sexta-feira, 28 de junho de 2013

A energia social não voltará atrás



André Singer –O lulismo enfrenta duas forças em direções contrárias. Essas manifestações tendem a ser um movimento por aumento de gasto público. E, do lado do capital, vemos pressão pelo corte dos gastos públicos.
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Os problemas urbanos se acumulam e se somam à precariedade da situação do novo proletariado. A situação estava meio anunciada, porque esse setor tem condições agora de reivindicar.
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Não creio que seja um problema do modelo de crescimento. Ele incluiu pessoas excluídas. Com isso, ativou a economia por baixo. Mas houve uma diminuição da margem para isso. Desde 2011, estamos num quadro complicado, que tem a ver com a crise do capitalismo iniciada em 2008. 

Guilherme Evelin
O cientista político André Singer é um festejado teórico do “lulismo” – como ele batizou o alinhamento de segmentos sociais, antes hostis ao PT, às forças políticas comandadas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Embora surpreso com a forma como eclodiu, Singer diz que o movimento que tomou conta das ruas do Brasil estava “meio anunciado”. Ele o relaciona à ascensão de um “novo proletariado”. Nos últimos anos, diz, ele ganhou emprego e renda, mas vive ainda de forma precária. Para Singer, a emergência do movimento coloca o governo Dilma diante de uma encruzilhada. Os manifestantes pedem mais gastos públicos, enquanto o mercado cobra austeridade. 

ÉPOCA – As manifestações são um abalo para o lulismo? Acabou a lua de mel da maioria da população com o PT?
André Singer – Elas representam um possível retorno do movimento de massas, ausente no cenário político brasileiro desde, pelo menos, 1992. Ele começou a desaparecer com a derrota eleitoral de Lula em 1989, quando se encerrou um ciclo de dez anos de mobilizações. O movimento tem hoje características novas e não pode ser ainda caracterizado como um abalo, mas um desafio importante. Coincidiu com um momento complicado da economia. O lulismo enfrenta duas forças em direções contrárias. Essas manifestações tendem a ser um movimento por aumento de gasto público. E, do lado do capital, vemos pressão pelo corte dos gastos públicos. É um momento que representa um desafio para o lulismo. Não havia, nos setores que se mobilizam, uma lua de mel com o governo. Há uma forte base do lulismo no subproletariado, um setor expressivo da população, que não está na rua.

ÉPOCA – Quem está na rua?
Singer – Minha hipótese é que as manifestações estão compostas de duas camadas sociais. Uma são os filhos da classe média tradicional, estabelecida assim há mais de uma geração, que possivelmente puxaram as manifestações. Elas ganharam adesão também do que chamo de novo proletariado. Não é uma nova classe média. São jovens que não pertencem a famílias nitidamente de classe média, mas passaram a ter emprego por causa do lulismo. Mas têm empregos precários, com alta rotatividade, más condições de trabalho e baixa remuneração. Ao longo das manifestações, a participação desse segundo grupo foi aumentando. Isso talvez explique por que, na segunda etapa, elas se expandiram pela Grande São Paulo, pelo Grande Rio e pelas cidades em torno das capitais. A segunda camada é muito mais extensa do que a primeira e mostra o potencial do movimento.

ÉPOCA – A que o senhor atribui a insatisfação que emergiu?
Singer – O lulismo é um processo de reformismo fraco, de mudança estrutural do Brasil, mas muito lento e concentrado no subproletariado, os mais pobres. De um modo geral, esse subproletariado não está nas capitais. É mais expressivo no Nordeste ou no interior do que nas grandes capitais. O lulismo é um modelo que favoreceu essa camada e, indiretamente, também os trabalhadores urbanos, porque aumentou emprego e renda. Mas os problemas urbanos das grandes metrópoles são muito caros. Para você conseguir resolvê-los, precisa fazer investimentos gigantescos, que teriam de sair dos cofres públicos. Para isso, teria de haver um rearranjo, em matéria tributária ou de serviços da dívida, ou na forma de taxação das grandes fortunas, ou tudo isso junto. Isso não foi feito. Os problemas urbanos se acumulam e se somam à precariedade da situação do novo proletariado. A situação estava meio anunciada, porque esse setor tem condições agora de reivindicar. Na verdade, foi completamente inesperada a maneira como o movimento emergiu. Mas, em retrospecto, a equação que explica o que aconteceu é bem clara.

ÉPOCA – Por que o senhor localiza o fim do movimento de massas em 1989 – e não no impeachment de 1992?
Singer – As manifestações pelo impeachment de Collor são uma espécie de uma última aparição daquele grande ciclo, que já terminara. O ciclo acaba em 1989, porque a derrota de Lula abriu a porta para o neoliberalismo no Brasil e quebrou a espinha dorsal da classe trabalhadora organizada, com aumento do desemprego. Houve uma diminuição expressiva no número de trabalhadores industriais nos anos 1990, seguida pela década do lulismo, onde começou a recomposição do trabalho. É um erro pensar que os movimentos sociais de massa ocorrem na depressão econômica. Eles ocorrem depois da ascensão das condições econômicas.

ÉPOCA – As manifestações não têm liderança, não têm organização, não têm partido. Por que virariam um grande movimento?
Singer – Há uma recusa dos partidos, dos sindicatos, das instituições tradicionais. O princípio fundamental é a descentralização. São movimentos horizontais, em que a orientação principal é não ter hierarquia. Essa horizontalidade tem uma enorme vantagem. Os movimentos são pouco propensos à burocratização, grande problema de partidos e sindicatos. Isso é extremamente saudável. Mas há uma contrapartida: eles não têm uma direção clara e centralizada. Essa característica torna esses movimentos mais difíceis de entender. No que isso vai dar? Foi desencadeada uma energia social que não voltará atrás rapidamente. O curso que ela encontrará não sei dizer. Mas acredito que outras coisas desse tipo virão.

ÉPOCA – Quais serão as consequências no sistema político?
Singer – O novo ator impacta o sistema político, mas não o substitui. O sistema político continuará funcionando. Não deixará de existir, porque, na verdade, passamos por um momento em que esses novos movimentos não têm alternativa. Os partidos terão de incorporar coisas, dialogar com o movimento, fazer concessões, mudar. Alguns ganharão. Outros perderão. Para dar um exemplo concreto, o próprio movimento da Marina Silva é uma antecipação disso, porque ela fala aos ouvidos de parte dos manifestantes.

ÉPOCA – Marina será a grande ganhadora?
Singer – Não digo isso, porque, embora esse movimento se caracterize pela horizontalidade, ele tem uma agenda materialista. Estamos falando da distribuição da riqueza. É isso que está em jogo: para onde vão os recursos, sejam os públicos, sejam os que transitam entre capital e trabalho. Marina lida muito mal com essa agenda materialista, porque ela quer ficar no meio. Essa posição é inviável.

ÉPOCA – Qual pode ser a consequência nas próximas eleições presidenciais? Atrapalha a reeleição da presidente Dilma?
Singer – É impossível fazer um prognóstico. As manifestações pendem para a esquerda. O impacto sobre a candidatura Dilma dependerá de como ela lidará com essa pressão, por mais recursos para transporte, saúde, educação e segurança.

ÉPOCA – E o PT? Como será afetado?
Singer – O PT está desafiado, com o lulismo. Como o PT tem uma importante, embora não dominante, facção de esquerda, esses setores estão diante de perguntas existenciais.

ÉPOCA – O lulismo atendeu aos anseios de consumo de parte da população. Esse modelo de crescimento não foi posto em xeque pelas manifestações, que pedem melhores serviços públicos e não mais consumo?
Singer – Não creio que seja um problema do modelo de crescimento. Ele incluiu pessoas excluídas. Com isso, ativou a economia por baixo. Mas houve uma diminuição da margem para isso. Desde 2011, estamos num quadro complicado, que tem a ver com a crise do capitalismo iniciada em 2008. Acreditava-se que tinha sido contida em 2009. Na verdade, não conhecemos ainda o final do túnel. Se a economia tivesse continuado com um crescimento maior, haveria margem para investir mais em saúde, educação, segurança. Mas ela anda devagar. Os recursos estão mais escassos. Os juros subiram. As restrições ao capital especulativo foram retiradas. E agora há uma enorme pressão para cortes de gastos públicos. Há um pacote para produzir um ajuste recessivo na economia. De alguma maneira, as manifestações dizem: “Isto não!”.


