segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Ocupando as redes e as ruas


A convicção ainda incipiente de construir algo novo e o orgulho de não se prender a bandeiras precisas estão expressos na fórmula usada por vários ativistas em diferentes grupos brasileiros que participam das ocupações na Cinelândia carioca e no Anhangabaú paulistano. "Escola de militância" é o termo com que descrevem o que ocorre debaixo do Viaduto do Chá e diante do cinema Odeon. De acordo com os manifestantes, o princípio da "Ocupação" expressa o desejo de "retomar o que é público", seja o espaço urbano, o campo da política ou o debate de idéias.

Diego Viana
As barracas que tomaram as ruas de várias cidades a partir de setembro foram recebidas com um olhar de desconfiança que em mais de uma ocasião escorregou para o desdém: aos manifestantes, com suas marchas, assembléias e o bordão dos "99%", falta uma bandeira clara, uma lista de exigências, uma vinculação ideológica. É um movimento fragmentário e desorganizado, o que, para quem está acostumado a acompanhar o embate de forças políticas, o torna incapaz de produzir mudanças.
As mesmas características, para os participantes, são qualidades. Inspirados nos acampamentos que tomaram a Praça do Sol de Madri em março, os manifestantes se pautam pela denúncia de um sistema político em que não se sentem representados. Apontam, por um lado, o extremo poder do sistema financeiro sobre o político e, por outro, o vínculo precário entre governantes e governados.
Segundo o ativista Ricken Patel, diretor executivo da organização Avaaz, uma catalizadora de movimentos sociais via internet, o que acontece nas cidades ocupadas é o começo do surgimento de um novo tipo de ativismo político, capaz de fundar uma "política 3.0". Patel define a política 3.0 como "uma democracia de muita energia, em que as eleições são mais participativas e vibrantes e as instituições serão sistemas mais participativos e responsáveis". O ponto de partida são forças descentralizadoras e democratizantes, que canalizam o poder dos indivíduos.
A convicção ainda incipiente de construir algo novo e o orgulho de não se prender a bandeiras precisas estão expressos na fórmula usada por vários ativistas em diferentes grupos brasileiros que participam das ocupações na Cinelândia carioca e no Anhangabaú paulistano. "Escola de militância" é o termo com que descrevem o que ocorre debaixo do Viaduto do Chá e diante do cinema Odeon. De acordo com os manifestantes que falaram ao Valor, o princípio da "Ocupação" expressa o desejo de "retomar o que é público", seja o espaço urbano, o campo da política ou o debate de ideias. "Gente que nunca se envolveu com nada está percebendo que muita coisa está errada. A questão é como canalizar isso", diz o vestibulando Vitório Valenzuela.
Nas dezenas de barracas alinhadas entre as avenidas e os arranha-céus do centro de São Paulo, algumas centenas de pessoas assistem a aulas abertas, participam de debates e tentam organizar a convivência, em comissões de programação, comunicação, alimentação e assim por diante. Alguns dos participantes vêm de dia, outros de noite. De passagem, um homem conta que tem uma loja de artigos para festas na região da rua 25 de Março. Sua luta é pela reciclagem. "O lixo é a maior riqueza do mundo hoje", afirma. "Só de promover a reciclagem, já consegui o suficiente para sortear um tablet entre crianças de um projeto social de Goiás."
Outro participante, o rapper Kuka d'Sabre, carrega um megafone e distribui narizes de palhaço para uma passeata no dia seguinte. O comerciante contempla a esfera vermelha que recebeu do músico. "Recortando garrafas pet, eu poderia fabricar milhares dessas", diz. O rapper fica maravilhado com a ideia e aproveita para promover sua apresentação no fim de semana. "Vale a pena ficar de olho no movimento hip-hop, é um dos mais fortes", recomenda.
