As milícias surgem e se consolidam em um contexto marcado por
práticas autoritárias baseadas no recurso à força como meio preferencial à
solução dos diversos problemas sociais. O sucesso desses grupos paramilitares
deve-se à tradição autoritária que condiciona a compreensão e atuação de
considerável parcela da sociedade que se acostumou com o arbítrio e que
acredita na repressão como o instrumento de controle social por excelência.
Rubens Casara
Na tragédia de Sófocles,
Édipo se afastou do reino de Corinto para evitar a desgraça prevista pelo
Oráculo de Delfos. Todavia, o herói grego não escapou de derramar o sangue do
pai e de deitar no leito de sua mãe. Na peça que inaugura a Trilogia Tebana, foi
a busca pela verdade sobre sua origem que levou Édipo, esperança do povo de
Tebas, à ruína. Elementos dessa tragédia, em pleno século XXI, parecem se
repetir no Rio de Janeiro: há uma morte anunciada, não por oráculos, mas por
seguidas ameaças que chegam ao conhecimento dos órgãos de segurança (e que
ganham credibilidade a partir da postura do Governo do Estado); um desejo de
verdade que levou um deputado a ser protagonista de uma das mais polêmicas
Comissões Parlamentares de Inquérito da história da Assembléia Legislativa
fluminense, a “CPI das milícias” (que investigou o funcionamento de
organizações criminosas que contam com a participação e o apoio, ainda que
velado, de membros do executivo, do legislativo e do judiciário); e, por fim, o
medo de que essa nefasta previsão se confirme.
Marx deixou escrito que
a história se repetiria, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.
Porém, em uma sociedade marcada pelo autoritarismo, que naturaliza a violência
e a ilegalidade, inclusive promovida por agentes estatais, não há motivo para
se esperar ações irreverentes ou burlescas. No Brasil, país de capitalismo
tardio no qual as promessas da modernidade (liberdade, igualdade e
fraternidade) nunca passaram de ficções do discurso jurídico-burguês, inacessíveis
à maioria da população, há uma tendência a que certos fatos vivenciados no
passado, por mais perversos ou irracionais que se apresentem, voltem a ocorrer
no presente e se repitam no futuro: violência gera cada vez mais violência no
campo e na cidade, ilegalidades são combatidas com o recurso a outras medidas
ilegais, mortes anunciadas, como as da religiosa Dorothy Stang e da juíza
Patrícia Accioly, não são impedidas, por mais que pareçam evitáveis. A tragédia
se repete. Mudam-se os nomes das vítimas, atualizam-se as datas, mas o horror
permanece.
O professor de história
e militante dos direitos humanos Marcelo Freixo conhece de perto a inação do
Estado, a opção pelo encarceramento em massa da população pobre e os equívocos
políticos que ampliaram os conflitos na cidade do Rio de Janeiro. Ainda jovem,
ministrou aulas à população carcerária e adquiriu visibilidade ao denunciar
atos arbitrários praticados por agentes públicos. Freixo sofreu também
diretamente as conseqüências da violência urbana por ocasião do assassinato de
seu irmão, também militante de um partido de esquerda. Na organização Justiça
Global atuou junto às vítimas do Estado Policial que ganhou força no Rio de
Janeiro com a derrocada do projeto de Leonel Brizola e Nilo Batista que, entre erros
e acertos (e muitos ataques da imprensa burguesa), tentava construir políticas
públicas de segurança pautadas pela necessidade de se respeitar os direitos
fundamentais das camadas mais pobres da população. Eleito e reeleito deputado
estadual, nunca deixou de denunciar a opção governamental de reduzir a política
de segurança à gestão da pobreza através da repressão policial e a manipulação
do medo da população com o objetivo de angariar votos.
Pode-se afirmar que foi
a preocupação com as variadas formas de opressão que levou Marcelo Freixo à
questão das “milícias”. Esses grupos paramilitares aparecem na trajetória do
deputado fluminense como a Esfinge na de Édipo: decifrá-las ou ser devorado por
um sistema que naturalizava o arbítrio e a violência contra parcela
considerável da população. Se, ao decifrar o enigma, Édipo teve Tebas aos seus
pés, a “CPI das Milícias”, o instrumento legislativo manejado contra os grupos
paramilitares, significava para o jovem deputado não só uma vitória política
contra a naturalização da opressão como também a visibilidade necessária à sua
própria manutenção na arena política fluminense (Freixo, após a “CPI das
Milícias”, foi reeleito com expressiva votação, o que permitiu que seu partido
– o PSOL – ganhasse mais uma cadeira no parlamento).
