A coerência é o último refúgio de quem tem pouca fantasia e, talvez, de
quem tem pouca coragem.
Contardo Calligaris
No fim de semana retrasado, estive em Olinda, na
Fliporto (Feira Literária Internacional de Pernambuco). No sábado, Benjamin
Moser, que escreveu uma linda biografia de Clarice Lispector
("Clarice,", Cosac Naify), lembrou que, na famosa entrevista
concedida à TV Cultura em 1977, a escritora afirmou que não fizera concessões,
não que soubesse.
Moser acrescentou imediatamente que ele não poderia
dizer o mesmo. E eis que o público se manifestou com um aplauso caloroso.
Talvez as palmas de admiração fossem pela suposta
coerência adamantina de Clarice, que nunca teria feito concessões na vida.
Talvez elas se destinassem a Benjamin Moser pela admissão sincera de que ele
(como todos nós) não poderia dizer o mesmo que disse Clarice.
Tanto faz. Nos dois casos, o pressuposto é o mesmo.
Que as palmas fossem pela força de caráter de Clarice ou pela honestidade de
Moser ao reconhecer sua própria fraqueza, de qualquer forma, não fazer
concessões parecia ser, para os presentes, uma marca de excelência moral.
A pergunta surgiu em mim na hora: será que é mesmo?
Posso respeitar a tenacidade corajosa de quem se mantém fiel a suas convicções,
mas no que ela difere da teima de quem se esconde atrás dessa fidelidade porque
não sabe negociar com quem pensa diferente e com o emaranhado das
circunstâncias que mudam? Aplicar princípios e nunca se afastar deles é uma
prova de coragem? Ou é a covardice de quem evita se sujar com as nuances da
vida concreta?
Como muitos outros, se não como todo mundo, cresci pensando que não fazer concessões é uma coisa boa.
Como muitos outros, se não como todo mundo, cresci pensando que não fazer concessões é uma coisa boa.
Fui criado na ideia de que há valores não
negociáveis e mais importantes do que a própria vida (dos outros e da gente).
Talvez por isso me impressionasse a intransigência dos mártires cristãos
(embora eu tivesse uma certa simpatia envergonhada por Pedro renegando Jesus
para evitar ser reconhecido e preso).
Durante anos admirei os bolcheviques por eles
serem homens de ferro (a expressão é de Maiakóvski, nada a ver com "Iron
Man") e desprezei Karl Kautsky, que Lênin estigmatizou para sempre como
"o renegado Kautsky", por ele ter mudado de opinião sobre a Primeira
Guerra, sobre a revolução proletária, sobre o bolchevismo etc.
Vingança da história: Lênin se tornou quase
ilegível, mas a obra principal de Kautsky, que acaba de ser traduzida, "A
Origem do Cristianismo" (Civilização Brasileira), continua crucial.
Mas voltemos ao assunto. Hoje, estou mais para
Kautsky do que para bolchevique; até porque descobri, desde então, que
Mussolini se vangloriava gritando: "Eu me quebro, mas não me dobro".
Ele se quebrou mesmo, enquanto eu me dobro e posso renegar ideias minhas que
pareçam ser, de repente, inadequadas ao momento (dos outros, do mundo e meu).
Olhando para trás, descubro (com certo orgulho)
que, ao longo da vida, fiz inúmeras concessões, inclusive na hora de escolhas
fundamentais. Poucas vezes lamentei não ter sido coerente. Mas muitas vezes
lamento não ter sabido fazer as concessões necessárias, por exemplo, na hora de
ajustar meu desejo ao desejo de pessoas que amava e de quem, portanto, tive que
me afastar.
Alguém dirá: espere aí, então a fidelidade a
princípios e valores não é uma condição da moralidade?
Estou lendo (vorazmente) "O Ponto de Vista do
Outro", de Jurandir Freire Costa (Garamond). O livro é, no mínimo, uma
demonstração de que a forma moderna da moral não é o princípio, mas o dilema.
E, no dilema, o que importa não é a fidelidade intransigente a valores
estabelecidos; no dilema, o que importa é, ao contrário, nossa capacidade de
transigir com as situações concretas e com os outros concretos.
A coerência é uma virtude só para quem se orienta
por princípios. Para o indivíduo moral, que se orienta (e desorienta) por
dilemas, a coerência não é uma virtude, ao contrário, é uma fuga (um tanto
covarde) da complexidade concreta. Oscar Wilde, que é um grande fustigador de
nossas falsas certezas morais, disse que "a coerência é o último refúgio
de quem tem pouca fantasia" e, eu acrescentaria, de quem tem pouca
coragem.
Resta absolver Clarice. Aquela frase da entrevista
era, provavelmente, apenas uma reverência retórica a um lugar-comum de nosso
moralismo trivial.
Contardo Calligaris – Psicanalista e escritor – 25.11.2010