em uma sociedade
fragmentada e tendencialmente individualista, convém ampliar o diálogo social
para além dos “corpos intermediários” já organizados (como associações e
sindicatos). A ideia central dessa concepção é escutar também os membros
informais e “emergentes” da sociedade, voluntariamente ignorados pelos
utilitaristas liberais.
Giovanni Allegretti
O que os cientistas políticos franceses Yves Sintomer e Loïc Blondiaux
chamam de “imperativo deliberativo”1 da modernidade impõe-se
progressivamente entre administradores e dirigentes do planeta. Concretamente,
trata-se de abrir as instâncias de poder ao diálogo, tanto político como
social. Para explicar esse movimento, os cientistas políticos Leonardo Avritzer,
brasileiro, e Boaventura de Sousa Santos, português, analisaram o círculo
vicioso no qual estão presas as democracias modernas: a desconfiança suscitada
pelo comportamento das instâncias representativas provoca um desinteresse pela
participação ativa, considerada “inócua” e incapaz de transformar a gestão
pública.2 Curar essa “patologia” típica das sociedades liberais
implica a invenção de práticas que permitam sair do domínio discursivo e
influenciar diretamente as escolhas governamentais. Esses processos não se
limitam a modificar as relações entre os prestadores de serviços e os
usuários/clientes. Eles constituem um meio de transformar a cultura política
com o objetivo de favorecer o envolvimento concreto de todas as camadas da
população. Compreendida dessa forma, a participação não teme o debate ou o
conflito, pois a própria prática participativa valoriza os pontos de vista
diferentes e a liberdade de expressão. É normal, contudo, que surjam tensões
quando se abrem espaços de diálogo em benefício daqueles que foram por muito
tempo oprimidos pelas maiorias políticas dominantes. Ademais, essas
confrontações não são estéreis. Ao contrário: permitem debater e chegar a um
consenso sobre os interesses gerais da comunidade. A “participação” das
populações se opõe, dessa forma, à inércia política batizada pelo sociólogo
Antonio Tosi de “teoria administrativa das necessidades”3 – ou seja,
a incapacidade das instituições de conhecer intimamente o conjunto de seus
territórios e perceber as necessidades não manifestadas.
O crescimento das desigualdades e a mobilização multiforme das
populações impõem novos desafios às cidades, para os quais não há uma resposta
imediata. É por isso que, especialmente na América Latina e na África (ver
artigo de Bachir Kkanoute, na página 21), a gestão municipal precisou
transformar-se radicalmente. Não se trata apenas de um movimento
neomunicipalista:4 a consolidação e difusão das inovações de base
permitem modificar todas as esferas governamentais. O objetivo é instaurar um
tipo de “federalismo solidário” que parte “de baixo” para reformar as relações
entre as diferentes instâncias do Estado e reforçar o intercâmbio entre países
e culturas diferentes. O mundo político local apresenta-se, assim, como o
primeiro elo entre os atores da “sociedade civil” e as instituições de
representação. O movimento nacional pela reforma urbana (Fórum Nacional de
Reforma Urbana, FNRU) no Brasil é um exemplo do papel que desempenha a
experimentação local na transformação durável das políticas públicas. Em um
país de urbanização acelerada e forte segregação espacial e social, o FNRU,
criado em 1988, lutou contra a habitação precária e pela gestão municipal
democrática. Na Assembleia Constituinte de 1988, o movimento conseguiu
inscrever na lei fundamental o princípio segundo o qual a cidade exerce uma
função social. Nessa luta, o movimento contou com o apoio de milhares de
associações, sindicatos e reagrupamentos profissionais, mas também com a
aplicação, em nível local, das inovações propostas. Graças a esse trabalho de
campo adotado com sucesso por muitas municipalidades – com os riscos e perigos
que implica –, o FNRU, em 2001, convenceu o Congresso brasileiro a votar (por
unanimidade, e sob a presidência de Fernando Henrique Cardoso, impregnada de
ideologia liberal) o “estatuto das cidades”. Esse instrumento jurídico urbano é
hoje um dos mais audaciosos do mundo.
