Tribunal Federal cassa liminar que autorizava o
despejo dos índios da aleia Pyelito Kue e determina que eles permaneçam na área
até que sejam concluídos os estudos etnológicos. Ministro da Justiça anuncia
reforço no efetivo de segurança enviado para pacificar à área e garante que a
Funai, em até 30 dias, reconhecerá o local como terra indígena. Ministra dos
Direitos Humanos, Maria do Rosário, critica morosidade do STF no tema.
Najla Passos
Brasília - Três anúncios feitos nesta terça (30) pelo ministro da Justiça, José
Eduardo Cardoso, durante a reunião do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana (CDDPH), soaram como merecido alento à comunidade guarani-kaiowá que,
nos últimos dias, sensibilizou o mundo ao anunciar que resistiria até a morte,
caso o Estado insistisse em cumprir a liminar da justiça federal de 1ª
instância, que determinava a reintegração da posse da aldeia Pyelito Kue, na
Fazenda Cambará, em Iguatemi, a 466 km de Campo Grande (MS).
O primeiro foi que o Tribunal Federal da 3ª Região cassou a ordem de
despejo, de 17/9, e determinou que os índios ocupem o local até que sejam
concluídos os estudos etnológicos sobre o território. O recurso foi movido pela
Advocacia Geral da União, a pedido da Fundação Nacional do Índio (Funai).
O segundo é que o Ministério da Justiça (MJ) enviou novo efetivo da força
nacional para pacificar a região. Na última quarta (24), uma índia foi
estuprada por oito jagunços e pistoleiros. Mato Grosso do Sul é o estado com
maior índice de indígenas assassinados: cerca de 500, sendo 270 lideranças, em
apenas dez anos.
O terceiro – e o mais comemorado deles – é que os estudos etnológicos
realizados no local atestaram o que os índios vêm repetindo desde a década de
1960, quando iniciaram os conflitos com os brancos: a aldeia Pyelito Kue
trata-se, sim, de terra indígena. “Já estamos concluindo os estudos fundiários
e, em 30 dias, será formalizado o despacho de análise antropológica”, afirmou
Cardoso.
Líderes guarani-kaiowá, que estão em Brasília denunciando o genocídio
impetrado à etnia, comemoraram os anúncios, mas avaliaram que só a demarcação
das terras cessará o conflito entre índios e produtores rurais da região.
“Estou feliz, mas feliz pela metade. Há várias outras aldeias vivendo este
mesmo drama. Vocês não imaginam o que a gente sofre lá na realidade. Há pessoas
desaparecidos cujos corpos nunca foram encontrados”, afirmou o líder Otoniel
Ricardo, com lágrimas escorrendo pela face.
Os índios também relataram a desesperança em que vive a etnia, cujos
jovens tiram suas vidas em série (foram mais de 500, nos últimos dez anos), mas
negaram que tenham feito uma ameaça de suicídio coletivo, como chegou a
noticiar a imprensa. “O que aconteceu foi que a comunidade tomou a decisão de
não sair nem por bem e nem por mal. Vamos lutar até o nosso último guerreiro.
Não vamos nos matar ou matar uns aos outros. Mas estamos dispostos a morrer
pela nossa terra”, explicou o cacique da aldeia Pyelito Kue, Lide Solano Lopes,
na sua língua natal, o guarani.
Solução definitiva dos conflitos
Apesar das notícias favoráveis, a demarcação definitiva não tem prazo
para ocorrer, já que o laudo pode ser contestado pelo estado, pelo município e
pelos próprios fazendeiros, em recursos intermináveis. O próprio ministro da
Justiça reconheceu que todo processo de demarcação é sempre muito lento e
conflituoso, porque envolve atores diversos, todos eles com interesses diversos
e, muitas vezes, legítimos. Há casos de terras já demarcadas que tramitam no
Supremo Tribunal Federal (STF) há muitas e muitas décadas. Segundo levantamento
da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência (SDH), só em Mato Grosso do
Sul, são pelo menos dez.
Para a ministra de Direitos Humanos, Maria do Rosário, as medidas
anunciadas representam um passo muito importante, mas não são a solução
definitiva. “A solução pacífica dos conflitos depende também de áreas que já
foram demarcadas, que foram transformadas em decreto ainda no governo anterior,
mas ainda não foram legitimadas pelo STF. Essa morosidade na decisão de
matérias que dizem respeito às comunidades indígenas também tem tensionado a
região”, acrescentou.
