domingo, 7 de julho de 2013

A covardia europeia contra o presidente Evo Morales


Os europeus, os campeões da defesa da democracia, do Estado de Direito e da liberdade, demonstraram que suas relações com a Casa Branca estão acima de tudo e que podem pisotear os direitos de um avião presidencial caso isso seja preciso para que o grande império não se incomode com eles.

Eduardo Febbro
Paris – Os europeus são incorrigíveis. Para não ficar mal com o império norteamericano são capazes de violar todos os princípios que defendem nos fóruns internacionais. O presidente boliviano Evo Morales foi o último a experimentar as consequências dessa política de palavras solidárias e gestos mesquinhos. Um rumor infundado sobre a presença no avião presidencial boliviano do ex-membro da Agência Nacional de Segurança (NSA) norteamericana, o estadunidense Edward Snowden, conduziu a um sério incidente diplomático aeronáutico entre Bolívia, França, Portugal e Espanha. 
Voltando de Moscou, onde havia participado da segunda cúpula de países exportadores de gás, realizada na capital russa, Morales se viu forçado a aterrissar no aeroporto de Viena depois que França, Portugal e Espanha negaram permissão para que seu avião fizesse uma escala técnica ou sobrevoasse seus espaços aéreos. Os “amigos” do governo norteamericano avisaram os europeus que Morales trazia no avião Edward Snowden, o homem que revelou como Washington, por meio de vários sistemas sofisticados e ilegais, espionava as conversações telefônicas e as mensagens de internet da maioria do planeta, inclusive da ONU e da União Europeia.
O certo é que Edward Snowden não estava no avião de Evo Morales. No entanto, ante a negativa dos países citados em autorizar o sobrevoo do avião presidencial, Morales fez uma escala forçada na Áustria. As capitais europeias coordenaram muito bem suas ações conjuntas para cortar a rota de Evo Morales. Surpreende a eficácia e a rapidez com que atuaram, tão diferente das demoradas medidas que tomam quando se trata de perseguir mafiosos, traficantes de ouro, financistas corruptos ou ladrões do sistema financeiro internacional.
Segundo a informação da chancelaria boliviana, o avião havia obtido a permissão da Espanha para fazer uma escala técnica nas Ilhas Canárias. Essa autorização também foi cancelada e, finalmente, o avião teve que aterrissar no aeroporto de Viena. Segundo declarou em La Paz o chanceler boliviano David Choquehuanca, “colocou-se em risco a vida do presidente que estava em pleno voo”. “Quando faltava menos de uma hora para o avião ingressar no território francês nos comunicam que tinha sido cancelada a autorização de sobrevoo”. O ministro pediu uma explicação tanto da França quanto de Portugal, país que tomou a mesma decisão que a França.
“Queriam nos amedrontar. É uma discriminação contra o presidente”, disse Choquehuanca. Em complemento a esta informação, o portal de Wikileaks também acusou a Itália de não permitir a aterrisagem do avião presidencial boliviano. Em Paris, o conselheiro permanente dos serviços do primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault disse que não tinha nenhuma informação sobre esse assunto. Por sua vez, a chancelaria francesa disse que não estava em condições de comentar ocaso. Bocas fechadas, mas atos concretos.
Ao que parece, todo esse enredo se armou em torno da presença de Snowden no aeroporto de Moscou. Alguém fez circular a informação de que Snowden estava no aeroporto da capital russa com a intenção de subir no avião de um dos países latino-americanos dispostos a lhe oferecer asilo político. Snowden é procurado por Washington depois de revelar a maneira pela qual o império filtrava as conversações no mundo. O chanceler boliviano qualificou como uma “injustiça” baseada em “suspeitas infundadas sobre o manejo de informação mal intencionada” o cancelamento das permissões de voo para o avião de Evo Morales. “Não sabemos quem inventou essa soberana mentira; querem prejudicar nosso país”, disse Choquehuanca. “Não podemos mentir à comunidade internacional e não podemos levar passageiros fantasmas”, advertiu o responsável pela diplomacia boliviana.
Em La Paz, as autoridades adiantaram que não receberam nenhum pedido de asilo por parte de Edward Snowden. Evo Morales havia evocado a possibilidade de conceder asilo a Snowden, mas só isso. O mesmo ocorreu com outra vítima da informação e da perseguição norteamericana, o fundador do Wikileaks, Julian Assange. O mundo ficou pequeno para Edward Snowden. 
Assange está refugiado na embaixada do Equador em Londres e Snowden encontra-se há dez dias na zona de trânsito do aeroporto de Sheremétievo, em Moscou. Segundo Dmitri Peskov, o secretário de imprensa do presidente Vladimir Putin, o norteamericano havia solicitado asilo a Rússia, mas depois “renunciou a suas intenções e a sua solicitação”. Peskov esclareceu, porém, que o governo russo não entregaria o fugitivo para a administração norte-americana: “o próprio Snowden por sincera convicção ou qualquer outra causa se considera um defensor dos direitos humanos, um lutador pelos ideais da democracia e da liberdade pessoal. Isso é reconhecido pelos ativistas e organizações de direitos humanos da Rússia e também por seus colegas de outros países. Por isso é impossível a entrega de Snowden por parte de quem quer que seja a um país como os EUA, onde se aplica a pena de morte.
Quando se referiu ao caso de Snowden em Moscou, Evo Morales assinalou que “o império estadunidense conspira contra nós de forma permanente e quando alguém desmascara os espiões, devemos nos organizar e nos preparar melhor para rechaçar qualquer agressão política, militar ou cultural”. Os europeus, os campeões da defesa da democracia, do Estado de Direito e da liberdade, demonstraram que suas relações com a Casa Branca estão acima de tudo e que podem pisotear os direitos de um avião presidencial caso isso seja preciso para que o grande império não se incomode com eles.


