Na
guerra entre a PM e o PCC, o homicídio é calculado e inscrito numa disputa que
escancara a ineficiência de uma 'política de segurança' calcada em alicerces
frágeis.
Camila Nunes Dias
A propalada eficiência
da política de segurança paulista vem desmoronando, sobretudo nos últimos seis
meses, tal qual um castelo de cartas diante de um simples toque. A metáfora do
castelo de cartas é adequada para expressar a arquitetura frágil e as bases
precárias das principais ações elencadas para justificar a "eficácia"
dessa política: a expansão do encarceramento e o investimento na Polícia Militar,
com o aumento do efetivo policial e a compra de viaturas e equipamentos.
A
drástica redução das taxas de homicídio em São Paulo durante a última década é
o principal resultado atribuído à eficiência na condução da política de
segurança estadual e é, de fato, um feito inédito, pelo seu alcance e pela
velocidade com que ocorreu. Em que pese todo o investimento na política militar
e no aumento do número de presos, contudo, a conta não fecha. Não há argumentos
suficientes para estabelecer uma relação de causalidade entre esses fatores e,
em razão disso, uma pluralidade de elementos é mobilizada para tentar explicar
o feito: alteração na composição demográfica da população, campanha pelo
desarmamento e trabalho assistencialista de ONGs na periferia.
Embora
não seja possível discutir todos esses fatores, é possível sugerir reflexões.
Sobre o aumento do encarceramento, por exemplo. Os presos condenados por
homicídio não chegam a 14% da população prisional de São Paulo, o que torna
difícil a sustentação do argumento de que o encarceramento é fator explicativo
da sua redução, tendo em vista que os outros tipos de crimes têm mantido uma
tendência de aumento constante e que, a despeito disso, perfazem o delito pelo
qual responde a grande maioria da população carcerária (furto, roubo e tráfico
de drogas).
Voltemos,
porém, à questão inicial: a mais recente crise da segurança paulista e a
fragilidade da política de segurança pública estadual. A eficiência
reivindicada pelo governo estadual nessa área só consegue se constituir como um
discurso factível se e na medida em que mantém a invisibilidade daquilo que,
volta e meia, volta à cena, a facção criminosa Primeiro Comando da Capital
(PCC).
A
recusa frenética das autoridades em admitir a existência e a força do PCC é
compreensível. Tratado como tabu, ele representa a principal ameaça ao discurso
da eficiência e é, ao mesmo tempo, o elemento chave tanto para a compreensão da
redução das taxas de homicídio quanto para o cenário de crise atual, marcado
pelo enfrentamento entre criminosos e policiais militares.
O
"fator PCC" na redução das taxas de homicídio deve ser compreendido a
partir de uma visão mais ampla da sua hegemonia no cenário criminal paulista e
da dinâmica engendrada a partir daí. Criado dentro do sistema carcerário de São
Paulo em 1993, o PCC se consolidou dentro e fora das prisões e se constitui,
hoje, como o mais importante grupo criminoso atuante no Brasil, tendo o tráfico
de drogas como seu carro-chefe. Controlando direta ou indiretamente a quase
totalidade do comércio de drogas ilícitas em São Paulo, o PCC se constitui,
também, uma "agência reguladora" da economia criminal, impondo
regras, observando seu cumprimento e punindo sua transgressão. Considerando a
dinâmica violenta que marca o mercado varejista de entorpecentes, é difícil
negar que a existência de uma instância de distribuição dessas mercadorias e de
regulação dos conflitos decorrentes produza um impacto considerável no nível de
violência física, refletido diretamente nas taxas de homicídios.
Mas
a hegemonia do PCC e a estabilidade daí decorrente são dependentes de um
equilíbrio precário, sustentado num tripé: ausência de disputas internas à
organização, inexistência de grupos rivais e, finalmente, tensas acomodações
com o poder público, através da relação com a administração prisional e as
forças policiais. A terceira ponta do tripé apresenta a maior fragilidade e
volta e meia se quebra, produzindo a ruptura desse equilíbrio e a implosão da
estabilidade, desencadeando espirais de violência física, expressa empiricamente
no aumento dos homicídios.
Essa
ruptura pode ocorrer em razão de uma infinidade de fatores e, em geral, decorre
de uma conjunção deles. No caso atual, tudo sugere que a concentração do
combate à facção nas mãos do grupo de elite da PM paulista, elevando os
confrontos diretos e resultando num elevado número de criminosos mortos, foi
decisiva para a detonação do frágil equilíbrio que sustentava a manutenção das
taxas de homicídios nos patamares mais baixos da história recente de São Paulo.
