Diante
de uma ordem pouco democrática, de um sistema jurídico arcaico, com um STF que
se assemelha a uma corte monarquista, a adoção de uma lei que pode representar
o controle da ação política não estatal, nos coloca diante de um grave momento
para a construção de um estado e uma sociedade democráticos.
Edson
Teles
No segundo semestre de 2011, foi instalada pelo Senado brasileiro a
comissão de reforma do Código Penal. Formada por juristas, advogados, juízes,
outros profissionais da área jurídica, a comissão foi presidida pelo Ministro
do Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp (que também coordena a Comissão
Nacional da Verdade). A Comissão de Reforma do Código Penal teve como resultado
final um Projeto de Lei de autoria do senador José Sarney, talvez o maior
representante das oligarquias, tanto de propriedade da terra, quanto da
estrutura burocrática do Estado. É isto mesmo, o velho coronel da política
brasileira coordena a reforma do Código Penal.
Os objetivos da reforma foram definidos no requerimento de criação da
comissão: atualizar o Código Penal sob a luz da Constituição de 1988; unificar
a legislação penal existente; compatibilizar as leis penais com o respeito à
dignidade humana; estabelecer penas de acordo com a gravidade do ato; e,
investir em penas não prisionais. Estes objetivos seriam alcançados sob a ideia
da “funcionalidade social” das penas, sem contudo explicitar o que isto quer
dizer.
Após 24 reuniões de trabalho, o Projeto de Lei foi finalizado com
trabalhos feitos em regime acelerado, com baixo grau de consulta à sociedade.
Sob as mais variadas críticas, destaca-se a irregularidade com que as penas são
estabelecidas e o foco no aumento da penalização vista como privação de
liberdade. Diante de um já seletivo sistema penal, cuja população carcerária é
fruto da reprodução dos preconceitos de classe, racistas e sexistas [1], a
proposta parece criar um novo “ornitorrinco”. Expressão criada pelo sociólogo
Francisco de Oliveira, o “ornitorrinco” refere-se a um animal híbrido,
improvável na escala evolucionista e que, no caso da reforma penal, apresenta-se
sob a marca liberal e de assimilação das mudanças culturais e de costumes, mas
que mantém sua fundamentação na ideia de controle e dominação oligárquica de
classe.
Há, dentro de uma ótica de construção do controle da ação política, um
capítulo que nos chama a atenção: “Do crime de terrorismo”, assentado no Título
VIII, “Crimes contra a paz pública”. É um capítulo a ser destacado nestes
debates, especialmente se lido sob a ótica dos movimentos sociais. Nas
definições do crime de terrorismo, a primeira delas diz: causar terror são as
condutas que “tiverem por fim forçar autoridades públicas, nacionais ou
estrangeiras, ou pessoas que ajam em nome delas, a fazer o que a lei não exige
ou deixar de fazer o que a lei não proíbe”.
Para além de todas as ações criminosas para “forçar” autoridades a
fazerem ou deixarem de fazer o que lhes compete, há na ação política,
notadamente dos movimentos populares, um aspecto de ruptura com o caráter
classista e de controle existente no Estado de Direito. Não se trata de negar a
importância ou o valor emancipacionista dos direitos conquistados em
democracia. Porém, primeiramente, de observar que há uma herança autoritária
dentro do Estado de Direito, cuja fonte principal é o legado da ditadura
militar instaurada em 1964, mas que vai além e pode ser identificada na
estrutura oligárquica, mercantil e antidemocrática da ordem política
brasileira.
Em segundo lugar, devemos destacar que a ação destes movimentos, na
medida em que um dos alvos é a estrutura antidemocrática existente dentro da
ordem institucional, tem um óbvio caráter de ruptura inscrito nos objetivos de
sua luta política. Por último, há uma série de direitos conquistados desde a
Constituição de 1988 que não são cumpridos, ou por falta de regulamentação, ou
pela ação conservadora dos diversos governos do período. Um dos modos de ativar
tais direitos, notadamente os sociais, é por meio da pressão em relação às
autoridades públicas.