ÉPOCA – O senhor diz que o lulismo não procurou enfrentar o capital na política econômica. Nos últimos dois anos, o governo a flexibilizou, e os resultados foram crescimento baixo e inflação mais alta, por causa dos gastos públicos. A estratégia desenvolvimentista de Dilma não deu resultados.
Singer – Isso mesmo. Na crise mundial, o governo Dilma decidiu dar um passo à frente e modificou os termos da política neoliberal. O resultado, em crescimento, foi decepcionante. Os economistas dizem: faltou investimento. Algo na equação então falhou, porque tudo foi feito para proteger o capital produtivo brasileiro. Tenho ouvido reclamações contra o intervencionismo do governo, mas é um intervencionismo para facilitar a vida desse capital. O que não funcionou não está claro ainda. Não quero subestimar o tamanho dos problemas. Mas, se é para seguir a linha reformista, esses problemas precisam ser enfrentados para manter as mudanças. Se voltar à agenda neoliberal, não dá para fazer as mudanças.

ÉPOCA – Mas Dilma já tem recuado. Aumentou os juros e voltou ao câmbio flutuante.
Singer – O governo tem recuado nos últimos seis meses. O capital pede um novo recuo, com o corte dos gastos públicos. Essas manifestações pedem o aumento dos gastos. Por isso, é um momento em que os desafios são sérios e cruciais. Essa é a questão: para onde o governo penderá nessa bifurcação.

ÉPOCA – Pode haver uma desestabilização do governo?
Singer – Não creio. O governo tem capacidade de entender o que acontece e demonstrou que não está descolado. Tenho certeza de que tentará equacionar as questões.

ÉPOCA – Como resultado, as instituições mudarão?
Singer – Sim e não. Sim, pois serão obrigadas a alguma abertura. Mas não a ponto de se desfazer. Os sistemas político e econômico continuarão em suas bases tradicionais. Pode estar se abrindo um ciclo longo, em que haverá as duas coisas. É o que acontece na Europa e mesmo em outros países, onde ocorreu a Primavera Árabe. Os movimentos lá foram enormes, mudaram o regime político. Mas, quando houve eleição, os partidos tradicionais ganharam. É o que deverá acontecer aqui. Temos, nas ruas, milhares de pessoas. Mas o eleitorado são milhões. Esses milhões é que votarão e decidirão. 


André Singer – Cientista Político e Professor da FFLCH/USP – 23.06.2013.
Guilherme Evelin – Jornalista da Revista Época.

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Cheque a informação antes de divulgar algo sério via redes sociais


fico assustado com a quantidade de coisa mal checada e precipitada que circula pelas redes sociais, principalmente em momentos de grande comoção. Fofoca sempre existiu, mas agora é transmitida em massa e em tempo real. As plataformas digitais em redes sociais ajudam a mudar o modo como nos comunicamos e fazemos fluir informação pela sociedade, alterando – consequentemente – as estruturas tradicionais de poder. O que é fantástico. Mas se elas ajudam a furar bloqueios e formar, também desinformam.

Leonardo Sakamoto
Facebook e Twitter têm sido fundamentais para catalisar o processo de mobilização dos últimos dias.
Mas, ao mesmo tempo, uma situação nova como esta, em que não é possível prever o que acontecerá logo em seguida, é um terreno fértil para cultivar boatos. Muita coisa fake tem corrido a rede loucamente, criando medo. Tenho encontrado pessoas que estão apavoradas ou, pior, histéricas por conta de postagens.
Segui o histórico de replicação dessas postagens e cheguei aonde? Em lugar algum, nada que sustente a informação. Ou era “telefone sem fio”, do tipo “quem conta um conto aumenta um ponto”, ou problemas de interpretação de texto sobrepostos ou um pessoal que, acredito, criou a história porque lhes era conveniente. Igual a uma cebola: é grande, é dura, mas se você for descascando descobre que, lá dentro, não tem nada.
Como já escrevi, fico assustado com a quantidade de coisa mal checada e precipitada que circula pelas redes sociais, principalmente em momentos de grande comoção. Fofoca sempre existiu, mas agora é transmitida em massa e em tempo real. As plataformas digitais em redes sociais ajudam a mudar o modo como nos comunicamos e fazemos fluir informação pela sociedade, alterando – consequentemente – as estruturas tradicionais de poder. O que é fantástico. Mas se elas ajudam a furar bloqueios e formar, também desinformam.
Tem sempre um pilantra distorcendo ou descontextualizando informação e divulgando-a, por ignorância, má fé ou visando a um objetivo pessoal ou de seu grupo. Ou aqueles que misturam realidade e desejo, fato e ficção, consciente ou inconscientemente.
Fiz com a ajuda de colegas jornalistas, há algum tempo, dez conselhos para usar bem o Twitter e o Facebook na cobertura de um acontecimento. Trago eles de novo, atualizados para o momento. Já ouço lá no fundo alguém me chamar de censor. Bem, alguns podem achar que o certo seria divulgar tudo e deixar os próprios internautas perceberem o que é mentira. Tipo: deixa que o mercado se regular sozinho que, automaticamente, o  bem estar da população será atendido. Faz me rir.
Uma informação errada ao ser divulgada causa um impacto negativo contrário maior do que sua correção. Ou seja, muitas vezes, o desmentido (por ser mais sem graça) não chega tão longe quando a denúncia.
Há muita coisa acontecendo nesses tempos interessantes em que vivemos. Tudo tem que ser encarado com calma e responsabilidade. Então, controlem a emoção.

Os Dez Mandamentos para Jornalista de Facebook e Twitter
1) Não divulgarás notícia sem antes checar a fonte da informação.
2) Não divulgarás notícias relevantes sem atribuir a elas fontes primárias de informação. Um “cara gente boa” ou uma BFF não é, necessariamente, fonte de informação confiável
3) Tuítes e posts “apócrifos”, sem fonte clara, jamais serão aceitos como instrumento de checagem ou comprovação.
4) Não esquecerás que informação precede opinião.
5) Não confirmarás presença em eventos duvidosos do Facebook sem antes checar o tema e o naipe do organizador. Por exemplo, quem tem fetiche por armas não combina, necessariamente, com pautas de paz. E terás cuidado com o que atestas. Um “like” não é inofensivo.
6) Lembrarás que mais vale um tuíte ou post atrasado e bem checado que um rápido e mal apurado. E que um número grande de retuítes, compartilhamentos e “likes” não garante credibilidade de coisa alguma.
7) Não matarás – sem antes checar o óbito.
8 ) Não se esquecerás que a apuração in loco, por telefone e/ou por e-mail precede, em ordem decrescente de importância, o chute.
9) Não terás pudores de reconhecer, rapidamente e sem poréns, o erro em caso de divulgação ou encaminhamento de informação incorreta.
10) Na dúvida, não retuitarás, compartilharás ou darás “like” em coisa alguma. Pois, tu és responsável por aquilo que repassas e atestas. Ou seja, se der merda, você também é culpado.


Leonardo Sakamoto – Jornalista e Doutor em Ciência Política. Professor da PUC/SP– 24.06.2013

segunda-feira, 24 de junho de 2013

¿Por qué las desigualdades están creciendo?


las causas mayores del crecimiento de las desigualdades tanto dentro de cada país como a nivel mundial son políticas (es decir, relacionadas con las relaciones de poder) más que económicas. En aquellos países donde el mundo del trabajo tiene mayor poder político hay menos desigualdades. Y en aquellos países donde el capital (los grandes grupos financieros y económicos) tiene mayor influencia política, las desigualdades son mayores.