O
atual ciclo de violência expressa claramente a origem desse desequilíbrio a
partir da forma que ele adquire, de uma guerra entre a PM e o PCC. Os toques de
recolher, as emboscadas, as execuções sumárias e as chacinas compõem um cenário
em que o homicídio é estrategicamente calculado, inscrito numa disputa de poder
que segue a lógica do extermínio e escancara, de forma perversa, a ineficiência
de uma "política de segurança" calcada em alicerces frágeis,
passíveis de desmoronar ao menor e mais suave movimento.
Camila Nunes Dias –
Socióloga, professora da UFABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência
(NEV/USP) – 04.11.2012
IN “O Estado de São Paulo”, suplemento “Aliás” – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,matematica-da-violencia,955394,0.htm
Crise expõe
esgotamento do modelo de
segurança em São Paulo
Em entrevista à Carta Maior, Camila Nunes Dias,
professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do Núcleo de Estudos
da Violência, da Universidade de São Paulo (USP), defende que a atual crise na
segurança pública, expressa no aumento do número de homicídios, é resultado do
"esgarçamento de uma espécie de convivência equilibrada entre poder
público e organizações criminosas". Essa crise, acrescenta, é a expressão
mais acabada de que o atual modelo de segurança está esgotado.
Fábio Nassif
São Paulo -
Pela televisão, a população paulista acompanha o placar do número de policiais
e um tanto de anônimos mortos. Pelas periferias de São Paulo, a população vive
momentos de terror, entre operações violentas da polícia e chacinas cotidianas.
A busca por explicação entorno de tantas mortes não é um desafio fácil diante
da postura do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). A professora da Universidade
Federal do ABC, Camila Nunes Dias, porém, procura apresentar alguns elementos.
Também pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência, da USP, Camila acredita
que a atual crise – expressa no aumento do número de homicídios - é resultado
do esgarçamento de uma espécie de convivência equilibrada entre poder público e
organizações criminosas.
A professora ainda criticou a Operação Saturação,
realizada pelos tucanos. “Essas operações representam, de uma lado, uma
resposta midiática, para transmitir à parte da sociedade uma sensação de que o
governo está dando uma resposta ao crime, e de outro lado elas expressam a
criminalização das populações mais pobres”, disse na entrevista. Mas também
cobrou sinalizações do governo federal de que não tolere retaliações privadas
às mortes de policias, como vêm ocorrendo. Leia na íntegra:
Carta Maior – A crise da segurança pública paulista
é uma crise do modelo de segurança ou do fracasso da aplicação deste modelo?
Camila Nunes Dias – Eu acho que é um pouco dos dois. Tem um modelo de
política de segurança – que não é “privilégio” de São Paulo - baseado em duas
ações: repressão policial com investimento na polícia militar e o
encarceramento em massa via investimento no sistema prisional. Esse o modelo se
mostra absolutamente ineficiente, mas é um modelo que está aí. Os governos e a
sociedade de uma forma geral têm dificuldade de pensar segurança pública indo
além desse modelo.
Essa crise é expressão mais acabada de que este
modelo de segurança está esgotado. Ele não traz resultados positivos no longo
prazo.
Carta Maior – A redução do número de homicídios no
período anterior, e o recente aumento do número de homicídios, tem a ver com a
boa ou má relação entre polícia e organizações criminosas?
Camila Nunes Dias – Acho que a redução das taxas de homicídio em São
Paulo está muito menos ligada a tal política de segurança que acabei de
mencionar, e muito mais com a predominância e a hegemonia do PCC [Primeiro
Comando da Capital] em São Paulo. Da mesma forma que a presença do PCC está
ligada com a redução dos homicídios, não por uma ideologia pacifista, mas por
uma questão de controle de mercado. A partir do momento que se tem uma só
organização criminosa que controla o mercado ilícito, sobretudo o tráfico de
drogas, existe um volume de conflitos muito menor envolvendo estas atividades.
Podem ter outros fatores para a redução dos homicídios, mas esse é um elemento
importantíssimo.
Por outro lado essa hegemonia que produz uma
estabilidade no mercado e portanto a redução de violência física ligada a esse
mercado, para se manter depende de uma série de fatores, dentre os quais a
relação da organização (PCC) com o poder público. Sobretudo com as polícias. Eu
chamo de “acomodação precária”, uma espécie de convivência equilibrada, que
garante estabilidade num cenário urbano. Essa crise, de fato, é o resultado de
um esgarçamento dessa relação. Por uma série de motivos esse desequilíbrio se rompeu.
