Entre os efeitos mais
poderosos do 11 de Setembro para a sociedade americana está, sem dúvida, o
fortalecimento e a radicalização dos setores mais à direita e conservadores no
espectro político-ideológico do país, que reforçaram suas crenças e posições
xenofóbicas e isolacionistas com o fato de que os atentados foram cometidos por
estrangeiros muçulmanos.
Carlos Eduardo Lins da Silva
Os atentados de 11 de Setembro de 2001 não mudaram o mundo de modo tão
dramático como tantos previram então e continuam afirmando agora. A tendência
humana natural das pessoas é considerar todo fato extraordinário por elas
testemunhado como único e de importância transcendental.
A imprensa em geral embarca nesses exageros, o que explica (e tira a
credibilidade) de todo “jogo do século” ou “casamento do século” e de toda
“crise gravíssima que enfrentamos”.
É claro que o 11 de Setembro de 2001 foi importante e provocou muitas
mudanças significativas na geopolítica internacional, na cultura, na vida de
muitas pessoas, e, em especial, na economia e na política dos EUA.
Mas nada comparável às provocadas por eventos realmente basilares, como
a queda do Muro de Berlim (como símbolo do fim do regime soviético e de seus
aliados da Cortina de Ferro), a Segunda Guerra Mundial (inclusive a explosão
das bombas de Hiroshima e Nagasaki e o Holocausto) ou a Primeira Guerra Mundial
– estes sim de implicações de primeiro porte para o mundo e para a Humanidade
e, perto dos quais, o 11 de Setembro se torna pequeno.
Tortura escancarada
Por analogia, a imprensa americana passou por momentos muito marcantes
devido aos atentados e por uma transformação que poderia até ter sido seminal
em seus fundamentos. Mas eles não chegam perto do impacto do advento das novas
tecnologias a partir da última década do século 20, e que – este sim – a está
alterando de modo efetivamente revolucionário.
Um dos pressupostos essenciais do modelo americano de jornalismo que se
moldou ao longo do século passado e especialmente depois das experiências do
Vietnã e de Watergate na sua segunda metade foi a absoluta independência dos
veículos em relação aos governos, aos quais eles devotaram tratamento crítico e
cético.
Foi essa atitude profissional que possibilitou ao Washington Post
a histórica cobertura que fez dos desmandos do presidente Richard Nixon e seus
assessores mais próximos após a invasão da sede do Partido Democrata na
campanha presidencial de 1972 e que detonou o processo político que resultou na
renúncia de todos eles e na prisão de vários.
Também foi ela a responsável pela memorável divulgação por vários
jornais, em 1971, dos chamados “Documentos do Pentágono” com revelações de
muitas mentiras relatadas ao público americano por diversas administrações
sobre a política do país no Sudeste Asiático.
E, ainda, muitas reportagens sobre atrocidades cometidas por militares
dos EUA durante o conflito do Vietnã nas décadas de 1960 e 1970, assim como a
real situação estratégica das tropas do país diante do inimigo vietcongue e
norte-vietnamita, que foram importante elemento para consolidar a maioria da
opinião pública contra a presença americana naquela nação.
Com o 11 de Setembro, a reação inicial de praticamente toda a imprensa
americana foi de perplexidade no começo e depois de adesão cega às medidas
adotadas pelo governo de George W. Bush referentes ao assunto, inclusive a
declaração de guerra indiscriminada ao terrorismo, os ataques ao Afeganistão e
a subsequente invasão do Iraque.
Se o modelo de independência e crítica em relação aos governos tivesse
sido abandonado definitivamente ou se tornado hegemônico, aí sim os efeitos do
11 de Setembro sobre a mídia americana teriam sido colossais. Mas não foi isso
o que ocorreu.
Que nas horas e dias imediatamente seguintes aos atentados houvesse se
estabelecido uma espécie de torpor coletivo entre os jornalistas americanos
teria sido compreensível e perdoável. Mas a atitude de submissão ao governo
perdurou por quase três anos em grande parte dos principais veículos de
jornalismo do país, o que pôs seriamente em risco a credibilidade de vários.
De fato, foi apenas após a divulgação dos atos de tortura cometidos por
militares americanos na prisão iraquiana de Abu Ghraib e em especial a das suas
imagens, em abril de 2004 pela revista The New Yorker (a única do
primeiro time que nunca deixou de dar espaço às poucas vozes críticas que
ousavam se levantar contra os abusos de Bush) e pelo programa 60 Minutes
da rede de TV CBS que as coisas começaram a lentamente mudar.