Vicenç Navarro
Que las desigualdades en la mayoría de países de la OCDE (el club de países más ricos del mundo) han ido creciendo hasta alcanzar niveles no conocidos desde principios del siglo XX es una realidad que ya casi nadie cuestiona. Sólo algunos ultraliberales, que también niegan que haya cambio climático, continúan negando este hecho. Las explicaciones más frecuentes que se dan a este crecimiento de las desigualdades son predominantemente dos. Una es la introducción de nuevas tecnologías que eliminan muchísimos puestos de trabajo en los países más desarrollados económicamente, eliminación que se centra primordialmente en los puestos de trabajo de escasa cualificación. De ahí que, según tal argumento, haya un elevado desempleo en tales países en los sectores de trabajadores poco cualificados. Esto explica el énfasis que muchos gobiernos dan al desarrollo de un modelo educativo encaminado a corregir tal escasa cualificación. La solución propuesta por aquellas opciones políticas que atribuyen las desigualdades al escaso desarrollo de formación cualificada entre la población es mejorar la cualificación a través de la educación.
Tal argumento, sin embargo, explica muy poco el crecimiento de las desigualdades, pues la automatización de los puestos de trabajo de baja cualificación no es un fenómeno nuevo. Antes al contrario, la automatización ha existido desde el principio del trabajo asalariado, habiendo sido una constante en el diseño del trabajo. No parecería ser, pues, que tal automatización pudiera ser una causa mayor de la destrucción de los puestos de trabajo y de la extensión del desempleo. Es más, tal automatización está afectando también a puestos de trabajo de elevada tecnología y cualificación. Hoy, un técnico especialista en lecturas de radiografías, por ejemplo, sustituye en muchos hospitales a radiólogos con doctorados. En realidad, no hay evidencia de que las nuevas tecnologías estén afectando más a los trabajadores con menos cualificaciones que los que tengan más cualificaciones. Es más, según las estadísticas de empleo del gobierno federal de EEUU, los puestos de trabajo que están creciendo más son los primeros, los de baja cualificación, mucho más que los de elevada cualificación. No parece, pues, convincente que los cambios tecnológicos sean una causa de este enorme crecimiento de las desigualdades.

¿La globalización como causa del crecimiento de las desigualdades?
La segunda explicación más común que se da para explicar tal crecimiento es la globalización económica. Constantemente se hace referencia a los puestos de trabajo que se están yendo, por ejemplo, a la China, puestos de trabajo que por regla general son de escasa cualificación. Hay un elemento de verdad en este argumento. Pero sólo un elemento de verdad pues este argumento ignora que esta exportación de puestos de trabajo se centra primordialmente en puestos de trabajo de baja cualificación y ello a pesar de que en los países donde tales puestos de trabajo se instalan, también tienen muchos profesionales de elevada cualificación que harían gustosamente (y con menor salario) los trabajos de alta cualificación que existen en los países donde se exportan primordialmente trabajos no cualificados. El hecho de que sean estos últimos y no los primeros los que se exportan se debe, como bien dice Dean Baker (del Center for Economic and Policy Research de EEUU), que los profesionales de elevada cualificación tienen mucho más poder en los países que exportan puestos de trabajo que los trabajadores no cualificados. Tales profesionales, a través de sus organizaciones profesionales, son capaces de influenciar al Estado para que desarrolle políticas proteccionistas que no permitan tal competitividad con los profesionales extranjeros. Se me dirá, con razón, que tales puestos de trabajo cualificados también se están exportando. Pero está ocurriendo con menor frecuencia que entre los no cualificados.
Este hecho muestra como las causas mayores del crecimiento de las desigualdades tanto dentro de cada país como a nivel mundial son políticas (es decir, relacionadas con las relaciones de poder) más que económicas. En aquellos países donde el mundo del trabajo tiene mayor poder político hay menos desigualdades. Y en aquellos países donde el capital (los grandes grupos financieros y económicos) tiene mayor influencia política, las desigualdades son mayores. Los países escandinavos que, debido a su escaso tamaño han tenido economías altamente globalizadas (es decir integradas en la economía mundial), son países, sin embargo, con menos desigualdades y ello se debe al gran poder que históricamente han tenido las izquierdas en aquellos países, una situación que es opuesta a la de los países del sur de Europa, que históricamente han tenido unas derechas fuertes y unidas y unas izquierdas débiles y desunidas, responsables de que existan grandes desigualdades en estos últimos países.

Las causas mayores del crecimiento de las desigualdades se deben a la enorme influencia política del mundo del capital a costa del mundo del trabajo
Lo cual me lleva al último punto que quiero subrayar. El enorme crecimiento de las desigualdades es un indicador de la enorme influencia del capital financiero y empresarial sobre los aparatos del Estado a costa de la influencia del mundo del trabajo, que ha ido perdiendo su influencia sobre aquellos aparatos. La incorporación y desarrollo de la ideología neoliberal dentro de las políticas públicas de los partidos gobernantes, incluidas las izquierdas mayoritarias, es una consecuencia de este diferencial de influencias que tienen las distintas clases sociales sobre el Estado. En otras palabras, es la victoria del capital sobre el trabajo la que ha llevado a una enorme concentración de las rentas y de la propiedad, transformando la lucha de clases tradicional en otro conflicto que es mucho más amplio que el existente entre la burguesía por un lado y la clase obrera por el otro. A este último conflicto (que continúa existiendo) hay que añadirle el conflicto de una minoría de la población en contra de la gran mayoría. De ahí que la solución a este enorme crecimiento de las desigualdades sea la democratización de los aparatos del Estado convirtiéndolos en una institución al servicio de la mayoría, en lugar de al servicio a la minoría, como está ocurriendo ahora. La evidencia científica que apoya tal explicación del crecimiento de las desigualdades es abrumadora.
Y esta democratización no ocurrirá a no ser que se rompa el lazo que une los equipos dirigentes de los partidos gobernantes con los equipos gestores de las grandes corporaciones e instituciones financieras. Es más que preocupante ver este lazo reproducirse incluso en los partidos de centroizquierda gobernantes, donde vemos exdirigentes de la socialdemocracia en puestos de servicio a algunas de las empresas que se han beneficiado y continúan beneficiándose más de la intervención del Estado. Este hecho debería denunciarse, pues es esta ligazón la que está en la raíz del problema del crecimiento de las desigualdades. Hoy, la pérdida de legitimidad de la democracia se basa precisamente en el excesivo poder que el mundo del capital (y más en especial el capital financiero) tiene sobre el Estado. No podrá desarrollarse la ya escasamente desarrollada democracia en España a no ser que se rompa este lazo del mundo financiero y empresarial con el Estado. Cuando Endesa, por ejemplo, invita a una ex Ministra de Economía del PSOE a integrarse en su equipo de dirección, no lo hace por su conocimiento del sector energético, sino porque es una fuente de conocimiento y contactos en las estructuras del Estado que beneficia a tal empresa, una empresa cuyo servicio a la sociedad es muy cuestionable y poco ético, comportamiento facilitado por una excesiva influencia sobre el Estado. El número de dirigentes del PSOE que hoy ocupan puestos en las grandes empresas del país es enorme. Esta relación entre mundo financiero y mundo empresarial con los partidos conservadores y liberales ha sido la característica que ha definido a tales partidos de derechas. Lo que es preocupante es que esta relación se está produciendo también en los partidos mayoritarios de izquierda. Ahí está el origen del crecimiento de las desigualdades. Éstas son consecuencias de este maridaje de poder económico y político.

Últimas observaciones sobre las desigualdades en España
Existe entre amplios sectores de las izquierdas en España una percepción errónea de que lo que ocurre en España está predominantemente determinado por fuerzas exteriores a España. Esta percepción aparece en la frase constantemente reproducida en forums políticos y mediáticos del país “que los estados están desapareciendo” y/o “es poco lo que pueden hacer hoy en día”.
Tal postura es profundamente errónea y sirve para justificar políticas públicas reaccionarias e impopulares. La congelación de las pensiones (presentada como resultado de las presiones de la Comisión Europea y del Banco Central Europeo) es un ejemplo de ello. El estado podría haber conseguido incluso más dinero revirtiendo la bajada del impuesto de sucesiones que había aprobado en un periodo anterior. Estas políticas de clase se están llevando a cabo por las elites gobernantes en España, en alianza con las elites gobernantes de la Unión Europea con las cuales comparten intereses de clase.
Las enormes desigualdades en España (España es el país que, después de Letonia, tiene mayores desigualdades en la UE) están basadas en la excesiva influencia de la banca y la gran patronal sobre el estado, realidad que es percibida por la ciudadanía correctamente. Según la Encuesta de Tendencias Sociales, los bancos y la CEOE son percibidos como los sectores que tienen más poder en España por la mayoría de la población española. La expresión de su abusivo poder sobre el Estado es la mayor causa de la pérdida de legitimidad de la democracia. Y es esta influenza que ha ya alcanzado unos niveles sin precedentes en el periodo democrático y que explica que, a pesar de que el porcentaje de la población activa ha ido aumentando, las rentas del trabajo como porcentaje de la Rentas Nacional haya disminuido siendo hoy, un porcentaje menor que las rentas del capital, es decir, que los beneficios empresariales, situación que se ha acentuado todavía más en estos años de crisis (desde 2007), en el que el porcentaje de la población con empleo ha disminuido. La crisis ha dañado el nivel de vida de la población trabajadora. Hoy el 20% de la población de mayor renta (burguesía, pequeña burguesía y clases medias profesionales) poseen más renta que la gran mayoría de la población (el 60%). Y puesto que este 20% domina la vida política y mediática del país, España continúa y continuará siendo el país con mayores desigualdades de la UE. Así de claro.

