Brilhante
e politizado, Sócrates viveu intensamente
Rodrigo
Martins
Em 1984, o técnico da Fiorentina teve problemas
para domar um atleta. Alto, magro, barbudo e de cabelos desgrenhados, o jogador
sempre punha em dúvida as rígidas normas disciplinares do clube italiano, da
proibição de fumar no ônibus à necessidade de ficar concentrado para uma
partida. “Lembro de Sócrates assim”, comentou Giancarlo De Sisti, hoje com 68
anos, ao saber da morte do ex-craque brasileiro, ídolo do Corinthians e da
Seleção Canarinho nos anos 1980. “No início de sua aventura na Fiorentina, ele não
estava muito bem e os jornais o criticavam. Perguntei se sabia dessas críticas,
ele me disse que lia os jornais, mas olhava a parte política, e eu disse que,
pelo contrário, eu lia só a parte esportiva. Decidimos comprar um jornal só e
dividi-lo.”
Sócrates nunca foi um atleta convencional.
Médico de formação, era politizado, contestador e cultivava um estilo de vida
considerado impróprio para um esportista de seu calibre. Não era um homem deste
século nem do anterior, como observou o jornalista e comentarista esportivo
Juca Kfouri. “Eu o imaginava mais como um romântico do século XIX, de sobretudo
preto, o cigarro acesso enquanto lia um poema. Um desses frequentadores de
adegas da época, a discutir política com um copo de vinho na mão”, divaga o
amigo de longa data, ressentido com o fato de Sócrates não ter o corpo blindado
para a vida boêmia. “Nunca conheci alguém que viveu tão intensamente a
filosofia do -carpe diem, guiando-se pelos prazeres e paixões do momento.”
O problema é que o Dr. Sócrates partiu cedo
demais, aos 57 anos. Não pôde ver o Corinthians, time que aprendeu a amar, ser
pentacampeão brasileiro. O capitão da Seleção de 1982 faleceu na madrugada do
domingo 4, vítima de um choque séptico – quando bactérias de uma infecção caem
na corrente sanguínea e se alastram pelo corpo. As suspeitas recaem sobre uma
possível intoxicação alimentar, ainda não confirmada pela equipe médica, mas
que poderia ser facilmente tratada não fosse o estado de saúde debilitado de
Magrão, como também era conhecido. Esta era a sua terceira internação em quatro
meses. Nas duas anteriores, foi hospitalizado, em estado grave, para conter uma
hemorragia digestiva, causada por uma complicação da cirrose.
A reação à morte do ídolo foi imediata. Uma das
homenagens mais comoventes ocorreu no Pacaembu, na final do Brasileirão:
jogadores e torcedores do Corinthians guardaram um minuto de silêncio com o
punho direito erguido, em alusão à forma como Sócrates comemorava os seus gols.
Difícil imaginar que em 1978, naquele mesmo estádio, recém-chegado do Botafogo
de Ribeirão Preto, o craque chegou a ser hostilizado por torcedores,
impacientes para ver o time marcar gols. Já um doutor de 23 anos, Sócrates
doutrinou a torcida corintiana. Pedia calma e apoio até o último minuto da
partida. E retribuía com lances e gols memoráveis, muitos deles resultando em
vitórias nos instantes finais do jogo. Passou a ser venerado pelos corintianos
e abraçou o Timão como seu clube de coração.
Ex-jogadores também manifestaram o seu pesar.
“Ele nos ensinou a importância de viver na democracia”, afirmou Wladimir, o
lateral esquerdo que estava ao lado de Sócrates na conquista do bicampeonato
paulista de 1982/1983. “Jogando bola é difícil descrever tamanha classe e
categoria”, pontuou Zico, outro craque da Seleção de 1982. “Era leal,
obstinado, íntegro e sincero.”
Mesmo rivais italianos, responsáveis pela
desclassificação da seleção de Zico, Falcão e Sócrates, reconheciam a
extraordinária qualidade desses jogadores. “É um pedaço da nossa história que
vai embora”, lamentou Paolo Rossi, ex-atacante da Itália, autor de três gols
contra o Brasil nas quartas de final da Copa do Mundo de 1982. “Ele ficará na
história. É uma grande decepção que Sócrates esteja morto tão jovem”, emendou o
goleiro Dino Zoff.
As homenagens não ficaram restritas ao meio
esportivo. O ex-presidente Lula lamentou a morte do ex-jogador que o ajudou a
fundar o PT, no início da década de 1980. “Sócrates é um exemplo de cidadania,
inteligência e consciência política.” A presidenta Dilma Rousseff também soltou
uma nota de pesar: “Foi um brasileiro atuante politicamente, preocupado com o
seu povo e o seu país”.
Tamanha deferência não ocorreu por acaso.
Sócrates teve um papel importante na redemocratização do Brasil. Foi um dos
principais articuladores, ao lado de Wladimir e Casagrande, da Democracia
Corintiana, na primeira metade dos anos 1980. O País ainda estava refém da
ditadura quando o então presidente do Corinthians, Waldemar Pires, promoveu uma
abertura política no clube. Descentralizou o poder e permitiu que os jogadores
tivessem voz ativa em decisões administrativas.
