segunda-feira, 30 de abril de 2012

Liberdade enfraquece sindicatos de fachada



o Brasil está indo na contramão do sindicalismo internacional. Na Europa e nos Estados Unidos, sindicatos combativos, como os dos metalúrgicos, dos siderúrgicos e dos químicos, estão discutindo a unificação com outras categorias profissionais para fortalecer o poder de negociação e de ação sindical.

Artur Henrique
Neste ano, a CUT vai levar até as bases a sua luta por liberdade e autonomia sindical. A idéia é discutir alternativas democráticas de organização e dialogar com o trabalhador sobre os vícios da atual estrutura sindical brasileira, que permite a criação de sindicatos fantasmas.
Além de ir até os locais de trabalho, vamos fazer campanhas publicitárias em rádios e TVs e um plebiscito sobre o fim do imposto sindical. A campanha entra no ar em março, mês em que todos os trabalhadores formais do país têm um dia de salário descontado por conta desse tributo compulsório.
Movimento sindical forte não significa número de sindicatos. Significa representatividade e pressão nas negociações. Para fortalecer a negociação, é fundamental fortalecer os sindicatos, torná-los atuantes, com trabalho de base. Ou seja, é preciso acabar com os sindicatos de gaveta. O fim do imposto é determinante para isso.
Nesse sentido, defendemos a substituição do imposto por uma taxa negocial que deve ser definida nas assembleias das categorias, após as negociações salariais e de condições de trabalho.
Para nós, a liberdade de o trabalhador decidir se e como quer sustentar financeiramente o seu sindicato fortalece os sindicatos combativos, representativos e com poder de negociação.
Mais do que isso: acaba com os sindicatos de fachada -criados apenas porque, para alguns sindicalistas, trata-se de um negócio lucrativo que não demanda esforços.
Desde 2008, quando foi publicada a lei 11.648, que reconheceu formalmente as centrais sindicais, o ritmo de criação de sindicatos aumentou ainda mais.
Isso porque, pela lei, para ser reconhecida e ter direito a 10% do total arrecadado via imposto sindical, a central tem de atingir um índice 7% de representatividade. Para abocanhar parte dos recursos, algumas centrais pulverizaram ainda mais a base dos trabalhadores, criando centenas de sindicatos.
Só em 2011, o Ministério do Trabalho e Emprego recebeu 1.207 pedidos de registros de sindicatos. O total de sindicatos com registro pulou para 14.204, sendo 9.815 de trabalhadores. Se o imposto acabar, muitos fecharão as portas, pois não representam ninguém.
O fato é que o Brasil está indo na contramão do sindicalismo internacional. Na Europa e nos Estados Unidos, sindicatos combativos, como os dos metalúrgicos, dos siderúrgicos e dos químicos, estão discutindo a unificação com outras categorias profissionais para fortalecer o poder de negociação e de ação sindical.
Para a CUT, só com liberdade e autonomia sindical é possível construir entidades realmente representativas e preparadas para enfrentar os desafios da negociação coletiva e do contrato coletivo nacional por ramo de atividade.
No entanto, isso só será possível com a extinção do imposto, com liberdade e autonomia para que os trabalhadores decidam quanto querem pagar.
É necessário também aprovar uma lei que proíba práticas antissindicais, assim como convencer os trabalhadores sobre a importância de se sindicalizar nos locais onde os empresários proíbem ou dificultam a entrada de sindicalistas, como na construção civil e na comércio etc.
É por isso que a CUT luta pela ratificação da convenção 87 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que garante a liberdade e a autonomia sindical.
Isso significa que o trabalhador pode decidir em que sindicato quer se organizar e quanto vai contribuir para manter o seu sindicato. Ele também poderá escolher qual federação, qual confederação e qual central quer que o represente nas negociações nacionais. Essa é uma bandeira histórica da CUT. Por ela, estamos dispostos a ir para o enfrentamento. A luta é pela liberdade de expressão e de associação.



Artur Henrique – Presidente nacional da CUT (Central Única dos Trabalhadores) – 04.02.2012
Tendências/Debates – resposta à questão “A contribuição sindical compulsória deveria acabar?”
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/23905-liberdade-enfraquece-sindicatos-de-fachada.shtml




sábado, 28 de abril de 2012

Prisão e política habitacional em São Paulo: cadeiões "abrigam" moradores de rua


 criminalizar e aprisionar o povo de rua tem sido o caminho encontrado pelo governo paulista para retirar do centro as minorias indesejáveis. A população de rua que outrora foi vista como expressão do descaso e falta de compromisso do Estado com o bem estar social, hoje é representada como inimiga pública, como grupo que oferece risco para a sociedade, como perturbadora da ordem e da paz social, que demanda ser reprimida e deslocada para um local distante e invisível aos nossos olhos.

