Enfraquecer o Estado e deixá-lo permanentemente
em coma parece ser útil a uma parcela pequena, mas poderosa da população.
Ricardo Luiz Chagas Amorim
O Brasil vive desde 2004 um período raro em sua história: reencontrou o
caminho do crescimento econômico, vive em democracia eleitoral e alcançou
progressos sobre a pobreza e a desigualdade. Significará, este momento, o
início de transformações sociais importantes?
Não é o que parece. Os avanços na área social, embora importantes, não
arranharam as escandalosas mazelas sociais do país. Nossas melhores máquinas e
equipamentos ainda vêm do exterior, levando a custosas importações, mas
principalmente indicando que continuamos dependentes na tecnologia e nos
padrões de consumo. Insistimos, marcadamente o Governo, na ausência de uma
visão de futuro, de um projeto de nação. Tudo isso informa que ainda somos os mesmos.
Mesmo assim, a retomada do crescimento com ações de distribuição de renda
já apavora analistas financeiros que gritam, associando a elevação do PIB com o
aumento dos preços. Neste mundo estranho, o deus mercado já não é louvado como
antes, mas o Estado volta a ser o culpado. Assim, é preciso controlá-lo,
diminuí-lo, e, como sempre, entoa-se a ladainha, quase mantra, do Estado caro
demais.
Esse discurso é interessado e esconde informações. A carga tributária em
2008, antes da crise, ficou em torno de 35,2% do PIB e, em meio às acusações de
ser excessiva para o padrão de desenvolvimento brasileiro, dois fatos
fundamentais foram “esquecidos” (?).
O primeiro é a triste regressividade da nossa estrutura tributária. Com
ela, aliviamse os mais ricos em detrimento de todos os demais. O Brasil, além
de concentrar a arrecadação sobre os tributos indiretos — reforçando a
desigualdade — e possuir um número reduzido de alíquotas de imposto de renda —
beneficiando os mais abastados —, torceu a lógica e cobra um IPTU estranhamente
regressivo. Aqui, dos 340 municípios com mais de 50 mil habitantes, apenas 52
têm IPTU com alíquota progressiva.
O resultado é conhecido: os estratos médios da população arcam com enorme
peso em tributos e, por isso, sentem-se lesados e não atendidos em suas
demandas. Qualquer discurso simplista sobre o abuso dos impostos ou do Estado
gastador parece a esse grupo uma verdade tangível. É a carga, porém, que está
mal distribuída.
O segundo, e mais grave, mostra que é irreal a afirmação de que o Estado
brasileiro gasta demais em proveito próprio. Estimativas para 2008 provam que
dos 35,2% do PIB arrecadados pelas três esferas de governo, 15% retornam em dinheiro
para a sociedade na forma de transferências sociais, previdência e subsídios,
fundamentais no combate à pobreza de milhões de pessoas. Ou seja, sobram 20,2%
do PIB nas mãos do Estado, incluindo os Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário. Desses 20,2% do PIB, os governos pagaram, também em dinheiro,
5,4% do PIB em juros líquidos da dívida pública, desta vez beneficiando umas
poucas famílias já ricas. Em outras palavras, sobra, de fato, para o setor
público realizar todos os gastos (da folha de pagamento até investimentos) algo
em torno de 14,8% do PIB! Ou seja, menos de 15% do PIB para ser o
“leviatã” gastador, o gigante maldito dos conservadores.
Por que se quer um Estado menor e pequeno? Para ser eficiente e permitir
maior desenvolvimento, diriam os conservadores. A história dos países ricos,
contudo, desqualifica essa crença. Entre eles, sem qualquer exceção,
as arrancadas sempre contaram com Estados fortes, atuantes e relativamente
robustos. Essa discussão não é desinteressada. A acusação de um Estado grande
demais vem sempre acompanhada de sugestões de cortes de gastos. O problema é:
quais? A escolha invariavelmente recai sobre a previdência social, os
servidores públicos e seus salários. Fala-se de custeio e previdência, mas
nunca, nunca, nunca se comenta sobre os juros pagos aos mais ricos. Será
coincidência?
Enfraquecer o Estado e deixá-lo permanentemente em coma parece ser útil a
uma parcela pequena, mas poderosa da população. Assim, respondendo a pergunta
do título, é possível afirmar: 1. a arrecadação tributária é elevada porque sem
ela o Estado não conseguiria transferir recursos aos mais pobres e ao mesmo
tempo atender aos juros da dívida. 2. Somadas essas duas contas, o Estado
precisa se virar com o pouco que sobra. Ao final, fica, de um lado, pressionado
pelos conservadores que o chamam de “grande” e, de outro, por ser “pequeno”
face à tarefa que tem pela frente, corre o risco de perder legitimidade, pois
não tem musculatura para voltar a ser indutor do desenvolvimento brasileiro.
E agora?
Ricardo Luiz Chagas Amorim – Economista, pesquisador ligado ao IE-UNICAMP, professor
da FACAMP e membro da Sociedade Brasileira de Economia Política, ex-diretor do
Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – 2011
IN “Desafios do Desenvolvimento”, ano 8, No.66 – http://desafios.ipea.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2523:catid=28&Itemid=23