Mídia e democracia
Era de esperar que o governo do ultraconservador Bush se empenhasse em
obstruir a ação da imprensa independente de diversas maneiras, e o fez: proibiu
a divulgação de fotos e vídeos de caixões de soldados mortos em ação no Iraque
e no Afeganistão, impediu o acesso da mídia a imagens de satélites utilizadas
para registrar ações de tropas dos EUA e de seus inimigos naqueles países (para
dificultar o cálculo de vítimas civis nos confrontos), lançou uma formidável
campanha de propaganda para manter a população em estado de sobressalto e
paranoia e justificar os poderes excepcionais conferidos ao Estado para ampliar
sua guerra ao terrorismo.
O que não se podia prever era a autocensura que a maioria dos meios de
comunicação resolveu se impor desde os primeiros momentos após os atentados
(quando nenhum deles veiculou imagens de pessoas se atirando das torres, o que
pode ter sido uma decisão tomada por boas razões éticas) até vários meses
depois.
Se era possível embasar em bons motivos a intenção de não disseminar
pânico e de não esgarçar a sensibilidade coletiva com a exposição de cenas muito
trágicas, a maneira como o jornalismo americano tratou os atentados desde o
início prejudicou o interesse público e se contrastou radicalmente com o seu
comportamento em situações similares recentes, como o atentado de Oklahoma City
em 1995 ou contra o World Trade Center, em 1993.
A falta de informações confiáveis apuradas independentemente por
jornalistas, que preferiram esperar apenas por versões oficiais, fez com que
toda sorte de boatos sobre o número de aviões sequestrados e de vítimas em
Washington e Nova York se espalhassem por horas e dias, o que provocou muita
insegurança e desespero sem base real.
Ninguém questionou – por muito tempo – eventuais deficiências dos
serviços de segurança nacional e erros diplomáticos ou de política
internacional que pudessem ter insuflado o ódio contra os EUA em comunidades
islâmicas. Isso reforçou no público a impressão de que o 11 de Setembro havia
sido uma fatalidade, produto da ação tresloucada de uns poucos fanáticos
religiosos. Todos os funcionários públicos – do presidente da República aos
bombeiros – eram considerados heróis, por definição.
Levou muito tempo, por exemplo, para que as primeiras suspeitas de que
alguns casos de saque haviam ocorrido durante os trabalhos de resgate nas
Torres Gêmeas fossem divulgadas (por William Langewiesche, em reportagens na
revista Atlantic, depois editadas em forma de livro). Até hoje,
Langewiesche é vilipendiado por boa parte do público, como se fosse uma heresia
duvidar da santidade de todos os bombeiros, policiais, médicos, enfermeiros,
assistentes sociais que trabalharam no local da tragédia.
Jornalistas que tentaram manter o tom crítico e aprofundar a reflexão
sobre as possíveis causas da tragédia, como o âncora da rede de ABC Peter
Jennings e a colunista do Washington Post Mary McGory, sofreram
saraivada de críticas de colegas, tiveram seu patriotismo colocado em dúvida,
passaram a ser vistos com suspeição e foram colocados à margem por algum tempo.
Foi particularmente simbólica a entrevista que Dan Rather, então âncora
do telejornal mais importante da rede CBS, deu a David Letterman em 17 de
setembro de 2001, na qual o então decano do jornalismo de TV do país declarou:
“Bush é o presidente. Ele toma as decisões. Em qualquer lugar que ele quiser
que eu me alinhe, é só ele me dizer onde, eu estarei lá”.
Essa inequívoca expressão de submissão à autoridade do presidente não
poderia ter sido mais chocante por ter partido de quem, 30 anos antes, como
repórter, havia desafiado a mesma autoridade na pessoa de Richard Nixon, numa
entrevista coletiva na Casa Branca, com seguidas perguntas incisivas sobre a
política americana no Vietnã, às quais o presidente afinal respondeu com outra:
“Você é candidato a algum cargo público?”. E Rather disse ao presidente, que
buscava a reeleição: “Eu não. E o senhor?”