José de Jesus Filho
A atual política habitacional do governo de São Paulo tem consistido em segregar a população de rua em celas superlotadas das unidades prisionais da Marginal Pinheiros, com mínimas condições de vida e bem estar.
 Há alguns anos, três ou quatro, temos notado uma progressiva alteração no aspecto da população prisional nos centros de detenção provisória da capital. Percebemos que ao perfil já conhecido por nós, ou seja, daqueles que majoritariamente foram acusados de crimes com violência, foi adicionada uma parcela da população sem histórico de violência e bastante debilitada, originada principalmente do centro da cidade de São Paulo.
 No ano de 2010, ao levantar os dados da população presa em um dos Centros de Detenção Provisória da Marginal Pinheiros, descobrimos que um elevado número se encontra naquelas unidades pela prática de pequenos furtos ou em virtude do porte de entorpecente, especialmente o crack. Ao entrevistá-los, verificamos que suas histórias são bastante similares: são pessoas em situação de rua, dependentes de crack, acusadas da prática de pequeno furto em lojas do Centro da cidade ou tentativa de roubo de transeuntes, sem o uso de armas. Com um agravante: a maioria alega ter sofrido agressão durante a abordagem policial, especialmente por parte da Guarda Civil Metropolitana.
 Ficou claro para nós então que se tratava na verdade de responder à situação de gritante descaso do governo com relação à população de rua e sua remoção para as prisões e, para tanto, bastaria criminalizá-la.
 Solução fácil e barata para superar o déficit habitacional, os centros de detenção provisória (CDPs) são os antigos cadeiões da Segurança Pública, com capacidade para apenas 520 presos, mas que abrigam até 1700. No caso do CDP 1 de Pinheiros, a população lá custodiada provém do centro da cidade. Essa população é extremamente vulnerável e impotente diante do aparato repressivo do Estado, geralmente sofre agressão policial no momento da abordagem e depois novos espancamentos nas delegacias de polícia, para então ser conduzida aos CDPs. A rota da segregação é bem conhecida daqueles frequentemente submetidos a ela.
 Essa parece ser, sem dúvida, a forma escolhida pelo governo paulista para gerir a população de rua, ou seja, autoritária e agressiva, tratando de segregá-la da população geral e assim mantê-la distante dos olhos do público.
 Com efeito, criminalizar e aprisionar o povo de rua tem sido o caminho encontrado pelo governo paulista para retirar do centro as minorias indesejáveis. A população de rua que outrora foi vista como expressão do descaso e falta de compromisso do Estado com o bem estar social, hoje é representada como inimiga pública, como grupo que oferece risco para a sociedade, como perturbadora da ordem e da paz social, que demanda ser reprimida e deslocada para um local distante e invisível aos nossos olhos.
 Para compreender o que está ocorrendo no estado, é necessário observar o que se passa na região central da cidade, onde a população de rua costumava concentrar-se, e também olhar para os esforços do governo pela garantia de moradia a todos.
 Nos últimos anos, a população prisional tem alterado o seu perfil. Tradicionalmente a maior parcela de presos era composta por acusados ou condenados por crimes patrimoniais com o uso de violência, especialmente o roubo. Porém, hoje o tráfico de entorpecentes está assumindo uma liderança, antes desconhecida na configuração da população prisional. Não temos dados suficientes para diagnosticar as causas dessas mudanças, mas temos informações que as sugerem.
 De um lado, a atual lei antidrogas, a pretexto de desprisionalizar os usuários de entorpecentes, acabou por elevar o número de usuários e pequenos traficantes nas prisões de São Paulo.
 A título de exemplo, se comparamos os dados prisionais de dezembro de 2005, ano anterior à vigência da atual lei antidrogas, com os dados de dezembro de 2010, poderemos ter uma noção dos efeitos dessa lei. Em 2005, o furto representava menos de 10% da população prisional de São Paulo; em 2010 subiu para quase 20%. O caso do tráfico é mais grave, pois passou de 10% em 2005 para 25% em 2010 (Fonte: Depen).
 Esse dado é significativo para corroborar a nossa suspeita inicial de que a população prisional estava mudando não só quantitativamente, mas também qualitativamente. Em outras palavras, a preferência da Justiça Criminal hoje está voltada para dependentes químicos que praticam pequenos furtos e roubos para alimentar sua adição. São pessoas não violentas, com estado de saúde debilitado, sem habitação, sem escola e sem emprego, para as quais o governo deveria investir no seu bem estar social, mas preferiu etiquetá-las como criminosas e escondê-las da sociedade nas unidades prisionais  imundas de Pinheiros.
 Se compararmos esses dados com a política de construção de habitações populares, o quadro fica completo. De 2003 a 2006 foi prevista a construção de 216.730 unidades habitacionais (fonte: LOAs). Porém, o governo entregou 79.073, deixando de construir 137.657 moradias, 63,52% menos do que a meta estabelecida (fonte: sítio da CDHU na internet). Entre 2007 e 2009 foi prevista a construção de 105.385 unidades habitacionais (fonte: LOA’s). Porém, o governo construiu apenas 57.053, deixando de construir 48.332 moradias, 45,86% menos do que a meta estabelecida (fonte: sítio da CDHU na internet).
 Com essa política:
 1 – O governo esconde da sociedade aqueles que outrora resolveu abandonar à sua própria sorte;
 2 – Deixa de prover saúde, educação, moradia e ocupação para essa parcela da população;
 3- Opõe a sociedade à população de rua, apresentando estes como criminosos, perturbadores da ordem e geradores de risco social;
 4 – Responde ao problema do crescente número de dependentes de crack concentrados na região central sem envolver a saúde pública na questão;
 5 – Tranqüiliza os lojistas do centro, que constantemente se queixam que a presença da população de rua nos arredores de seu comércio afasta os consumidores e, portanto, reduz o lucro;
 6 – “Higieniza” a cidade, oferecendo a aparência de que o São Paulo conseguiu reduzir a população de rua;
 7 – Resolve parcialmente o déficit habitacional, pois para esse grupo não há mais que se preocupar em oferecer habitação.
 Hoje são as minorias indesejadas os destinatários das políticas repressivas do governo, amanhã serão todos aqueles que de alguma forma representem risco ao bom funcionamento do sistema.
Urge reverter esse quadro.


José de Jesus Filho - Advogado e Assessor Jurídico da Pastoral Carcerária Nacional. - 30 de Julho de 2011
Artigo originalmente publicado no Jornal O Trecheiro – Rede Rua
IN “Correio da Cidadania” – http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6119:social300711&catid=71:social&Itemid=180

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Desafios da democracia participativa


em uma sociedade fragmentada e tendencialmente individualista, convém ampliar o diálogo social para além dos “corpos intermediários” já organizados (como associações e sindicatos). A ideia central dessa concepção é escutar também os membros informais e “emergentes” da sociedade, voluntariamente ignorados pelos utilitaristas liberais.

Giovanni Allegretti
O que os cientistas políticos franceses Yves Sintomer e Loïc Blondiaux chamam de “imperativo deliberativo”1 da modernidade impõe-se progressivamente entre administradores e dirigentes do planeta. Concretamente, trata-se de abrir as instâncias de poder ao diálogo, tanto político como social. Para explicar esse movimento, os cientistas políticos Leonardo Avritzer, brasileiro, e Boaventura de Sousa Santos, português, analisaram o círculo vicioso no qual estão presas as democracias modernas: a desconfiança suscitada pelo comportamento das instâncias representativas provoca um desinteresse pela participação ativa, considerada “inócua” e incapaz de transformar a gestão pública.2 Curar essa “patologia” típica das sociedades liberais implica a invenção de práticas que permitam sair do domínio discursivo e influenciar diretamente as escolhas governamentais. Esses processos não se limitam a modificar as relações entre os prestadores de serviços e os usuários/clientes. Eles constituem um meio de transformar a cultura política com o objetivo de favorecer o envolvimento concreto de todas as camadas da população. Compreendida dessa forma, a participação não teme o debate ou o conflito, pois a própria prática participativa valoriza os pontos de vista diferentes e a liberdade de expressão. É normal, contudo, que surjam tensões quando se abrem espaços de diálogo em benefício daqueles que foram por muito tempo oprimidos pelas maiorias políticas dominantes. Ademais, essas confrontações não são estéreis. Ao contrário: permitem debater e chegar a um consenso sobre os interesses gerais da comunidade. A “participação” das populações se opõe, dessa forma, à inércia política batizada pelo sociólogo Antonio Tosi de “teoria administrativa das necessidades”3 – ou seja, a incapacidade das instituições de conhecer intimamente o conjunto de seus territórios e perceber as necessidades não manifestadas.
O crescimento das desigualdades e a mobilização multiforme das populações impõem novos desafios às cidades, para os quais não há uma resposta imediata. É por isso que, especialmente na América Latina e na África (ver artigo de Bachir Kkanoute, na página 21), a gestão municipal precisou transformar-se radicalmente. Não se trata apenas de um movimento neomunicipalista:4 a consolidação e difusão das inovações de base permitem modificar todas as esferas governamentais. O objetivo é instaurar um tipo de “federalismo solidário” que parte “de baixo” para reformar as relações entre as diferentes instâncias do Estado e reforçar o intercâmbio entre países e culturas diferentes. O mundo político local apresenta-se, assim, como o primeiro elo entre os atores da “sociedade civil” e as instituições de representação. O movimento nacional pela reforma urbana (Fórum Nacional de Reforma Urbana, FNRU) no Brasil é um exemplo do papel que desempenha a experimentação local na transformação durável das políticas públicas. Em um país de urbanização acelerada e forte segregação espacial e social, o FNRU, criado em 1988, lutou contra a habitação precária e pela gestão municipal democrática. Na Assembleia Constituinte de 1988, o movimento conseguiu inscrever na lei fundamental o princípio segundo o qual a cidade exerce uma função social. Nessa luta, o movimento contou com o apoio de milhares de associações, sindicatos e reagrupamentos profissionais, mas também com a aplicação, em nível local, das inovações propostas. Graças a esse trabalho de campo adotado com sucesso por muitas municipalidades – com os riscos e perigos que implica –, o FNRU, em 2001, convenceu o Congresso brasileiro a votar (por unanimidade, e sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, impregnada de ideologia liberal) o “estatuto das cidades”. Esse instrumento jurídico urbano é hoje um dos mais audaciosos do mundo.