Ela criticou também o governo do Mato Grosso do Sul, que não tem dado
respostas satisfatórias para a resolução dos conflitos na área. Segundo a
ministra, há inúmeras denúncias de violações dos direitos humanos dos
indígenas, que vivem sob ameaça de milícias armadas por fazendeiros. Inclusive,
casos de desaparecimentos forçados, estupros e assassinatos. Prensados entre a
fazenda e o rio, sob a mira de pistoleiros, os índios não têm acesso às
políticas públicas, como saúde e educação, ofertadas na sede do município.
Críticas ao Estado brasileiro
O procurador de Defesa dos Direitos do Cidadão e presidente do Grupo de
Trabalho Guarani-Kaiowá do CDDPH, Eugênio Aragão, também comemorou as
conquistas, mas lamentou que o Estado não tenha agido preventivamente para
prevenir os conflitos que vem ocorrendo na região. “A ação do Estado brasileiro
é meramente reativa. Só agimos quando chegamos à beira do abismo”, denunciou.
Aragão lembrou que a Constituição Federal de 1988 deu um prazo de cinco
anos para que o país procedesse às demarcações de terras indígenas. “Hoje,
passados 19 anos, ainda falta 9% dessas demarcações, e justamente as mais
difíceis, porque elas foram feitas em processo de funil, com as mais fáceis
primeiro”, esclareceu.
Para o procurador, o estado brasileiro precisa repensar com urgência seu
modelo de demarcação, para minimizar o preconceito contra os índios, causa de
tanto derramamento de sangue no país. “A ação unilateral do estado brasileiro
tem sido genocida porque atrai ódio, raiva e rancor da população não indígena
para com a indígena. O não indígena tem que sair deste negócio satisfeito. Só
assim as populações indígenas não serão mais alvo de rancor”, afirmou.
Força da mobilização popular
A presidenta da Funai, Marta Azevedo, antropóloga que já viveu com os
guaranis e domina sua língua, atribuiu parte da responsabilidade pelas
conquistas desta semana à mobilização popular que ganhou a imprensa e as redes
sociais de todo o mundo em prol da luta dos guaranis. “A mobilização da
sociedade civil é absolutamente fundamental, porque o problema dos guaranis não
é só de governança. Eles sofrem muito com a violência e o preconceito crônico”,
destacou.
Segundo a antropóloga, o contato com a sociedade branca em ambiente tão
hostil levou a etnia a desenvolver uma das mais altas taxas de mortalidade do
mundo: são 70 suicídios por cada 100 mil habitantes, enquanto a média
considerada aceitável pela Organização das Nações Unidas (ONU) é de 12 por 100
mil habitantes.
Najla Passos – Jornalista - 31.10.2012
IN
“Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21176&editoria_id=5
“A pistolagem está instituída”
Para Paulino Montejo, da Articulação dos
Povos Indígenas do Brasil, , a situação dos índios no Mato Grosso é o
resultado de uma longa história de descaso do Estado brasileiro com os
direitos indígenas.
Beatriz Noronha
A recente decisão da justiça brasileira de obrigar um grupo de centenas
de indígenas do povo
Guarani-Kaiowá a deixar uma área de fazendas em Iguatemi, Mato
Grosso do Sul, fez eco entre os participantes na VII
Plataforma Ibase, realizada na semana passada em Vassouras. O evento
reuniu ativistas de movimentos sociais do Brasil e do mundo para discutir
uma agenda comum
de luta diante dos novos desafios planetários. Paulino Montejo,
assessor da Articulação dos Povos Indígenas do
Brasil (Apib), esteve lá representando os indígenas e conversou
com o Canal Ibase.
Para Montejo, a situação dos índios no Mato Grosso é o resultado de uma
longa história de descaso do
Estado brasileiro com os direitos indígenas. A Constituição de 1988
trata, em seu capítulo VIII, das questões indígenas, seus costumes e terras. De
acordo com o parágrafo segundo deste capítulo, as terras tradicionalmente
ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o
usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.
