grécia, que negocia com seus credores a redução do total de sua dívida, teve o maior salto no desemprego em comparação com o ano anterior: passou de 13,9% para 19,2%. Seu índice é inferior apenas ao da Espanha, onde há 22,9% de desempregados.



Jovens

Alemanha (7,8%), Áustria (8,2%) e Holanda (8,6%) detêm as menores taxas de desemprego entre jovens, enquanto Espanha (48,7%) e Grécia (47,2%) apresentam quase metade desse segmento da população sem nenhuma ocupação.

O anúncio das estatísticas veio no dia seguinte ao encontro dos líderes europeus em Bruxelas, onde eles aprovaram, sob a liderança da premiê alemã, Angela Merkel, o Mecanismo Europeu de Estabilidade, os termos do pacto de austeridade fiscal e adotaram discurso de crescimento e criação de empregos.

A questão é como os governos conciliarão medidas para aumentar a disciplina orçamentária e estímulos ao crescimento econômico.

O tratado prevê sanções de até 0,1% do PIB do país que não cumprir as regras fiscais.

O Reino Unido e a República Tcheca foram os únicos países que não aderiram ao acordo europeu.

Em discurso aos líderes no início da reunião, o presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, defendeu a adoção de um imposto de 0,05% sobre transações financeiras na zona do euro e a emissão de papéis de dívida pública conjunta, os chamados "eurobonds", para estabilizar a crise financeira.

No próximo encontro do Conselho Europeu, em março, quando o pacto fiscal será assinado, o tema do emprego deve ser central, mas a resposta precisa ser mais efetiva do que a de anteontem.





Desemprego na  Europa

União Européia
Zona do Euro
Áustria
Alemanha
Itália
França
Portugal
Grécia
Espanha
9,9
10,4
4,1
5,5
8,9
9,9
13,6
19,2
22,9



Situação em outras regiões

Reino Unido
Brasil
EUA
8,4
4,7
8,5

Fontes: Eurostat, Cia Factbook, DNS e IBGE



Rodrigo Russo – 01.02.2012





sábado, 18 de fevereiro de 2012

Os puristas e a mentira do "vale tudo"


Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis.