Cada acampado que faz comentários acrescenta o pedido de que não sejam escritos comentários estereotipados e preconceituosos contra a manifestação. "A mídia está predisposta contra a gente", diz um rapaz a distância. Um sociólogo de 25 anos, que se apresenta como Pedro Punk e exerce uma certa liderança extra-oficial, arremata: "As pessoas que estão começando a militar agora não sabem que é importante conversar com a mídia, apesar dos preconceitos que ela demonstra".
Pedro Punk desdobra-se para resolver os problemas que surgem: cartazes que se descolam da grade do viaduto, moradores de rua que pedem ferramentas para construir seus abrigos, manifestantes indisciplinados que esbanjam o gerador elétrico. Ele explica que, embora a horizontalidade (processos decisórios que rejeitam hierarquias) seja um parâmetro, ela não pode se realizar completamente. "Quem milita desde a adolescência acaba tendo uma participação mais ativa, porque transmite sua experiência."
Quando era estudante do ensino médio, Pedro participou das manifestações contra a Alca (Área de Livre Comércio das Américas) e a globalização. Esse período, cujos pontos-chave foram os confrontos em Seattle (1999) e Gênova (2001), marca um ponto de inflexão na história do ativismo político. Quando o socialismo real deixou de ser o horizonte viável, os eventos da virada do século deram início a um processo de reformulação das bandeiras e dos métodos. O sociólogo Ricardo Musse, da Universidade de São Paulo, cita como frutos os Fóruns Sociais Mundiais, cuja primeira edição ocorreu em Porto Alegre em 2001, e o conceito de "altermundialismo", que congrega, sem rigidez programática, diversas correntes de oposição ao capitalismo globalizado.
O sociólogo aponta, porém, uma dificuldade desses movimentos em propor mudanças estruturais da sociedade globalizada. A pluralidade de bandeiras e movimentos não consegue compor um corpo coerente e seus ganhos são marginais. A desilusão com a atuação política, segundo Musse, resulta do fato de que o poder político está subordinado ao poder econômico e parece impotente, empurrando as formas de resistência para outros caminhos.
A fluidez das reivindicações e das formas de manifestação reflete aquilo que o sociólogo francês François Dubet denominou "declínio das instituições" - como observa a educadora Ana Karina Brenner em sua tese "Militância de Jovens em Partidos Políticos" -, que se insere no "cenário de mudanças nos modos de agir e de viver a política" para compreender o espaço que resta à política de instituições bem estruturadas, como partidos e sindicatos. Nessa interpretação, o declínio das instituições é fruto de um momento histórico em que as experiências de socialização e de atividade cultural mudam muito rapidamente. O resultado é, por um lado, a aparição de uma multiplicidade fragmentada de iniciativas cuja articulação é frouxa e, por outro lado, uma "busca por novas respostas necessárias a esta desagregação", nas palavras da educadora.
Entre coletivos pela legalização das drogas, associações de artistas de rua e grupos de outras formas, um sem-número de formas surgem e se desagregam constantemente. Uma característica apontada por diversos ativistas que falaram ao Valor é a concentração em temas particulares - da conservação de uma floresta à campanha pelo voto distrital. Alguns grupos assumem formas mais complexas e organizam manifestações. O ponto comum é o funcionamento em rede: compartilhando membros, estruturas e meios de comunicação eletrôncias, as iniciativas galvanizam participantes de diversas origens.
A ambição de transformar essa estrutura flexível em paradigma de ação social é visível em entidades como a Avaaz de Ricken Patel. No Brasil, a plataforma Cidade Democrática tem um projeto parecido. Segundo o estudante Henrique Parra, que participa do desenvolvimento da plataforma, as lutas sociais, antes da era digital, precisavam institucionalizar seus processos, para ganhar agilidade e escala e reduzir os custos de operação. Hoje, isso não é necessário. Em vez disso, pode-se institucionalizar as causas. "É possível influenciar a política pública sem entrar no sistema", diz o estudante. O raciocínio por trás dessas plataformas parte da transformação dos cidadãos em produtores de conteúdo. "Chega uma hora em que é impossível ignorar o que está sendo dito", diz Parra. A novidade do século XXI é a possibilidade de usar o tempo livre para militar, em vez de só descansar depois do trabalho. Esse tempo livre tem sido chamado de "excedente cognitivo" e está na base de fenômenos como a Wikipédia, atualizada por seus usuários.