Vicenç Navarro Cientista social. Foi professor catedrático da Universidade de Barcelona e hoje dá aulas nas universidades Pompeu Fabra e Johns Hopkins. Por sua luta contra o franquismo, viveu anos exilado na Suécia – 14.01.2013
IN El Plural – http://www.vnavarro.org/?p=8323

sábado, 22 de junho de 2013

O bispo e seus tubarões


O impeachment a Fernando Lugo começou a ser tramado em 2008. Sem provas, destituição deveria “servir de lição a futuros governantes”.

Natália Viana
Na quarta-feira 22 de agosto de 2012, poucas coisas em Assunção, capital do Paraguai, lembravam os dois meses da destituição do presidente em um julgamento-relâmpago que surpreendeu todo o continente. Grupos de homens jogavam dominó na Plaza de la Democracia, ambulantes ofereciam câmbio de dólares as turistas e estudantes uniformizados iam e vinham dos colégios em casarões coloniais; à parte algumas pichações nos muros chamando o atual presidente, Federico Franco, de golpista – “as paredes falam”, dizia uma delas – a vida seguia seu ritmo normal.
Na sede do movimento Frente Guazú, coalizão de esquerda que integrava o antigo governo, o clima não era muito diferente. Às quartas-feiras o presidente deposto, Fernando Lugo, costuma tirar folga; então não havia ali o costumeiro entra-e-sai de ex-ministros que ainda se reúnem diariamente com o ex-chefe. Foi na última hora que se improvisou a gravação de um “comunicado à nação” transmitido pela internet, uma espécie de continuação do discurso semanal que Lugo, quando presidente, realizava na TV Pública.
Sentado no seu pequeno escritório no mezanino do casarão – do outro lado da rua fica a residência presidencial, ocupada pelo seu ex-vice – e diante da bandeira paraguaia, Lugo estava relaxado, de camiseta vermelha e sandália de couro, brincando com sua equipe e a repórter da Pública, que aguardava para a última de três entrevistas com o ex-presidente.  “Hoje faz dois meses que se executou no Paraguai um golpe de Estado parlamentar… Um golpe de Estado que não levou em conta a democracia participativa, não levou em conta o seu voto, a sua participação, a sua dignidade”, dizia, apontando para a câmera.
Apesar de ter sido o último presidente latinoamericano destituído do cargo, em um julgamento que levou menos de 24 horas para ser concluído, classificado como ruptura democrática por organizações regionais como Mercosul (Mercado comum do Sul) e Unasul (União de Nações Sul-Americanas), Lugo permanecia desconcertantemente tranquilo. “Eu o vejo muito bem”, comenta o militar que fazia sua escolta pessoal desde a época na presidência. “Parece que ele está até menos preocupado…”
Durante quatro anos, Lugo governou com o parlamento mais arisco da América Latina – apenas 3 deputados em 80 e 3 senadores em 45 eram da Frente Guazú – contando apenas com uma frágil aliança com o Partido Liberal de seu vice. “Não tínhamos quadro, não tínhamos apoio político, era só confronto”, resume, melancólico, numa tarde calorenta em sua residência na capital paraguaia. “Quando eles me elegeram em 2008, pensaram que eu seria o bobo deles, mas isso eu me nego a fazer”, diz referindo-se aos liberais, segunda maior força política no país. Entre frases pausadas, Lugo suspira: o poder, de fato, nunca foi totalmente seu. “Eu sabia que iria terminar assim”.
Representante da Teologia da Libertação, Fernando Lugo era conhecido como “o bispo dos pobres” até renunciar à batina em 2006. Bispo da diocese de São Pedro, uma das regiões mais pobres do país, coordenava as comunidades eclesiais de base e trabalhava diretamente com movimentos camponeses e sem terra. Ao optar pela política, foi suspenso pela igreja católica, mas seguiu sua trajetória aliando a aura religiosa com um discurso progressista em favor dos camponeses e da redistribuição de riqueza. A popularidade o consagrou e o Partido Liberal, arraigado em todo o país, forneceu a estrutura, abraçando uma oportunidade única de finalmente chegar ao governo, depois de seis décadas; a aliança, no entanto, seria arenosa.
Em abril de 2008, Lugo venceu por dez pontos percentuais, pondo fim a 60 anos de domínio do Partido Colorado, o mesmo do antigo ditador Afredo Stroessner.