Eduardo Febbro – 03.07.2013
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

 

 

 

Um ato de pirataria aérea


O que ocorreria se um presidente europeu passasse pela mesma situação na América Latina?

John Pilger
Imagine a aeronave do presidente da França sendo forçada a descer na América Latina por suspeita de que esteja levando um refugiado político para algum lugar seguro – e não apenas um refugiado comum, mas alguém que revelou ao mundo uma série de atividades criminosas em escala épica.
Imagine a reação de Paris, ou da “comunidade internacional”, como eles mesmos se denominam. Um coro de indignação erguendo-se de Londres a Washington, Bruxelas a Madrid. Forças especiais heroicas seriam enviadas para resgatar seu líder, e esporte, esmagar a fonte deste ato de gangsterismo internacional. Editoriais iriam aclamar a atitude, talvez lembrando aos leitores que o tipo de pirataria derrotado teria sido praticado pelo Reich alemão em 1930.
Negar espaço aéreo à aeronave do presidente boliviano na França, Espanha e Portugal; e depois forçar seu pouso na África, submetendo-o a 14 horas de confinamento na Áustria, enquanto oficiais inspecionavam o avião por suspeita de que o “fugitivo” Edward Snowden estivesse a bordo foi um ato de pirataria aérea e terrorismo de Estado. Foi uma metáfora para o gangsterismo que governa hoje o mundo e a covardia hipócrita dos espectadores que não ousam em dizer seu nome.
Em Moscou, perguntaram a Morales sobre Snowden – que continua preso no aeroporto da cidade. Respondeu: “se houver um pedido [de asilo político], claro que iremos analisar e considerar a ideia.” Isso foi suficientemente provocativo para o Chefão. “Estamos em contato com diversos governos que poderiam ter permitido a Snowden aterrisar em seu país ou atravessá-lo”, disse um porta-voz do Departamento de Estado dos EUA.
A França – que tanto gritou contra o esquema de espionagem de Washington, revelado por Snowden – foi os primeiros a se curvar, seguida por Portugal. Em seguida, a Espanha fez sua parte, proibindo voos em seu espaço aéreo, dando tempo o suficiente para os mercenários vienenses do Chefão, descobrirem se Snowden havia invocado o artigo 14 da Declaração dos Direitos Humanos, que sustenta: “Todas as pessoas têm o direito de solicitar asilo político em outros países, em caso de perseguição”.
Aqueles pagos para seguir os procedimentos à risca fizeram sua parte no jogo de gato-e-rato. Reforçaram as mentiras do Chefão, para quem este jovem heroico esta fugindo do Judiciário e não enfrentando uma máquina que encarcera por vingança e tortura — vide Bradley Manning e os fantasmas que vivem em Guantánamo.
Os historiadores parecem concordar que a ascensão do fascismo na Europa poderia ter sido evitada, se a classe política liberal e de esquerda compreendesse a natureza do seu inimigo. Os paralelos de hoje são muito diferentes, mas a espada de Dâmocles sobre Snowden, como o rapto informal do presidente da Bolívia, deveria nos estimular a reconhecer a verdadeira natureza do inimigo.
As revelações de Snowden não são apenas sobre privacidade, liberdade civil ou espionagem maciça. São sobre o inominável: a fachada democrática dos EUA agora mal esconde um gangsterismo sistemático, historicamente identificado o fascismo, embora , não necessariamente na forma clássica. Na terça-feira, um drone norte-americano matou 16 pessoas no Waziristão do Norte, “onde os militantes mais perigosos vivem”. Estão longe de ser os militantes mais perigosos, se os próprios drones forem levadas em conta. Drones enviados pessoalmente por Obama toda terça-feira.
Quando aceitou o prêmio Nobel de Literatura, em 2005, Harold Pinter referiu-se a “uma vasta tapeçaria de mentiras, das quais nos alimentamos”. Ele perguntou porque “a sistemática brutalidade, as atrocidades generalizadas” da União Soviética eram bem mais conhecida no Ocidente, enquanto os crimes da América eram “superficialmente registrados, menos documentados e menos reconhecidos”. O silêncio mais duradouro da era moderna encobriu a morte e a desapropriação de inúmeros seres humanos, por um país violento e seus agentes. “Mas você não saberia”, disse Pinter. “Nunca aconteceu. Mesmo enquanto acontecia, nunca aconteceu”.
Essa história oculta – não realmente oculta, é claro, mas excluída da consciência das sociedades mergulhadas nos mitos e prioridades norte-americanas – nunca foi tão vulneráveis à exposição. A denúncia de Snowden, assim como a de Manning e Julian Assange, do Wikileaks, corre o risco de quebrar o silêncio que Pinter descreveu. Ao expor o vasto aparato policial orwelliano a serviço da maior máquina de guerra da história, ele iluminam o verdadeiro extremismo do século 21. Em um comentário sem precedentes para ela, a revista alemã Der Spiegel descreveu o governo Obama como “totalitarismo soft”. Em momentos de crise, devemos olhar mais de perto nossa casa.


John Pilger – Teve sua carreira como repórter iniciada em 1958, e ao longo dos anos tornou-se famoso pelos livros e documentários que escreveu ou produziu. Especializou-se nas áreas de jornalismo investigativo e direitos humanos – 05.07.2013
Tradução – Cauê Seignemartin Ameni