terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Os números nunca mentem?


A falta de um padrão nacional na classificação das causas de morte dos corpos encontrados abala a confiança nas estatísticas criminais.

Rodrigo Martins
Na segunda-feira 13, o Instituto de Segurança Pública (ISP) festejou mais uma queda na taxa de homicídios do Rio de Janeiro. De acordo com a entidade, responsável por produzir as estatísticas criminais do estado, ocorreram 403 assassinatos em abril, uma redução de 6,7% em relação ao mesmo período do ano passado. Por outro lado, o número de cadáveres encontrados pela polícia subiu de 45, em abril de 2010, para 60 no mesmo mês deste ano, um aumento de 33%. Esses corpos, ao menos oficialmente, não tiveram a circunstância da morte determinada e, por isso, não foram incluídos no somatório de assassinatos.
Não é possível dizer que esse acréscimo no número de cadáveres sem a causa da morte especificada possa interferir na tendência de redução dos homicídios no estado. Mas o fenômeno preocupa organizações de direitos humanos. “Há muitas formas de se maquiar dados criminais, uma delas é classificar uma morte como ‘indeterminada’. Há alguns anos pesquisamos os laudos necroscópicos de alguns desses corpos e descobrimos que muitos tinham sinais de execução”, afirma Sandra Carvalho, diretora da ONG Justiça Global.
A desconfiança com as estatísticas de criminalidade do Rio de Janeiro ganhou destaque nos últimos meses após o diagnóstico de uma distorção nos dados estaduais incluídos no Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde. Apesar da expressiva redução das taxas de homicídio, o número de mortes violentas com “intenção indeterminada” triplicou nos últimos anos. São mortes decorrentes de causas externas (e não doenças), mas não esclarecidas. Isto é, quando não se sabe se o indivíduo foi vítima de assassinato, acidente ou suicídio.
De acordo com o banco de dados do Ministério da Saúde, alimentado pelas secretarias municipais de Saúde, o estado teve 1.673 mortes violentas sem causa especificada em 2006. No ano seguinte, o primeiro do governo Sérgio Cabral (PMDB), elas subiram 90% (3.174 ocorrências). Em 2009, esse tipo de registro chegou a 5.637 casos. Isso significa que, neste ano, pelas estatísticas oficiais, houve o registro de mais mortes “indeterminadas” que homicídios confirmados (4.189).
Por meio de nota, a subsecretária de Vigilância em Saúde do Rio, Hellen Miyamoto, informou que a secretaria assinou, há dois meses, convênio com o ISP “justamente para esclarecer a causa dessas mortes”. Segundo ela, os casos relacionados aos anos de 2009 e 2010 serão reavaliados.

Há três anos, a antropóloga Ana Paula Miranda foi exonerada da direção do ISP após a entidade ter registrado um número recorde de mortos pela polícia. Em seu lugar foi nomeado o ex-comandante do Bope- (Batalhão de Operações Especiais) e atual comandante da Polícia Militar, Mário Sérgio Duarte. A CartaCapital a antropóloga afirmou desconhecer qualquer indício de manipulação dos dados após a sua saída. Mas descreveu algumas das situações que vivenciou nos quatro anos em que esteve à frente do instituto.
“O número de mortes indeterminadas deveria ser residual, e não era. Ao investigar os laudos periciais desses cadáveres, descobríamos que muitas pessoas foram vítimas de tortura, de disparos de arma de fogo ou esfaqueadas: eu encaminhava os casos à Corregedoria da Polícia e pedia a reclassificação da morte para homicídio”. Segundo a especialista, dezenas de casos foram reclassificados graças à intervenção de pesquisadores do ISP anualmente.