Carta Maior – Acredita que há uma disputa
territorial entre alguns setores da polícia e organizações criminosas em torno
do tráfico de drogas, máquinas de caça níquel ou outras atividade ilícitas?
Camila Nunes Dias – Sendo bem sincera nunca ouvi isso. Apenas li na
imprensa, então não posso afirmar. Acredito que impossível não é. Pode ocorrer
- não como no caso do Rio de Janeiro das milícias. Mas não acho que seja algo
estrutural ou organizacional. Se há essa disputa, ela se apresenta de uma forma
bem localizada e pontual.
Carta Maior – A Operação Saturação vem se repetindo
em São Paulo como uma opção meio espetaculosa dos governos tucanos para
responder a essas crises. Como exemplo ilustrativo: a Secretaria de Segurança
Pública divulgou que uma recente operação realizada no Campo Limpo abordou 1071
pessoas e prendeu 9. O que acha dessas operações, principalmente na relação com
os moradores dessas regiões?
Camila Nunes Dias – Mostra em primeiro lugar uma grande inconsequência.
Um dispêndio de gastos e esforços muito volumosos. Essas operações representam,
de uma lado, uma resposta midiática, para transmitir à parte da sociedade uma
sensação de que o governo está dando uma resposta ao crime, e de outro lado
elas expressam a criminalização das populações mais pobres.
Em comunidades como Paraisópolis, por exemplo, é
evidente que há criminosos – como em quase todas as partes da cidade – mas é
evidente que a esmagadora maioria da população é de pessoas honestas, que
trabalham, etc. Nessas operações, no entanto, estão todos submetidos a essa
ocupação militar, à todas as formas de sujeição, de abusos de direitos, de
exposição à violência, vulnerabilidade. Nós sabemos que é isso que ocorre em
comunidades tomadas por forças militares. Ou seja, não adianta absolutamente
nada. Óbvio que vai ter maior volume maior de apreensões de mercadoria
ilícitas, pessoas presas, mas se trata de operações pontuais que não geram
qualquer efeito no longo prazo.
O que resultou em termos de mudança estrutural as
operações realizadas anteriormente em Paraisópolis? Absolutamente nada. Só tem
um efeito deletério de expor uma população, inclusive crianças, a essa presença
ostensiva da polícia militar. É um tiro no pé a médio prazo, inclusive por
colocar a esta parte da sociedade, o lado mais violento e opressor da polícia.
Expõe as forças policiais a um processo de deslegitimação ainda maior.
Carta Maior – Diante deste cenário, que inclusive
aponta para a existência de grupos de extermínio formada por policiais – se é
que deixaram de existir em algum momento – como vê as respostas anunciadas
pelos governos estadual e federal? Quais seriam medidas que poderiam resolver a
longo prazo a questão da segurança?
Camila Nunes Dias – Em relação aos grupos de extermínio, embora não
hajam provas definitivas, há evidências de que eles existem. De fato é
discutível se eles deixaram de existir em algum momento, mas em situações de
crise essas evidências saltam mais aos olhos.
No caso do governo estadual e mesmo do governo
federal falta uma demonstração de que não vai tolerar este tipo de envolvimento
de policias ou com grupos de extermínio ou envolvimento em retaliações,
vinganças privadas às mortes de policiais. O governo, além de encontrar e
prender responsáveis pelos assassinatos dos policiais, precisa sinalizar que
não vai compactuar e tolerar assassinatos de civis, sobretudo praticados por
policiais. O governo precisa investigar essas execuções das populações das
periferias que estão se tornando rotineiras. Noite após noite estão ocorrendo
chacinas nas periferias e até o momento não ouvi nenhuma palavra do governador
sobre isso.
Carta Maior – Acha que é um bom momento para o
debate da desmilitarização da polícia?
Camila Nunes Dias – Não acho que é um bom momento. Em termos culturais,
essa sensação de insegurança bloquearia a discussão. Em momentos de crise como
esse, os apelos às ações mais repressivas encontram mais espaço para germinar
como forma de solução. Infelizmente a maioria da sociedade pensa que é preciso
fortalecer a polícia militar. Eu sou absolutamente favorável a desmilitarização
da polícia, mas precisamos pensar bem o momento para colocar este debate.
Fábio
Nassif –
Jornalista
Camila
Nunes Dias
– Socióloga, pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP) e
professora na UFABC – 08.11.2012
IN
“Carta Maior” – http://cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21223