A antropofagia periférica
parece comer toda a obra de arte da cultura culta, transformando-a em
arte-vida, a partir da experiência cotidiana de quem a produz. A produção não é
praticada apenas para que se alcance o reconhecimento pessoal de sua criação,
mas para que tenha um uso, tanto para quem cria como para quem a consome
Renata Miloni
A expressão cultura de periferia é algo que passou a ser
utilizado muito recentemente, seja nos movimentos sociais ou nas pesquisas
acadêmicas. Desde os anos 1980, a palavra periferia passou por um
intenso processo de metamorfose semântica. Naquela década, Eder Sader havia
encontrado na periferia novos personagens políticos que organizavam
movimentos sociais diversos; Magnani achou o circo, o futebol de várzea, os
violeiros e outras formas de lazer; e, alguns anos depois, Helena Abramo
deparou-se com os jovens punks... Mesmo com todas essas peculiaridades,
nos anos 1980 ainda não era comum a referência a uma cultura ou arte
de periferia. Bem como, não era tão tranquilo para os jovens assumirem que
viviam em regiões periféricas, seja na busca de emprego ou em alguma paquera
que conseguiam em uma discoteca, por exemplo. Como morador de região periférica
desde o nascimento, em minha adolescência, no início dos anos 1990, não foram
poucas as vezes em que via jovens, da minha faixa etária, negarem seus bairros
de origem por vergonha de terem que assumir morar na periferia.
A partir de meados da década de1990, com o boom do movimento hip-hop,
a periferia começou a ser vista por muitos jovens com sentimento de orgulho, o
que provocou, inclusive, o interesse de jovens de classe média e alta pela estética
periférica. Com a música dos Racionais MC’s, por exemplo, a região da zona
sul passou a ser comentada pelos jovens, despertou curiosidade em quem não a
conhecia e certa vaidade para quem lá vivia, pois o país todo tomou
conhecimento da sua quebrada. Da mesma forma, com o sucesso de alguns
grupos de pagode, como o Negritude Junior, liderado por Netinho de Paula, que
tratavam do cotidiano das periferias em suas músicas, tornou-se comum encontrar
pessoas vestindo camisetas com os dizeres 100% Cohab, 100% zona leste
ou 100% periferia. Os anos 1990 foram acompanhados por uma valorização
simbólica das periferias. Ao mesmo tempo que crescia a midiatização da
violência, diversos programas televisivos e filmes procuravam tratar da vida
dos moradores dessas regiões, apontando aspectos positivos em seus modos de
vida e expressões culturais.
No início do milênio, despontaram alguns escritores, moradores das
periferias de São Paulo, que ficaram conhecidos como pertencentes ao movimento
de literatura periférica ou, como nomeado pela revista Caros Amigos,
de literatura marginal. Essas edições comentavam a produção literária de
escritores como Sérgio Vaz, Ferrez, Sacolinha, Alessandro Buzo, Allan da Rosa,
entre outros. Tais “autores periféricos” também já chamaram a atenção da grande
mídia, fazendo-se presentes em diversos programas televisivos e de editoras
comerciais, como é o caso da Editora Global.
A antropofagia periférica
Sérgio Vaz é um dos fundadores da Cooperativa Cultural da Periferia
(Cooperifa) que se reúne semanalmente em um boteco na zona sul de São Paulo,
onde realiza um famoso sarau. Foi um dos idealizadores da Semana de Arte
Moderna da Periferia, que aconteceu de 4 a 11 de novembro de 2007 e reuniu
vários coletivos culturais, de diferentes expressões artísticas que se
identificam com esse movimento mais amplo que vem sendo chamado de cultura
de periferia. Seu Manifesto da Antropofagia Periférica, em
referência ao Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade de 1928,
resume a inspiração que levou à organização da Semana, apontando dentre outras
coisas que “a periferia nos une pelo amor, pela dor e pela cor. Dos becos e
vielas há de vir a voz que grita contra o silêncio que nos pune. Eis que surge
das ladeiras um povo lindo e inteligente galopando contra o passado. A favor de
um futuro limpo, para todos os brasileiros”.¹
Lendo todo o seu manifesto e observando a forma como os diferentes
coletivos e agrupamentos utilizam a palavra periferia, é perceptível que
ela assume um sentido para além daquela que é designada como uma relação de
distância geográfica a partir de algum centro. Periferia assume um
conjunto de representações simbólicas que congrega aspectos relacionados à
classe, à etnia, ao lugar de moradia e à condição de jovem na metrópole. Para
esses grupos, tornou-se uma espécie de categoria social capaz de dar
conta de alguns cruzamentos identitários assumidos na vivência de sua condição.