Com o objetivo de entender melhor as definições perigosas deste capítulo
da Reforma Penal, lembremos do exemplo, aliás nada terrorista, dos movimentos
estudantis que nos últimos anos têm ocupado reitorias e instalações
universitárias como modo de colocar em questão as várias relações de poder
dentro da universidade pública. Selecionando algumas passagens das definições
do crime de terrorismo, poderíamos caracterizar parte deste ilícito como a ação
de “forçar autoridades públicas”, mediante a “invasão de qualquer bem público”
e apoderamento, “total ou parcial”, de “escola” e “instalações públicas”. Se
lermos a definição de “forçar autoridade” como a ação de pressão dos movimentos
de ocupação ou dos grevistas que utilizam em recurso último os piquetes, e
aplicarmos a ideia de “invasão” na lógica das ocupações, teremos a
possibilidade de criminalização da ação política dos movimentos estudantis.
Ainda que possam ser lidas como ações violentas ou radicalizadas, as ocupações
de reitorias estão longe de se configurar como ato de terrorismo.
Contudo, o projeto de lei apresenta uma “exclusão de crime” ao
estabelecer, no parágrafo 7 do artigo 239, que “não constitui crime de
terrorismo a conduta individual ou coletiva de pessoas movidas por propósitos
sociais ou reivindicatórios, desde que os objetivos e meios sejam compatíveis e
adequados à sua finalidade”. Esta possibilidade de “exclusão nos remete
diretamente à crítica contemporânea do acionamento constante de pequenos
estados de exceção dentro da ordem democrática.
O estado de direito tem a característica de, cada vez mais e quanto mais
for possível, regulamentar ou transformar em lei as práticas sociais. Para
tanto, observa-se as regularidades da vida em sociedade, transforma-as em
conhecimento científico (vejam que a comissão de reforma é formada apenas por
profissionais do direito) e, finalmente, em lei. Entretanto, há na sociedade
algo que não pode ser capturado pela normalização devido as suas
características de imprevisibilidade, de pluralidade e de origem nas opiniões
dissonantes: a ação política. Por ser imprevisível, a política é incluída no ordenamento
por meio da autorização ao poder soberano de decidir sobre o excepcional,
aquilo que se exclui do ordenamento. Isto quer dizer que diante do excepcional
– leia-se especialmente a ação política – o soberano não precisa cumprir os
procedimentos legais exigidos pelo ordenamento, suspendendo-o em nome da
necessidade de proteção da dignidade humana, da sociedade e das instituições do
Estado.
Na “exclusão de crime” de terrorismo da proposta de novo Código Penal
encontra-se a estrutura de um pequeno, mas altamente perigoso, estado de
exceção. Como vimos, diante do que não foi incluído na lei, temos a decisão
transferida para o soberano. Na dúvida sobre a classificação das ações dos
movimentos sociais como crime de terrorismo, como no exemplo o caso dos estudantes
em ocupações, a decisão sobre se a “conduta individual ou coletiva” foi “movida
por propósitos sociais ou reivindicatórios”, ou sobre se os “meios” foram
“adequados à sua finalidade”, será de exclusiva competência de um juiz. Será
uma decisão subjetiva, visto que a lei permite a interpretação entre o que é
normal ou anormal, entre a definição de crime ou de movimento reivindicatório.
O liame de indeterminação entre a ofensa à ordem e a ação política legítima,
entre o fora e o dentro da lei, pode nos lançar em medidas judiciais de
bloqueio ou aniquilamento das ações democráticas de transformação das
instituições e da realidade atual.
Diante de uma ordem pouco democrática, política e economicamente, de um
sistema jurídico arcaico, não reformado no retorno à democracia, com um STF que
se assemelha a uma corte monarquista, a adoção de uma lei que pode representar
o controle da ação política não estatal, nos coloca diante de um grave momento
para a construção de um estado e uma sociedade democráticos.
Se faz necessário a paralisação imediata do encaminhamento do Projeto de
Lei, sua recondução a uma processo de debates e com garantia de ampla
participação social e divulgação, sob o risco de se criar um ornitorrinco
autoritário com verniz liberal e democrático, faceta que tem marcado a história
da república brasileira.
[1] Sobre o aspecto político da reforma do Código Penal há uma boa análise da professora Vera Andrade, no Seminário Crítico da Reforma Penal, realizado no Rio de Janeiro, em setembro de 2012. Ver http://www.youtube.com/watch?v=U63yBZ0wosM&feature=player_detailpage, acessado em 25 de outubro de 2012.
Edson
Teles – Professor de Filosofia Política na Universidade
Federal de São Paulo (UNIFESP) – 23.11.2012
IN “Carta Maior” – http://www.cartamaior.com.br/templates/colunaMostrar.cfm?coluna_id=5875