Participação esvaziada
Se por um lado os progressos são visíveis, por outro a extensão da democracia participativa depara com tentativas de cooptação em todos os continentes. A cientista política brasileira Evelina Dagnino evoca uma “convergência perversa”5 entre as aspirações das populações e certo credo neoliberal, notadamente explícita no processo pelo qual grandes instituições internacionais transformam a “participação local” em desresponsabilização institucional e em redução do papel do Estado social. A promoção de parcerias com organizações do terceiro setor tende a destruir os aspectos públicos da solidariedade e substituí-los por mecanismos de caridade. De uma perspectiva utilitarista, a implicação dos cidadãos nesses mecanismos é considerada expressão do indivíduo e de suas preferências particulares. Por exemplo, os eleitos convidam os habitantes a comentar os projetos de renovação urbana – como vemos na maioria das capitais que instalam postos de informação e organizam belas exposições –, porém sem fazer os cidadãos participarem das decisões e escolhas. Da mesma forma, algumas ferramentas eletrônicas (como os fóruns de discussão de comunidades na internet) são usadas como “canal de comunicação” entre cidadãos e administradores – contato virtual que permite que os gestores públicos interpretem as preferências da população como bem entenderem. No fim das contas, essas instituições buscam “dividir para melhor reinar”.
Um debate levado adiante pelo primeiro-ministro inglês David Cameron é ilustrativo: ele defende a importância do papel desempenhado pela “Big Society” (comunidade de voluntários) na reforma do Estado de bem-estar social, ou seja, no processo de reduzir suas dimensões e terceirizar serviços. A perspectiva neoliberal também foi formulada de forma mais brutal pelo empreendedor indiano Narayana Murthy, por meio do aforismo que busca propagar: “Acreditamos em Deus. Todos os outros são apenas portadores de informação”. Nessa visão utilitarista da participação, os cidadãos não figuram como cogestores ou portadores de saberes; são apenas “informantes-chave” para os estrategistas de comunicação ou marketing de administrações públicas.
É certo que a crise política pela qual atravessam as sociedades modernas favorece a confusão, e muitos administradores locais, progressistas ou liberais, não diferenciam uma aproximação da outra. Isso ocorre porque as constatações são as mesmas para uns e outros: 1) as instituições sociais e políticas (administrações, partidos, sindicatos, mídia, igrejas, ONGs...) teriam perdido a legitimidade; 2) a crise financeira atingiu as fontes públicas locais, em um contexto de “subsídio assimétrico”, no qual a descentralização das responsabilidades mais “sensíveis” (social, de saúde, de infraestrutura) seria realizada sem recursos suficientes ou capacidade decisória real; 3) as necessidades sociais se multiplicariam na mesma proporção do aparecimento de soluções técnicas para elas. Com base nesses fatores, escolher entre as duas formas de aproximação com os cidadãos torna-se um ato político difícil, que afeta sua durabilidade. Assim, é necessário refletir sobre as práticas adotadas e esclarecer conceitos cuja ambiguidade possa ser um obstáculo, ou até mesmo o fracasso, a mudanças políticas concretas.
As leituras honestas do “imperativo deliberativo” partem da constatação que, em uma sociedade fragmentada e tendencialmente individualista, convém ampliar o diálogo social para além dos “corpos intermediários” já organizados (como associações e sindicatos). A ideia central dessa concepção é escutar também os membros informais e “emergentes” da sociedade, voluntariamente ignorados pelos utilitaristas liberais. Essa “cidadania insurgente” abarca os movimentos “rebeldes e contestatórios” analisados pelo antropólogo norte-americano James Holston6 e as organizações “de solidariedade e formuladoras de projetos”, tais como as descritas pela socióloga australiana Leoni Sandercock.7 Estas últimas atuam de forma empírica no território, sem projeto preconcebido. Em ambos os casos, a dificuldade reside no fato de esses atores, ao trabalharem sob o princípio de rede, preocuparem-se mais com o “apoio mútuo” do que com o papel inovador que poderiam desempenhar na transformação da sociedade.