Embora Sérgio Vaz tenha mais de 40 anos, o público majoritário dos
saraus da Cooperifa e das outras ações desenvolvidas por diversos coletivos
periféricos da cidade é formado por pessoas jovens, com idade de até 29 anos.
Os grupos identificados como culturas juvenis não recebem essa titulação
por serem constituídos integralmente de jovens, mas por terem uma característica
que vai dialogar, sobretudo, com a juventude. É o caso dos movimentos punk
ou hip-hop. Pois, mesmo que Clemente (da banda punk Inocentes),
Nelson Triunfo (dançarino, breaker) ou até Mano Brown (do grupo
Racionais MC’s) não sejam mais jovens, o estilo musical que representam tem
apelo muito maior entre esse público. Esse talvez seja um dos motivos pelos
quais outros jovens de classe média aproximam-se desses eventos. Por mais que
haja diferenças na situação sócioeconômica e étnica entre estes e aqueles que
estão promovendo as atividades na periferia, o fato de serem jovens parece ser
uma porta de entrada que os torna cúmplices em um jeito próprio
de experimentar a cidade.
A questão da cor, apontada no Manifestode Vaz como um dos
elos da periferia, não demonstra apenas a identidade étnica assumida por esses
grupos, mas sua forma de compreender o que chamam de arte. Para diversos
coletivos de periferia, a literatura periférica tem suas origens no
poeta negro pernambucano Solano Trindade. O escritor é uma das principais
referências de suas ações, pois, para esses grupos, não é possível fazer arte
sem relacioná-la com suas vidas, assim como fez Solano. Sua poesia incomodava,
pois tratava de racismo, preconceito, negritude, num contexto histórico em que,
nos discursos oficiais, o Brasil era guiado pelo mito da democracia racial.
Não por acaso, esse é o nome de uma biblioteca comunitária na Cidade
Tiradentes, extremo leste da cidade, organizada por jovens, em sua maioria
negros, de um coletivo chamado Núcleo Cultural Força Ativa. O NCA – Núcleo de
Comunicação Alternativa – da zona sul, produziu um vídeo-documentário sobre a
vida desse poeta intitulado “Imagens de uma vida simples”.
Nesse sentido, para esses coletivos que produzem arte periférica
não há arte pela arte. Ela torna-se ação política à medida que, nas suas
práticas, não se pode produzi-la sem relacioná-la à sua inserção social, ao seu
“jeito de estar no mundo”, à sua identidade. A arte não está em um plano etéreo
ou num campo teológico, pura, nos termos utilizados por Walter
Benjamin,² mas inserida nas experiências de vida de seus produtores. A
reprodução técnica, segundo Benjamin, acabou com a aura da obra de arte
original, porém, é responsável por politizar a arte. A obra de arte sai
de uma condição de impalpável, sagrada, para se inserir no
cotidiano e na vida das massas. Isso ocorreu, sobretudo, a partir do cinema e
da fotografia.
A antropofagia periférica parece comer toda a obra de arte
da cultura culta, aurática, transformando-a em arte-vida, a partir da
experiência cotidiana de quem a produz. A produção periférica não é praticada
apenas para que se alcance o reconhecimento pessoal de sua criação (que,
obviamente, diz respeito à própria condição humana), mas para que tenha um uso,
tanto para quem cria como para quem a consome. E esse uso é sobretudo político,
contra o artista surdo-mudo e a letra que não fala– como afirma o Manifesto
de Vaz – e a favor da arte, da poesia e da palavra que fala, que
denuncia, que anuncia.
Como foi visto, a “questão de classe” sozinha não é uma categoria que dá
conta de responder a esse complexo chamado de periferia, mas é elemento
importante em seu conteúdo semântico. O centro ou o outro lado da
ponte, em referência à Marginal Pinheiros e Tietê, como costumam afirmar os
artistas periféricos das zonas sul e norte, é uma fronteira geográfica, mas é
também uma linha imaginária que define o lado de cá e o lado de lá.
Ou seja, estar na cultura de periferia é tomar partido, assumir um lado,
compartilhar uma mesma luta. E esse lado ou essa luta é
também uma luta de classes. A pobreza não é um assunto fora de moda para
esses grupos, mas vem relacionada a uma série de outros elementos.
