como é possível que todas as diferentes perspectivas políticas, religiosas e culturais estejam de acordo sobre os direitos humanos? O conflito que cessou no mundo é a luta de classes e o conflito ideológico aberto? Pois todos nós aceitamos a mesma visão de mundo? Obviamente que não. Isso significa que tanto os direitos humanos não têm nenhum significado comum ou determinado (eles são um estreito conceito indeterminado) ou que são usados para descrever diversos fenômenos, instituições e ideologias.
Costas Douzinas
Os direitos humanos parecem ter triunfado no mundo. Eles unem inimigos tradicionais, a esquerda e a direita, o norte e o sul, a igreja e o estado, o ministro de governo e o rebelde. De acordo com os defensores da nova ordem mundial, com a derrota do comunismo, o capitalismo e a democracia de baixo nível são os únicos jogos disponíveis e os direitos humanos são sua nobre idéia.
A celebrada nova ordem mundial tem trazido a ramificação global do agressivo capitalismo global. Sua ascensão coincidiu com a emergência de duas importantes tendências: cosmopolismo e o momento pós-político. O cosmopolitismo, uma antiga e nobre filosofia foi ressuscitado para dar um rosto humano, para humanizar a propagação catastrófica do neoliberalismo. Isso aconteceu no momento em que a conclusão do processo de descolonização e do aumento do poder do mundo em desenvolvimento criou a perspectiva de uma defesa bem sucedida de seus interesses. A reação ocidental foi a imposição de políticas econômicas, culturais, jurídicas e militares que tentam reafirmar a sua hegemonia.
Economicamente, a OMC, o FMI e o consenso de Washington exportaram o capitalismo neoliberal global: estados em desenvolvimento tiveram de abrir o seu setor financeiro, privatizar e desregulamentar e abaixar os níveis de gastos sociais. Estas elites políticas criaram os super-ricos, mas prejudicaram o desenvolvimento.
Se o capitalismo globalizado uniu o mundo econômico e político, estratégias jurídicas e militares vêm construindo um quadro comum simbólica, ideológica e institucionalmente. Seus sinais estão por toda parte. Nas guerras humanitárias, sanções econômicas foram impostas várias vezes para proteger os países e as pessoas de seus maus governos. Direitos humanos e cláusulas de boa governança são rotineiramente impostas pelo Ocidente sobre os países em desenvolvimento como condição para acordos comerciais e de ajuda. Os direitos humanos são a ideologia após o final muito alardeado de ideologias, a utopia “última” após o final da história.
É por isso que precisamos pensar de forma crítica os direitos humanos. Seu triunfo é cheio de paradoxos e contradições. Em nenhum outro momento na história humana recente, fora da Segunda Guerra Mundial, tantas pessoas foram mortas, houve tanta fome, tantos foram torturados, submetidos a dominação e exploração. O fosso entre o Norte e o Sul e entre ricos e pobres nunca foi tão grande. As Nações Unidas informaram em 16 de outubro de 2010 que bem mais de um bilhão de pessoas não têm comida suficiente. A expectativa de vida é superior a 80 anos no norte da Europa, enquanto na África sub-saariana é de 33 anos. A renda per capita anual de um palestino é de $680,00 dólares e de $26,000 dos israelenses. Se os direitos humanos triunfaram, este é um triunfo afogado em desastre.
O segundo paradoxo é este: como é possível que todas as diferentes perspectivas políticas, religiosas e culturais estejam de acordo sobre os direitos humanos? O conflito que cessou no mundo é a luta de classes e o conflito ideológico aberto? Pois todos nós aceitamos a mesma visão de mundo? Obviamente que não. Isso significa que tanto os direitos humanos não têm nenhum significado comum ou determinado (eles são um estreito conceito indeterminado) ou que são usados para descrever diversos fenômenos, instituições e ideologias. De qualquer maneira, falar de direitos não é o começo do fim do confronto e do conflito. Direitos Humanos é um discurso contestado e uma prática, a forma ideológica na qual algumas das principais clivagens e antagonismos da nova ordem será expressa e travada.
O terceiro paradoxo aproxima-nos das preocupações da filosofia política. Direitos e direitos humanos são, talvez, a mais importante instituição política liberal e que a lei criou. No entanto, a filosofia jurídica e política liberal foi totalmente inadequada para a tarefa de compreendê-lo. A teoria mais avançada liberal recria os conceitos do século 17 como o contrato social (Rawls e a posição original), o estado de natureza (Rawls e o véu de ignorância), o homem natural (auto-reflexivos indivíduos, totalmente no controle de si mesmos) os imperativos categóricos ( Habermas e o discurso ideal e o princípio fundamental do discurso), a paz perpétua (Habermas, Rawls, etc, Giddens e o cosmopolitismo).
Duzentos anos da teoria social e três grandes "continentes" de pensamento não incomodaram os anais do liberalismo: Hegel, Marx, a dialética da luta, Nietzsche, Heidegger e Foucault, a ontologia do poder, Freud e os pós-freudianos, com a sua análise detalhada da psiquê e da subjetividade não existem para os nossos grandes heróis liberais.
É por isso que precisamos de teorias críticas para entender a ação dos direitos humanos. Não pode haver uma teoria dos direitos humanos, a menos que examinemos a genealogia desta idéia (a derivação do cosmopolitismo da lei natural cristã, assim como a secularização da teodicéia), a sua relação com o poder, como expressão do amálgama entre o poder e a normatividade no capitalismo tardio, a menos que nós exploremos a contribuição fundamental que os direitos humanos fazem para a construção da subjetividade, através da legalização e de divulgação do desejo individual.
Meu argumento é que existe uma ligação clara entre o moralismo recente e humanitarismo agressivo, gananciosas políticas econômicas e governabilidade biopolítica. Nacionalmente, a condição póspolítica e a forma bio-política do poder têm aumentado a vigilância, disciplina e controle da vida. A moral (e direitos) sempre fez parte da ordem dominante, em estreito contato com formas do poder em cada época da história. Recentemente, no entanto, os direitos mudaram, de uma relativa defesa contra o poder para uma modalidade de suas operações. Se os direitos expressam, promovem e legalizam o desejo individual, eles também têm sido influenciados pelo niilismo do desejo. Internacionalmente, o edifício moderno foi prejudicado no momento em que a conclusão do processo de descolonização e do aumento relativo do poder do mundo em desenvolvimento criou a perspectiva de uma defesa bem sucedida de seus interesses.
A crise do modelo econômico nos dá uma oportunidade única de analisar a totalidade do acordo pós-1989. O melhor momento para desmistificar a ideologia é quando ela entra em crise. Neste momento, é garantido, natural, que premissas invisíveis venham à tona e tornem-se objetivadas e possam ser entendidas pela primeira vez apenas como construções ideológicas. Cada tema importante na filosofia política precisa ser revisitado.
Costas Douzinas – Professor de Direito e ex-Reitor da Faculdade de Arte e Humanidades do Birkbeck College – março de 2011
O texto corresponde à transcrição da resposta dada pelo autor em entrevista para o “Projeto Revoluções” à seguinte pergunta: “Por que é necessário pensar os direitos humanos hoje a partir de um ponto de vista crítico?”
IN “Projeto Revoluções” – http://revolucoes.org.br/v1/curso/costas-douzinas/entrevista-costas-douzinas