É PRECISO TER CLARO O QUE SE PODE E O QUE NÃO SE PODE OBTER COM REFORMAS ELEITORAIS. SE APROVADAS, ALGUMAS DAS PROPOSTAS VENTILADAS ACARRETARÃO MUDANÇAS. A ESTRUTURA DE INCENTIVOS DOS POLÍTICOS VAI MUDAR E OS PARTIDOS TERÃO QUE REVISAR SUAS ESTRATÉGIAS. MAS ISSO ESTÁ LONGE DE ASSEGURAR A PRETENDIDA REGENERAÇÃO DA VIDA POLÍTICA, O QUE QUER QUE ISSO SEJA.
Fernando Limongi
A temporada de caça às bruxas está aberta. A classe política foi condenada porque inoperante, incapaz e desconectada do povo. Como a classe política é uma criatura das leis eleitorais, segue que essas devem ser reformadas. Duro entender que Renan Calheiros - um exemplo dos cartazes empunhados, mas cada um pode escolher o seu preferido, de Tiririca a Dilma, passando por Sarney e tutti quanti - tenha mandato eleitoral. Fosse a escolha ditada por outras regras, cidadãos em desacordo tão flagrante com os interesses do povo não nos governariam.
É preciso ter claro o que se pode e o que não se pode obter com reformas eleitorais. Se aprovadas, algumas das propostas ventiladas acarretarão mudanças. A estrutura de incentivos dos políticos vai mudar e os partidos terão que revisar suas estratégias. Mas isso está longe de assegurar a pretendida regeneração da vida política, o que quer que isso seja. A experiência comparada, isto é, as lições que podem ser derivadas de reformas eleitorais feitas no Brasil e no mundo, não autorizam conclusões seguras. Ninguém sabe ao certo os resultados de pequenas mudanças, quanto mais de grandes. Pode-se apostar. O número de variáveis em interação é grande e é muito difícil prever como todas as peças se acomodarão. Intenções e expectativas originais raramente se materializam. Não poucas vezes, os resultados foram verdadeiramente desastrosos. Sejamos francos, os sucessivos projetos de reforma não foram derrotados por uma conspiração comandada pelos políticos e seus interesses mesquinhos. A razão é mais simples e trivial: não há acordo sobre as relações causais envolvidas.
Não existe país no mundo que esteja plenamente satisfeito com as leis eleitorais que adota. Uma parte considerável olha para seus vizinhos com inveja. O cenário é paradoxal. O país A acredita que resolverá todos os seus problemas se adotar as leis praticadas por B e B quer copiar A para assegurar sua entrada para o paraíso. Por muito tempo, especialistas de todos os matizes condenaram as leis eleitorais adotadas pelo Brasil. Representação proporcional com lista aberta era o patinho feio da história. Os ventos mudaram de direção e, hoje, é um dos modelos mais recomendados, contando até com aval do Banco Mundial para diminuir a corrupção e aumentar o controle dos políticos pelos cidadãos.
Talvez, pode se objetar, o problema esteja na opção pela reforma. O momento pede ousadia, não é hora de reformar, mas de revolucionar as práticas. A proposta mais radical foi feita pelo presidente do STF. Joaquim Barbosa propôs candidaturas avulsas como uma forma de dar espaço ao novo. Partidos perderiam seu monopólio. Barbosa está em uma situação privilegiada para defender essa opção: já é conhecido nacionalmente em virtude da exposição mediática que recebeu ao longo do julgamento do mensalão... Nem todos contariam com a mesma facilidade. Candidaturas avulsas favorecem aqueles que contam com recursos para fazer campanhas.
Financiamento público de campanha tampouco vai alterar as coisas radicalmente. A proposta de plebiscito encaminhada pela presidente Dilma oferece três alternativas: privada, mista e pública. Pois é, talvez não se tenha consciência disto, mas o fato é que o Brasil hoje pratica o financiamento misto e um misto que está muito mais próximo do público que do privado. A propaganda eleitoral gratuita é financiada com dinheiro público. O que os partidos brasileiros recebem de graça é o sonho de consumo de muitos políticos mundo afora. Perguntem ao Obama se não é assim.