Marcos Bagno
Atenção! Cuidado! Alerta! Não acredite nos puristas que andam declarando nos meios de comunicação que os linguistas são defensores do “vale-tudo” na língua. Esse é mais um dos muitos argumentos falaciosos que eles utilizam para desqualificar os resultados das pesquisas científicas e as propostas de renovação da pedagogia de língua inspiradas em critérios mais racionais e menos dogmáticos, e em posturas políticas menos intolerantes e mais democráticas.
É claro que, numa perspectiva exclusivamente linguística, de análise da língua em seu funcionamento interno, tudo tem o seu valor. Afinal, como nada na língua é por acaso, então toda e qualquer manifestação linguística está sujeita a regras e tem sua lógica interna: não há razão para atribuir maior ou menor valor à forma linguística A ou à forma linguística B. Seria algo tão inaceitável quanto um zoólogo achar que as borboletas têm mais valor do que as joaninhas e que, por isso, as joaninhas devem ser eliminadas… Para o cientista da linguagem, toda manifestação linguística é um fenômeno que merece ser estudado, é um objeto digno de pesquisa e teorização, e se uma forma nova aparece na língua, é preciso buscar as razões dessa inovação, compreendê-la e explicá-la cientificamente, em vez de deplorá-la e condenar seu emprego.
Mas o linguista consciente também sabe que a língua está sujeita a avaliações sociais, culturais, ideológicas, e que precisa também ser estudada numa perspectiva sociológica, antropológica, política etc. Nessa perspectiva, existem formas linguísticas que gozam de maior prestígio na sociedade, enquanto outras – infelizmente – são alvo de estigma, discriminação e até de ridicularização. As mesmas desigualdades, injustiças e exclusões que ocorrem em outras esferas sociais – no que diz respeito, por exemplo, ao sexo da pessoa, à cor da pele, à orientação sexual, à religião, à classe social, à origem geográfica etc. – também exercem seu peso sobre a língua ou, mais precisamente, sobre modos particulares de falar a língua.
Essa análise que leva em conta fatores socioculturais e estrutura linguística desmente com todo o vigor as alegações de quem (de pura má-fé) acusa os linguistas de defender o “vale-tudo” na língua.
Assim, como já afirmei antes, nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.
Quem diz que os linguistas são defensores do vale-tudo está mentindo e precisa ser denunciado por calúnia e difamação! Muitos linguistas brasileiros há muito tempo vêm batalhando em favor do desenvolvimento e da democratização efetiva da educação em nosso país e, para isso, têm dado contribuições importantes aos projetos e programas educacionais em todos os níveis de ensino. Se tanta coisa já melhorou no ensino do português no Brasil, apesar das tantas deficiências ainda presentes, isso se deve em boa parte à reflexão e à ação dos linguistas e de outros profissionais.
Já recebi algumas mensagens desaforadas dizendo coisas do tipo: “por que você escreve tudo certinho em vez de usar as formas erradas que tanto defende?”. São manifestações de pessoas tão inconformadas com a mudança linguística (ou com a democratização das relações sociais) que, por isso, acabam distorcendo ou não querendo ler direito o que a gente escreve.
Se eu digo e afirmo e comprovo que o pronome cujo, por exemplo, está praticamente extinto na língua falada pelos brasileiros, isso não quer dizer que estou proibindo as pessoas de usar esse pronome quando bem quiserem, nem que eu mesmo vou deixar de usá-lo, nem que os professores na escola devem parar de ensinar esse pronome em suas aulas.
A língua é rica, é múltipla, é híbrida, é heterogênea, é variável, é mutante. Precisamos aprender a conviver com tudo isso e parar de imaginar que, na língua, as coisas estão organizadas na base do “sim” e do “não”, como num código de leis. Por isso, a mensagem que aqui pretendemos transmitir é sempre TANTO FAZ! – é sempre guiada pela luz democratizadora do TAMBÉM.




Marcos Bagno - Escritor, tradutor, linguista e professor - março de 2009

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

10 anos de Guantánamo: O prisioneiro e o procurador




Mais de 350 protestos foram realizados na semana do 10º aniversário de Guantánamo. Ainda permanecem lá 171 prisioneiros.



Amy Goodman

Há dez anos, Omar Deghayes e Monis Davis teriam sido vistos por qualquer um como um par estranho. Embora nunca se tivessem encontrado, partilham agora de uma ligação profunda, cimentada pelo tempo que passaram na notável prisão militar americana na Baía de Guantánamo, em Cuba. Deghayes esteve lá como prisioneiro. O Coronel da Força Aérea, Monis Davis esteve lá como procurador-geral das comissões militares de 2005 a 2007.

Deghayes foi preso no Paquistão e entregue às autoridades militares dos Estados Unidos. Ele contou-me: “Era feito um pagamento por cada pessoa que fosse entregue aos americanos. “…Éramos acorrentados, com a cabeça tapada, e a seguir enviados para Bagram [Afeganistão] – fomos torturados em Bagram – e depois de Bagram para Guantánamo.”

Em Guantánamo, Deghayes, um dos cerca de 800 homens que para ali foram enviados desde Janeiro de 2002, recebeu o tratamento modelo: “As pessoas eram submetidas a espancamento, amedrontadas diariamente, … sem nunca terem sido condenadas por qualquer crime.”

Enquanto Deghayes e os seus companheiros de prisão sofriam nas suas gaiolas, a administração Bush erigia um controverso quadro jurídico para processar os prisioneiros de Guantánamo. Rotulava-os de “combatentes inimigos”, argumentando que não tinham nenhuma proteção da Constituição norte-americana, nem quaisquer direitos nos termos da Convenção de Genebra. Guantánamo tornou-se num buraco negro legal.

Quando perguntei ao coronel Davis se ele achava que foi utilizada tortura em Guantánamo, ele respondeu:

“Não creio que haja qualquer dúvida. Eu diria que houve tortura. Susan Crawford, uma protegida de Dick Cheney, disse que houve tortura. John McCain, disse que afogamento simulado é tortura, e nós já admitimos que utilizamos afogamento simulado. Houve, pelo menos cinco juízes no tribunal federal e nos tribunais militares que disseram que os prisioneiros foram torturados”.