Além do utilitarismo
O processo participativo não visa a um ganho utilitarista, e sim à valorização de cada indivíduo e de suas exigências sem renunciar às possibilidades de compartilhar espaços coletivos. Para evitar as armadilhas do utilitarismo liberal, deve-se, em primeiro lugar, valorizar o componente pedagógico da participação, ou seja, a prática dos interventores de se transformar por meio da escuta recíproca e da busca pelo lugar da diferença no processo, o que amplia o conhecimento e os sentimentos de coletividade e humanidade. Nesse sentido, os “cursos de autoformação sobre políticas públicas” – que precedem as sessões de balanço participativo em 75 cidades da Coreia do Sul e também em grandes cidades brasileiras, como Fortaleza e Guarulhos – são instrutivos. Essas duas últimas cidades experimentaram os métodos de ensino-aprendizagem de Paulo Freire, que tendem a evitar a impressão dos cidadãos de ser “doutrinados” pelos próprios administradores antes de participar das decisões.
Em segundo lugar, deve-se canalizar a participação também para a difusão de informação que os meios dominantes ignoram, o que supõe a constituição de redes alternativas de comunicação e, sobretudo, a vontade de “abrir as caixas-pretas” das administrações públicas, em particular as que têm um forte caráter “técnico”. Em geral, o funcionamento dessas estruturas impede os cidadãos menos cultos de compreender o trabalho realizado e formular necessidades. É por isso que vemos nascer grupos de “observatórios da participação” ou “fiscalizadores das promessas eleitorais” em Camarões e no Brasil, por exemplo.
Em terceiro lugar, é preciso reformar as próprias ferramentas de participação a fim de limitar as possibilidades de cooptação. Se continuarmos a utilizar instrumentos que não permitem a evolução das negociações no decorrer do processo participativo, a maior parte dos dirigentes políticos continuará a ver os cidadãos como uma massa egoísta que formula demandas autorreferentes; e os eleitos jamais serão levados a abrir novos espaços de codecisão que, de um lado, criam solidariedade e, de outro, favorecem a melhor compreensão das contingências da gestão administrativa por parte das populações. É necessário, portanto, abandonar a separação entre saberes laicos e saberes especializados. O processo participativo deve suscitar não só a justiça cognitiva – que aproveita uma série de conhecimentos tirados do mundo dos tecnólogos –, mas também as práticas dos habitantes. Ademais, mobiliza o que Sintomer chama de saber político do cidadão, ou seja, a capacidade dos habitantes de elaborar estratégias que dialogam com as do mundo político. Paralelamente, os gestores públicos devem ser vinculados a essas mudanças, muitas vezes consideradas por eles ocasiões para colocar em dúvida certezas profissionais veiculadas por formações universitárias às vezes incapazes de autocrítica.
Um quarto fato para evitar as armadilhas do utilitarismo liberal é reconhecer os cidadãos (e suas organizações) como interlocutores concretos, o que implica a renovação dos modelos culturais nos quais se inserem os projetos locais. Existem de fato hábitos administrativos e ideias preconcebidas cuja reprodução é um obstáculo ao desenvolvimento endógeno durável e à integração de todas as camadas da população. Colocar em questão os modos de funcionamento e os hábitos das instituições é a parte mais difícil. A única possibilidade de chegar a resultados inovadores com o apoio dos atores sociais é formular projetos participativos claros para mostrar os custos e benefícios de cada uma das opções. É a dimensão cultural da participação: a sociedade deve tomar consciência dos princípios que são indispensáveis de se respeitar para alcançar uma verdadeira “durabilidade”.
Um quinto elemento para consolidar a gestão participativa é a adoção de estatutos jurídicos, cujo enquadro das novas aproximações não deve servir apenas de suporte “técnico”, mas também de fundamento cultural. De fato, sem a afirmação clara de valores fundamentais, a elaboração empírica de regras corre o risco de se desmontar progressivamente.

Ambiguidades
As discussões sobre os processos participativos avançam, mas ainda há ambiguidades a serem esclarecidas. Uma delas é que a complementaridade entre atores locais, públicos e privados, administrativos e populares deve ser real. Se as instituições locais são constantemente submetidas a níveis superiores de poder, acabam elas mesmas reproduzindo esse tipo de relação com suas bases quando delegam serviços sociais e contratam associações com poucos recursos e responsabilidades excessivas. É preciso sair desse círculo vicioso, na perspectiva de fazer frente comum (sociedade e instituições locais) para reivindicar do Estado mais redistribuição.
Outro ponto é a questão da escassez de recursos, que não pode justificar indefinidamente a impossibilidade de cumprir as reformas reivindicadas pelos cidadãos. O sucesso de milhares de “moedas locais” no mundo, como as “economias do dom” em vigor em numerosos territórios no Sul, são a prova de que é possível reintegrar o social à economia. Sem tais iniciativas, perdurará a ideia de que a economia é um universo com regras imutáveis, um campo no qual é impossível inovar.
Um terceiro ponto que permanece ambíguo é a incoerência das ações locais, uma verdadeira praga em muitas comunidades. Uma cidade baseada em grandes centros comerciais não é compatível com a vizinhança de pequenos núcleos imersos na natureza e que valorizam o pequeno comércio da proximidade. Se uma municipalidade deseja construir um desenvolvimento horizontal, deve recusar os guetos e as polarizações sociais.
Deve-se mencionar também a prestação de contas, que não pode ser reduzida apenas ao componente técnico da “transparência”. Ela supõe uma forte vontade política de responsabilidade em cada fase do processo de coelaboração e aplicação das escolhas.
Além disso, a participação não deve ser limitada às inovações técnicas, e sim pensada como um processo de profunda transformação cultural e política. Imaginar que o mundo político construído pela “representação” nacional possa tirar proveito do processo participativo sem ceder uma parte de seu poder revela um mal-entendido ou uma quimera (ver artigo de Ernesto Ganuza, na página 20). Da mesma forma, a participação “esporádica” suscita apenas falta de compromisso, embora recorrer a ciclos repetidos seja necessário para criar uma nova rotina, mais plausível.
Para gerar o encontro entre os cidadãos e as instituições, cada setor deve dar um passo em direção ao outro. Esse elemento também ainda pouco definido pede que cada parte pense no “bem comum” e olhe para além de seus interesses específicos.
Finalmente, é perigoso acreditar que a integração social e a justiça redistributiva são efeitos colaterais automáticos de todos os processos participativos. As experiências latino-americanas e africanas mostram que, sem meios específicos que permitem a tradução concreta desses objetivos em ações, as desigualdades tendem a se reproduzir.
São poucos os casos em que as administrações prestam atenção a todas essas exigências. Há muita dificuldade em abandonar velhos hábitos da cultura política tradicional. Contudo, as mudanças são visíveis em um número crescente de municipalidades. Sousa Santos imagina um cenário em que uma parte do Estado se apresentará como um “novo tipo de movimento social”, compartilhando com os componentes mais dinâmicos da sociedade a aspiração à transformação política.8





1 Yves Sintomer e Loïc Blondiaux. L’impératif délibératif [O imperativo deliberativo]. Paris: Colégio Internacional de Filosofia, 2010.
2 Leonardo Avritzer e Boaventura de Sousa Santos, Towards widening the democratic canon [Rumo à ampliação do cânone democrático], 2003. Disponível em www.ces.uc.pt/bss/documentos/Intro-DemoENG.pdf.
3 Antonio Tosi, “Urban theory and the treatment of differences: administrative practices, social sciences and the difficulties of specifics” [Teoria urbana e o tratamento das diferenças: práticas administrativas, ciências sociais e as dificuldades das especificidades], International Journal of Urban and Regional Research, Montreal, v.15, n.4, p.594-609, dez. 1991.
4 O municipalismo é uma doutrina que preconiza a intervenção das municipalidades na economia.
5 Evelina Dagnino (coord.), Sociedad civil, esfera pública y democratización en América Latina: Brasil, Fondo de Cultura Económica, México, 2004.
6 James Holston, Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and modernity in Brazil [Cidadania insurgente: disjunções da democracia e modernidade no Brasil], Nova Jersey: Universidade de Princeton, 2007.
7 Leonie Sandercock, Towards cosmopolis: planning for multicultural cities [Rumo às cosmópolis: planejamento para cidades multiculturais], Londres: John Wiley, 1998.
8 Boavantura de Sousa Santos, Reinventar la Democracia: reinventar el Estado, Madri: Clacso, 2005.