Acreditava-se que horário eleitoral gratuito equilibraria a competição política, neutralizando o peso do poder econômico e eliminando a corrupção. Não o fez por duas razões que se reforçam. Primeiro porque é distribuído de acordo com o desempenho nas eleições anteriores e, segundo, porque os recursos que cada partido arrecada para produzir campanhas afeta a qualidade de seus programas e, consequentemente, suas chances de vitória. O modelo atual, paradoxalmente, contribui para fechar a competição, favorecendo os partidos grandes. A discussão consequente, portanto, não é entre financiamento privado ou público, mas sim como os recursos públicos serão distribuídos entre os diferentes partidos de forma a equalizar a competição.
O debate é alimentado por altas doses de irrealismo. Cada um projeta sobre as reformas suas esperanças e, implicitamente, se arvora a intérprete autorizado dos verdadeiros anseios do povo. O que une todos parece ser a expectativa de que as "verdadeiras reformas" impedirão a eleição dos políticos que nomearam nos cartazes que levaram às ruas. A boa lei eleitoral deveria garantir que fôssemos governados apenas por políticos íntegros e qualificados. Simples, não? Mas não há reforma que possa garantir isto. Nem pode haver. Não há acordo sobre quem seriam os políticos virtuosos que deveriam receber a confiança do popular. Este dissenso fundamental não será alterado por nenhuma reforma. O eleitorado é o juiz em última instância. Ainda bem.
Fernando Limongi – Cientista Político, professor da FFLCH/USP e coordenador do Núcleo de Política Comparada e Internacional da USP – 07.07.2013
IN O Estado de São Paulo, Aliás – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,regeneracao-da-vida-publica-,1051033,0.htm
Os cinco pontos da reforma política
Eleitores devem decidir sobre
financiamento de campanha, cláusula de barreira, lista de candidatos, voto
distrital e redefinição de mandatos.
Leonardo Avritzer
O Brasil foi despertado de um certo
torpor anti-político por meio de um conjunto de manifestações públicas que
tomaram as ruas das principais cidades brasileiras nas últimas semanas. Estas
manifestações hoje podem ser diferenciadas em dois momentos: em um primeiro,
elas foram organizadas por grupos de movimentos sociais e movimentos de
estudantes e foram duramente reprimidas, especialmente, na cidade de São Paulo.
Também vale a pena lembrar a reação da
mídia a estas manifestações que, neste primeiro momento, foram classificadas
como desordem ou baderna. A partir daí, passamos para um segundo momento que se
iniciou na semana passada e ainda está em curso: nele, as manifestações se
ampliaram em quantidade e em número de demandas. Estenderam-se por pelo menos 70
cidades e chegaram a mobilizar mais de um milhão de pessoas.
Também nesta nova configuração, a mídia
apoiou fortemente o movimento, mas destacou aquilo que ela bem entendeu, em
especial o problema da corrupção no governo federal. Ao mesmo tempo, episódios
de violência entre a polícia e pequenos grupos no interior das manifestações se
generalizaram em especial no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e
Brasília.
Duas questões se colocaram neste
segundo momento, uma para o movimento e a outra o governo federal. Para o
movimento, colocou-se o problema da articulação de uma pauta e da contenção da
violência. Assim, além das demandas específicas como a revogação do aumento no
preço das passagens, ele acabou fazendo demandas ou muito gerais ou muito
contraditórias. Aqui o que me parece é que se estabeleceu um descompasso de
objetivos entre o núcleo do movimento e as ações de parte das suas camadas
exteriores. Esta é uma contradição importante porque o movimento começou a ser
visto como patrocinador de um conjunto de pautas muito desgastadas junto à
opinião pública, como por exemplo, a redução da maioridade penal.
Assim, o principal desafio do movimento
é a busca de uma convergência de pauta e de práticas entre os seus
participantes. De alguma maneira esta convergência acabou sendo tecida em torno
do tema da reforma politica.
Há uma segunda questão que se coloca
principalmente para o governo federal.
A partir da segunda semana das
manifestações, a presidenta Dilma Rousseff se viu acuada pelo apoio da oposição
e da midia que, de certo modo, tentaram voltar o movimento contra ela. Dilma
tomou duas providências, ambas acertadas: a primeira, reconhecer a legitimidade
das manifestações e o papel positivo por elas desempenhado no sistema
democrático; a segunda, chamar as lideranças do movimento a Brasília e propor
uma agenda positiva para o país. Esta agenda acabou sendo tomada por uma
proposta: a realização de um referendo para a convocação de uma constituinte
exclusiva voltada para a reforma política. Ainda que parte desta proposta tenha
sido revista, irei tomá-la como ponto de partida devido à importância do tema.
