André
Singer –O lulismo enfrenta
duas forças em direções contrárias. Essas manifestações tendem a ser um
movimento por aumento de gasto público. E, do lado do capital, vemos pressão
pelo corte dos gastos públicos.
(...)
Os
problemas urbanos se acumulam e se somam à precariedade da situação do novo
proletariado. A situação estava meio anunciada, porque esse setor tem condições
agora de reivindicar.
(...)
Não
creio que seja um problema do modelo de crescimento. Ele incluiu pessoas
excluídas. Com isso, ativou a economia por baixo. Mas houve uma diminuição da
margem para isso. Desde 2011, estamos num quadro complicado, que tem a ver com
a crise do capitalismo iniciada em 2008. Guilherme Evelin
O cientista político André Singer é um festejado teórico do
“lulismo” – como ele batizou o alinhamento de segmentos sociais, antes hostis
ao PT, às forças políticas comandadas pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Embora surpreso com a forma como eclodiu, Singer diz que o movimento que
tomou conta das ruas do Brasil estava “meio anunciado”. Ele o relaciona à
ascensão de um “novo proletariado”. Nos últimos anos, diz, ele ganhou emprego e
renda, mas vive ainda de forma precária. Para Singer, a emergência do movimento
coloca o governo Dilma diante de uma encruzilhada. Os manifestantes pedem mais
gastos públicos, enquanto o mercado cobra austeridade.
ÉPOCA – As manifestações são um abalo para o lulismo? Acabou a lua de
mel da maioria da população com o PT?
André Singer – Elas representam um possível
retorno do movimento de massas, ausente no cenário político brasileiro desde,
pelo menos, 1992. Ele começou a desaparecer com a derrota eleitoral de Lula em
1989, quando se encerrou um ciclo de dez anos de mobilizações. O movimento tem
hoje características novas e não pode ser ainda caracterizado como um abalo,
mas um desafio importante. Coincidiu com um momento complicado da economia. O
lulismo enfrenta duas forças em direções contrárias. Essas manifestações tendem
a ser um movimento por aumento de gasto público. E, do lado do capital, vemos
pressão pelo corte dos gastos públicos. É um momento que representa um desafio
para o lulismo. Não havia, nos setores que se mobilizam, uma lua de mel com o
governo. Há uma forte base do lulismo no subproletariado, um setor expressivo
da população, que não está na rua.
ÉPOCA – Quem está na rua?
Singer – Minha hipótese é que as
manifestações estão compostas de duas camadas sociais. Uma são os filhos da
classe média tradicional, estabelecida assim há mais de uma geração, que
possivelmente puxaram as manifestações. Elas ganharam adesão também do que
chamo de novo proletariado. Não é uma nova classe média. São jovens que não
pertencem a famílias nitidamente de classe média, mas passaram a ter emprego
por causa do lulismo. Mas têm empregos precários, com alta rotatividade, más
condições de trabalho e baixa remuneração. Ao longo das manifestações, a
participação desse segundo grupo foi aumentando. Isso talvez explique por que,
na segunda etapa, elas se expandiram pela Grande São Paulo, pelo Grande Rio e
pelas cidades em torno das capitais. A segunda camada é muito mais extensa do
que a primeira e mostra o potencial do movimento.
ÉPOCA – A que o senhor atribui a insatisfação que emergiu?
Singer – O lulismo é um processo de reformismo
fraco, de mudança estrutural do Brasil, mas muito lento e concentrado no
subproletariado, os mais pobres. De um modo geral, esse subproletariado não
está nas capitais. É mais expressivo no Nordeste ou no interior do que nas
grandes capitais. O lulismo é um modelo que favoreceu essa camada e,
indiretamente, também os trabalhadores urbanos, porque aumentou emprego e
renda. Mas os problemas urbanos das grandes metrópoles são muito caros. Para
você conseguir resolvê-los, precisa fazer investimentos gigantescos, que teriam
de sair dos cofres públicos. Para isso, teria de haver um rearranjo, em matéria
tributária ou de serviços da dívida, ou na forma de taxação das grandes
fortunas, ou tudo isso junto. Isso não foi feito. Os problemas urbanos se
acumulam e se somam à precariedade da situação do novo proletariado. A situação
estava meio anunciada, porque esse setor tem condições agora de reivindicar. Na
verdade, foi completamente inesperada a maneira como o movimento emergiu. Mas,
em retrospecto, a equação que explica o que aconteceu é bem clara.
ÉPOCA – Por que o senhor localiza o fim do movimento de massas em 1989 –
e não no impeachment de 1992?
Singer – As manifestações pelo
impeachment de Collor são uma espécie de uma última aparição daquele grande
ciclo, que já terminara. O ciclo acaba em 1989, porque a derrota de Lula abriu
a porta para o neoliberalismo no Brasil e quebrou a espinha dorsal da classe
trabalhadora organizada, com aumento do desemprego. Houve uma diminuição
expressiva no número de trabalhadores industriais nos anos 1990, seguida pela
década do lulismo, onde começou a recomposição do trabalho. É um erro pensar
que os movimentos sociais de massa ocorrem na depressão econômica. Eles ocorrem
depois da ascensão das condições econômicas.
ÉPOCA – As manifestações não têm liderança, não têm organização, não têm
partido. Por que virariam um grande movimento?
Singer – Há uma recusa dos partidos, dos
sindicatos, das instituições tradicionais. O princípio fundamental é a
descentralização. São movimentos horizontais, em que a orientação principal é
não ter hierarquia. Essa horizontalidade tem uma enorme vantagem. Os movimentos
são pouco propensos à burocratização, grande problema de partidos e sindicatos.
