O julgamento de agentes do Estado teria impactos
materiais e imateriais poderosos também para as famílias – tanto das vítimas,
quanto dos vitimadores –, reparando uns e quitando glórias indevidas de
outros.
A busca da verdade sobre o passado consiste, mais do
que na vergonha de alguns, em um alento contra toda uma escola de impunidade e truculência
estatal.
Otávio D. S. Ferreira
A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, proferida no dia 24.11.2010, que condenou o Estado brasileiro no caso da Guerrilha do Araguaia ressuscita a discussão sobre a violência estatal da Ditadura brasileira, ostenta o condão de revogar a lei da anistia e traz à tona verdades convenientes.
A Corte reconheceu por unanimidade que o Brasil é responsável pelo desaparecimento forçado de sessenta e duas pessoas, detenção arbitrária e ilegal, tortura e morte e falta de investigação dos fatos, situação que viola uma série de direitos e garantias judiciais como o direito à vida, à integridade pessoal, ao reconhecimento da personalidade jurídica, ao devido processo, à falta de acesso à justiça, à informação e à verdade. Entre as punições impostas ao Brasil, destacam-se os deveres de: conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos a fim de esclarecê-los e punir os responsáveis; esforçar-se para localizar as vítimas desaparecidas, identificando os mortos e entregando seus restos para familiares; realizar ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos; implementar programas de educação das forças armadas em direitos humanos; tipificar o delito de desaparecimento forçado; produzir informações relativas às violações de direitos humanos em relação a esse episódio; e pagar indenizações aos familiares e vítimas.
O que mais inova tecnicamente nessa decisão é seu potencial de coerção. De acordo com julgamento recente do STF relativo à prisão do depositário infiel, os tratados de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário têm força hierárquica legal superior às leis comuns, embora menor do que a Constituição. Como o Brasil ratificou expressamente seu reconhecimento à competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos para firmar a última palavra quando o assunto tratasse de tais direitos, significa que a decisão sobre o caso Araguaia tem natureza de norma superior à Lei de Anistia, revogando seu artigo primeiro e permitindo a persecução civil, administrativa e penal dos autores de crimes de lesa-humanidade e o esclarecimento da verdade. A decisão deve ser cumprida e nem mesmo a estranha decisão do STF de abril de 2010, que considerou constitucional a lei de anistia, permite entendimento diferente, porque a realidade legal agora é nova, conforme a Constituição e resulta de compromisso voluntário do país perante a comunidade internacional, no exercício de sua soberania.
Entre as determinações da condenação, a Corte ressaltou que a Lei de Anistia não pode servir de empecilho à investigação e punição dos responsáveis pelas violações, por ser incompatível com a Convenção Americana. A Lei 6.683, de 1979, representou, para a época, uma conquista contra o regime ditatorial por beneficiar alguns dos perseguidos e presos políticos no momento em que as bases de sustentação do Governo estavam ruindo. Mas não se pode afirmar que foi propriamente fruto de uma negociação com a sociedade civil, uma vez que não havia paridade de forças. Se por um lado era uma das medidas da agenda de abertura política “lenta, gradual e segura” que estava em curso, por outro atendia aos interesses dos militares ao consagrar a impunidade aos autores de crimes contra a humanidade em uma ordem jurídica ilegítima, cujo nascimento se dera através de um golpe de Estado na democracia constitucional instaurada em 1946. Tanto que o alcance da anistia foi parcial, não alcançando muitos dos presos políticos que permaneceriam na clausura.
Muitos juristas polemizam em torno da prescrição dos delitos perpetrados naquela época. Mas o voto do Juiz “ad hoc” Roberto de Figueiredo Caldas, na decisão referida, lembra que a Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1968, adotou a Convenção sobre a Imprescritibilidade de Crimes de Guerra e Contra a Humanidade. O Brasil a assinou, embora depois não a tenha ratificado. Todavia, o Magistrado ensina que uma característica peculiar desse tratado é a de apenas reconhecer aquilo que o costume internacional já determinava, sendo apenas consolidadora de Direito já existente. E o costume é consagrado no direito internacional como fonte de grande importância. Assim foi o entendimento da própria Corte Interamericana, quando do julgamento do Caso Almonacid, elevando a imprescritibilidade desses delitos à categoria de norma de direito internacional geral.
