É no mínimo irônico que, na mesma semana em que (o
STF) acusa a Câmara de desrespeitar a
separação de poderes, o STF tenha tomado duas decisões que afrontaram esse princípio
de forma tão inequívoca.
Virgílio Afonso da Silva
Na semana passada, todos os
holofotes estavam apontados para a Câmara dos Deputados, que discutia uma
proposta de emenda constitucional (PEC) que, segundo muitos, é flagrantemente
inconstitucional, por ferir a separação de poderes. Contudo, a decisão mais
inquietante, em vários sentidos, inclusive em relação à própria separação de
poderes, estava sendo tomada no prédio ao lado, no Supremo Tribunal Federal
(STF).
No dia seguinte, nas primeiras
páginas dos jornais, o grande vilão, como sempre, foi o poder Legislativo. A
PEC analisada na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara
é polêmica, com certeza. Sua constitucionalidade é questionável, não há
dúvidas. Mas, do ponto de vista jurídico, da separação de poderes e do direito
comparado, a decisão do STF, que bloqueou o debate no Senado sobre as novas regras
de acesso dos partidos políticos à TV e ao fundo partidário, é muito mais
chocante.
O ponto mais polêmico
da PEC é a exigência de que uma decisão do STF que declare a
inconstitucionalidade de uma emenda constitucional seja analisada pelo
Congresso Nacional, o qual, se a ela se opuser, deverá enviar o caso a consulta
popular.
Ministro decidiu que o
Senado não poderia deliberar sobre um projeto de lei porque ele não concorda
com o teor
É quase um consenso
entre juristas que um tribunal constitucional ou uma suprema corte, como é o
caso do STF, deve ter a última palavra na interpretação da constituição e na
análise da compatibilidade das leis ordinárias com a constituição. Mas muito
menos consensual é a extensão desse raciocínio para o caso das emendas constitucionais.
Nos EUA, por exemplo, emendas à constituição não são controladas pelo
Judiciário. A ideia é simples: se a própria constituição é alterada, não cabe à
Suprema Corte analisar se o novo texto é compatível com o texto antigo. Isso
quem decide é povo, por meio de seus representantes. Mesmo no caso do controle
de leis ordinárias, há exemplos que relativizam o "quase consenso"
mencionado acima, como é o caso do Canadá, cujo Parlamento não apenas pode
anular uma decisão contrária da Suprema Corte, como também imunizar uma lei por
determinado período de tempo contra novas decisões do Judiciário.
Não há dúvidas de que
o caso brasileiro é diferente. A constituição brasileira possui normas que não
podem ser alteradas nem mesmo por emendas constitucionais, as chamadas
cláusulas pétreas. Mas não me parece que seja necessário entrar nesse complexo
debate de direito constitucional, já que o intuito não é defender a decisão da
CCJ, cuja conveniência e oportunidade são discutíveis.
Neste momento em que o
Legislativo passa por uma séria crise de legitimidade, não parece ser a hora de
tentar recuperá-la da forma como se tentou. Tampouco quero defender a
constitucionalidade da PEC no seu todo. O que pretendi até aqui foi apenas
apontar que, embora extremamente polêmica, a proposta é menos singular do que
muitos pretenderam fazer crer.
Já a decisão do
ministro Gilmar Mendes, tomada na mesma data e que mereceu muito menos atenção
da imprensa, é algo que parece não ter paralelo na história do STF e na
experiência internacional. Ao bloquear o debate sobre as novas regras
partidárias, Gilmar Mendes simplesmente decidiu que o Senado não poderia
deliberar sobre um projeto de lei porque ele, Gilmar Mendes, não concorda com o
teor do projeto. Em termos muito simples, foi isso o que aconteceu. Embora em
sua decisão ele procure mostrar que o STF tem o dever de zelar pelo "devido
processo legislativo", sua decisão não tem nada a ver com essa questão. Os
precedentes do STF e as obras de autores brasileiros e estrangeiros que o
ministro cita não têm relação com o que ele de fato decidiu. Sua decisão foi,
na verdade, sobre a questão de fundo, não sobre o procedimento. Gilmar Mendes
não conseguiu apontar absolutamente nenhum problema procedimental, nenhum
desrespeito ao processo legislativo por parte do Senado. O máximo que ele
conseguiu foi afirmar que o processo teria sido muito rápido e aparentemente
casuístico. Mas, desde que respeitadas as regras do processo legislativo, o
quão rápido um projeto é analisado é uma questão política, não jurídica. Não
cabe ao STF ditar o ritmo do processo legislativo.
Sua decisão apoia-se
em uma única e singela ideia, que pode ser resumida pelo argumento "se o
projeto for aprovado, ele será inconstitucional pelas razões a, b e c".
Ora, não existe no Brasil, e em quase nenhum lugar do mundo, controle prévio de
constitucionalidade feito pelo Judiciário. Mesmo nos lugares onde há esse
controle prévio - como na França - ele jamais ocorre dessa forma. Na França, o
Conselho Constitucional pode analisar a constitucionalidade de uma lei antes de
ela entrar em vigor, mas nunca impedir o próprio debate. Uma decisão nesse
sentido, de impedir o próprio debate, é simplesmente autoritária e sem
paralelos na história do STF e de tribunais semelhantes em países democráticos.
Assim, ao contrário do
que se noticiou na imprensa, a decisão do STF não é uma ingerência "em
escala incomparavelmente menor" do que a decisão da CCJ. É justamente o
oposto. Além das razões que já mencionei antes, a decisão do STF é mais
alarmante também porque produz efeitos concretos e imediatos, ao contrário da
decisão da CCJ, que é apenas um passo inicial de um longo processo de debates
que pode, eventualmente, não terminar em nada. E também porque, se não for
revista, abre caminho para que o STF possa bloquear qualquer debate no
Legislativo sempre que não gostar do que está sendo discutido. E a comprovação
de que essa não é uma mera suposição veio mais rápido do que se imaginava: dois
dias depois, em outra decisão sem precedentes, o ministro Dias Toffoli exigiu
da Câmara dos Deputados explicações acerca do que estava sendo discutido na
CCJ, como se a Câmara devesse alguma satisfação nesse sentido. É no mínimo
irônico que, na mesma semana em que acusa a Câmara de desrespeitar a separação
de poderes, o STF tenha tomado duas decisões que afrontaram esse princípio de
forma tão inequívoca. A declaração de Carlos Velloso, um ex-ministro do STF que
prima pela cautela e cordialidade, não poderia ter sido mais ilustrativa da
gravidade da decisão do ministro Gilmar Mendes: "No meu tempo de Supremo,
eu nunca vi nada igual"!
Virgílio Afonso da Silva – Professor Titular de Direito
Constitucional na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – 3, 4 e 5
de maio de 2013.
IN
Valor Econômico – http://www.valor.com.br/opiniao/3109808/emenda-e-o-supremo