Nada de novo
O fim repentino do governo Lugo não chegou a ser uma surpresa – basta ler a cobertura da imprensa paraguaia nos últimos 4 anos. Pouco depois da posse, em agosto de 2008, o termo “juízo político” – versão paraguaia do impeachment – passou a figurar repetidamente, de maneira quase banal, nas sessões do Congresso e nas páginas dos jornais diários. “Eu não tenho medo porque não encontro motivos lógicos, válidos, para que o presidente seja julgado politicamente pelo Parlamento Nacional”, ele declarou, já em fevereiro de 2009, em uma conferência de imprensa.
“Não cometi nem faltei à Constituição Nacional no desempenho das minhas funções”. Na época, não havia nenhum um motivo concreto para um impeachment, além do rumor de que o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos tramava sua derrubada com o general Lino Oviedo, líder do partido direitista Unace, homem que tentara dar um golpe de Estado – militar –  em 1996.  Antes mesmo da posse, Oviedo apostava com o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos que Lugo “ia durar apenas de 3 a 9 meses no cargo”.
A cada novo escândalo envolvendo o governo, ou Lugo, as duas palavrinhas voltavam à tona. Os partidários do ex-presidente contabilizaram 23 tentativas, por membros do Congresso, de utilizar o “juízo político”. No final de 2009 o senador liberal Alfredo Jaeggli, um dos mais aguerridos promotores da causa, falava abertamente à imprensa sobre um plano para destituir o presidente em seis meses, “antes que se fortaleça”. “Quero que este senhor se vá”, afirmava.
Dentro do partido liberal, pretensamente aliado no governo, o impeachment tinha um apoio de peso: Julio César Franco, o “Yoyito”, irmão do vice-presidente Federico Franco. Yoyito também fez suas apostas quando, na mesma época, surgiram notícias de que Lugo tivera três filhos enquanto ainda era sacerdote, o que gerou novo escândalo político. Yoyito disse a um repórter que o fato era “imoral”, mas não o suficiente para derrubá-lo. “Deve ser um fenômeno mais político”, afirmou. Aproveitando o momento, Federico Franco também falava abertamente sobre sua ambição de ocupar o cargo. “No domingo, fizemos uma entrevista em um café de manhã com o vice-presidente Federico Franco, que mal terminou de expressar o seu apoio a Lugo, nos lembrou que está capacitado para substituí-lo caso ocorra um eventual juízo político”, descreveu o jornalista Nicasio Vera, do jornal ABC Color, em dezembro de 2009, num editorial entitulado “A angústia de Federico”.
“Foi um pesadelo constante”, relembra o presidente deposto. “Trabalhávamos com muitas desconfianças e dúvidas sobre as suas intenções. Mas não havia outra alternativa”.
O governo Lugo desagradava grande parte dos congressistas. “Nenhum governo foi interpelado pelo Congreso tantas vezes quanto o nosso”, diz, suspirando, uma senhora baixinha e gordinha, de olhar firme e expressão cansada. Reconhecida dentro e fora do círculo de Lugo como sua melhor ministra, Esperanza Martinez foi titular da Saúde do primeiro ao último dia de governo. Em entrevista na sede da Frente Guazu, ela tenta lembrar quantas vezes foi prestar esclarecimentos diante dos deputados: “Olha, foram mais de 50 vezes, ao longo dos 4 anos… A cada 2, 3 semanas eu tinha que ir lá explicar gastos em recursos humanos, em tal licitação… Me ofendiam. Uma vez disseram que eu era muito gorda para ser ministra de saúde”.  À frente da pasta, ela foi responsável pela maior – e mais sutil – afronta aos partidos que tradicionalmente governam a política paraguaia: saúde gratuita.
A busca pela universalização da saúde combatia de uma vez duas enfermidades: a corrupção dos funcionários, que guardavam parte da “caixinha” dos hospitais, e o clientelismo político. “Antes você tinha que ser filiado a algum partido para conseguir um leito no hospital, ou uma ambulância. Se tinha um problema de saúde, tinha que ir a um político local ou à sede do partido… O que fizemos foi devolver o serviço de saúde à população sem intermediação de partidos”. No Paraguai, a lealdade ao partido passa de pai para filho. Tanto que o Partido Colorado é um dos maiores, em número de filiados, da América do Sul: quase dois milhões. Já o Partido Liberal tem 1,2 milhão. Juntando os dois, dá quase metade da população total do país, de 6,5 milhões. Pra se ter uma ideia, o PMDB, maior partido do Brasil, tem 2,3 milhões de filiados; o PT tem 1,5 milhão.
Outro membro do governo que enfurecia colorados, liberais e proprietários de terra era o engenheiro agrônomo Miguel Lovera, que assumiu o Senave, Serviço Nacional de Qualidade e Sanidade Vegetal e Sementes em abril de 2010. Seu maior pecado foi decretar a resolução 660, que ditava normas para a aplicação de agrotóxicos, estabelecendo a necessidade de autorização para a realização de fumigações aéreas e terrestres e de avisar aos vizinhos com 24 horas de antecedência, indicando produtos a serem utilizados e grau de toxicidade.
O ex-diretor do Senave também comprou briga com o setor agroexportador, em especial da soja – o Paraguai é o quarto maior exportador mundial – ao aumentar os critérios para  liberação do uso de agrotóxicos e cancelar vários registros cujos processos estavam incompletos. O setor conclamou um tratoraço – protesto em que tratores bloqueariam a estradas do país – para o dia 25 de junho. Não daria tempo.
Em um jogo de xadrez complicado para quem não conhece a política paraguaia, o ex-presidente contava, para não ser deposto, com o inusitado apoio do mesmo Partido Colorado, que não queria um impeachment que resultasse na posse do vice, liberal: “Os liberais nunca tiveram ajuda do Partido Colorado. Sempre tive certeza de eles não aceitariam um juízo político para colocar um liberal como presidente”, revela Lugo. “Os membros do Partido Colorado mesmos me diziam, ‘fica tranquilo, não vai ocorrer nada, eles não têm os votos sem nós…”.
A relação de Lugo com o seu vice era “tensa, para dizer o mínimo”, na visão da embaixadora americana Liliana Ayalde, que enviou mais de 15 comunicados a Washington sobre movimentações em prol de um impeachment, vazados pelo WikiLeaks. Em um país com uma institucionalidade frágil, a embaixada americana sempre foi um dos mais importantes centros de poder – e local favorito para as discussões sobre a destituição do presidente.
“Os tubarões políticos ao redor de Lugo continuam a rondá-lo em busca de espaço e poder”, escreveu Ayalde em 6 de maio de 2009.  “Rumores dão conta de que o golpista General Lino Oviedo, o ex-presidente Nicanor Duarte Frutos, e/ou o Vice-Presidente Federico Franco continuam a procurar maneiras de encurtar o mandato de Lugo. A maioria das teorias se baseia em um impeachment contra Lugo, o que requereria 2/3 dos votos na câmara para fazer a acusação e 2/3 no Senado para condená-lo”, descrevia Ayalde, com precisão. “O resultado desta equação parece ser a própria versatilidade de Lugo e força (que tem nos surpreendido), a capacidade dos seus oponentes de executar um golpe democrático (que esperamos que não nos pegue de surpresa) e o fator do tempo”, concluía a embaixadora americana.

Minha amiga Ayalde
Início de agosto de 2012. No celular blackberry do já ex-presidente Fernando Lugo, brilha uma mensagem carinhosa, enviada de Liliana Ayalde para seu email pessoal. “Espero que você esteja bem. Votos de melhoras”. Lugo conversava com esta repórter no lobby do hotel Tripp, em São Paulo, onde estava hospedado para seguir o tratamento de um câncer linfático. Daí a mensagem de Ayalde.
Substituída na embaixada em 2011 – ela assumira o cargo 4 dias antes da posse de Lugo – Liliana subiu na hierarquia e hoje é responsável pelo Caribe, América Central e Cuba no departamento de Estado de Hillary Clinton. “Ela é minha amiga. Quer dizer, era minha amiga…”, disse Lugo, em tom hesitante. “Bom, ela me salvou. Muitos líderes de oposição iam a ela pedir que me tirasse do poder”.
Um documento de dezembro de 2008 descreve como. Apenas quinze dias depois da posse, Ayalde escreve sobre “um turbilhão de rumores e notícias exageradas na imprensa” sobre um golpe de Estado. As informações vinham de uma reunião entre Lino Oviedo, Nicanor Duarte, e o então presidente do Senado Enrique Gonzalez Quintana, também do partido Unace. Escreve Ayalde: “Gonzalez Quintana fez numerosas tentativas de contatar a embaixadora em 1 de Setembro, quando a história vazou. Consciente da vontade dos paraguaios de trazer os EUA para dentro das seus disputas internas, ela não atendeu aos telefonemas” diz o cable, cujo sugestivo título  é “Rumores de golpe: apenas um dia normal no Paraguai”.
Três dias antes, Lugo havia jantado com Ayalde na sua residência, onde disse querer manter reuniões, “oficiais e não oficiais, de maneira discreta”, conforme documento do WikiLeaks. Entre comentários pessoais – contou que gostava de caminhar ao amanhecer, ouvir música e que tocava violão – ele usou a ocasião para testar a postura da nova embaixadora. “Lugo constatou que foi uma prática frequente na história do Paraguai que a embaixada se intrometesse em assuntos internos”, relata Ayalde. “A embaixadora agradeceu pela observação, e assegurou que estilos diferentes são apropriados para tempos diferentes, e que a sua intenção era respeitar a soberania do Paraguai e garantir o sucesso do então presidente”.
Um ano depois, o secretário-assistente do Departamento de Estado dos EUA para o hemisfério, Arturo Valenzuela, reiterou o apoio ao governo Lugo. Em visita ao país, depois de ouvir uma enxurrada de crítica dos parlamentares e comentários sobre o impeachment pendente – com a devida explicação de que não se trataria de um “golpe”, o americano encerrou o papo. “Valenzuela compreendeu que um processo constitucional de impeachment não é igual a um golpe, mas alertou que o Paraguai não deveria usar o impeachment como um mecanismo para resolver problemas de curto prazo sem considerar cuidadosamente as consequências”, relata outro cable, de 31 de dezembro de 2009.
A missão diplomática americana, claro, jamais fechou totalmente as portas para as vozes que pediam repetidamente a destituição de Lugo. Muitas vezes, os líderes da oposição eram fotografados pela imprensa ao sair, orgulhosos, de reuniões na embaixada. Poucos integrantes do governo ligavam; um deles, um fervoroso general nacionalista, foi o único a protestar veementemente. Caiu.