Giovanni Allegretti – Pesquisador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra/ Portugal – 30.09.2011
IN “Le Monde Diplomatique Brasil” – http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=1024

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Globalização ética e solidariedade


A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. Esta é uma questão ética e política e não tecnológica.
Não se trata de inibir a pesquisa e frear os avanços, mas de pô-los a serviço dos seres humanos.

Paulo Freire
O seu discurso, que fala de ética, esconde, porém que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robbustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca.
Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da queda do muro de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na perversidade de sua ética do lucro.
Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas opç~eos políticas, mas sabhendo-se e assumindo-se como mulheres e homens, como gente, não aprofundem o que hoje já existe como uma espeécie de mal-estar que se generaliza em face da maldade neoliberal. Mal-estar que terminará por consolidar-se numa rebeldia nova em que a palavra crítica, o discurso humanista , o compromisso solidário, a denúncia veemente da negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo genteficado serão armas de incalculável alcance.        
 Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à "fereza" da ética do mercado.
É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a natureza humana* a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos. Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção. Seres éticos, mesmo capazes de transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente "falado" neste texto. Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me um ser condicionado mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana.
Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de quem transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode estar acima da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção asiática, por exemplo, significa não apenas o colapso econômico-financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras do processo de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade histórico-social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é, como disse e tenho repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo.
O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros de fazer e de ser, assim também não poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro.
Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a sua morte em vida.
A preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar-se.
Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento humano que, assim, privilegie fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o lucro. Mas sei também que, se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele. Se, de um lado, não pode haver desenvolvimento sem lucro este não pode ser, por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o gozo imoral do investidor.
De nada vale, a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo também, uma sociedade eficazmente operada por máquinas altamente "inteligentes", substituindo mulheres e homens em atividades as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros sem ter o que fazer, e este é um risco muito concreto que corremos*.
Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a ditatorial, contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário já é em si uma contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de mulheres que se perdem ao perderem a liberdade.
É exatamente por causa de tudo isso que, como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos. Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica, discursos como estes: “O desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século”.
Nada é possível ser feito contra a globalização que, realizada porque tenha que ser realizada, tem que continuar sem destino porque assim está misteriosamente escrito que deve ser. A globalização que reforça o mando das minorias poderosas, esmigalha e pulveriza a presença impotente dos dependentes, fazendo-os ainda mais impotentes, é destino certo. Em face dela, não há outra saída senão cada uma baixar a cabeça e agradecer a Deus porque ainda está vivo. Agradecer a Deus ou à própria globalização.

 * MOERMANN, Joseph. Le Courrier – 8 Aout, 1996  - Suisses. La globalization de l’economie provoquera – t – elle un mai 68 mondial? – la marmite mondiale sous pression.


Paulo Freire – Pedagogo – 1997
IN “Desafios da Globalização”. DOWBOR, Ladislau. IANNI, Octávio. RESENDE, Paulo-Edgar A. (org). 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Fora dos trilhos



Modernizar não é comprar trem. O fundamental é reduzir a frequência. Há muito poderíamos contar com 290 km a mais de metrô

Eduardo Fagnani
O debate sobre os transportes públicos é desalentador. Ao lado da esgotada opção pelo ônibus (na forma de corredores), emergem "soluções" elitistas (bicicletas) e utópicas (restrição ao uso do automóvel, pedágio, carona, rodízio etc.). Bicicleta é bom para quem mora em Higienópolis (centro) e trabalha no Pacaembu (zona oeste). Não serve para a minha empregada, que mora no Capão Redondo (zona sul) e trabalha no Butantã (zona oeste). Usar automóvel não é ato de vontade, mas falta de opção.
O problema remonta à década de 1950. A acelerada urbanização não foi acompanhada de ação pública. O setor nunca foi prioridade, e usuários sempre foram tratados como gado.
Em metrópoles europeias, o transporte coletivo prepondera ante o individual. No universo dos meios coletivos, metrô e trem respondem pela maioria das viagens; o ônibus tem papel suplementar.
Caracas e Cidade do México seguem esses parâmetros. Aqui, ocorre o inverso. Entre 1967 e 2007, a participação dos meios coletivos declinou (de 68% para 55%) em favor do automóvel.
No âmbito exclusivo das viagens coletivas, em 2007, o ônibus respondia por 78% dos deslocamentos, ante 16% do metrô e 6% do trem.
Iniciamos tarde o investimento em transporte público e não recuperamos o tempo perdido. Desde 1968, construímos, em média, 1,7 km de metrô ao ano. Na Cidade do México e em Santiago, o ritmo é superior -4,4 km e 2,6 km, respectivamente. Xangai constrói 21 km/ ano desde 90. Aqui, as obras da linha amarela (de 12 km) já levam 16 anos.
O indicador "população por km de linha" evidencia a reduzida oferta.
Em 2009, figurávamos entre as dez piores situações globais (278 mil pessoas/km), distantes da Cidade do México (94 mil) e de Santiago (55 mil) e da maioria das aglomerações(entre 10 e 30 mil).
Nosso metrô é um dos mais superlotados do mundo (27mil passageiros por km de linha), taxa superior às da Cidade do México, de Buenos Aires, de Santiago (entre 15 e 19mil) e da maior parte das metrópoles mundiais (inferior a 10 mil).
Com a privatização, o metrô tem de dar lucro. Nos últimos 20 anos, a tarifa subiu quase o dobro da inflação. Em 2009, nossa tarifa (€ 0,99) era semelhante à de Lisboa (€ 1,05). Todavia, o lisboeta trabalhava 14 minutos para comprar um Big Mac; o paulistano, 40. Cidades latinas possuíam tarifas inferiores: Santiago (€ 0,72); Bogotá (€ 0,57); Buenos Aires (€ 0,31) e México (€ 0,18).
Não priorizamos a modernização dos 290 km da CPTM, que demanda investimentos muito menores (pois evita desapropriações e subterrâneos). Em 2007, o metrô (60 km) transportou 2,2 milhões de pessoas/ dia, enquanto a CPTM (290 km) se restringia a 800 mil. Essa disparidade é explicada pela rápida frequência do metrô. Modernizar não é comprar trem. O fundamental é reduzir a frequência. Há muito poderíamos contar com 290 km adicionais de metrô.
O governo estadual é o principal responsável pela crise, seguido pelo município, que não investe no sistema. A União também foi omissa: em 1990, o tema saiu da agenda, só retornando em 2007(via PAC).
Precisamos elaborar uma política nacional assentada na responsabilidade compartilhada entre os entes federativos e ancorada em fontes de financiamento sustentadas.
O Brasil pode resolver essa questão no curto prazo. Estima-se que meio ponto a mais na taxa de juros tenha um custo de R$ 15 bilhões -o suficiente para construir mais da metade da rede de metrô paulistana.
Transporte público em metrópoles do porte das capitais brasileiras requer sistemas de alta capacidade.
Isso é o que separa a civilização da barbárie. Transporte é um direito do cidadão, e não apenas do torcedor da Copa do Mundo.