Hoje, sob a chefia de outro coronel da PM, Paulo Teixeira, o ISP garante que todos os seus dados são auditados, não apenas pela Corregedoria da Polícia, mas também por especialistas do instituto. “É natural o questionamento dos critérios que usamos para definir o que é homicídio, mas não podem nos acusar de manipulação. Muitos nos contestam por separar o número de mortes causadas pela polícia, mas este é um indicador importante para aferir a letalidade das forças de segurança. Quem quiser considerar homicídio e incluir na soma, pode fazer isso”, afirma Renato Dirk, analista criminal do ISP.
A situação do Rio não é um caso isolado. Na realidade, não existe uma norma que defina parâmetros nacionais para o registro e a compilação das estatísticas de criminalidade. Por isso, cada instituto ou órgão público segue a sua própria metodologia. “Isso torna inviável a comparação de dados estatísticos entre os estados. O que está sendo avaliado como homicídio em São Paulo pode estar sendo desconsiderado no Acre ou na Bahia”, afirma Renato Lima, secretário-geral do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que publica anualmente um balanço estatístico com os principais indicadores de criminalidade. Para montar as tabelas comparativas, os pesquisadores do Fórum separam os dados em dois grupos: aqueles com sistemas de informação mais confiáveis, sobretudo os estados do Sul, Sudeste e Centro Oeste, e aqueles com base estatística mais precária, em sua maioria os estados do Norte e Nordeste. “Essa diferenciação é necessária porque muitas regiões produzem dados defasados e de qualidade duvidosa. É preciso reconhecer os esforços de muitos governos, mas a situação ainda é crítica.”
Mesmo em estados com bancos de dados considerados confiáveis, um leigo pode se perder diante de tantas estatísticas diferentes sobre um mesmo fenômeno. Em Minas Gerais, há três indicadores oficiais de homicídios, um da Secretaria de Defesa Social, outro da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e mais um do Ministério da Saúde. Nas três bases de dados, o número de assassinatos pode variar entre 2.812 e 4.108 (tabela à pág. 48).

Apesar da discrepância entre os indicadores, as diferenças se devem a questões metodológicas. Para contabilizar as mortes violentas, a Senasp trabalha com as informações dos boletins de ocorrência da Polícia Civil. Apenas quando o delegado registra o crime como “homicídio doloso ou roubo seguido de morte (latrocínio)”, conforme as especificações do Código Penal, o dado é considerado. Além disso, a estatística não costuma levar em conta o número de vítimas, e sim de ocorrências. A chacina na escola de Realengo resultou na morte de 12 crianças em abril. Mas, nos registros do Ministério da Justiça, pode ser contabilizada como um único homicídio.
A secretária nacional de Segurança Pública, Regina Miki, reconhece a precariedade dos dados. “Nosso sistema depende das informações dos estados, que usam critérios diferentes, normalmente aqueles que mais interessam aos respectivos governos”, afirma, sem citar exemplos.

 

Segundo Miki, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardoso, visitou 15 estados brasileiros e pretende percorrer todos os demais até o fim de julho para discutir um plano de redução dos homicídios no País, hoje na casa dos 50 mil por ano. Esse plano inclui a formação de um Sistema Único de Segurança Pública, com uma base de dados alimentada em tempo real pelos estados. “O maior esforço é o de pactuar com os governadores uma metodologia única de registro e tratamento das estatísticas, fazer com que todos os estados adotem os mesmos critérios. Esse projeto poderá vincular a destinação de recursos federais à alimentação do banco de dados nacional, a exemplo do que ocorre no SUS.”
Apesar de seguir uma lógica epidemiológica, os dados de violência coletados pelo Ministério da Saúde são referências importantes para os analistas criminais. Todas as mortes provocadas por causas externas e com sinais de violência, como disparos de arma de fogo e ferimentos causados por arma branca, são contabilizados como “mortes por agressão”. O registro é feito com base nas certidões de óbito e nos laudos do Instituto Médico Legal. Dessa forma, a estatística consegue captar com mais precisão o número de brasileiros assassinados, sobretudo porque também contabiliza as vítimas que faleceram algum tempo depois da ocorrência policial.
Mas esse indicador possui as suas limitações. Uma delas é a inclusão, numa mesma categoria, de tipos penais diferentes, como homicídios dolosos e lesões corporais seguidas de morte. Além disso, quando a certidão de óbito não especifica a circunstância da morte (homicídio, suicídio ou acidente), o caso é cadastrado pelas secretarias municipais de Saúde como morte de “intenção indeterminada”. Nesses casos, a cartilha oficial recomenda reavaliação dos casos, ao menos uma consulta mais criteriosa ao laudo necroscópico para verificar se, de fato, não se trata de homicídio.
O elevado número de mortes sem causa especificada indica, porém, que nem sempre a norma é cumprida. Entre 2006 e 2008, a taxa anual de homicídios passou de 49.145 para 50.133 no Sistema de Informações sobre Mortalidade. Já as mortes indeterminadas passaram de 9.147 para 12.056 no mesmo período. Em 2009, o indicador chegou a alarmantes 15.603 casos, embora os técnicos do Ministério da Saúde destaquem que os dados desse ano são preliminares e podem ser revisados. “Trata-se de uma base de dados em constante atualização”, enfatiza Otaliba Libânio, diretor do Departamento de Análise.
Na avaliação de Claudio Beato, coordenador do Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública da UFMG (Crisp), os problemas em registros de crimes sexuais e contra o patrimônio são ainda mais graves. “A subnotificação de furtos e assaltos pode chegar a 80% no Brasil. Muitas vítimas desistem de denunciar, seja por não confiar na polícia, seja porque o atendimento nas delegacias é precário.” O Crisp e o Instituto Datafolha estão em campo para fazer a primeira pesquisa nacional de vitimização da população brasileira. Cerca de 75 mil entrevistas foram realizadas e os pesquisadores esperam preencher 90 mil questionários até o fim do ano. “Ao ouvir a população, será possível contrapor as informações das vítimas com os dados oficiais apresentados pelo governo e identificar eventuais contradições.”