Acorrentados, mantidos em gaiolas vestidos com macacões laranja, sujeitos a interrogatórios duros e humilhações, com a sua fé muçulmana vilipendiada, os prisioneiros de Guantánamo começaram a oferecer resistência através da antiga tradição da não cooperação não violenta. Iniciaram então uma greve de fome. Em resposta, Deghayes e outros manifestantes foram usados como exemplos. Ele recorda: “Depois de me terem espancado na cela, arrastaram-me para fora, e depois um dos guardas, enquanto o oficial permanecia de pé, observando o que se estava a passar, [tentava] arrancar-me os olhos… Perdi a visão em ambos os olhos. Lentamente, recuperei de um deles, mas o outro piorou completamente. E foram fazer o mesmo na cela seguinte, e na seguinte e na seguinte…para amedrontar todos os outros e dissuadi-los de se manifestarem ou objetarem a quaisquer políticas.”

Deghayes agora vê apenas de um olho. O seu olho direito continua fechado. Após a sua libertação de Guantánamo, foi enviado para a Grã-Bretanha. Está a processar o governo britânico por ter colaborado na sua prisão e tortura.

O coronel Monis Davis, desgostoso com o processo do tribunal militar, demitiu-se do seu cargo em 2007, e em 2008 reformou-se da carreira militar. Foi trabalhar para o Serviço de Pesquisa do Congresso, Congressional Research Service. Depois de ter escrito um artigo de opinião crítico sobre o abraçar da administração Obama dos tribunais militares, que foi publicado no Wall Street Journal em 2009, Davis foi despedido.

Deghayes nota que centenas de homens que saíram de Guantánamo nesta última década foram libertados devido à pressão sobre os governos pelas campanhas dos movimentos populares. Por isso que mais de 350 protestos em separado foram realizados esta semana, no décimo aniversário de Guantánamo. Ainda permanecem lá cento e setenta e um prisioneiros, embora mais de metade tenha sido ilibado para libertação, mas definham de qualquer modo.

Para tornar tudo ainda pior, aquilo a que o coronel Davis chama de “um ato de completa cobardia”, o presidente Barack Obama assinou um Ato de Autorização de Defesa Nacional, dando ao governo americano o poder de deter qualquer pessoa, sem acusação, por um período de tempo indeterminado. Davis explica que “não é uma saída dramática do que tem sido a política dos últimos anos, mas agora é lei”.

Podíamos imaginar um movimento “Ocupar Guantánamo, mas isso seria redundante. Os Estados Unidos ocupam Guantánamo desde 1903. Como mantêm um embargo esmagador sobre Cuba há mais de meio século, provavelmente porque não gostam das suas políticas, podia esperar-se que apresentassem um comportamento modelo no seu pequeno pedaço de Cuba. Mas fazem precisamente o oposto. É por isso que os movimentos populares são tão importantes. Com a corrida presidencial dos Estados Unidos a aquecer, podemos ter a certeza de que o partido Republicano e o partido Democrático irão estar de acordo em Guantánamo.





Amy Goodman – Co-fundadora da rádio Democracy Now, jornalista norte-americana e escritora – 25.01.2012

Dennis Moyniham contribuiu com pesquisa para esta coluna

Tradução de Noémia Oliveira para o Esquerda.net



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Os novos retirantes de uma década de prosperidade


A cartografia do IBGE, por fim, apresenta um país mais equilibrado espacialmente, traduz o avanço econômico do país ao longo da última década e parece apontar para o futuro do qual sempre se falou como o destino manifesto do Brasil. Uma boa nova, prova de que o país é resistente ao fisiologismo e patrimonialismo que tomou conta da mentalidade de uma boa parte de sua classe dirigente.