Eduardo Fagnani – Professor doutor do Instituto de Economia da Unicamp – 08.09.2011
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0809201107.htm








Metrô não acompanha demanda, atrasa e superlota; número de panes quase dobrou

Segundo sindicato da categoria, sistema sofre de automação, terceirização, carência de profissionais e de investimento


Jessika Marchiori  
São Paulo – Os testes de um novo sistema de sinalização chamado CBTC, sigla em inglês para Controle de Trens Baseado em Comunicação – em português mais claro, trens operados remotamente – , e o aumento da demanda estão entre as explicações para as falhas constantes no metrô de São Paulo. O número de ocorrências passou de 32 em 2010 para 59 em 2011, e as queixas têm sido frequentes neste ano.
O presidente da Federação Nacional dos Metroviários e secretário-geral do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, Paulo Pasin, afirma que as falhas aumentam porque o sistema deveria ter sido ampliado há muito tempo: “Os sucessivos governos não deram a atenção devida e estamos com um sistema extremamente defasado. Se não houver uma expansão, a população será cada vez mais penalizada.”
O CBTC começou a ser instalado há um ano e meio, em caráter experimental, na linha 2 - Verde, entre as estações Vila Prudente e Sacomã. Segundo Pasin, em vez de solucionar problemas, o modelo provoca ainda mais falhas. “O novo sistema tem ocasionado problemas a uma linha que não tinha muitas ocorrências.” Com a circulação dos trens prejudicada, os efeitos da superlotação se agravam. As panes vão de bloqueios de portas por usuários a defeitos técnicos nos sistemas de controle das composições.
Os novos trens não possuem portas laterais e isso dificulta o trabalho dos operadores nas falhas conhecidas como "carrossel". Quando há um pouco mais de demora para resolver o problema, o reflexo se dá em todas as estações e a consequência é a paralisação dos trens. “Quando o trem fica desenergizado, o ar-condicionado desliga. Falta ventilação e a operação para a abertura de portas é muito maior”, alerta Pasin.
A superlotação e a falta de trens são as principais queixas dos usuários do metrô. Rosana Moreira, auxiliar de cobrança, que mora na Vila Ema, na zona leste da capital, reclama dos trens lotados e do tempo que perde para conseguir embarcar. “A fila é imensa nas estações e para embarcar é uma dificuldade”, reclama.
De acordo com dados fornecidos pelo Metrô, a linha 2 Verde concentra o maior número de paralisações. Os casos mais que triplicaram no período, subindo de sete (2010) para 24 (2011).
A falta de funcionários é um outro grave problema apontado por Pasin. O aumento no número de funcionários poderia resolver parte dos problemas crônicos do transporte metroviário. “Mais operadores de trens durante o dia ajudaria a reduzir as paralisações, a melhorar o atendimento e a segurança e aliviaria um pouco a superlotação.”
O comerciante Carlos Augusto Cerqueira, que pela primeira vez fazia a viagem da Penha, também na zona leste, para o centro de São Paulo, se assustou com a situação. “Saí de casa às 6h20 e estou chegando às 7h58. Para embarcar tive de ir até a estação Itaquera e esperei mais 20 minutos. É muito cheio e para ‘melhorar’ ainda mais a situação,as pessoas ficam na porta e quem precisa sair primeiro enfrenta outro transtorno”.
Pasin destaca ainda como agravante da situação a terceirização dos serviços. De acordo com ele, cada vez mais se retira do metroviário a função de cuidar da manutenção da rede, o que não garante a qualidade do serviço. “Quando a função é exercida pelos metroviários a qualidade é muito maior. Nossa capacidade é reconhecida internacionalmente e não é à toa que a companhia dá consultoria para a construção de muitos metrôs por aí. Infelizmente, a terceirização é política do governo do estado”, avalia o sindicalista.

Jessika Marchiori – 14.03.2012



Atrás de México, Santigo e Buenos Aires

o serviço poderia ser muito melhor se não fosse a lentidão com o que o governo do Estado investe no sistema, que começou a operar nos anos 1970 e possui 70 quilômetros de extensão divididos em cinco linhas.

Jessika Marchiori
O metrô paulistano é tido como um dos mais modernos do mundo, mas o serviço poderia ser muito melhor se não fosse a lentidão com o que o governo do Estado investe no sistema, que começou a operar nos anos 1970 e possui 70 quilômetros de extensão divididos em cinco linhas. A média diária de passageiros é de 3,4 milhões, sendo que a cidade tem quase 12 milhões de habitantes e é o centro de uma Região Metropolitana com 20 milhões de pessoas.
A Cidade do México, centro de um conglomerado urbano com o mesmo número de habitantes, começou seu sistema metroviário na mesma época que o de São Paulo e já chegou a 202 quilômetros em suas 11 linhas.
A Grande Santiago, no entorno na capital do Chile, também inaugurou sua primeira linha em meados dos anos 1970. Com 6,6 milhões de habitantes, a cidade é servida por 105 quilômetros e cinco linhas de metrô, e deve chegar a 120 quilômetros em 2014.
Buenos Aires, na Argentina, começou a construir suas linhas subterrâneas no início do século 20. Hoje conta com 56 quilômetros em seis linhas, para uma população de 3 milhões de pessoas.


Jessika Marchiori – 14.03.2012

terça-feira, 17 de abril de 2012

Tributos grandes e Estado insuficiente: por que?


 Enfraquecer o Estado e deixá-lo permanentemente em coma parece ser útil a uma parcela pequena, mas poderosa da população.
 