Rodrigo Martins – Jornalista – 05.07.2011





Crimes invisíveis: boletins distorcem

estatística de homicídio



Casos de assassinato são registrados pela polícia paulista como "morte a esclarecer" ou "encontro de cadáver"


Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu (17.01.2005)
Em um espancamento com morte, nomes e apelidos de suspeitos de praticar o crime são relacionados. Em outro caso, depois de uma denúncia anônima de assassinato, um corpo é encontrado enterrado com uma lesão na cabeça. Em um terceiro local, onde outro jovem é encontrado morto, é descrita uma cena montada para simular um suicídio.
Todas os dados acima estão em boletins de ocorrência registrados por policiais civis de São Paulo, com a assinatura de um delegado. Apesar das evidências existentes no momento da elaboração do boletim, nenhum desses casos foi registrado como homicídio doloso (com intenção). Com isso, ficaram de fora das estatísticas oficiais sobre esse tipo de crime na gestão do governador Geraldo Alckmin (PSDB).
No cabeçalho dos boletins, no item "natureza" da ocorrência, aparecem "encontro de cadáver" e "morte a esclarecer". Essas classificações -destinadas a casos em que não há sinal externo de violência e a vítima poderia ter sofrido morte natural- fazem com que esses registros entrem na categoria estatística das "ocorrências não-criminais".
A Folha identificou 14 boletins de 2004 nos quais, segundo especialistas e a Ouvidoria Geral da Polícia de São Paulo, o registro de encontro de cadáver ou morte a esclarecer é contraditório com as evidências de assassinato listadas pelos próprios policiais no mesmo documento (veja quadros na página C3). A imprensa não tem acesso ao sistema informatizado de boletins, o que permitiria uma pesquisa mais ampla.
A reportagem também entrevistou familiares de vítimas e testemunhas citadas nos boletins, que afirmaram ter visto lesões ou outros indícios de homicídio doloso, o que garantiria a inclusão dos crimes nas estatísticas.


Distorção

Integrantes do IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais) e do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo), além do ouvidor-geral da polícia paulista, Itajiba Farias Ferreira Cravo, dizem que não há dúvidas de que os documentos foram preenchidos incorretamente, de propósito ou não.
O resultado disso, segundo eles, é o mascaramento das estatísticas de homicídios dolosos no Estado. A Secretaria Estadual da Segurança Pública nega que tenha havido erro no preenchimento dos BOs.
Os boletins de ocorrência são a base para a elaboração das estatísticas criminais. Oficialmente, os homicídios dolosos estão queda. Os primeiros nove meses de 2004 apontaram 6.855 casos no Estado -é o menor índice em pelo menos dez anos.
A estatística é mencionada pela Secretaria da Segurança Pública como um sinal da diminuição da criminalidade e do aumento da eficácia da sua polícia.
"Existe uma incoerência clara entre a natureza definida e o histórico registrado", afirma o presidente do IBCCrim, Maurício Zanóide de Moraes.
Para ele, existem três explicações possíveis para essa incoerência: má-fé (com o objetivo de maquiar estatísticas), negligência ou incompetência.
No primeiro caso, Moraes lembra que, nos últimos anos, aumentou a importância das estatísticas sobre o trabalho policial. De um lado, o governo quer baixar os índices para mostrar controle da criminalidade. De outro, policiais também passaram a ser mais cobrados para cumprir metas de redução de crimes.


Dupla informação

Segundo Moraes, isso pode explicar a incoerência entre a natureza da ocorrência e as informações do histórico. "[O boletim] engana a estatística, mas conta a verdade para a equipe que vai investigar o caso", afirma o presidente do IBCCrim.
Ele também acredita que a negligência e até a incompetência de alguns policiais podem explicar esses erros. "Mas só um levantamento estatístico completo, com tendências anteriores, poderá esclarecer isso", afirma.
Para Wânia Pasinato Izumino, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência da USP (Universidade de São Paulo) e doutora em sociologia, o erro nos boletins é indiscutível e é mais um fator que coloca em xeque a credibilidade das estatísticas criminais em São Paulo. "A polícia não tem padronização para nada."
Dos 14 boletins de ocorrência identificados pela reportagem, seis se referem a mortes ocorridas na capital paulista, sete na Grande São Paulo e um no interior paulista -todas as divisões territoriais adotadas pela secretaria para a elaboração das estatísticas.



