segunda-feira, 23 de abril de 2012

Globalização ética e solidariedade


A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. Esta é uma questão ética e política e não tecnológica.
Não se trata de inibir a pesquisa e frear os avanços, mas de pô-los a serviço dos seres humanos.

Paulo Freire
O seu discurso, que fala de ética, esconde, porém que a sua é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente. O discurso da globalização astutamente oculta ou nela busca penumbrar a reedição intensificada ao máximo, mesmo que modificada, da medonha malvadez com que o capitalismo aparece na História. O discurso ideológico da globalização procura disfarçar que ela vem robbustecendo a riqueza de uns poucos e verticalizando a pobreza e a miséria de milhões. O sistema capitalista alcança no neoliberalismo globalizante o máximo de eficácia de sua malvadez intrínseca.
Espero, convencido de que chegará o tempo em que, passada a estupefação em face da queda do muro de Berlim, o mundo se refará e recusará a ditadura do mercado, fundada na perversidade de sua ética do lucro.
Não creio que as mulheres e os homens do mundo, independentemente até de suas opç~eos políticas, mas sabhendo-se e assumindo-se como mulheres e homens, como gente, não aprofundem o que hoje já existe como uma espeécie de mal-estar que se generaliza em face da maldade neoliberal. Mal-estar que terminará por consolidar-se numa rebeldia nova em que a palavra crítica, o discurso humanista , o compromisso solidário, a denúncia veemente da negação do homem e da mulher e o anúncio de um mundo genteficado serão armas de incalculável alcance.        
 Há um século e meio Marx e Engels gritavam em favor da união das classes trabalhadoras do mundo contra sua espoliação. Agora, necessária e urgente se fazem a união e a rebelião das gentes contra a ameaça que nos atinge, a da negação de nós mesmos como seres humanos submetidos à "fereza" da ética do mercado.
É neste sentido que jamais abandonei a minha preocupação primeira, que sempre me acompanhou, desde os começos de minha experiência educativa. A preocupação com a natureza humana* a que devo a minha lealdade sempre proclamada. Antes mesmo de ler Marx já fazia minhas as suas palavras: já fundava a minha radicalidade na defesa dos legítimos interesses humanos. Nenhuma teoria da transformação político-social do mundo me comove sequer, se não parte de uma compreensão do homem e da mulher enquanto seres fazedores da História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção. Seres éticos, mesmo capazes de transgredir a ética indispensável, algo de que tenho insistentemente "falado" neste texto. Tenho afirmado e reafirmado o quanto realmente me alegra saber-me um ser condicionado mas capaz de ultrapassar o próprio condicionamento. A grande força sobre que alicerçar-se a nova rebeldia é a ética universal do ser humano e não a do mercado, insensível a todo reclamo das gentes e apenas aberta à gulodice do lucro. É a ética da solidariedade humana.
Prefiro ser criticado como idealista e sonhador inveterado por continuar, sem relutar, a apostar no ser humano, a me bater por uma legislação que o defenda contra as arrancadas agressivas e injustas de quem transgride a própria ética. A liberdade do comércio não pode estar acima da liberdade do ser humano. A liberdade de comércio sem limite é licenciosidade do lucro. Vira privilégio de uns poucos que, em condições favoráveis, robustece seu poder contra os direitos de muitos, inclusive o direito de sobreviver. Uma fábrica de tecido que fecha por não poder concorrer com os preços da produção asiática, por exemplo, significa não apenas o colapso econômico-financeiro de seu proprietário que pode ter sido ou não um transgressor da ética universal humana, mas também a expulsão de centenas de trabalhadores e trabalhadoras do processo de produção. E suas famílias? Insisto, com a força que tenho e que posso juntar na minha veemente recusa a determinismos que reduzem a nossa presença na realidade histórico-social à pura adaptação a ela. O desemprego no mundo não é, como disse e tenho repetido, uma fatalidade. É antes o resultado de uma globalização da economia e de avanços tecnológicos a que vem faltando o dever ser de uma ética realmente a serviço do ser humano e não do lucro e da gulodice irrefreada das minorias que comandam o mundo.