O pior é que o comportamento da imprensa de se aliar ao governo lhe
rendeu popularidade. No final de novembro de 2001, a pesquisa de avaliação do
desempenho do jornalismo que o Pew Research Center já vinha fazendo anualmente
há 15 anos revelou que dois terços da população achavam que os meios de
comunicação ajudavam a proteger a democracia e o país. Foi o índice mais alto
da história da pesquisa. No final de 2010, menos de 50% diziam a mesma coisa
sobre a mídia.
Danos à credibilidade
A Casa Branca pedia, e os jornalistas aquiesciam. Em outubro de 2011, o
governo solicitou que os veículos de comunicação restringissem ao máximo a
veiculação de vídeos e mensagens originadas pela Al Qaeda. Nos meses seguintes,
todas as emissoras de TV agiram de acordo com esse desejo quando vídeos de
Osama bin Laden foram divulgados.
Foi nessa época que começou a ganhar prestígio a rede de TV Al Jazeera,
do Qatar, que não compactuava com a censura americana. Entre as mais
expressivas consequências do 11 de Setembro no setor do jornalismo foi a
consolidação da Al Jazeera como fonte alternativa de informação para largas
audiência pelo mundo.
A Lei Patriota, que o Congresso aprovou por enorme maioria em outubro de
2001, limitava a possibilidade de obtenção de documentos por meio da lei de
liberdade de informação (FOIA). Pouquíssimas entidades profissionais e
raríssimos jornalistas tiveram a coragem de reagir publicamente a essa
determinação, que depois deixou de valer, nas reedições mais restritas da lei.
O entusiasmo da adesão à autocensura levou a episódios bizarros, que
corroboram a hipótese de que a censura, de qualquer espécie, é uma porteira
que, quando aberta, permite que passe tanto um boi quanto a boiada inteira.
Uma rede de emissoras de rádio, com 1.170 estações afiliadas à época,
chamada Clear Channel Communications, deu sua contribuição para fortalecer a
segurança nacional ao banir 162 canções populares cujos versos, acreditavam os
seus responsáveis, poderiam prejudicá-la. Entre elas, “Imagine”, de John Lennon, e
“Sunday, Bloody Sunday”, do U2.
A iniciativa mais inovadora e exitosa (do seu ponto de vista) do governo
Bush para controlar a mídia foi um genial golpe de relações públicas concebido
por Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa.
Os comandos militares americanos vinham sofrendo fazia meio século com o
problema de como lidar com jornalistas durante suas guerras. A experiência
traumatizante do Vietnã, quando pela primeira vez cenas de guerra chegaram às
salas de estar dos lares dos cidadãos e, pior para o governo, sem censura e com
espírito crítico, levou os comandantes americanos a tentarem ampliar como nunca
as barreiras à ação dos jornalistas, desde simplesmente impedindo seu acesso
(invasão de Granada) ou limitando-o a poucos briefings em hotéis nas
proximidades da ação e rápidas visitas ao teatro de operações (Guerra do
Golfo).
Rumsfeld imaginou algo radicalmente diverso: tornar os jornalistas uma
espécie de verdadeiros soldados, mais ou menos como ocorreu na Segunda Guerra
Mundial, embora a maioria dos repórteres ficasse em situação de privilégio
equivalente ao de um capelão em relação aos soldados.
Os jornalistas “encaixados” (“embedded”) se comprometiam apenas com um
manual de conduta formado por 19 normas, entre as quais não revelar o local exato
de onde ele estava mandando suas informações nem o número de baixas militares
americanas nos combates cobertos. Apesar das poucas restrições a seu
desempenho, muitos jornalistas se submeteram integralmente aos militares. E
seus editores nos EUA, ainda mais. Por viverem os mesmos riscos dos soldados e
terem sua integridade física inteiramente na mão deles, a maioria dos
jornalistas tendia a simpatizar e se tornar dependente deles.
Um dos exemplos mais escandalosos foi a história da recruta Jessica
Lynch, que os correspondentes de guerra do Washington Post descreveram
como uma fantástica heroína, que lutou bravamente até ser capturada pelos
inimigos iraquianos, em cujas mãos foi tratada brutalmente até conseguir
escapar também de modo heroico. A própria Lynch depois desmentiu toda a
história, absolutamente criada pelos relações-públicas militares e comprada sem
nenhuma verificação própria pelos jornalistas do Post.