Cai o Ministro da Defesa
É muito difícil apontar o exato momento em que o frágil equilíbrio de apoios ao governo Lugo ruiu. Mas pergunte a um general reformado, de olhos pequenos e gestos enfáticos, e ele precisará a o mês de fevereiro de 2010 como o começo do fim.
Bareiro Spaini foi o escolhido por Lugo para assumir o ministério da Defesa por contar com elevada reputação não só entre os militares mas também entre civis – foi o primeiro juiz de um tribunal militar, no Paraguai, a condenar à prisão outro general por corrupção. Era ele que aparecia ao lado do presidente em cadeia nacional, junto aos comandantes militares, nas repetidas vezes que os boatos de impeachment ganhavam força.
O general, como Lugo, vivia às turras com os parlamentares paraguaios, tendo perdido as contas de quantas vezes foi convocado pelo Congresso para prestar esclarecimentos. Quando reconta a história, deixa transparecer ainda uma irritação profunda. “Me interrogaram no Congresso muitas vezes”, diz Spaini. “Me chamaram por causa da vinda de um avião venezuelano ao aeroporto, sem haver passado pelos registros oficiais. Não importa se eu tinha ou não responsabilidade. Uma vez, me pediram explicações sobre uma jovem que foi morta no lado brasileiro e depois levada para o lado paraguaio da fronteira… E me perguntaram por que a bandinha militar de uma cidade onde há um quartel acabou, por que a cidade foi deixada sem sua bandinha!”
A tempestuosa relação com os parlamentares, relata Spaini, teve início em um jantar com os presidentes das comissões de defesa do Senado, o colorado Hugo Estigarribia, e da Câmara, Mario Morel Pintos. “Um deles me perguntou: ‘O que você pensa dos americanos?’ Eu gosto do povo americano, são gente boa, amável. ‘E o que você pensa de nos aliarmos aos americanos?’ Eu penso que não é possível, racionalmente falando, por causa da assimetria pronunciada entre os nossos países. O que interessaria a eles, uma super potência, que tipo de aliança estratégica estariam fazendo com o Paraguai? A não ser que fosse para ter uma base aqui. Por que me perguntam? ‘Porque pensamos que seria interessante convidá-los para que venham instalar suas bases aqui’’.
Spaini – conhecido por não medir as palavras – ficou profundamente ofendido com a sugestão: “Então, disse eu, de que soberania nacional estamos falando se o próprio Estado paraguaio não tem condições de defender o seu povo, o seu próprio território? Em que condições ficaria o glorioso exército paraguaio, como você diz? Não teria sentido a sua existência. É isso que vocês querem?”, vociferou o ministro. A relação azedou ali.
Mas aquilo era mais que um bate-boca acalorado. Era uma disputa que marcaria todo o governo Lugo. Spaini era abertamente favorável à formação da Unasul e de uma aliança militar regional, em detrimento de uma continuada aproximação militar com os EUA e a Colômbia tendo sido responsável por exemplo, pelo fim de um programa de treinamento que permitia a presença de militares americanos no Paraguai. “A melhor maneira de alentar qualquer possibilidade de conflito regional é incrementar a colaboração”, explica.
O mandato do incômodo ministro teve fim dois anos depois, com outro arroubo típico do general. Enquanto políticos oposicionistas – e liberais – continuavam tentando buscar apoio para o impeachment na embaixada americana, Bareiro foi o único ministro a protestar, com estardalhaço.
O estopim viria no dia 19 de fevereiro de 2010. Convidado para um almoço oficial, realizado na embaixada americana, o ministro enviou o seu vice, o general Cecílio Pérez Bordón. Lugo não estava presente. À mesa, a anfitriã Liliana Ayalde reuniu um grupo de generais americanos que visitavam o país, um general das forças armadas paraguaias, o vice-presidente Federico Franco e o senador colorado Hugo Estigarribia. Segundo o relato de Spaini, a embaixadora puxou o assunto. Spaini relata: “Franco, o senador e outro civil reclamaram das atitudes do ministro da Defesa. Depois passou-se ao tema do juízo político ao presidente. E os militares ali, só ouvindo. O vice-ministro então interveio, em guarani, dizendo que seria interessante mudar de assuntodiscutir esses temas domésticos em outro lugar, pois era uma embaixada estrangeira…”
Ao sair do almoço, consternado, o general Pérez Bordón disse à embaixadora: “eu nunca passei tão mal em um almoço como neste. Informo que lastimavelmente não voltarei a pisar aqui”.
Pouco depois, Spaini escreveu uma carta expressando sua “inesperada surpresa, próxima ao incrível assombro” e afirmando que o evento poderia colocar em risco as relações entre os governos de Paraguai e dos EUA. Escrita em espanhol, a vaporosa carta foi enviada para a embaixada americana, com cópias para o Comando Sul das Forças Armadas Americanas e ao Pentágono. “Em particular, resultam inadmissíveis e intoleráveis as palavras de sentido panfletário e demagógico sobre ‘a péssima gestão administrativa do Presidente Fernando Lugo que o faz merecedor de um urgente e inegociável juízo político’”, dizia o texto (veja aqui e aqui o documento original).
Em alguns dias, a carta vazou para a imprensa – não de parte do governo, segundo o general. “Grosseira carta de ministro a embaixadora de EUA”, dizia o jornal conservador ABC Color, que publicou parte de seu conteúdo. Dentro do governo, o vice e os ministros liberais espumavam de raiva pela ofensa à representante americana. Lugo contemporizava. “A embaixadora, depois de uns dias, afirmou que era uma questão pessoal, que tudo estava superado… Mas o senador (Estigarribia) insistiu que se ofendeu a embaixadora, que se ofendeu um país amigo, que eu passei dos limites…”, lembra Spaini. “Aqui foram mais papistas que o papa”.
A gestão de Spaini durou apenas cinco meses depois do episódio. Sob pressão do Congresso – que se negou a aprovar o orçamento militar – o general renunciou. “Renunciei contra a vontade do presidente”, afirma. “Eu disse a ele que a única solução para essa situação era a minha saída, para não comprometer seu governo. E disse, em entrevistas a uma rádio, que eu estava convencido de que isso mirava ao presidente da República, e que o próximo seria ele.”
Em conversa com a Pública na sua casa, o general Cecílio Pérez Bordón – que assumiu a pasta de defesa após a saída de Spaini – não quis comentar sobre o fatídico almoço: “É um assunto já encerrado”. A primeira convidada a visitá-lo no gabinete depois da posse foi a mesma Liliana Ayalde. “Continuamos trabalhando, fazendo parcerias com eles”.
Mas e a promessa de nunca mais pisar os pés na embaixada? “Jamais pisei”.