Um movimento ilustrativo da fluidez com que as iniciativas se agregam e desagregam é o Movimento Passe Livre (MPL), local e nacional ao mesmo tempo. Dependendo das circunstâncias, o grupo luta pela gratuidade do transporte público (quando possível) ou por reduções maiores para estudantes, contra aumentos de tarifas ou pela inscrição do transporte como um direito social na constituição. Surgido em 2003, após protestos que duraram dez dias contra um aumento de tarifas em Salvador, o MPL tornou-se uma rede de pequenos grupos em várias cidades. Alguns deixam de existir, outros voltam à vida. Quando um cresce, outro encolhe. Em São Paulo, pequenos grupos colhem assinaturas em universidades, bares e praças. Quando o preço da tarifa de ônibus subiu, no fim do ano passado, novas pessoas se uniram, mas muitas se afastaram quando o choque foi absorvido.
"O movimento cresceu muito durante a luta contra o aumento", diz o pedagogo André Ciola. "Aquela mobilização deu um novo capital político para o movimento." Os militantes, no período, conseguiram recolher mais alguns milhares de assinaturas, mas reconhecem estar longe de conseguir as 500 mil necessárias para propor um projeto de lei na Câmara Municipal. Enquanto isso, seus membros mantêm alianças com grupos de sem-teto, trabalhadores da cultura, associações de bairro e outras bandeiras, para organizar manifestações ou participar daquelas que os outros organizam.
Um traço comum aos diversos movimentos é sua desconfiança dos partidos políticos, sejam os majoritários, sejam os radicais, que costumavam tomar a frente nas mobilizações. No Anhangabaú, os membros da "escola de militância" contam que a instalação debaixo do Viaduto do Chá não foi uma escolha consciente, mas uma tentativa de driblar partidos radicais de esquerda que se esforçavam para comandar a manifestação nascente.
Ainda assim, não é uma relação inteiramente hostil. Entre as alianças eventuais do MPL, figuram correntes do PSOL e do PSTU. Para Henrique Parra, "os partidos têm de se acostumar a ser coadjuvantes também". Segundo a socióloga Mary Garcia Castro, um processo parecido com esse já está em marcha. Muitos dos jovens ativistas estão conseguindo introduzir suas pautas no debate interno de certos partidos. "No meu tempo, se fôssemos falar de ecologia ou mobilidade urbana no PCB, ninguém daria ouvidos", diz. Para ela, as preocupações dos partidos costumavam ser mais ideológicas e econômicas.
Para o cientista político Bruno Caetano, ex-secretário de Comunicação do Estado de São Paulo no governo Serra, os partidos não se prepararam para a época da comunicação fácil. Estão prontos para lidar com movimentos de massa, mas não pequenas mobilizações. "Os partidos são especialistas em pescar com rede, mas não com vara. Sabem representar categorias profissionais, mas quem vai representar os movimentos de ciclistas, por exemplo?"
O vereador Edinho Silva, presidente estadual do PT de São Paulo, iniciou sua carreira política nas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica no início dos anos 1980. Hoje, demonstra preocupação com a aparente rejeição da via partidária pelos jovens movimentos sociais. Segundo o deputado, os partidos, no Estado moderno, são os formuladores de projetos de sociedade em formulação coletiva. A rejeição da política e dos partidos abre a porta para lideranças carismáticas e autoritarismo. "Com a diluição dos projeto coletivo, o que assoma são concepções pessoais de liderança carismática, hegemonizando a sociedade."


Diego Viana– 18.11.2011
IN “Valor Econômico” – http://www.valor.com.br/cultura/1099470/ocupando-redes-e-ruas