A professora Flávia Piovesan adverte para o fato de que praticamente toda a América Latina já reviu suas leis de anistia, menos o Brasil. Cita, na jurisprudência internacional, o Caso Barrios Altos, como paradigmático na Corte Interamericana no sentido de condenar o Peru a anular sua Lei de anistia. No mesmo sentido orientam-se duas decisões similares da Comissão interamericana de Direitos Humanos em relação às leis de Argentina e Uruguai e um “General Comment” adotado pelo Comitê de Direitos Humanos em 1992, este no âmbito da Organização das Nações Unidas (“Direitos Humanos e Justiça Internacional”, fls. 108 e 111).
Talvez mais relevante para a sociedade do que condenar penalmente criminosos de idade bem avançada que agiam em nome do Estado – quando já desfrutariam de benefícios legais em razão da própria senilidade, e provavelmente já nem teriam tempo hábil de vida para cumprir as reprimendas que merecem – está o resgate e a divulgação da história e seu valor pedagógico.
A criação da ‘Comissão da Verdade’ – conforme projeto enviado ao Congresso Nacional em maio de 2010 – auxiliaria o cumprimento da decisão da Corte Internacional, bem como o esclarecimento de muitos outros crimes cometidos em todo o país durante o período da ditadura militar.
O esquecimento das barbaridades cometidas pelo Estado no período ditatorial produz o fenômeno da tautologia – repetição do mesmo. Isso é notório, por exemplo, nos recorrentes usos da tortura como instrumento de investigação e da violência policial contra manifestações sociais pacíficas.
Sobre a importância social da memória, é bem vinda a lição de Herbert Marcuse, ao advertir-nos sobre seu poder subversivo, sua capacidade de libertação e redenção do passado, permitindo um novo futuro com transgressão destrutiva. A “verdade histórica” teria o condão de denunciar o caráter irracional da ordem estabelecida, contribuindo para reduzir a ignorância, a brutalidade e a opressão (“Eros e Civilização”, p. 112, e “A ideologia da Sociedade Industrial”, p. 104 e 140).
O julgamento de agentes do Estado teria impactos materiais e imateriais poderosos também para as famílias – tanto das vítimas, quanto dos vitimadores –, reparando uns e quitando glórias indevidas de outros.
Incomodados com a repercussão da decisão da Corte Interamericana, defensores dos criminosos militares – e eles próprios – já se insurgem contra, praguejando pela investigação dos crimes dos dois lados, pretendendo justificar a violência que praticaram, a partir da violência perpetrada pelos movimentos armados de rebeldia que combatiam. Vladimir Safatle esclarece que essa retórica se baseia na “teoria dos dois demônios”, a qual visa, em última instância, perpetuar a impunidade. Recorda o fato de que não existiam grupos de luta armada no Brasil antes do Golpe militar, sendo eles “resultado direto do fechamento das vias políticas de transformação”. E conclama a tese do direito de resistência da teoria política liberal, segundo a qual “toda ação contra um governo ilegal é uma ação legal”. (“Dois Demônios”, Folha de São Paulo, 11.01.11).
Os torturadores de outros tempos atingiram os maiores graus hierárquicos em suas corporações, reproduzindo uma cultura de reprimenda aos direitos humanos nas gerações que lhes sucederam. Depois de apenas condecorações e louros angariados por anos a fio, eis uma oportunidade para se deter essa lógica. A busca da verdade sobre o passado consiste, mais do que na vergonha de alguns, em um alento contra toda uma escola de impunidade e truculência estatal.
Otávio D. S. Ferreira – Dezembro 2011.
IN “Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais”, ano 25, No. 78 – http://www.torturanuncamais-rj.org.br/jornal/gtnm_78/index.html