Radical, mas não fundamentalista
Nem todos que moram na periferia são pobres. Mas, na cultura de
periferia, tratar da pobreza e das precárias condições de vida é uma forma de
relacionar arte-vida, como se apontou acima. Há que se diferenciar estar na
periferia e estar na cultura de periferia. Para quem mora na
periferia e produz arte de periferia, fica difícil perceber tal
diferença. Porém, nem todos os artistas que residem na periferia comungam com
esse tipo de arte, como, por exemplo, aqueles que fazem uma arte decorativa. Da
mesma forma, um morador do centro pode identificar-se com essa arte periférica,
muito por conta de sua condição socioeconômica ou étnica. Desde as letras de rap,
as poesias marginais, até os vídeos populares etc., denunciar a
desigualdade social e apontar os modos de vida cotidianos dentre os pobres
tornou-se conteúdo quase que obrigatório nesse tipo de arte. Contudo, vale
ressaltar que, mesmo não se reconhecendo como arte pela arte, a cultura
de periferia também não se identifica, a priori, com essa ou aquela
ideologia. Sua atitude é política, mas não doutrinária. A questão de classe
citada anteriormente assume muito mais um caráter simbólico de afirmação
identitária do que necessariamente um discurso mais elaborado de uma dada
ideologia política. Talvez seja possível afirmar que haveria, nessa arte, uma
tentativa de, como apontou Nestor Canclini,³ agir sob o dilema de “como ser
radical sem ser fundamentalista”. Ou podemos dizer que o conceito de classe
pode ser entendido aqui nos termos em que Michael Hardt e Antônio Negri4
o utilizam para compreender a multidão. Para além da associação com a classe
operária ou a classe trabalhadora, a multidão é associada a um
projeto político daqueles que estão sob a dominação do capital.
Em relação ao local de moradia, associar o bairro, a localidade, a uma
categoria mais ampla chamada periferia, como o fez o movimento hip-hop,
tornou os limites geográficos e territoriais do bairro algo menos delimitado e
possibilitou certa cumplicidade entre os jovens moradores de diferentes bairros
periféricos da cidade. Afirmar ser morador da periferia, nesse contexto,
significa ultrapassar os limites territoriais da vila ou do bairro comuns na
identidade de gangues e galeras, por exemplo.
A metamorfose semântica da palavra periferia também cumpriu um
papel importante no fortalecimento de redes de articulação dos coletivos de
diferentes lugares da cidade, para além de seus bairros de origem. Ao se
assumir como um coletivo de arte periférica, o grupo estabelece uma conexão
quase automática com outros coletivos de outras regiões. E esse é um aspecto
muito apontado pelos próprios coletivos, de que há uma movimentação cultural
mais ampla, para além de uma ou outra experiência pontual, identificada aí como
arte ou cultura de periferia na cidade.
Edições especiais da revista Caros Amigos (2001, 2002 e 2004)
tratavam especificamente da literatura marginal, referindo-se a um
movimento de escritores periféricos. Porém, além das experiências de
produções literárias e saraus, nesse movimento periférico há coletivos que se
reúnem em torno de produções ou ações com audiovisual, blogs, sites,
danças populares, samba de raiz, grafite etc. Uma das iniciativas de
visualização em forma de movimento desses diferentes coletivos, com linguagens
diversificadas e de distintas localidades da cidade (e da região
metropolitana), deu-se através da Agenda Cultural da Periferia, publicada
mensalmente pela ONG Ação Educativa de São Paulo. Nessa cidade, muitas dessas
experiências de arte periférica vão encontrar abrigo em políticas
públicas como o Programa VAI – Valorização de Iniciativas Culturais – da
Secretaria Municipal de Cultura ou no Centro Cultural da Juventude.
Um crescente circuito de atividades culturais e políticas está fruindo
nas periferias de São Paulo, tendo os jovens como atores e espectadores
privilegiados, com uma intensa programação de conteúdo periférico. Essas
expressões têm se constituído como nova forma de atuação juvenil em diferentes
espaços da cidade nos últimos anos e têm se configurado como um forte movimento
social em torno, sobretudo, de bandeiras como o direito à cultura.
1 Sérgio Vaz. “Manifesto de Antropofagia Periférica”, 2007. Disponível
no blog do poeta em: http://colecionadordepedras.blogspot.com/2007/10/manifesto-da-antropofagia-perifrica.html
2 Walter Benjamin. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994 (Obras
escolhidas – volume 1).
3 Nestor Canclini. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair
da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
4 Michael Hardt e Antonio Negri. Multidão: guerra e democracia na era
do Império. Rio de Janeiro: Record,2005.
Renata Miloni – Agosto
2011