De repente, uma matança: Curuguaty
15 de junho de 2012, meio dia. Fernando Lugo está em uma feira de exposição do Ministério da Educação, no centro de Assunção. Ele sabe que, naquela manhã, haverá uma desocupação de terras no distrito fronteiriço de Canindeyu, próximo ao município de Curuguaty. Tratava-se de um terreno de 2 mil hectares reivindicado pela empresa Campos Morumbi S.A., de propriedade de Blas N Riquelme, ex-presidente do Partido Colorado. Mas nada disso o preocupa; trata-se de uma desocupação corriqueira, mais uma entre dezenas que ocorreram durante o seu governo. “Quando subimos no helicóptero, Alcides Lovera ao meu lado, ele escuta na rádio que o irmão foi ferido. Quando chegamos à residência presidencial, ele já havia falecido”.
Erven Lovera, irmão do chefe de segurança presidencial que estava sempre ao lado de Lugo, foi o primeiro policial a tombar no episódio que ficou conhecido nacionalmente como “a matança de Curuguaty”, um trágico conflito entre polícia e sem-terra, durante a desocupação. Após um breve e confuso confronto, morreram outros cinco policiais e 11 camponeses. Tido como o grande responsável pela tragédia, Lugo foi destituído da presidência uma semana depois pelo Congresso Nacional.
“Eu disse a Lovera que fosse ficar com sua família e já comecei a me comunicar com todo mundo. Fiquei em comunicação contínua com o Ministro do Interior e a polícia. Naquele momento, nos dedicamos a socorrer os feridos e mortos. Foi a prioridade”, lembra Lugo. Havia dúvidas se o presidente deveria ir ao local imediatamente. Após algumas horas de incerteza, a ministra da saúde Esperanza Martinez pegou um avião para lá. Lugo não foi.
Em Assunção o chefe de gabinete da presidência, Miguel Lopez Perito, também ficou sabendo da matança através dos membros da sua escolta. “Foi casualidade, um militar me disse que houve um enfrentamento em Curuguaty e mataram o irmão do chefe de segurança de Lugo. E me disse: parece que há mais mortos”.
Apontado pela imprensa como um “capa preta” do governo, Lopez Perito foi correndo ao palácio de governo. “Aí tivemos uma reunião com os comandantes do Exército, da Armada e da Aeronáutica, e também com o chefe do gabinete militar, o comandante da polícia, o ministro do interior e alguns outros ministros”, lembra. “Eu disse: ‘Presidente, esse é o início do juízo político’”.
Perito não conseguiu convencer seus pares, nem o presidente, de que se tratava de um complô para destituí-lo, afinal. O clima no palácio ainda era de torpor quando, naquela mesma sexta-feira, os primeiros congressistas começaram a evocar as palavras “juízo político”. “Creio que as 17 mortes doeram muito ao presidente Lugo”, diz o ex-ministro do planejamento Hugo Royg. “Lugo por essência não é um ator político, é um ator eclesial, formado nesta lógica. Um ator que essencialmente escuta”.
Foi assim que, no xadrez luguista, ao amanhecer de sábado, enquanto o jornal ABC Color trazia a manchete “A República sofre uma de suas horas mais negras” com um editorial de capa que começava com “O presidente Lugo é o responsável por essa lamentável tragédia”, o presidente trabalhava para resolver a situação nomeando, como novo Ministro do Interior, um notório colorado: o ex-procurador geral da República Ruben Candia Amarilla. A escolha de Amarilla, desafeto dos movimentos sociais do campo, acirrou ainda mais os ânimos liberais, criou desconfianças dentro do governo e acabou por desagradar a todos.
Nos bastidores, alguns ministros trabalhavam para mostrar que haveria uma reação enérgica e que o crime não ficaria impune. O plano era formar uma comissão de “notáveis” que faria uma investigação paralela sobre o massacre, “dando mais transparência ao processo”, segundo Hugo Royg. Conseguiram a adesão de uma fazendeira da região de Canindeyu e de um renomado jornalista do diário ABC Color. Foi como jogar óleo à chama.
A iniciativa foi vista como uma afronta às forças policiais – ou foi assim que diversos oposicionistas se referiram a ela através da imprensa. Segundo Lopez Perito, o que estava em jogo era outra coisa: “Na segunda-feira, 18 de junho, tivemos uma reunião ao meio-dia onde estava o presidente do Partido Liberal, três senadores liberais, vários militares, a ministra de saúde, o procurador-geral da República… E estavam Emílio Camacho, assessor jurídico de Lugo, e eu. Foi na casa do senador (Alberto) Grillon. E aí o Blas Lano (presidente do Partido Liberal) disse que eles não podiam seguir sustentando este governo, porque não sabiam o que era que queria este governo”, lembra Perito. “Disse que se não lhes déssemos a chapa presidencial para 2013, se Lugo não lhes garantisse que eles iam pôr o candidato a presidente, não iam frear o juízo político na Câmara”.
“Bom, o que veio depois foi muito rápido”, diz. “Ligamos para os colorados, e alguns me diziam ‘isso é loucura, não se pode entregar o governo ao Partido Liberal”, lembra o ex-chefe de gabinete. Na ala colorada, diz ele, quem mais trabalhou pelo juízo político foi Horácio Cartes, empresário com terras na fronteira, pré-candidato à presidência em 2013 – e provável vencedor das eleições, segundo a revista americana The Economist.
Lugo seguia incrédulo e hesitante. Como sempre. “Mas também, como já haviam falado 23 vezes em impeachment em 3,5 anos, no Parlamento, eu acreditava que seria como nas outras vezes”, explica-se. Na quarta-feira, descreve Esperanza Martinez, “nós percebíamos que a temperatura estava subindo dentro do Partido Liberal. Já estavam mais distantes, muitos diziam que iam fazer o juízo político. Muitos de nós, os colaboradores, nos aproximamos do presidente, pedimos por favor que negociasse com eles. Ele tentou falar pelo telefone. Não atendiam”.
“Desta vez foi diferente, porque houve uma reunião dos líderes dos partidos políticos na quarta-feira, dia 20. Eu sabia. E aí fecharam…”, diz Lugo. Na mesma noite, com boa parte do seu gabinete ainda na residência oficial, Lugo foi dormir às 22h, como de costume.
A calma do ex-bispo, motivo de críticas constantes durante o seu governo, surpreendeu colaboradores próximos. “Ele já estava cansado, dizia ‘se querem fazer o juízo, que façam’”, conta um deles. “Mas isso, é claro, é uma observação pessoal. Não se entrega assim um governo”.
Quando foi dormir, Lugo contava, segundo as últimas pesquisas, com uma taxa de aprovação crescente: cerca de 40% dos paraguaios considerava seu governo bom ou muito bom em meados de 2011. Em julho de 2012, a taxa chegaria a 60%.
Acordou com o impeachment pendendo sobre sua cabeça.“Foi neste momento que soube que ia acabar”, diz.

Cai o bispo
Quinta-feira, dia 21 de junho foi, efetivamente, o último dia do governo do primeiro presidente de centro-esquerda a chegar ao poder na história do Paraguai. A Câmara dos Deputados já discutia o juízo político a todo vapor; naquela mesma noite, elaboraria e apresentaria o libelo acusatório, documento de acusação que embasaria a destituição. Com base nele, o Senado votaria como juiz, no dia seguinte.
Naquela manhã, José Tomas Sanchez, ministro da Função Pública, participava de um seminário junto com outros membros do governo. Sanchez, que era o ministro mais novo, não se lembra bem sobre o que falou. Lembra-se apenas que o telefone não parava de vibrar. “Um monte de ligações do ministério. E o telefone de todo mundo vibrava. Renunciou o ministro liberal. ‘Nossa senhora’, eu pensava. Os liberais estavam renunciando, um a um, e a gente vendo aquilo, na mesa do debate, era um desespero”.
Os principais ministros liberais, como Enzo Cardoso, da Agricultura, e Humberto Blasco, da Justiça e Trabalho, renunciaram por volta das 11 horas.
Na embaixada brasileira, a ficha caía naquela mesma hora. Até então, o corpo diplomático tivera cautela para não acionar a cúpula do Itamaraty, entretida nas negociações da Rio + 20, evento da ONU sobre meio ambiente que acontecia no Rio de Janeiro. “Achávamos que era só mais uma crise”, diz uma fonte do Itamaraty. “O que víamos era que não havia nenhuma relação direta do fato, entre o massacre de Curuguaty e o presidente”, Na quinta-feira de manhã, o alarme foi acionado. “Ao meio-dia eu liguei para a Dilma e o (Pepe) Mujica”, diz Lugo.
Na Rio+20, o chanceler paraguaio Lara Castro pediu uma reunião extraordinária da Unasul ali mesmo, no Rio Centro. “A verdade é que quando eu recebi a notícia, pelo telefone, não foi uma surpresa”, diz. As informações batiam com o tom de urgência repassado pela embaixada brasileira no Paraguai. A reunião foi presidida por Dilma Rousseff e contou com os presidentes José Mujica, do Uruguai, Rafael Correa, do Equador, Evo Morales da Bolívia, Sebastian Piñera do Chile e Juan Manuel Santos, da Colômbia. Naquela mesma noite, uma delegação de chanceleres dos países que compõem a Unasul – Argentina, Brasil, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Equador, Peru, Chile, Guiana, Suriname e Venezuela – aterrissou em Assunção.
“Eu expliquei a eles que havia elemento de um golpe de Estado”, lembra Lara Castro. “Havia um processo tão acelerado, que seria condenável pela cláusula Ushuaia II”. A chamada “claúsula democrática”, assinada pelos presidentes dos países do Mercosul em dezembro de 2011, estabelece sanções aos países-membros em caso de ruptura democrática, desde a suspensão da organização até suspensão de tráfego aéreo e terrestre e de fornecimento de energia.
Lugo, como os demais presidentes, assinou a cláusula, mas diante da reação do Congresso, jamais o enviou para sanção. “Depois que assinamos a cláusula, a campanha pelo impeachment foi permanente na imprensa. Foi um bombardeio em janeiro e fevereiro, houve uma ameaça constante”, diz Lara Castro. “Os jornais nos chamavam de traidores da pátria, pediam juízo político a Lugo e interpelação a mim”.
cláusula de Ushuaia 2, embora não tenha sido oficialmente sancionada, foi um dos cinco motivos, ao lado da matança de Curuguaty, apontados pela Câmara dos Deputados como causas da destituição. Foi também o instrumento usado pelos países vizinhos para suspender o Paraguai da Unasul e do Mercosul. Quatro meses depois, os deputados paraguaios a rechaçariam por ampla maioria, em clima de celebração.