Registre-se que, em um
primeiro momento, as “Milícias” foram apresentadas à opinião pública como uma
solução à questão da violência nos bairros e comunidades cariocas. Esses
grupos, cujos primeiros sinais de atuação apareceram há mais de uma década,
formados por pessoas que se propunham a utilizar a força para garantir a ordem,
contavam com a simpatia das autoridades. As estatísticas, tão ao gosto do
paradigma economicista neoliberal, pareciam indicar que os índices de
criminalidade baixavam nas localidades dominadas pelas milícias: o Executivo
ficava feliz. Diversos “milicianos” eram arrolados como testemunhas de acusação
e seus depoimentos eram, não raro, as únicas provas a levar diversos réus à
condenação: o Ministério Público e o Judiciário ficavam felizes. Não por acaso,
e não faz muito tempo, o atual prefeito do Rio de Janeiro declarou que a
“polícia mineira” (outro nome dado ao grupo paramilitar) era uma resposta
criativa e legítima para os problemas com a segurança da população, enquanto o
seu antecessor via nesses grupos uma espécie de “autodefesa comunitária”.
As milícias surgem e se
consolidam em um contexto marcado por práticas autoritárias baseadas no recurso
à força como meio preferencial à solução dos diversos problemas sociais. O
sucesso desses grupos paramilitares deve-se à tradição autoritária que
condiciona a compreensão e atuação de considerável parcela da sociedade que se
acostumou com o arbítrio e que acredita na repressão como o instrumento de
controle social por excelência. A força dos grupos paramilitares é um dos
preços que a sociedade brasileira ainda paga pelo esquecimento e perdão
conferido aos agentes estatais que torturaram, estupraram, mataram e fizeram
desaparecer os corpos de tantos opositores durante o regime de exceção. A
aceitação da violência empregada pelos agentes estatais e colaboradores durante
a ditadura civil-militar é um dos dados constitutivos da história brasileira
que levaram à naturalização da violência utilizada pelos milicianos. Diante
desse quadro, não pode ser encarado com surpresa o fato dos grupos
paramilitares contarem com apoio popular e terem construído seus próprios
braços políticos nos legislativos municipal, estadual e
federal.
Os grupos de
“milicianos” surgiram e se mantiveram funcionais ao sistema de segurança
pública do Estado do Rio de Janeiro. Ao atuar no controle da população (e na
eliminação do indivíduo disfuncional), através de práticas que revelam uma
espécie de sincretismo entre as estratégias de atuação da máfia italiana, dos
“esquadrões da morte” e dos traficantes de drogas ilícitas das comunidades
pobres do Rio de Janeiro (os “donos do morro” que, em substituição ao Estado,
representam a figura da autoridade na localidade), os grupos paramilitares
contribuem à manutenção das estruturas da sociedade capitalista, eliminado
ameaças à ordem, defendendo-a da multidão de indivíduos que não interessam à
sociedade de consumo. De fato, dentre as principais características das
“milícias” pode-se citar o controle coativo de certo território e da população
que nele habita e a busca de legitimação a partir de um discurso que promete a
proteção dos habitantes, a defesa da sociedade e a instauração da ordem. Ao
contrário de outros criminosos, os milicianos apresentam-se, de forma maniqueísta,
como combatentes do bem contra o mal que assola a comunidade.
Todavia, em que pese já
existirem denúncias cada vez mais freqüentes contra atos arbitrários desses
grupos, a “CPI das Milícias” foi o principal instrumento de desvelamento da
estrutura e do funcionamento dessas organizações criminosas. Vale lembrar que o
deputado Marcelo Freixo propôs a instalação da “CPI das Milícias”, logo após
assumir o primeiro mandato, em fevereiro de 2007, mas esse pedido ficou
engavetado por cerca de um ano e meio até que, após a comoção pública gerada
pelo seqüestro, cárcere privado e tortura de jornalistas do diário O Dia na
comunidade do Batan, foi autorizada a sua instalação. Desde o início dos
trabalhos, percebeu-se que o maior desafio seria revelar o que se escondia sob
o discurso dos milicianos e autoridades estatais.
A partir das
investigações, percebeu-se que a propalada redução na criminalidade nas
comunidades “pacificadas” pelos paramilitares era ilusória, fruto da
manipulação estatística, uma vez que os crimes cometidos por esses grupos não
chegavam a ser registrados. Nas áreas controladas pelas milícias, a diferença
entre os crimes ocorridos e aqueles que eram investigados era bem superior às
das demais localidades. Foram os trabalhos dessa Comissão Parlamentar de
Inquérito que revelaram o ânimo de lucro individual como principal motivação
dos milicianos, a coação (e o assassinato) de testemunhas de crimes como
estratégia de preservação dos criminosos, a participação de agentes estatais
como integrantes do grupo e a exploração econômica de atividades legais e
ilegais no território em que atuam como principal fonte econômica dessas
organizações (apurou-se que o transporte alternativo é a principal fonte de
renda dos grupos paramilitares). O relatório da CPI também traz dados sobre a
votação de parlamentares em áreas de milícias nas eleições de 2006, bem como
demonstra que, em determinadas localidades do Rio de Janeiro, apenas políticos
que integravam ou eram simpatizantes dos grupos paramilitares podiam fazer
campanha.