Exceção

"O que se pode dizer é que, no mínimo, está se trabalhando de maneira equivocada e utilizando uma exceção [morte a esclarecer e encontro de cadáver] onde claramente há um tipo penal", afirma o ouvidor-geral da polícia de São Paulo. Para ele, só uma investigação caso a caso vai mostrar se houve dolo -intenção de burlar as estatísticas.
"Isso pode ser só a ponta do iceberg", alerta o delegado aposentado Roberto Maurício Genofre, ex-corregedor da Polícia Civil e professor da Academia de Polícia, também integrante da diretoria do IBCCrim.
"As estatísticas criminais são uma caixa preta, o que permite que eles [o governo] vivam sem controle", afirma Genofre, que também é professor de direito na PUC (Pontifícia Universidade Católica) de São Paulo. Segundo ele, a falta de acesso impede que as estatísticas sejam contestadas.

Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu – “Folha de São Paulo” – 17.01.2005




Secretaria barrou pesquisa sobre BOs


Núcleo de Estudos da Violência pretendia analisar, entre outros pontos, eventuais distorções nas estatísticas


Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu (17.01.2005)
Casos de encontro de cadáver e morte a esclarecer eram um dos alvos de uma pesquisa do Núcleo de Estudo da Violência da USP (Universidade de São Paulo). Mas a coleta de dados pelos pesquisadores em distritos policiais de São Paulo está suspensa desde 2003.
Segundo a pesquisadora Wânia Pasinato Izumino, doutora em sociologia, policiais dos distritos informaram que receberam determinação da Secretaria da Segurança Pública de não permitir mais o acesso aos dados de boletins e inquéritos.
Com a supervisão de Sérgio Adorno, coordenador do núcleo, a pesquisa pretendia medir a taxa de impunidade penal. Para isso, seriam acompanhados crimes violentos ocorridos entre 1991 e 1999, dos primeiros registros policiais até as sentenças judicias.
Segundo Wânia Izumino, os registros de encontro de cadáver e morte a esclarecer foram incluídos na pesquisa depois de denúncias de suposta maquiagem de boletins. "Poderia ser um desvio. Por isso, incluímos esses casos."
A coleta de dados em 14 distritos e duas delegacias de defesa da mulher da Seccional Oeste de São Paulo começou em dezembro de 2001, com autorização do então secretário da Segurança Pública, Marco Vinicio Petrelluzzi - Saulo de Castro Abreu Filho assumiu o cargo em janeiro de 2002. A primeira fase incluía a pesquisa dos livros de registros -listagens das ocorrências de inquéritos.
Em junho de 2003, porém, os pesquisadores foram informados pelos policiais que o acesso aos dados havia sido suspenso, segundo a pesquisadora. Ela diz que a secretaria exigia todos os resultados da primeira fase da pesquisa. Essa solicitação significava, na opinião dela, uma tentativa de controle do trabalho científico.
"Isso é uma afronta. Já tínhamos passado a metodologia, os pesquisadores responsáveis e os objetivos. Temos de prestar os dados brutos para a fundação financiadora. Não temos de prestar contas para a secretaria do que é feito com dados públicos", afirma a pesquisadora.
Segundo ela, o NEV encaminhou, em meados de 2004, novo ofício reforçando as informações sobre objeto e metodologia, mas até agora não houve resposta.
A pesquisadora diz que não houve tempo para analisar os casos de morte a esclarecer e encontro de cadáver. Mas foi possível tomar algumas conclusões no trabalho. "O preenchimento [do boletim] não tem padrão nenhum. É feito a partir da cabeça do escrivão", afirma. A proibição do acesso prejudicou a pesquisa, que já deveria estar na fase de conclusão, mas apresenta hoje várias lacunas, segundo Wânia Izumino.
A Secretaria da Segurança Pública afirma que a pesquisa está paralisada porque o NEV não encaminhou informações solicitadas, como metodologia, objetivos e dados sobre a primeira fase. O órgão diz que avisou o núcleo sobre isso, mas não teve retorno. A secretaria diz ainda que tem interesse na realização da pesquisa.
De acordo com o coordenador da CAP, Túlio Kahn, que já foi pesquisador do NEV, o governo estaria abrindo uma exceção se não exigisse as informações dos pesquisadores. Segundo ele, as mesmas exigências são feitas a outras instituições de pesquisa do país e do exterior.



Gilmar Penteado & Alexandre Hisayasu – Jornalistas – 17.01.2005