Participação esvaziada
Se por um lado os progressos são visíveis, por outro a extensão da
democracia participativa depara com tentativas de cooptação em todos os
continentes. A cientista política brasileira Evelina Dagnino evoca uma
“convergência perversa”5 entre as aspirações das populações e certo
credo neoliberal, notadamente explícita no processo pelo qual grandes
instituições internacionais transformam a “participação local” em
desresponsabilização institucional e em redução do papel do Estado social. A
promoção de parcerias com organizações do terceiro setor tende a destruir os
aspectos públicos da solidariedade e substituí-los por mecanismos de caridade.
De uma perspectiva utilitarista, a implicação dos cidadãos nesses mecanismos é
considerada expressão do indivíduo e de suas preferências particulares. Por
exemplo, os eleitos convidam os habitantes a comentar os projetos de renovação
urbana – como vemos na maioria das capitais que instalam postos de informação e
organizam belas exposições –, porém sem fazer os cidadãos participarem das
decisões e escolhas. Da mesma forma, algumas ferramentas eletrônicas (como os
fóruns de discussão de comunidades na internet) são usadas como “canal de
comunicação” entre cidadãos e administradores – contato virtual que permite que
os gestores públicos interpretem as preferências da população como bem
entenderem. No fim das contas, essas instituições buscam “dividir para melhor
reinar”.
Um debate levado adiante pelo primeiro-ministro inglês David Cameron é
ilustrativo: ele defende a importância do papel desempenhado pela “Big Society”
(comunidade de voluntários) na reforma do Estado de bem-estar social, ou seja,
no processo de reduzir suas dimensões e terceirizar serviços. A perspectiva
neoliberal também foi formulada de forma mais brutal pelo empreendedor indiano
Narayana Murthy, por meio do aforismo que busca propagar: “Acreditamos em Deus.
Todos os outros são apenas portadores de informação”. Nessa visão utilitarista
da participação, os cidadãos não figuram como cogestores ou portadores de
saberes; são apenas “informantes-chave” para os estrategistas de comunicação ou
marketing de administrações públicas.
É certo que a crise política pela qual atravessam as sociedades modernas
favorece a confusão, e muitos administradores locais, progressistas ou
liberais, não diferenciam uma aproximação da outra. Isso ocorre porque as
constatações são as mesmas para uns e outros: 1) as instituições sociais e
políticas (administrações, partidos, sindicatos, mídia, igrejas, ONGs...)
teriam perdido a legitimidade; 2) a crise financeira atingiu as fontes públicas
locais, em um contexto de “subsídio assimétrico”, no qual a descentralização
das responsabilidades mais “sensíveis” (social, de saúde, de infraestrutura)
seria realizada sem recursos suficientes ou capacidade decisória real; 3) as
necessidades sociais se multiplicariam na mesma proporção do aparecimento de
soluções técnicas para elas. Com base nesses fatores, escolher entre as duas
formas de aproximação com os cidadãos torna-se um ato político difícil, que
afeta sua durabilidade. Assim, é necessário refletir sobre as práticas adotadas
e esclarecer conceitos cuja ambiguidade possa ser um obstáculo, ou até mesmo o
fracasso, a mudanças políticas concretas.
As leituras honestas do “imperativo deliberativo” partem da constatação
que, em uma sociedade fragmentada e tendencialmente individualista, convém
ampliar o diálogo social para além dos “corpos intermediários” já organizados
(como associações e sindicatos). A ideia central dessa concepção é escutar
também os membros informais e “emergentes” da sociedade, voluntariamente
ignorados pelos utilitaristas liberais. Essa “cidadania insurgente” abarca os
movimentos “rebeldes e contestatórios” analisados pelo antropólogo
norte-americano James Holston6 e as organizações “de solidariedade e
formuladoras de projetos”, tais como as descritas pela socióloga australiana
Leoni Sandercock.7 Estas últimas atuam de forma empírica no
território, sem projeto preconcebido. Em ambos os casos, a dificuldade reside
no fato de esses atores, ao trabalharem sob o princípio de rede, preocuparem-se
mais com o “apoio mútuo” do que com o papel inovador que poderiam desempenhar
na transformação da sociedade.