Na TV o embate final
Na noite da quinta-feira, 21 de junho, a Câmara dos Deputados apresentou a acusação formal que embasaria o impeachment. Lugo foi notificado às 18:10, dando à sua equipe de defesa 17 horas, noite adentro, para preparar a argumentação. Ao meio-dia da sexta-feira, diante dos 45 senadores, teria 2 horas para refutar as 5 acusações listadas no libelo acusatório.
Naquela noite, com o relógio em contagem regressiva, o deputado colorado Oscar Tuma, principal advogado de acusação, protagonizou um histórico embate com o advogado de defesa de Lugo, Antônio Ferreiro, ao vivo, pela televisão. Foi o mais extenso debate sobre o juízo político, acompanhado com avidez pelo público paraguaio. Foi ali que Ferreiro teve tempo de expor seu principal argumento: “Quando se tem 5 acusações, duas horas para a defesa é um fuzilamento”, repetia, irritado.
Em reposta, calmamente, o deputado Oscar Tuma explicava que “um juízo político geralmente se faz quando há mortes”. “Nós podemos aguentar muita coisa, viemos aguentando muitas coisas que estão nos ‘causais’ da acusação, que se deram anos atrás. Mas quando existem mortes…”. Para Tuma, não havia outro responsável pelos traumáticos eventos de Curuguaty: “Se você me perguntar quem é responsável por todas as mortes, eu vou responder: Fernando Lugo é responsável por tudo que estamos vivendo”.
Ferreiro, renomado jurista, chegou a dizer que pouco se importava que se julgasse o presidente. Sua irritação crescia ao longo do debate, enquanto gesticulava avidamente. “Vamos ter menos de meia hora para defender cada acusação. Para discutir a responsabilidade de um acidente de trânsito que não tenha sequer feridos temos mais tempo aqui no Paraguai. Para responder a um processo comum, de descumprimento de um contrato para construir uma muralha, tenho 18 dias”.
“Repito, porque isso é grave: estamos destroçando a vigência dos princípios jurídicos ocidentais no Paraguai. Isso nos vai custar caro”, disse, exasperado. “Esta crise vai levar 20 anos para se solucionar” – concluiu, exasperado.

O Impeachment deve “servir de lição a futuros governantes”
Com apenas nove páginas, o documento que fundamentou o impeachment de Lugo é impressionante. (veja aqui uma cópia autenticada)
Segundo a Constituição paraguaia, promulgada em 1992, o presidente, ministros, o procurador-geral da República, o controlador-geral os integrantes do Tribunal Superior eleitoral podem ser destituídos pelo Congresso por “má gestão” – acusação usada contra Lugo. Os fundamentos apresentados são cinco.
Primeiro, o Congresso acusa Lugo pela realização, em maio de 2009, do II Encontro Latinoamericano de Jovens pela Mudança, realizado no Comando de Engenharia das Forças Armadas. O fato, considerado gravíssimo e tachado como “ato político” no seio das Forças Armadas, causou ainda mais consternação porque os jovens alçaram uma bandeira de Che Guevara durante o encontro.
A seguir o libelo lista o que chama de “caso Ñacunday”, referindo-se a diversas ocupações de terras realizadas no distrito de mesmo nome, próximo à fronteira com Brasil e Argentina.
O documento diz que o governo de Lugo é “o único responsável como instigador e facilitador das recentes invasões de terra na zona”. A acusação remete à candente questão fronteiriça.  Após a promulgação de um decreto presidencial em outubro de 2011, que determinava que terras a 50 km das fronteiras não podem, por lei, pertencer a estrangeiros, o Congresso acusa o governo Lugo de ter “ingressado em imóveis de colonos, sob o pretexto de realizar o trabalho de demarcação da franja de exclusão fonteiriça”, mas na realidade para permitir que a Associação Nacional de Carperos (sem-terra) comandasse o exército. A acusação, afinal, é de que Lugo “utiliza as forças militares para gerar um verdadeiro estado de pânico na região”.
Pior: o presidente “se mostrava sempre com portas abertas aos líderes dessas invasões” como José Rodriguez e Eulálio Lopes, dirigentes da Liga Nacional de Carperos, e Victoriano Lopez, líder camponês da zona de Ñacunday. Ao reunir-se com eles, na visão da Câmara de Deputados, Lugo estava “dando uma mensagem clara” sobre seu “incondicional apoio” a “atos de violência e comissão de delito”. Ou seja: a acusação contra Lugo é de manter diálogo com lideranças camponesas.
O terceiro ponto listado é descrito, genericamente, de “crescente insegurança”. Segundo a Câmara dos Deputados, “ficou mais que demonstrada a falta de vontade do governo de combater o Exército do Povo Paraguaio” – a pequena guerrilha que se situa no norte do país. “Todos os membros desta honorávelCâmara de Deputados conhecemos os vínculos que o presidente Lugo sempre manteve com grupos de sequestradores” da ala militar do EPP, prossegue o documento,  sem maiores detalhes.
Além disso, argumenta a câmara, Lugo e seus ministros agiram de forma “absolutamente equivocada” ao tratar da matança de Curuguaty. O crime? “Tratar de maneira igual policiais covardemente assassinados e aqueles que foram protagonistas destes crimes” – os primeiros seriam os policiais e os segundos, camponeses.
A cláusula democrática de Ushuaya II é descrita, em letras garrafais, como “UM ATENTADO CONTRA A SOBERANIA” do país. “A principal característica do Protocolo de Ushuaia II é a identificação do Estado com a figura dos presidentes para, em nome da ‘defesa da democracia’, defenderem uns ao outros”.
A seguir, vem o último e mais extenso ponto, a matança de Curuguaty, cuja introdução estabelece que o presidente “representa hoje o que há de mais nefasto para o povo paraguaio”.
“Não cabe dúvida que a responsabilidade política e penal dos trágicos eventos registrados recaem sobre o presidente Lugo”. Os deputados reiteram sua certeza de que o conflito de Curuguaty foi premeditado, e de que as forças de segurança foram vítimas de uma “emboscada” armada no local.
Junto a essas gravíssimas suspeitas, que se confirmadas mais que justificariam o impeachment de um presidente em qualquer país democrático, a acusação não apresenta nenhuma – nenhuma – evidência. Explica o documento: “todas as causas mencionadas acima são de pública notoriedade, motivo pelo qual não necessitam ser provadas, conforme o nosso ordenamento jurídico”.
Vai além. “Todas as evidências, que são públicas, demonstram que os acontecimentos da semana passada não foram fruto de uma circunstância derivada de um descontrole ocasional, pelo contrário, foi um ato premeditado, onde se emboscou as forças da ordem pública, graças à atitude cúmplice do Presidente da República”, diz a parte final da acusação. Que conclui com um alerta: Lugo “não somente deve ser removido por juízo político como deve ser submetido à justiça pelos fatos ocorridos, a fim que isso sirva de lição a futuros governantes”.

Leia também: A deposição vista do palácio. A ordem do dia era condenar Lugo;  a postura dos militares paraguaios; a ligação de Franco para a embaixada brasileira; a ignorada missão dos chanceleres; os rumores de um derramamento de sangue; e o que fez Federico Franco ao tomar posse. E Curuguaty,  A matança que derrubou Lugo. Pública visitou os camponeses acusados de armar um emboscada contra a polícia no conflito que deu origem ao impeachment.  As falhas da investigação e as prisões arbitrárias de camponeses. Os cartuchos que sumiram do relatório oficial.


Natália Viana – 21.11.2012
IN Agência Pública http://www.apublica.org/2012/11/bispo-seus-tubaroes/