O Relatório Final da
“CPI das Milícias” traz cinqüenta e oito sugestões concretas de ações contra as
milícias, tais como a retomada do controle pelo poder público do transporte
alternativo (na cidade do Rio de Janeiro, o chamado “transporte alternativo”
continua entregue às cooperativas, que, muitas vezes, são fachadas para que
grupos paramilitares continuem a exercer a exploração econômica da atividade de
transporte, por meio da coação e da extorsão de trabalhadores), a licitação da
atividade de transporte alternativo por indivíduo (em sentido contrário, a
opção do Executivo Municipal foi realizar o processo de licitação entre
cooperativa, o que, em muitos casos, serviu à formalização da exploração da
atividade por milicianos), o desarmamento dos bombeiros e o aprimoramento dos
mecanismos de fiscalização do fornecimento do gás doméstico (na época da CPI,
apurou-se a existência de apenas cinco fiscais da Agência Nacional de Petróleo
para fiscalizar todo o Rio de Janeiro).
A visibilidade e o reconhecimento
pelo trabalho à frente da “CPI das Milícias” produziram um efeito colateral:
Marcelo Freixo passou a ser apontado como um elemento perturbador de um sistema
que até então funcionava a contento tanto para os milicianos quanto para as
autoridades. Ao revelar aquilo que os beneficiários dos grupos paramilitares
queriam manter oculto, Freixo tornou-se o estranho a ser demonizado e contra o
qual utilizar a força passou a ser a melhor solução, o inimigo a ser eliminado.
Se por um lado, as
autoridades do Rio de Janeiro aplaudiram as conclusões da CPI (o prefeito
Eduardo Paes, por exemplo, autoridade responsável pelas decisões relacionadas
ao transporte alternativo, recebeu das mãos do deputado Marcelo Freixo o
relatório final da CPI das Milícias no início de 2009), por outro, deixaram de
adotar as medidas sugeridas pelo parlamentar para atingir as fontes de renda
dos grupos paramilitares. A atividade criminosa, portanto, permaneceu atrativa.
Sem dificuldade, os “milicianos” que eram presos, inclusive os apontados
líderes desses grupos, foram substituídos por outros.
Diante do problema
explicitado pelos trabalhos da “CPI das Milícias”, a única resposta apresentada
pelo governo estadual foi a da repressão penal seletiva. Alguns “milicianos”
foram escolhidos, presos, processados e condenados. O complexo problema das
milícias acabou descontextualizado, reformulado e redefinido como um simples
caso de polícia no qual o indivíduo “a”, após ser etiquetado de miliciano,
recebe uma pena “b”, enquanto o grupo paramilitar continua a explorar
ilicitamente atividades econômicas vantajosas e a controlar, através do uso
ilegal da força, determinadas parcelas da população. No bairro de Campo Grande,
por exemplo, a partir da atividade de repressão ao grupo paramilitar conhecido
como “Liga da Justiça”, o Governo do Estado fez nascer uma nova organização
criminosa, o chamado “Comando Chico Bala”, formado por policiais e até por
criminosos já condenados que, em um primeiro momento, em nome do Estado,
combatiam a “milícia” que primeiro se instalou no local: deu-se, sob os olhares
do governo, o milagre da multiplicação das milícias; trabalhadores e moradores
desse bairro carioca que eram coagidos e explorados por um grupo paramilitar
passaram a ser coagidos e explorados por dois grupos de
milicianos.
O acerto em propor a CPI
e desnudar as “Milícias” foi, paradoxalmente, o motivo da tensão suportada por
Freixo e sua família desde o início das investigações. Por exercer o seu
mandato de forma destacada, tornou-se alvo tanto dos milicianos, incomodados
com as luzes que foram lançadas sobre os grupos paramilitares, quanto das
autoridades estatais, preocupados com a projeção e o futuro político do ora
parlamentar. Não raro, o deputado estadual passou a ser atacado por simpatizantes
das milícias e do governo. Apesar das ameaças estarem documentadas, na medida
em que se aproximam as eleições municipais, não falta quem insinue que Freixo
se aproveita politicamente da situação.
Como Édipo, que
atormentado pela profecia de Delfos deixou Corinto, Freixo, após o crescimento
vertiginoso, nas últimas semanas, das ameaças direcionadas a ele, optou por se
afastar de sua terra: a partir de um convite da Anistia Internacional, entidade
que tem manifestado preocupação com o avanço das “milícias” nas cidades
fluminenses, saiu do Brasil em busca de apoio internacional para a
implementação das propostas da “CPI das Milícias” e de tranqüilidade tanto para
a sua família quanto para a reflexão necessária à escolha dos próximos passos,
em especial no que toca às estratégias para sua segurança. Em tempos sombrios e
instáveis, nos quais quase tudo está em constante mudança e prepondera o
individualismo possessivo, há na atuação de Freixo um convite à redescoberta da
política. O que acontecerá com ele? Não se sabe. Futuras candidaturas? Isso não
é importante, por ora. O certo é que Marcelo regressará ao Brasil para dar
continuidade aos compromissos do mandato. As manifestações populares no Rio de
Janeiro em defesa da vida do parlamentar indicam que ele está no caminho
certo.
Rubens Casara - Juiz de direito do Tribunal de Justiça do Rio
de Janeiro e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Corpo
Freudiano – 17.11.2011
IN “Caros Amigos” – http://carosamigos.terra.com.br/index2/index.php/artigos-e-debates/2123-freixo-a-as-milicias-uma-tragedia-carioca