Isso é extremamente saudável. Mas há uma contrapartida: eles não têm uma
direção clara e centralizada. Essa característica torna esses movimentos mais
difíceis de entender. No que isso vai dar? Foi desencadeada uma energia social
que não voltará atrás rapidamente. O curso que ela encontrará não sei dizer.
Mas acredito que outras coisas desse tipo virão.
ÉPOCA – Quais serão as consequências no sistema político?
Singer – O novo ator impacta o sistema
político, mas não o substitui. O sistema político continuará funcionando. Não
deixará de existir, porque, na verdade, passamos por um momento em que esses
novos movimentos não têm alternativa. Os partidos terão de incorporar coisas,
dialogar com o movimento, fazer concessões, mudar. Alguns ganharão. Outros
perderão. Para dar um exemplo concreto, o próprio movimento da Marina Silva é
uma antecipação disso, porque ela fala aos ouvidos de parte dos manifestantes.
ÉPOCA – Marina será a grande ganhadora?
Singer – Não digo isso, porque, embora esse
movimento se caracterize pela horizontalidade, ele tem uma agenda materialista.
Estamos falando da distribuição da riqueza. É isso que está em jogo: para onde
vão os recursos, sejam os públicos, sejam os que transitam entre capital e
trabalho. Marina lida muito mal com essa agenda materialista, porque ela quer
ficar no meio. Essa posição é inviável.
ÉPOCA – Qual pode ser a consequência nas próximas eleições
presidenciais? Atrapalha a reeleição da presidente Dilma?
Singer – É impossível fazer um
prognóstico. As manifestações pendem para a esquerda. O impacto sobre a
candidatura Dilma dependerá de como ela lidará com essa pressão, por mais
recursos para transporte, saúde, educação e segurança.
ÉPOCA – E o PT? Como será afetado?
Singer – O PT está desafiado, com o lulismo.
Como o PT tem uma importante, embora não dominante, facção de esquerda, esses
setores estão diante de perguntas existenciais.
ÉPOCA – O lulismo atendeu aos anseios de consumo de parte da população.
Esse modelo de crescimento não foi posto em xeque pelas manifestações, que
pedem melhores serviços públicos e não mais consumo?
Singer – Não creio que seja um problema do
modelo de crescimento. Ele incluiu pessoas excluídas. Com isso, ativou a
economia por baixo. Mas houve uma diminuição da margem para isso. Desde 2011,
estamos num quadro complicado, que tem a ver com a crise do capitalismo
iniciada em 2008. Acreditava-se que tinha sido contida em 2009. Na verdade, não
conhecemos ainda o final do túnel. Se a economia tivesse continuado com um
crescimento maior, haveria margem para investir mais em saúde, educação,
segurança. Mas ela anda devagar. Os recursos estão mais escassos. Os juros
subiram. As restrições ao capital especulativo foram retiradas. E agora há uma
enorme pressão para cortes de gastos públicos. Há um pacote para produzir um
ajuste recessivo na economia. De alguma maneira, as manifestações dizem: “Isto
não!”.
ÉPOCA – O senhor diz que o lulismo não procurou enfrentar o capital na
política econômica. Nos últimos dois anos, o governo a flexibilizou, e os
resultados foram crescimento baixo e inflação mais alta, por causa dos gastos
públicos. A estratégia desenvolvimentista de Dilma não deu resultados.
Singer – Isso mesmo. Na crise mundial, o
governo Dilma decidiu dar um passo à frente e modificou os termos da política
neoliberal. O resultado, em crescimento, foi decepcionante. Os economistas
dizem: faltou investimento. Algo na equação então falhou, porque tudo foi feito
para proteger o capital produtivo brasileiro. Tenho ouvido reclamações contra o
intervencionismo do governo, mas é um intervencionismo para facilitar a vida
desse capital. O que não funcionou não está claro ainda. Não quero subestimar o
tamanho dos problemas. Mas, se é para seguir a linha reformista, esses
problemas precisam ser enfrentados para manter as mudanças. Se voltar à agenda
neoliberal, não dá para fazer as mudanças.
ÉPOCA – Mas Dilma já tem recuado. Aumentou os juros e voltou ao câmbio
flutuante.
Singer – O governo tem recuado nos últimos
seis meses. O capital pede um novo recuo, com o corte dos gastos públicos.
Essas manifestações pedem o aumento dos gastos. Por isso, é um momento em que
os desafios são sérios e cruciais. Essa é a questão: para onde o governo
penderá nessa bifurcação.
ÉPOCA – Pode haver uma desestabilização do governo?
Singer – Não creio. O governo tem capacidade
de entender o que acontece e demonstrou que não está descolado. Tenho certeza
de que tentará equacionar as questões.
ÉPOCA – Como resultado, as instituições mudarão?
Singer – Sim e não. Sim, pois serão
obrigadas a alguma abertura. Mas não a ponto de se desfazer. Os sistemas
político e econômico continuarão em suas bases tradicionais. Pode estar se
abrindo um ciclo longo, em que haverá as duas coisas. É o que acontece na
Europa e mesmo em outros países, onde ocorreu a Primavera Árabe. Os movimentos
lá foram enormes, mudaram o regime político. Mas, quando houve eleição, os
partidos tradicionais ganharam. É o que deverá acontecer aqui. Temos, nas ruas,
milhares de pessoas. Mas o eleitorado são milhões. Esses milhões é que votarão
e decidirão.
André
Singer –
Cientista Político e Professor da FFLCH/USP – 23.06.2013.
Guilherme
Evelin –
Jornalista da Revista Época.