em contraste às
considerações culturalistas – de modo geral preconceituosas e simplificantes –,
às moralistas, às generalizantes e às pouco refletidas, urge analisarmos a
corrupção como um fenômeno intrinsecamente político, que se refere, portanto, à
maneira como o sistema político brasileiro está organizado.
Francisco Fonseca
As denúncias de corrupção que assolam o governo Dilma nesse seu início
têm sido divulgadas pela grande mídia como se fossem uma característica do
atual agrupamento político que está no poder. Tudo se passa como se pessoas de
caráter duvidoso se aproveitassem do Estado em favor de seus interesses
pessoais e grupais.
Essa forma de veicular denúncias e indícios e, sobretudo, de
interpretá-los, não apenas contribui para estigmatizar grupos políticos – no
limite de sua criminalização, o que é um claro atentado à democracia – como,
fundamentalmente, reafirma muitos dos mitos acerca do fenômeno da corrupção.
Deve-se notar que tais mitos são de variada ordem e se encontram
espalhados pelo chamado senso comum e entre as elites, a começar pela mídia,
que os espraia seletivamente. Sem a pretensão de esgotar todos eles, podem-se
inventariar alguns:
• a colonização portuguesa, que seria essencialmente
patrimonialista, em contraposição ao “poder local” e ao “espírito de
comunidade” da tradição anglo-saxã, notabilizada por Tocqueville. Nessa imagem,
haveria uma “inferioridade” da cultura e dos povos ibéricos, comparativamente a
seus congêneres anglo-saxões, com consequências políticas nefastas a suas
colônias. Assim, o patrimonialismo seria um legado do qual as ex-colônias
jamais conseguiriam se livrar;
• a cultura brasileira, que não
teria, mesmo após a independência e a República, conseguido separar o público
do privado, mantendo as “raízes do Brasil”, conforme a análise culturalista de
Sérgio Buarque de Holanda. Aqui, o universo miscigenado brasileiro, tão
criticado por perspectivas eugenistas do início do século XX e mesmo por
pensadores como Oliveira Viana, impregnaria as instituições com sua
“amoralidade macunaímica” (a obra de Mario de Andrade é, nesse sentido,
ironicamente sintética e crítica dessa perspectiva);
• o caráter (i)moral de grupos específicos que alçam
ao poder, versão notabilizada pela UDN de Carlos Lacerda, intérprete da
política à luz da moral (seletiva, diga-se) das relações pessoais: essa versão
é bastante divulgada pela mídia contemporânea brasileira, com a mesma
seletividade de então. Um exemplo dessa seletividade foi o processo de
privatização, que, apesar de um sem-número de denúncias e indícios de corrupção
no processo e na modelagem,1 foi sistematicamente negligenciado pela
grande imprensa brasileira, em razão de seu apoio incondicional a ela.2
De toda forma, o fato é que a análise moralista aparece como fator explicativo
dos processos de corrupção, mas seus intérpretes a invocam seletivamente;
• a disjunção entre elites políticas e sociedade, como se as primeiras não fossem reflexo, direto e/ou indireto, da
última. Trata-se de visão simplista, mas bastante difundida, quanto à
desconexão entre eleitos e eleitores, em razão ou da “corrupção inescapável”
dos que chegam ao poder, ou de uma inexplicável autonomia dessas elites perante
o corpo de eleitores;
• a ausência de uma base educacional formal sólida como
explicação para comportamentos não republicanos. Nessa perspectiva,
desconsideram-se o chamado “crime do colarinho branco” e as diversas formas de
“tráfico de influência”, típicos das elites, como os atos mais graves e
praticados por pessoas “educadas”, em termos de educação formal. Assim, o mote
do senso comum – “a educação é a base de tudo” – concede à educação formal um
poder equalizador, republicano e democrático que decididamente ela não tem e
não pode ter, dado que a escola é também reflexo da sociedade, com todas as
suas virtudes e mazelas, mesmo que seja um ambiente mais propício, em tese, à
reflexão.3 Com isso, de forma alguma se está advogando a
desimportância da escola, e sim seu papel real na sociedade, particularmente no
Brasil. Nesse sentido, os meios de comunicação de massa são claramente
concorrentes, com enorme superioridade quanto aos impactos, à escola, pois sua
capacidade de incutir comportamentos e valores, inclusive estéticos, é brutal,
ainda mais em países como o Brasil, em que não há qualquer responsabilização
desses meios, embora sejam concessões públicas4;
• por fim, a ausência e/ou fragilidade de leis e de instituições capazes
de fiscalizar, controlar e punir os casos de malversação dos recursos públicos,
como se o país fosse “terra de ninguém”, desconsiderando-se os inegáveis
avanços institucionais desde 1988. É importante notar o novo papel do
Ministério Público, com poderes inéditos na história brasileira, desde 1988; a
recente criação das Defensorias Públicas estaduais, que contribuem para a
melhoria do acesso à Justiça pelos mais pobres; as funções fiscalizatórias da
Corregedoria Geral da União; as revisões no papel dos tribunais de contas,
entre tantas outras instituições e marcos legais organizados em torno dos
conceitos de controles internos, externos e sociais (caso, deste último, das
organizações da sociedade politicamente organizada na fiscalização do Estado).
Um fenômeno sociológico
Todas essas versões tendem a negligenciar que a corrupção, em graus
variados, existe em todos os países e é, de certa forma, também um fenômeno
sociológico. Reitere-se que tais versões, com suas variações, são disseminadas
na sociedade brasileira, tanto entre as elites quanto entre o senso comum –
aliás, as chamadas elites tendem a comungar dos valores do senso comum quando o
assunto é corrupção.