Ricardo Luiz Chagas Amorim
O Brasil vive desde 2004 um período raro em sua história: reencontrou o caminho do crescimento econômico, vive em democracia eleitoral e alcançou progressos sobre a pobreza e a desigualdade. Significará, este momento, o início de transformações sociais importantes?
Não é o que parece. Os avanços na área social, embora importantes, não arranharam as escandalosas mazelas sociais do país. Nossas melhores máquinas e equipamentos ainda vêm do exterior, levando a custosas importações, mas principalmente indicando que continuamos dependentes na tecnologia e nos padrões de consumo. Insistimos, marcadamente o Governo, na ausência de uma visão de futuro, de um projeto de nação. Tudo isso informa que ainda somos os mesmos.
Mesmo assim, a retomada do crescimento com ações de distribuição de renda já apavora analistas financeiros que gritam, associando a elevação do PIB com o aumento dos preços. Neste mundo estranho, o deus mercado já não é louvado como antes, mas o Estado volta a ser o culpado. Assim, é preciso controlá-lo, diminuí-lo, e, como sempre, entoa-se a ladainha, quase mantra, do Estado caro demais.
Esse discurso é interessado e esconde informações. A carga tributária em 2008, antes da crise, ficou em torno de 35,2% do PIB e, em meio às acusações de ser excessiva para o padrão de desenvolvimento brasileiro, dois fatos fundamentais foram “esquecidos” (?).
O primeiro é a triste regressividade da nossa estrutura tributária. Com ela, aliviamse os mais ricos em detrimento de todos os demais. O Brasil, além de concentrar a arrecadação sobre os tributos indiretos — reforçando a desigualdade — e possuir um número reduzido de alíquotas de imposto de renda — beneficiando os mais abastados —, torceu a lógica e cobra um IPTU estranhamente regressivo. Aqui, dos 340 municípios com mais de 50 mil habitantes, apenas 52 têm IPTU com alíquota progressiva.
O resultado é conhecido: os estratos médios da população arcam com enorme peso em tributos e, por isso, sentem-se lesados e não atendidos em suas demandas. Qualquer discurso simplista sobre o abuso dos impostos ou do Estado gastador parece a esse grupo uma verdade tangível. É a carga, porém, que está mal distribuída.
O segundo, e mais grave, mostra que é irreal a afirmação de que o Estado brasileiro gasta demais em proveito próprio. Estimativas para 2008 provam que dos 35,2% do PIB arrecadados pelas três esferas de governo, 15% retornam em dinheiro para a sociedade na forma de transferências sociais, previdência e subsídios, fundamentais no combate à pobreza de milhões de pessoas. Ou seja, sobram 20,2% do PIB nas mãos do Estado, incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Desses 20,2% do PIB, os governos pagaram, também em dinheiro, 5,4% do PIB em juros líquidos da dívida pública, desta vez beneficiando umas poucas famílias já ricas. Em outras palavras, sobra, de fato, para o setor público realizar todos os gastos (da folha de pagamento até investimentos) algo em torno de 14,8% do PIB! Ou seja, menos de 15% do PIB para ser o “leviatã” gastador, o gigante maldito dos conservadores.
Por que se quer um Estado menor e pequeno? Para ser eficiente e permitir maior desenvolvimento, diriam os conservadores. A história dos países ricos, contudo, desqualifica essa crença. Entre eles, sem qualquer exceção, as arrancadas sempre contaram com Estados fortes, atuantes e relativamente robustos. Essa discussão não é desinteressada. A acusação de um Estado grande demais vem sempre acompanhada de sugestões de cortes de gastos. O problema é: quais? A escolha invariavelmente recai sobre a previdência social, os servidores públicos e seus salários. Fala-se de custeio e previdência, mas nunca, nunca, nunca se comenta sobre os juros pagos aos mais ricos. Será coincidência?
Enfraquecer o Estado e deixá-lo permanentemente em coma parece ser útil a uma parcela pequena, mas poderosa da população. Assim, respondendo a pergunta do título, é possível afirmar: 1. a arrecadação tributária é elevada porque sem ela o Estado não conseguiria transferir recursos aos mais pobres e ao mesmo tempo atender aos juros da dívida. 2. Somadas essas duas contas, o Estado precisa se virar com o pouco que sobra. Ao final, fica, de um lado, pressionado pelos conservadores que o chamam de “grande” e, de outro, por ser “pequeno” face à tarefa que tem pela frente, corre o risco de perder legitimidade, pois não tem musculatura para voltar a ser indutor do desenvolvimento brasileiro.
E agora?


Ricardo Luiz Chagas Amorim – Economista, pesquisador ligado ao IE-UNICAMP, professor da FACAMP e membro da Sociedade Brasileira de Economia Política, ex-diretor do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – 2011

sábado, 14 de abril de 2012

Microempresa descobre o Cartão BNDES

 

A figura da garantia não existe nos empréstimos com cartão, o que o torna um fator extremamente atraente para os micros e pequenos empresários.


Vera Saavedra Durão
 O avanço para 33% na participação das micros, pequenas e médias empresas nos desembolsos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) este ano é em grande parte mérito do Cartão BNDES, produto de maior sucesso do banco nos últimos dois anos. De janeiro a julho de 2010 essa modalidade respondia por 2,8% do total de desembolsos da instituição. No mesmo período deste ano, o peso dobrou e chegou a 5,3% dos R$ 69 bilhões liberados até julho.
Ricardo Albano Dias Rodrigues, chefe do Departamento de Operações de Internet, que opera o dinheiro de plástico do banco, prevê fechar o ano com um desembolso de R$ 7,5 bilhões nos empréstimos via cartão, um recorde. Se confirmado, o valor vai representar um aumento de 80% em relação aos R$ 4,3 bilhões liberados em 2010. “Até meados de setembro já desembolsamos R$ 5,2 bilhões”, adiantou.
Criado no fim dos anos 90 por Milton Dias, funcionário do BNDES, para facilitar a vida dos pequenos empresários, o instrumento de crédito destinado às micros, pequenas e médias empresas para aquisição de produtos para desenvolver suas atividades, entrou em operação em 2003, na gestão Carlos Lessa. E se popularizou na crise financeira, em 2009. Nos últimos dois anos, a procura não para de crescer.
O cartão é uma linha de crédito pré-aprovada, com limite de até R$ 1 milhão por banco emissor (Banco do Brasil, Caixa Economica Federal, Banrisul, Bradesco e Itaú), com prestações fixas, prazo de pagamento de três a 48 meses e taxa de juro baseada nas Letras do Tesouro Nacional (LTNs), divulgada mensalmente no Portal de Operações do Cartão BNDES. A taxa de setembro é de 0,98% (12,45% para um ano). Apesar de superar a Selic, os usuários não reclamam.
Essa taxa de juro é cheia e remunera o BNDES e o agente financeiro. O agente ou banco emissor é quem repassa os recursos do BNDES para o usuário do cartão, na modalidade operação indireta. O proprietário do cartão pode solicitar crédito até o limite máximo de R$ 1 milhão para cada banco emissor. Na prática, o valor médio do limite de crédito concedido tem sido de R$ 47 mil e R$ 15 mil o do tíquete médio de compras.
A figura da garantia não existe nos empréstimos com cartão, o que o torna um fator extremamente atraente para os micros e pequenos empresários. “O risco é 100% do agente. O BNDES e o fornecedor têm risco zero. O fornecedor do cartão recebe à vista, mesmo que o cliente não pague. Até agora não temos caso de inadimplência”, disse Rodrigues.
Até setembro, o banco emitiu 455 mil cartões, equivalente a um crédito concedido de R$ 20,8 bilhões. A tendência é de o número de usuários continuar crescendo. Existem 34 mil fornecedores à disposição dos usuários nos setores de comércio, serviço e indústria, que ofertam 170 mil produtos. Os itens mais procurados pelos usuários – pessoas jurídicas de capital nacional – são computadores, softwares, máquinas e equipamentos, veículos utilitários e motocicletas para serviços de entrega, móveis comerciais e material de construção.
O banco está entusiasmado com a aceitação que vem tendo o cartão entre micros e pequenas empresas e estuda ampliar a gama de serviços que podem ser financiados pelo dinheiro de plástico. Hoje, os setores de comércio e serviços abrangem 70% dos negócios. As transações com a indústria representam entre 20% a 25%. “Estamos estudando financiar serviço de qualificação de mão de obra para construção civil, bem como para outros setores. Atualmente só é financiado pelo cartão o serviço de qualificação de trabalhadores para o setor de turismo por causa dos eventos da Copa do Mundo de futebol de 2014 e da Olimpíada de 2016.”
Há também planos para aumentar a cobertura do cartão para 100% do território nacional. As operações feitas entre 2010 e 2011 beneficiaram empresas de 4.495 municípios brasileiros, ou 81% do total dos 5.500. As compras em sua maioria são regionais, feitas nos locais onde vivem os pequenos empresários. A meta é chegar a 100% dos municípios até 2012.