Além do utilitarismo
O processo participativo não visa a um ganho utilitarista, e sim à
valorização de cada indivíduo e de suas exigências sem renunciar às
possibilidades de compartilhar espaços coletivos. Para evitar as armadilhas do
utilitarismo liberal, deve-se, em primeiro lugar, valorizar o componente
pedagógico da participação, ou seja, a prática dos interventores de se
transformar por meio da escuta recíproca e da busca pelo lugar da diferença no
processo, o que amplia o conhecimento e os sentimentos de coletividade e
humanidade. Nesse sentido, os “cursos de autoformação sobre políticas públicas”
– que precedem as sessões de balanço participativo em 75 cidades da Coreia do
Sul e também em grandes cidades brasileiras, como Fortaleza e Guarulhos – são
instrutivos. Essas duas últimas cidades experimentaram os métodos de
ensino-aprendizagem de Paulo Freire, que tendem a evitar a impressão dos
cidadãos de ser “doutrinados” pelos próprios administradores antes de participar
das decisões.
Em segundo lugar, deve-se canalizar a participação também para a difusão
de informação que os meios dominantes ignoram, o que supõe a constituição de
redes alternativas de comunicação e, sobretudo, a vontade de “abrir as
caixas-pretas” das administrações públicas, em particular as que têm um forte
caráter “técnico”. Em geral, o funcionamento dessas estruturas impede os
cidadãos menos cultos de compreender o trabalho realizado e formular
necessidades. É por isso que vemos nascer grupos de “observatórios da
participação” ou “fiscalizadores das promessas eleitorais” em Camarões e no
Brasil, por exemplo.
Em terceiro lugar, é preciso reformar as próprias ferramentas de
participação a fim de limitar as possibilidades de cooptação. Se continuarmos a
utilizar instrumentos que não permitem a evolução das negociações no decorrer
do processo participativo, a maior parte dos dirigentes políticos continuará a
ver os cidadãos como uma massa egoísta que formula demandas autorreferentes; e
os eleitos jamais serão levados a abrir novos espaços de codecisão que, de um
lado, criam solidariedade e, de outro, favorecem a melhor compreensão das
contingências da gestão administrativa por parte das populações. É necessário,
portanto, abandonar a separação entre saberes laicos e saberes especializados.
O processo participativo deve suscitar não só a justiça cognitiva – que
aproveita uma série de conhecimentos tirados do mundo dos tecnólogos –, mas
também as práticas dos habitantes. Ademais, mobiliza o que Sintomer chama de
saber político do cidadão, ou seja, a capacidade dos habitantes de elaborar
estratégias que dialogam com as do mundo político. Paralelamente, os gestores
públicos devem ser vinculados a essas mudanças, muitas vezes consideradas por
eles ocasiões para colocar em dúvida certezas profissionais veiculadas por
formações universitárias às vezes incapazes de autocrítica.
Um quarto fato para evitar as armadilhas do utilitarismo liberal é
reconhecer os cidadãos (e suas organizações) como interlocutores concretos, o
que implica a renovação dos modelos culturais nos quais se inserem os projetos
locais. Existem de fato hábitos administrativos e ideias preconcebidas cuja
reprodução é um obstáculo ao desenvolvimento endógeno durável e à integração de
todas as camadas da população. Colocar em questão os modos de funcionamento e
os hábitos das instituições é a parte mais difícil. A única possibilidade de
chegar a resultados inovadores com o apoio dos atores sociais é formular
projetos participativos claros para mostrar os custos e benefícios de cada uma
das opções. É a dimensão cultural da participação: a sociedade deve tomar
consciência dos princípios que são indispensáveis de se respeitar para alcançar
uma verdadeira “durabilidade”.
Um quinto elemento para consolidar a gestão participativa é a adoção de
estatutos jurídicos, cujo enquadro das novas aproximações não deve servir
apenas de suporte “técnico”, mas também de fundamento cultural. De fato, sem a
afirmação clara de valores fundamentais, a elaboração empírica de regras corre
o risco de se desmontar progressivamente.
Ambiguidades
As discussões sobre os processos participativos avançam, mas ainda há
ambiguidades a serem esclarecidas. Uma delas é que a complementaridade entre
atores locais, públicos e privados, administrativos e populares deve ser real.
Se as instituições locais são constantemente submetidas a níveis superiores de
poder, acabam elas mesmas reproduzindo esse tipo de relação com suas bases
quando delegam serviços sociais e contratam associações com poucos recursos e
responsabilidades excessivas. É preciso sair desse círculo vicioso, na
perspectiva de fazer frente comum (sociedade e instituições locais) para
reivindicar do Estado mais redistribuição.