Pois bem, em contraste às considerações culturalistas – de modo geral
preconceituosas e simplificantes –, às moralistas, às generalizantes e às pouco
refletidas, urge analisarmos a corrupção como um fenômeno intrinsecamente
político, que se refere, portanto, à maneira como o sistema político brasileiro
está organizado.
A lógica do sistema político brasileiro é marcada pela privatização da
vida pública, não em termos moralistas aludidos, e sim quanto às estruturas que
o sustentam. Vejamos: o financiamento das campanhas políticas é essencialmente
privado, embora haja também uma pequena parcela de financiamento público via
fundo partidário, o que abre espaço à disseminada prática do caixa dois, com
todas as suas variações; o sistema partidário é fluido e altamente flexível, o
que é uma realidade desde a redemocratização, constituindo a vida partidária,
para grande parte dos atuais 28 partidos existentes atualmente, num grande
balcão de negócios.
Expressões do jargão político brasileiro, como “partido de aluguel”,
“venda do tempo na TV e no rádio” com vistas às campanhas eleitorais, e
alianças partidárias que objetivam a distribuição de nacos do Estado, têm por
trás uma cadeia de interesses privados empresariais, de tamanhos e graus
diversos, o que tende a fazer dos partidos representantes de interesses
privados setoriais.
O próprio imperativo de governar por meio de amplas coalizões, em razão
da fragmentação dos sistemas partidário e eleitoral, tem como resultado tanto a
construção de alianças sem qualquer confluência programática, como a
necessidade de o Estado, nos três níveis da federação, alocar tais grupos. Isto
impacta a coerência e a coordenação das políticas públicas e a busca de uma
política que se aproxime da caracterização de “pública”, dada a rede de
relações e interesses privados, notadamente empresariais, que estão por trás
dos partidos políticos; entre outras modalidades.
Essas características produzem cálculos políticos nos partidos que os
induzem a “jogar o jogo” das regras estabelecidas, não tendo, dessa forma,
interesse em alterá-las: trata-se de um círculo vicioso.
Reforma política desprivatizadora
Nesse sentido, é claro que a reforma política é uma necessidade
imperiosa, a começar pelo financiamento público das campanhas, o que poderia
contribuir para desprivatizar a relação dos partidos com o Estado. Mas isso
somente se essa reforma for acompanhada por uma inovadora e leonina institucionalidade5
voltada para fiscalizar e punir o uso de recursos privados.
Não que, por mágica, os interesses privados desapareceriam da vida
pública, até porque, no capitalismo, eles lhe são inerentes,6 mas é
possível diminuí-los ao se estabelecerem novos marcos, em que o privatismo
seja, ao menos, controlado.
Assim, o norte da reforma política deve estar assentado no binômio
“desprivatização” da vida pública e “aumento da representatividade e da
responsabilidade” dos partidos, o que tem como consequência a diminuição de seu
número.
Paralelamente à reforma política, há uma pauta permanente do Estado
brasileiro, referente à transparência, à publicização, à participação popular e
ao republicanismo.
Por mais avanços que a sociedade e o Estado estejam vivendo desde a
redemocratização e, sobretudo, desde a Constituição de 1988, ainda há uma
incrível opacidade que encobre esquemas poderosos de tráfico de influência.
As informações, que deveriam ser públicas, como contratos estabelecidos
entre o Estado e os agentes privados, são de difícil acesso;7 a
linguagem da administração pública continua hermética aos cidadãos comuns, a
começar pelo orçamento; os mecanismos do chamado “governo eletrônico” não são
voltados ao controle do Estado – o que implica controle sobre o poder dos
agentes privados, associados à burocracia e a segmentos dos políticos eleitos
–, e sim à prestação de serviços; o processo licitatório é flagrantemente
burlado pela própria natureza oligopólica da economia brasileira,
principalmente nas obras “públicas” que envolvem bilhões de reais; não há no
país uma “cultura política”8 de prestação de contas, por mais que
avanços sejam observados desde a redemocratização e mesmo pela intensa
mobilização da sociedade politicamente organizada no Brasil.
Os mitos disseminados acerca da corrupção encobrem seu entendimento como
fenômeno intrinsecamente político, com consequências sociais, políticas,
econômicas e culturais. Mais ainda, as imagens e versões morais e moralistas
escamoteiam os efeitos da desigualdade social histórica e profunda do Brasil,
assim como a utilização do Estado pelas e para as elites.
A ainda vigente opacidade do Estado – cujos exemplos estão no orçamento,
nos contratos que deveriam ser publicizados, nas informações teoricamente
públicas, em sistemas decisórios pouco claros, e na ainda pouco
institucionalizada participação popular – decorre, portanto, do caráter
essencialmente político e histórico desse fenômeno.
O fato de mesmo o cidadão comum, pobre, não antever claramente a linha
divisória entre o público e o privado é muito mais a expressão da forma como o
Estado foi estruturado, e de sua apropriação por elites distintas ao longo do
tempo, do que propriamente um fenômeno moral. Trata-se de um fenômeno político,
de poder, por excelência!
Francisco Fonseca – Cientista político e
historiador, professor de ciência política da Fundação Getulio Vargas de São
Paulo e autor do livro O consenso forjado – A grande imprensa e a formação
da agenda ultraliberal no Brasil. São Paulo, Hucitec, 2005 – 02.09.2011
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” – http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=998