Ao final deste artigo, formularei uma proposta alternativa em diálogo com a
proposta que se encontra na mesa hoje.
A Constituição de 1988 pode ser
considerada exitosa por diversos motivos. Ela ampliou fortemente a soberania
popular e a participação já no seu artigo primeiro. Universalizou políticas
públicas importantes como a saúde. Transformou a assistência social em direito.
E criou espaço para a democratização das políticas urbanas. Além disto,
aumentou as prerrogativas do Ministério Público e do Poder Judiciário, o que,
independentemente de alguns abusos que temos visto, permitiu a ampliação
das estruturas de direitos no país por meio de decisões importantes como a
demarcação das terras indígenas e a aprovação das ações afirmativas.
A Constituição de 1988 inovou em quase
todos os campos, com exceção de um: a organização do sistema político. Aí vemos
diversos problemas: a forma de financiamento, a proliferação de partidos, a
dificuldade em formar coalizões e a forma absurda como o governo forja maiorias
no Congresso. Todos estes pontos tornam o Congresso mais frágil e apontam para
a necessidade da reforma política.
No entanto, seja pelo papel da
constituição na ampliação de direitos, seja pela normatividade especifica que
existe no Brasil, não seria bom fazer uma Constituinte exclusiva, tal como foi
proposto pela presidente na última segunda-feira.
Forneço alguns argumentos nesta
direção. O primeiro deles reside na dificuldade de delimitar o que é uma
reforma política. A Constituição de 1988 é bastante ampla e se encaixariam na
definição de políticas as seguintes partes: a organização do sistema político,
a organização da estrutura federativa, as políticas sociais e a relação entre o
Poderes. Ou seja, com exceção das cláusulas pétreas, esta seria uma reforma
generalizada ou poderia vir a se tornar caso os constituintes assim o
desejassem.
Neste sentido, seria quase como
convocar uma Assembleia Constituinte e recomeçar a nossa vida constitucional do
zero. Neste sentido, a proposta que está na mesa hoje, a do plebiscito, parece
mais adequada.
Vale a pena pensar em algumas propostas
alternativas ou na combinação de algumas propostas que desempenhem um papel
semelhante.
Em primeiro lugar, proponho que seja
selecionado um conjunto de problemas a serem tratados pela reforma política sob
a garantia de que o Congresso irá examiná-los e votá-los. Uma possibilidade é a
do plebiscito com o apontamento para o Congresso de questões a serem
trabalhadas na reforma politica. Esta é uma boa possibilidade, mas, para ser
colocada em um plebiscito, não pode ter mais do que algumas questões.
Dificilmente a população conseguiria
discutir e se posicionar em relação a um número alto de questões.
Outra possibilidade é uma grande
campanha nacional conduzindo a uma iniciativa popular de lei que poderia ter o
apoio de amplos setores do sistema político e que já contasse com formulações
legais mais precisas sobre onde se quer chegar. Talvez uma combinação entre as
duas propostas seja o ideal.
Ainda assim, para que a reforma
política se torne factível é necessário limitar alguns dos seus pontos.
Uma discussão neste nível de magnitude
sobre a reforma política deveria abarcar apenas cinco pontos: financiamento de
campanha; cláusula de barreira (que acho que deveria voltar com um teto mais
baixo, 1% a 2%); lista de votação aberta versus fechada; voto distrital - que
não sou a favor, mas acho inevitável discutir; redefinição dos mandatos com
propostas de recall ou suspensão.
Ir além destes pontos tornaria quase
inviável um plebiscito e, no final, geraria muita frustração.
Estes pontos podem ser votados em
plebiscito e especificados em uma proposta de iniciativa popular de lei. Mas,
ainda mais importante, acho que eles deveriam envolver um pacto entre a
presidente e o Congresso de finalização da reforma em, no máximo, seis meses.
O Brasil avançou enormemente nestas
duas semanas.
O movimento das ruas já mostrou a sua
importância ao revogar o aumento das tarifas de ônibus, ao derrubar a PEC-37 e
ao aprovar aumentos significativos nas verbas para a saúde e a educação. Uma
reforma política viável coroaria este processo.
Leonardo Avritzer – Cientista Político – 26.06.2013