A dependência acrítica de jornalistas em relação a fontes de governo
levou a outro caso, tão ou mais sério que o da recruta Lynch. A repórter Judith
Miller, uma das estrelas do New York Times na cobertura dos bastidores
que antecederam à invasão do Iraque, se deixou fiar completamente no que ouvia off
the record de seus amigos nos gabinetes poderosos de Washington, em
especial o do então vice-presidente Dick Chenney, que a manipulavam de modo
muito competente para que ela publicasse as informações que mais ajudassem sua
estratégia política e militar e depois se referissem a elas em entrevistas on
the record para corroborá-las.
Com isso, o Times contribuiu para que muitas mentiras sobre
supostas armas de destruição em massa em poder do regime de Saddam Hussein se
estabelecessem como verdades e servissem de pretexto para a invasão do Iraque,
com amplo apoio da opinião pública. Quando os fatos desmentiram as informações
que Miller e o Times haviam publicado, em maio de 2004, o jornal
resolveu passar a adotar uma linha de “ceticismo editorial” na cobertura do
governo, atitude que sempre mantivera no passado e abandonara em 2001.
Os problemas de Judith Miller e os de Jayson Blair, repórter-celebridade
do Times que plagiou e inventou dezenas de reportagens até ser demitido
em maio de 2003, causaram os mais sérios danos à credibilidade do jornal em sua
história secular e o levaram a adotar diversas mudanças de processo e a criar a
função de ombudsman para tentar lidar com a crise de confiança no público.
Ideal de jornalismo
Entre os efeitos mais poderosos do 11 de Setembro para a sociedade
americana está, sem dúvida, o fortalecimento e a radicalização dos setores mais
à direita e conservadores no espectro político-ideológico do país, que
reforçaram suas crenças e posições xenofóbicas e isolacionistas com o fato de
que os atentados foram cometidos por estrangeiros muçulmanos.
Isso se refletiu na indústria da comunicação, por exemplo, com o grande
avanço de audiência e importância da rede de TV paga Fox News, criada em 1996
por Rupert Murdoch, e que se especializou em veicular apenas opiniões desses
grupos conservadores e seus porta-vozes.
O sucesso da Fox inspirou outros veículos, que passaram a também se
posicionar de modo extremado na cobertura de temas políticos, às vezes em
posição oposta à da Fox (como a rede de TV paga MSNBC), também com êxito de
audiência, o que fragilizou o posicionamento tradicional do jornalismo
americano, de imparcialidade e apartidarismo. A rede de TV paga CNN, que tentou
se manter fiel a esses princípios, foi a que mais perdeu público nestes dez
anos desde os atentados.
A radicalização ideológica se faz sentir não apenas no mercado do
telejornalismo de 24 horas. Mesmo nos veículos que não aderiram nem aos
conservadores nem aos liberais, muitos de seus comentaristas e colunistas
passaram a adotar linguajar e conteúdo engajado a favor de líderes e partidos
de sua preferência.
Isso só tem feito acentuar a divisão que já vem separando a sociedade
americana desde os tempos do governo Clinton, mas que se agravou depois dos
atentados de 11 de Setembro. O ambiente cibernético de blogs, e Twitter, com
posições ainda mais sectárias e violentas, aprofunda essas divisões, que podem
levar o país a situações graves e difíceis de prever.
A cobertura jornalística das comemorações do décimo aniversário do 11 de
Setembro pela mídia americana reproduziu muitos dos vícios verificados na dos
fatos em si, dez anos atrás.
Primeiro, por ter sido hiperbólica, por ter continuado a tratar desses
acontecimentos como se eles tivessem sido muito mais decisivos para a
Humanidade e para o mundo do que realmente foram. Segundo, por ainda terem
oferecido pouco material que desse ao público informações e elementos de
reflexão para ajudá-lo a ter um entendimento mais completo do fenômeno, suas
causas e consequências, em toda sua enorme complexidade.
Claro, houve exceções. Não surpreendentemente, quase todas dos mesmos
veículos que dez anos atrás se mantiveram mais próximas dos ideais do
jornalismo americano (a revista The New Yorker, especialmente).
No Brasil, também com exceções (o suplemento “Aliás”, do jornal O
Estado de S. Paulo de domingo, 11/9, em particular), o jornalismo tratou do
aniversário de maneira exagerada e quase sempre superficial.
Carlos Eduardo Lins da Silva – 12.09.2011
IN “Observatório de
Imprensa, ed. 659 – http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/-o-11-de-setembro-e-a-imprensa