O progresso científico e tecnológico que não responde fundamentalmente aos interesses humanos, às necessidades de nossa existência, perdem, para mim, sua significação. A todo avanço tecnológico haveria de corresponder o empenho real de resposta imediata a qualquer desafio que pusesse em risco a alegria de viver dos homens e das mulheres. A um avanço tecnológico que ameaça a milhares de mulheres e de homens de perder seu trabalho deveria corresponder outro avanço tecnológico que estivesse a serviço do atendimento das vítimas do progresso anterior. Como se vê, esta é uma questão ética e política e não tecnológica. O problema me parece muito claro. Assim como não posso usar minha liberdade de fazer coisas, de indagar, de caminhar, de agir, de criticar para esmagar a liberdade dos outros de fazer e de ser, assim também não poderia ser livre para usar os avanços científicos e tecnológicos que levam milhares de pessoas à desesperança. Não se trata, acrescentemos, de inibir a pesquisa e frear os avanços mas de pô-los a serviço dos seres humanos. A aplicação de avanços tecnológicos com o sacrifício de milhares de pessoas é um exemplo a mais de quanto podemos ser transgressores da ética universal do ser humano e o fazemos em favor de uma ética pequena, a do mercado, a do lucro.
Entre as transgressões à ética universal do ser humano, sujeitos à penalidade, deveria estar a que implicasse a falta de trabalho a um sem-número de gentes, a sua desesperação e a sua morte em vida.
A preocupação, por isso mesmo, com a formação técnico-profissional capaz de reorientar a atividade prática dos que foram postos entre parênteses, teria de multiplicar-se.
Gostaria de deixar bem claro que não apenas imagino mas sei quão difícil é a aplicação de uma política do desenvolvimento humano que, assim, privilegie fundamentalmente o homem e a mulher e não apenas o lucro. Mas sei também que, se pretendemos realmente superar a crise em que nos achamos, o caminho ético se impõe. Não creio em nada sem ele ou fora dele. Se, de um lado, não pode haver desenvolvimento sem lucro este não pode ser, por outro, o objetivo do desenvolvimento, de que o fim último seria o gozo imoral do investidor.
De nada vale, a não ser enganosamente para uma minoria que terminaria fenecendo também, uma sociedade eficazmente operada por máquinas altamente "inteligentes", substituindo mulheres e homens em atividades as mais variadas, e milhões de Marias e Pedros sem ter o que fazer, e este é um risco muito concreto que corremos*.
Não creio também que a política a dar carne a este espírito ético possa jamais ser a ditatorial, contraditoriamente de esquerda ou coerentemente de direita. O caminho autoritário já é em si uma contravenção à natureza inquietamente indagadora, buscadora, de homens e de mulheres que se perdem ao perderem a liberdade.
É exatamente por causa de tudo isso que, como professor, devo estar advertido do poder do discurso ideológico, começando pelo que proclama a morte das ideologias. Na verdade, só ideologicamente posso matar as ideologias, mas é possível que não perceba a natureza ideológica do discurso que fala de sua morte. No fundo, a ideologia tem um poder de persuasão indiscutível. O discurso ideológico nos ameaça de anestesiar a mente, de confundir a curiosidade, de distorcer a percepção dos fatos, das coisas, dos acontecimentos. Não podemos escutar, sem um mínimo de reação crítica, discursos como estes: “O desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século”.
Nada é possível ser feito contra a globalização que, realizada porque tenha que ser realizada, tem que continuar sem destino porque assim está misteriosamente escrito que deve ser. A globalização que reforça o mando das minorias poderosas, esmigalha e pulveriza a presença impotente dos dependentes, fazendo-os ainda mais impotentes, é destino certo. Em face dela, não há outra saída senão cada uma baixar a cabeça e agradecer a Deus porque ainda está vivo. Agradecer a Deus ou à própria globalização.

 * MOERMANN, Joseph. Le Courrier – 8 Aout, 1996  - Suisses. La globalization de l’economie provoquera – t – elle un mai 68 mondial? – la marmite mondiale sous pression.


Paulo Freire – Pedagogo – 1997
IN “Desafios da Globalização”. DOWBOR, Ladislau. IANNI, Octávio. RESENDE, Paulo-Edgar A. (org). 2ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1997.