Sócrates aproveitou a oportunidade e logo
assumiu papel de liderança no grupo. Mais que isso, envolveu os jogadores na
luta pela democracia e pelas Diretas Já. Os atletas corintianos passaram a
apoiar movimentos grevistas, dialogar com sindicatos, filiar-se a partidos
políticos e entravam em campo com faixas e cartazes da Democracia Corintiana,
numa clara afronta aos militares. Em 1984, quando havia recebido o convite para
atuar na Fiorentina, Sócrates prometeu diante de 1 milhão de pessoas, durante
um comício das Diretas Já, permanecer no Brasil, caso o Congresso aprovasse a
realização de eleições diretas naquele ano. “Até vestir-se de dom Pedro I do
Dia do Fico ele se vestiu, para uma capa da Placar. Passou mais de quatro horas
se maquiando”, comenta Kfouri, diretor de redação da revista à época.
“Decepcionado com o resultado da votação, foi morar em Florença, mas não se
adaptou.”
A experiência libertária do Corinthians não
agradou a todos. Dentro do próprio elenco, o goleiro Leão criticava o que
considerava ser uma “anarquia, e não democracia”. A mídia esportiva da época
também foi implacável. Os jogadores eram criticados por dispensar a
concentração, por não dar tanta ênfase à preparação física e até mesmo por, nas
horas de lazer, tomar uma cervejinha. Sócrates era o principal alvo. “Foram
muito injustos conosco. Como é que uma anarquia poderia conquistar dois títulos
paulistas e quase levar um terceiro, numa época em que o Campeonato Paulista
era um dos mais difíceis do País?”, pergunta o meia-armador Zenon, que compôs
um harmônico meio-campo com Sócrates e Biro-Biro nas campanhas da Democracia
Corintiana. “Houve uma reação conservadora muito forte. Fato é que -nunca
deixamos- de corresponder em campo. E ajudamos a mudar os rumos do -nosso
-país. Não por acaso, -pesquisadores nos pro-curam até -hoje para resgatar esse
período.”
Kfouri confirma que a mídia, salvo raras
exceções, era implicante. “Até dizer que os jogadores chegavam para o treino
mal-ajambrados, como maloqueiros, eles disseram. Mas aquela equipe tirava de
letra esse tipo de crítica. O Sócrates e o Casagrande, por exemplo, passaram a
ir para o clube de terno e gravata. Era a coisa mais engraçada vê-los em traje
social, desengonçados, com o nó da gravata torto”, recorda.
Diante do inegável talento de Sócrates, os
críticos costumam enfatizar que ele seria ainda melhor se tivesse uma vida
regrada e treinasse mais. Mas Raí, irmão de Sócrates e ídolo do São Paulo nos
anos 1990, relativiza a assertiva. “Na Copa de 1982, Sócrates treinou
intensamente por seis meses, até parou de fumar, e teve um desempenho
formidável. Só que, no fundo, a genialidade dele também vinha do seu jeito de
ser irreverente”, avalia. Além disso, ele destaca que Sócrates foi muito mais
que um atleta ao lutar por transformações políticas. “Uma pessoa como ele é
difícil surgir em qualquer área. No futebol, mais ainda, porque o meio é muito
conservador, machista e opressor.”
Sócrates, por sinal, era um homem
acostumado a vencer obstáculos. Primeiro, foi a luta para conciliar a faculdade
de Medicina com os treinos e jogos. Depois, a batalha contra a própria
estrutura física. “Ele era alto demais e tinha o pé pequeno. Mesmo assim, com
inteligência e habilidade, superou as dificuldades. Seu famoso toque de
calcanhar, por exemplo, nada mais era que uma estratégia para driblar a sua
dificuldade de girar o corpo”, comenta o jornalista Celso Unzelte, comentarista
da ESPN e pesquisador da história do Corinthians.
“Sócrates era um pouco lento, mas tinha um toque
de bola refinado e uma excelente visão de jogo. Era um jogador cerebral. Não
raro, os colegas de equipe não conseguiam acompanhar seu raciocínio e perdiam
passes incríveis”, afirma Unzelte, autor do Almanaque do Timão. “Na Copa de
1982, poucos entenderam por que Telê Santana o colocou como capitão do time,
que tinha astros como Zico e Falcão. Mas tecnicamente ele foi tão bom quanto
eles. Em algumas partidas, até melhor.”
Após a aposentadoria, antecipada por uma hérnia
de disco, Sócrates jamais deixou de se posicionar politicamente e lutar por
transformações, no futebol e em seu País. Em suas colunas na CartaCapital, criticava
implacavelmente os desmandos da cartolagem e a forma pouco republicana como a
Copa de 2014 é organizada no Brasil, por exemplo. “Mesmo doente, ele se dispôs
a liderar um movimento para democratizar a CBF, a exigir eleições limpas e
renovação política”, lembra Zenon.
Após a primeira internação, em
agosto, Sócrates admitiu ter problemas com o consumo excessivo de bebidas
alcoólicas. Recusou, porém, a pecha de dependente químico. “Só tenho uma
dependência, a intelectual. Preciso ter sempre um livro na mão.”
“Sócrates foi o jogador mais original que o
Corinthians já teve. E um dos mais originais da história da Seleção
Brasileira”, comenta Kfouri. “Digo isso pensando em Garrincha, que também tinha
um talento que desafiava a lógica. Triste coincidência, Garrinha foi o primeiro
jogador da Seleção de 1958 a morrer, aos 49 anos, vítima do alcoolismo. E
Sócrates foi o primeiro a falecer da equipe de 1982, pelo mesmo motivo. Ambos
geniais.”
Rodrigo Martins – 11.12.2011
IN “Carta Maior” – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/um-idolo-romantico-2/