Vera Saavedra Durão – 26.09.2011
IN “Valor Econômico (A4) – http://www.valor.com.br/brasil/1016684/microempresa-descobre-o-cartao-bndes 




Capital de giro mais 'barato' atrai pequenas empresas

A possibilidade de financiar capital de giro a uma taxa de juros bem mais baixa do que a média encontrada no mercado é o principal fator que tem levado micro e pequenos empresários a buscar o Cartão BNDES.

Carlos Giffoni 

Eles já representam 98% do total de usuários dessa linha de crédito e pagaram, em setembro deste ano, uma taxa anualizada de 12,41%. A taxa média anual para capital de giro no sistema financeiro é de 30%, segundo dados do Banco Central.

Além do crédito farto, que pode chegar a até R$ 1 milhão por banco que fornece o cartão, e da falta de burocracia para conseguir o financiamento, um atrativo que brilha aos olhos dos pequenos empresários é o prazo aplicável para pagamento: 48 meses. Mesmo com essa vantagem, empresários consultados pelo Valor preferem liberar o limite de seus cartões e pagar parcelas maiores. Assim, em momentos de emergência, o crédito fácil, e barato, está disponível.

"O cartão articula a administração das finanças da empresa", diz Abilio Duarte, sócio da rede de mercados EconoMax. Ele usa o seu limite de R$ 1 milhão para comprar equipamentos de armazenamento, carrinhos, material elétrico e sistemas de ar condicionado. "Com o cartão, consigo fazer investimentos mesmo sem poder quitá-los no curto prazo. Deixo de gastar grandes quantias com bens duráveis e disponibilizo recursos para outros investimentos."

Carlos Mills é sócio de uma gravadora de CD"s e DVD"s. A Mills Records dobrou o faturamento desde 2008, quando adquiriu o cartão. "O setor musical está passando por uma crise e as vendas demoram a ser feitas, assim como os pagamentos. O cartão me liberou capital de giro", diz.

O empresário, porém, lamenta algumas limitações do cartão. "Não posso usá-lo para a produção musical, o que engloba gravação, mixagem e masterização. E boa parte do material com que trabalho é importada, mas o cartão só permite a compra de itens nacionais", diz ele.

Os R$ 30 mil de crédito que Mills tem disponíveis são usados exclusivamente na replicação das mídias. A gravadora envia um CD ou DVD finalizado para uma fábrica que faz milhares de cópias daquele produto - e o serviço é pago com o cartão. "Potencialmente o meu lucro agora é bem maior, mas nem sempre as vendas correspondem. Ter mais CDs para vender não quer dizer que eles serão vendidos."

"A grande vantagem é que nem precisei de avalista", diz Antonio Polidoro, produtor de café. "Pude reformar o barracão de armazenamento, comprar torradores e outros equipamentos novos. R$ 200 mil fazem diferença para um pequeno empresário, principalmente se você puder parcelar o pagamento." O próximo passo do agricultor é comprar um veículo para transporte do café, uma vez que suas vendas estão aumentando. "O meu negócio cresceu 100%."

A segurança garantida quando a compra é realizada com o Cartão BNDES é um atrativo para os fornecedores. A fabricante de bombas e filtros para piscinas Dancor entrou na lista de empresas que aceitam o cartão como forma de pagamento a pedido dos próprios clientes: "Vários nos procuraram quando ficaram sabendo sobre a possibilidade de pagamento com esse cartão", diz Sandra Dias, analista financeira da empresa.

No caso da Dancor, a carteira de clientes não aumentou desde que eles entraram para o cadastro do BNDES, mas também não diminuiu: "Muitos clientes migraram para o cartão e hoje, menos de dois anos depois, as vendas através dele representam 10% do nosso faturamento", afirma Dias. Como benefício, ela aponta o controle da inadimplência: "A segurança total no recebimento é o diferencial dessa forma de pagamento". A Dancor também atua do outro lado do jogo: "Usamos o cartão para comprar motores, que são a chave do nosso produto", diz Dias.

O Grupo LC, que atua no setor de transportes e faz serviços de armazenamento, aumentou o seu crédito até chegar ao limite máximo, de R$ 1 milhão, para uma de suas empresas, a Translute Transportes Rodoviários, e R$ 800 mil para a LC Logística. "Começamos com limites menores e fomos aumentando gradualmente, já que mais fornecedores passaram a aceitar o cartão", explica Suzeli Sampaio, supervisora financeira do grupo, que gerencia os cartões há três anos.

O limite alto permitiu que a Translute comprasse quatro carretas no primeiro semestre de 2011 por R$ 90 mil cada. "Se eu tivesse feito um financiamento normal, até mesmo via BNDES, gastaria até R$ 30 mil a mais", calcula a supervisora financeira, o que representaria mais de 8% de diferença em relação ao preço final pago pelos veículos. "Compro de tudo com o cartão: caminhões, móveis, sistemas. A tendência é usar os 100% de limite que a empresa tem, já que a abrangência do cartão é muito boa e as taxas de juros são baixas", diz Suzeli. Para liberar rapidamente o limite, ela opta por parcelas maiores, o que permite uma margem de trabalho com o crédito disponível.

Apesar de todos os benefícios apontados, ela tem encontrado um problema quando usa o cartão. "Principalmente no setor de veículos, os fornecedores estão repassando uma taxa sobre o preço final do produto para o usuário do cartão. No caso da Translute, sabemos que não é fácil conseguir um caminhão no curto prazo, então ficamos rendidos ao fornecedor que tem o veículo disponível". "Para eles [fornecedores], o pagamento com o cartão é um negócio mais seguro, o risco de calote é zero. Falta esse entendimento", diz Suzeli.

O BNDES ameaça excluir do seu cadastro empresas que têm esse tipo de comportamento, mas, como no caso do Grupo LC, às vezes é mais confortável se submeter a esse tipo de situação do que perder o fornecedor. "Ainda assim, as carretas saíram mais baratas. Não conseguiríamos preço compatível no mercado", afirma a supervisora.


Carlos Giffoni – 26.09.2011