Editorial Valor
Divulgada no fim de semana passado, a pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) traz boas notícias, num ambiente contaminado por denúncias de corrupção no Ministério dos Transportes.
Denominada "Reflexões sobre os Deslocamentos Populacionais no Brasil", a pesquisa do instituto, em primeiro lugar, confirma uma tendência: reduziu-se o deslocamento populacional no país, mais provavelmente devido à desconcentração do crescimento econômico.
Trata-se de uma explicação forte, quando se constata que foram as cidades médias, localizadas ao longo das rodovias, aquelas que ganharam mais habitantes. Em contrapartida, em Estados como São Paulo e Rio de Janeiro mudaram de perfil, passando a exportar mais que importar habitantes de outras regiões como o Nordeste.
Os números do IBGE não deixam margem a dúvidas. No fim do século passado, o Censo 2000 registrou que 5,1 milhões de pessoas migraram de um Estado para o outro nos cinco anos anteriores à pesquisa. Em 2004, a PNAD contabilizou 4,63 milhões de migrantes, número que caiu para 3,24 milhões em 2009.
Na prática, cerca de 1,8 milhão de pessoas a menos trocaram de Estado, em nove anos, em busca de trabalho, fugindo da violência das grandes cidades ou simplesmente por razões climáticas, como as secas nordestinas, que no passado longínquo eram responsáveis por deslocamentos humanos bíblicos, como Portinari imortalizou em sua tela os "Retirantes", de 1944.
Em termos percentuais, nesse período, a queda no número de pessoas que mudaram de Estado é de 37,5%, de acordo com o trabalho organizado pelos pesquisadores Luiz Antonio Pinto de Oliveira e Antônio Tadeu de Oliveira, cuja íntegra pode ser acessada no site do IBGE na internet. Os novos polos de atração passaram a ser as médias cidades.
A mudança nos fluxos migratórios é uma tendência inicialmente detectada pelo Censo Demográfico 1991. Já então os pesquisadores do instituto apontavam "algumas transformações no comportamento dos fluxos que antes predominavam no Brasil, como o arrefecimento das migrações do Nordeste para o Sudeste e algumas reversões nos saldos migratórios das Unidades da Federação".
Evidentemente que as transformações econômicas contribuíram de maneira importante para a mudança da dinâmica migratória. As pessoas atualmente percorrem distâncias mais curtas, dentro da mesma região, em vez de trocar de Estado. Veja-se o caso de São Paulo: em 2000 havia 340 mil imigrantes a mais que paulistas que partiram para fixar moradia em outros Estados. Em 2004, havia 155 mil emigrantes a mais - muitos deles imigrantes que voltaram a seu lugar de origem.
A última década, de acordo com a fotografia do IBGE, registra que as cidades médias, especialmente aquelas localizadas ao longo de rodovias, ganharam mais habitantes do que as capitais das nove regiões metropolitanas, que no passado alavancavam o avanço populacional. Os municípios com 500 mil habitantes ou mais aumentaram em quantidade quando comparados com o ano de 2000, passando de 31 para 38. Mas foram aquelas com menos de 500 mil pessoas as cidades que mais cresceram.
Pelo mapa demográfico do Brasil desenhado pelo IBGE, o Brasil "apresenta alguns eixos de crescimento espalhados pelas diversas regiões". São configurações que surgem de "atividades econômicas complexas que articulam atividades agrícola e industrial diversificadas, com infraestruturas sofisticadas para produção, armazenagem, distribuição e circulação de produtos e serviços". De um modo geral - articulam os técnicos do IBGE - "seriam aglomerações urbanas, áreas de agricultura moderna e de expansão agrícola e exploração mineral, centros urbanos isolados, entre outras formas".
A cartografia do IBGE, por fim, apresenta um país mais equilibrado espacialmente, traduz o avanço econômico do país ao longo da última década e parece apontar para o futuro do qual sempre se falou como o destino manifesto do Brasil. Uma boa nova, prova de que o país é resistente ao fisiologismo e patrimonialismo que tomou conta da mentalidade de uma boa parte de sua classe dirigente.


Editorial Valor – 20.07.2011
IN “Valor Econômico” – http://www.valoronline.com.br/impresso/opiniao/98/458935/os-novos-retirantes-de-uma-decada-de-prosperidade