Não é a
primeira vez em nossa história política recente que a grande (velha) mídia se
autoatribui o papel de formadora e de expressão da vontade das ruas – vale
dizer, da “opinião pública”. Embora consiga disfarçar com competência suas
intenções, tudo indica que, ao proceder assim, a velha mídia na verdade agrava
– e não atenua – a crise de representação política.
Venício Lima
Muito se tem escrito sobre a importância das novas TICs (tecnologias de
informação e comunicação) para as manifestações de junho, ao mesmo tempo
aparentemente anárquicas e organizadas. Procuro, ao contrário, identificar
questões específicas relativas ao papel da grande (velha) mídia em todo esse
complexo processo.
Redes sociais vs. grande (velha) mídia
Em texto anterior (ver “As manifestações de junho e a mídia”)
chamei atenção para um paradoxo que se observa nas manifestações que pipocam
por todo o país.
Apesar de “conectados” pelas redes sociais na internet e, portanto, de
não se informarem, não se divertirem e não se expressarem (prioritariamente)
através da grande (velha) mídia, os milhares de jovens que detonaram os
protestos dela dependem para alcançar a visibilidade pública, isto é, para
serem incluídos no espaço formador da opinião pública.
É a grande (velha) mídia, sobretudo a televisão, que (ainda) controla e
detém o monopólio de “tornar as coisas púbicas” – e assim, além de dar
visibilidade, ela é indispensável para “realimentar” o processo e permitir a
continuidade das manifestações.
Vale dizer, as TICs (sobretudo as redes sociais virtuais acessadas via
telefonia móvel) não garantem a inclusão dos jovens – e de vários outros
segmentos da população brasileira – no debate público cujo monopólio é exercido
pela grande (velha mídia). A voz deles não é ouvida publicamente.
Crise de representação
Emerge, então, um indicador novo da crise de representação política que,
como se sabe, não é exclusiva da democracia brasileira, mas um sinal de
esgotamento de instituições tradicionais das democracias representativas no
mundo contemporâneo.
A ausência de sintonia crescente ou o descolamento da grande (velha)
mídia da imensa maioria da população brasileira vem sendo diagnosticada faz
tempo. Além disso – ao contrário do que ocorre em outras democracias –, no
Brasil a grande (velha) mídia praticamente não oferece espaço para o debate de
questões de interesse público. Aliás, salvo raríssimas exceções na mídia
impressa, não oferece nem mesmo um serviço de ouvidoria (ombudsman) que acolha
a voz daqueles que se considerem não representados.
Dessa forma, a ampla diversidade de opiniões existente na sociedade não
encontra canais de expressão pública e não tem como se fazer representar no
debate público formador da opinião pública.
Não estariam criadas condições para alimentar a violenta hostilidade
revelada nas manifestações contra jornalistas, equipes de reportagem e veículos
identificados com emissoras de TV da grande (velha) mídia?
Peculiaridades brasileiras
Em entrevista recente, o professor Wanderley Guilherme dos Santos
chamava atenção para o fato de que “as classes C e D têm uma representação
majoritária na sociedade em diversos sindicatos, entidades etc., mas são
minoritárias na representação parlamentar de seus interesses. Ou seja, (...)
elas tem menos capacidade de articulação no âmbito das instituições [políticas]
do que as classes A e B” (cf. Insight Inteligência, fev-mar 2013).
Esse déficit na representação política do Parlamento, acrescido da
exclusão histórica de vozes no debate público e a consequente corrupção da
opinião pública talvez nos ajude a compreender, pelo menos em parte, a explosão
das ruas nas últimas semanas.
Mudança radical
O que se observa, no entanto, na cobertura que a grande (velha) mídia
tem oferecido das manifestações é uma mudança radical. O que começou com
veemente condenação se transformou, da noite para o dia, não só em tentativa de
cooptação, mas de instigar e pautar as manifestações, introduzindo bandeiras
aparentemente alheias à motivação original dos manifestantes.
Aparentemente a grande (velha) mídia identificou nas manifestações –
iniciadas com um objetivo específico, a redução das tarifas de ônibus na cidade
de São Paulo – a oportunidade de disfarçar o seu papel histórico de bloqueadora
do acesso público às vozes – não só de jovens, mas da imensa maioria da
população brasileira. Mais do que isso, identificou também uma oportunidade de
“descontruir” as inegáveis conquistas sociais dos últimos dez anos em relação
ao combate à desigualdade, à miséria e à pobreza.
Não é a primeira vez em nossa história política recente que a grande
(velha) mídia se autoatribui o papel de formadora e, simultaneamente, de
expressão da vontade das ruas – vale dizer, da “opinião pública”.
Embora consiga disfarçar com competência suas intenções, tudo indica
que, ao proceder assim, a grande (velha) mídia na verdade agrava – e não atenua
– a crise de representação política.
Se não existem as condições para a formação de uma opinião pública
democrática – de vez que a maioria da população permanece excluída e não
representada no debate publico – não pode haver legitimidade nos canais
institucionalizados (partidos políticos) através dos quais se escolhe os
representantes da população.
Ademais, tudo isso ocorre no contexto histórico de uma cobertura
política sistematicamente adversa que tem, ao longo dos anos, ajudado a
construir uma cultura política que desqualifica tanto a política como os
políticos (ver “As manifestações de junho e a mídia”).
O que fazer?
Na semana em que o ministro das Comunicações do governo Dilma Rousseff
concede duvidosa entrevista e é celebrado pela revista Veja, símbolo de
resistência a qualquer inciativa de regulamentação das comunicações no país,
talvez uma das consequências da atual crise seja a adesão dos manifestantes à
coleta de assinaturas para “uma lei para expressar a liberdade” promovida pelo
FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (ver aqui).
É inadiável que uma reforma política inclua a regulação das comunicações
e exista condições para formação de uma opinião pública onde mais vozes sejam
ouvidas e participem do debate público – vale dizer, para que mais brasileiros
sejam democraticamente representados.
A ver.
Venício A. de Lima - Jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e
Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos
Brasileiros (Cerbras) da UFMG – 25.06.2013
IN Observatório de Imprensa, edição 752 – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed752_midia_e_crise_de_representacao_tudo_a_ver