Outro ponto é a questão da escassez de recursos, que não pode justificar
indefinidamente a impossibilidade de cumprir as reformas reivindicadas pelos
cidadãos. O sucesso de milhares de “moedas locais” no mundo, como as “economias
do dom” em vigor em numerosos territórios no Sul, são a prova de que é possível
reintegrar o social à economia. Sem tais iniciativas, perdurará a ideia de que
a economia é um universo com regras imutáveis, um campo no qual é impossível
inovar.
Um terceiro ponto que permanece ambíguo é a incoerência das ações
locais, uma verdadeira praga em muitas comunidades. Uma cidade baseada em
grandes centros comerciais não é compatível com a vizinhança de pequenos
núcleos imersos na natureza e que valorizam o pequeno comércio da proximidade.
Se uma municipalidade deseja construir um desenvolvimento horizontal, deve
recusar os guetos e as polarizações sociais.
Deve-se mencionar também a prestação de contas, que não pode ser
reduzida apenas ao componente técnico da “transparência”. Ela supõe uma forte
vontade política de responsabilidade em cada fase do processo de coelaboração e
aplicação das escolhas.
Além disso, a participação não deve ser limitada às inovações técnicas,
e sim pensada como um processo de profunda transformação cultural e política.
Imaginar que o mundo político construído pela “representação” nacional possa
tirar proveito do processo participativo sem ceder uma parte de seu poder
revela um mal-entendido ou uma quimera (ver artigo de Ernesto Ganuza, na
página 20). Da mesma forma, a participação “esporádica” suscita apenas
falta de compromisso, embora recorrer a ciclos repetidos seja necessário para
criar uma nova rotina, mais plausível.
Para gerar o encontro entre os cidadãos e as instituições, cada setor
deve dar um passo em direção ao outro. Esse elemento também ainda pouco
definido pede que cada parte pense no “bem comum” e olhe para além de seus
interesses específicos.
Finalmente, é perigoso acreditar que a integração social e a justiça
redistributiva são efeitos colaterais automáticos de todos os processos
participativos. As experiências latino-americanas e africanas mostram que, sem
meios específicos que permitem a tradução concreta desses objetivos em ações,
as desigualdades tendem a se reproduzir.
São poucos os casos em que as administrações prestam atenção a todas
essas exigências. Há muita dificuldade em abandonar velhos hábitos da cultura
política tradicional. Contudo, as mudanças são visíveis em um número crescente
de municipalidades. Sousa Santos imagina um cenário em que uma parte do Estado
se apresentará como um “novo tipo de movimento social”, compartilhando com os
componentes mais dinâmicos da sociedade a aspiração à transformação política.8
1 Yves Sintomer e Loïc Blondiaux. L’impératif délibératif [O
imperativo deliberativo]. Paris: Colégio Internacional de Filosofia, 2010.
2 Leonardo Avritzer e Boaventura de Sousa Santos, Towards widening
the democratic canon [Rumo à ampliação do cânone democrático], 2003.
Disponível em www.ces.uc.pt/bss/documentos/Intro-DemoENG.pdf.
3 Antonio Tosi, “Urban theory and the treatment of differences:
administrative practices, social sciences and the difficulties of specifics”
[Teoria urbana e o tratamento das diferenças: práticas administrativas,
ciências sociais e as dificuldades das especificidades], International
Journal of Urban and Regional Research, Montreal, v.15, n.4, p.594-609,
dez. 1991.
4 O municipalismo é uma doutrina que preconiza a intervenção das
municipalidades na economia.
5 Evelina Dagnino (coord.), Sociedad civil, esfera pública y
democratización en América Latina: Brasil, Fondo de Cultura Económica,
México, 2004.
6 James Holston, Insurgent citizenship: disjunctions of democracy and
modernity in Brazil [Cidadania insurgente: disjunções da democracia e
modernidade no Brasil], Nova Jersey: Universidade de Princeton, 2007.
7 Leonie Sandercock, Towards cosmopolis: planning for multicultural
cities [Rumo às cosmópolis: planejamento para cidades multiculturais],
Londres: John Wiley, 1998.
8 Boavantura de Sousa Santos, Reinventar la Democracia: reinventar el
Estado, Madri: Clacso, 2005.
Giovanni Allegretti – Pesquisador do Centro de
Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra/ Portugal – 30.09.2011
IN “Le Monde
Diplomatique Brasil” – http://diplomatique.uol.com.br/artigo.php?id=1024