O quinto parágrafo também estabelece que é vedada a remoção dos grupos
indígenas de suas terras, salvo ad referendum do Congresso
Nacional em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou
no interesse da soberania do país, após deliberação do Congresso Nacional,
garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
“Mesmo com a legislação, os índios vêm
sendo alvo de ameaças e violência. A lei do agronegócio em Mato
Grosso, por exemplo, parece disputar importância com as vidas indígenas. Lá o
caso é de violência extrema. Eles estão sendo atacados por todos os lados e
isso é uma questão de todos nós”, disse Montejo.
Para o assessor, o efetivo cumprimento da lei de demarcação de terras
evitaria recentes conflitos, poupando vidas – o que é imprescindível. “Se a
Constituição de 88 que previa a demarcação de terras indígenas tivesse sido
respeitada, a questão indígena agora estaria resolvida”, afirma.
Os índios
Guarani-Kaiowá vivem conflito com produtores rurais pela
disputa de terras que, de acordo com a Constituição Federal, há muito já
deveriam ter sido demarcadas. O agronegócio
tem influência no acirramento dos conflitos, já que as cadeias
produtivas da soja e da cana possuem atividades em terras indígenas no Mato
Grosso do Sul. Duas usinas no estado, São Fernando e Raízen, se comprometeram a
não mais comprar a cana produzida em áreas indígenas. “Essa é uma medida de
responsabilidade socioambiental empresarial que não resolve o problema, mas
deve ser entendida como um primeiro passo no reconhecimento dos direitos
indígenas pelo setor produtivo”, observou Montejo. Segundo o assessor da Apib,
é urgente que usinas sucroalcooleiras, de biodiesel, traders e cerealistas
adotem a mesma postura.
Em 2009 ocorreu a homologação
da área de Arroio Korá. A região foi o destino de cerca de 700
Kaiowá. Em agosto, os Kaiowá conseguiram retomar essas terras. No entanto, a
demarcação de Arroio Korá foi questionada na Justiça pelos fazendeiros – a
decisão final sobre o processo está parada no Supremo Tribunal Federal. A
retomada da terra Potrero Guasu, em outubro, também sofreu com o ataque de
pistoleiros. Os índios em Mato Grosso do Sul já foram vítimas de agressões,
violências físicas e simbólicas de toda ordem. Depois da retomada de terras em
agosto, o acampamento indígena foi atacado por pistoleiros. Em entrevista
gravada em vídeo, o fazendeiro Luis Carlos da Silva Vieira,
conhecido como “Lenço Preto”, declarou que tomaria frente em “uma guerra contra
os indígenas”.
A crise instalada hoje em Mato Grosso do Sul representa para a Apib uma
situação de desrespeito do Estado de Direito. “A pistolagem está instituída e
não há reação em direção ao desarmamento”, declara Montejo. O assessor chama
atenção para um quadro real de etnocídio. Montejo se inquieta e se mexe algumas
vezes na cadeira quando comenta que “as políticas públicas precisam pagar essa
dívida histórica com os povos indígenas, e pagar pela inversão de direitos”.
Reforça que os povos indígenas foram expulsos de suas terras e agora querem
apenas reaver seus direitos, em especial o direito sagrado à terra.
A comunidade indígena
declarou que não sairá de suas terras, e se preciso for, permanecerá até a
morte. Em carta, os indígenas falaram das condições desumanas a que
estão submetidos, fruto da competição de terras com grandes produtores do
agronegócio e de criação de gado. “A situação indígena em Mato Grosso do Sul é
caso de direitos humanos, é da ordem do Estado, do judiciário, mas é também do
cotidiano, da necessidade do desenvolvimento de uma solidariedade mútua”, disse
Montejo. Para ele, falta uma sensibilização real da
opinião pública, solidariedade e entendimento de um funcionamento
orgânico da sociedade. “O que está em questão é a necessidade de
reconhecimento. Não tem como um cidadão não perceber que o que está em curso é
uma violação séria, de vida e de direitos de povos que historicamente são donos
da terra”, exclama. “É preciso romper com o silêncio”, conclui.
Em nota no site
da Secretaria Geral da Presidência da República, divulgada em 26 de
outubro, o governo federal informou que “vem apoiando as comunidades indígenas
através de ações de segurança alimentar, saúde, segurança pública e
reconhecimento territorial através de seis Grupos de Trabalho que estão em
campo”.
Beatriz Noronha – Jornalista do “Canal Ibase” – 01.11.2012
IN página da “Revista Forum” – http://revistaforum.com.br/blog/2012/11/a-pistolagem-esta-instituida/