sábado, 18 de fevereiro de 2012

Os puristas e a mentira do "vale tudo"


Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis.

Marcos Bagno
Atenção! Cuidado! Alerta! Não acredite nos puristas que andam declarando nos meios de comunicação que os linguistas são defensores do “vale-tudo” na língua. Esse é mais um dos muitos argumentos falaciosos que eles utilizam para desqualificar os resultados das pesquisas científicas e as propostas de renovação da pedagogia de língua inspiradas em critérios mais racionais e menos dogmáticos, e em posturas políticas menos intolerantes e mais democráticas.
É claro que, numa perspectiva exclusivamente linguística, de análise da língua em seu funcionamento interno, tudo tem o seu valor. Afinal, como nada na língua é por acaso, então toda e qualquer manifestação linguística está sujeita a regras e tem sua lógica interna: não há razão para atribuir maior ou menor valor à forma linguística A ou à forma linguística B. Seria algo tão inaceitável quanto um zoólogo achar que as borboletas têm mais valor do que as joaninhas e que, por isso, as joaninhas devem ser eliminadas… Para o cientista da linguagem, toda manifestação linguística é um fenômeno que merece ser estudado, é um objeto digno de pesquisa e teorização, e se uma forma nova aparece na língua, é preciso buscar as razões dessa inovação, compreendê-la e explicá-la cientificamente, em vez de deplorá-la e condenar seu emprego.
Mas o linguista consciente também sabe que a língua está sujeita a avaliações sociais, culturais, ideológicas, e que precisa também ser estudada numa perspectiva sociológica, antropológica, política etc. Nessa perspectiva, existem formas linguísticas que gozam de maior prestígio na sociedade, enquanto outras – infelizmente – são alvo de estigma, discriminação e até de ridicularização. As mesmas desigualdades, injustiças e exclusões que ocorrem em outras esferas sociais – no que diz respeito, por exemplo, ao sexo da pessoa, à cor da pele, à orientação sexual, à religião, à classe social, à origem geográfica etc. – também exercem seu peso sobre a língua ou, mais precisamente, sobre modos particulares de falar a língua.
Essa análise que leva em conta fatores socioculturais e estrutura linguística desmente com todo o vigor as alegações de quem (de pura má-fé) acusa os linguistas de defender o “vale-tudo” na língua.
Assim, como já afirmei antes, nenhum linguista está propondo a substituição das formas tradicionais pelas formas inovadoras. Nem querendo impor formas linguísticas de uma região específica ou de uma classe social específica ao resto da população brasileira. Nem desejando eliminar as inevitáveis diferenças que existem entre as modalidades linguísticas formais e informais, espontâneas e monitoradas, urbanas e rurais etc.
Tudo o que desejamos é, repito, que as formas não-normativas características do português brasileiro e há muito tempo incorporadas na atividade linguística de todos os brasileiros, inclusive dos mais letrados (inclusive dos grandes escritores!), sejam consideradas igualmente válidas e aceitáveis, para que possamos nos comunicar um pouco mais livremente, sem a patrulha gramatiqueira que pesa sobre nossas consciências o tempo todo e não nos deixa usar nossa língua materna em paz.
Quem diz que os linguistas são defensores do vale-tudo está mentindo e precisa ser denunciado por calúnia e difamação! Muitos linguistas brasileiros há muito tempo vêm batalhando em favor do desenvolvimento e da democratização efetiva da educação em nosso país e, para isso, têm dado contribuições importantes aos projetos e programas educacionais em todos os níveis de ensino. Se tanta coisa já melhorou no ensino do português no Brasil, apesar das tantas deficiências ainda presentes, isso se deve em boa parte à reflexão e à ação dos linguistas e de outros profissionais.
Já recebi algumas mensagens desaforadas dizendo coisas do tipo: “por que você escreve tudo certinho em vez de usar as formas erradas que tanto defende?”. São manifestações de pessoas tão inconformadas com a mudança linguística (ou com a democratização das relações sociais) que, por isso, acabam distorcendo ou não querendo ler direito o que a gente escreve.
Se eu digo e afirmo e comprovo que o pronome cujo, por exemplo, está praticamente extinto na língua falada pelos brasileiros, isso não quer dizer que estou proibindo as pessoas de usar esse pronome quando bem quiserem, nem que eu mesmo vou deixar de usá-lo, nem que os professores na escola devem parar de ensinar esse pronome em suas aulas.
A língua é rica, é múltipla, é híbrida, é heterogênea, é variável, é mutante. Precisamos aprender a conviver com tudo isso e parar de imaginar que, na língua, as coisas estão organizadas na base do “sim” e do “não”, como num código de leis. Por isso, a mensagem que aqui pretendemos transmitir é sempre TANTO FAZ! – é sempre guiada pela luz democratizadora do TAMBÉM.




Marcos Bagno - Escritor, tradutor, linguista e professor - março de 2009