Pesquisa
da USP sobre a tortura como método de investigação policial sinaliza que a
política da guerra ao terror criou um ambiente cultural que relativizou
conquistas históricas no campo dos direitos humanos
Renato Sérgio de Lima
Quando
os EUA, logo após os atentados do 11/9, decretaram o Patriotic Act, autorizando
o Estado a monitorar a vida da população, muitos defenderam que a medida
significava uma violação dos direitos individuais e poderia ser o primeiro
passo para que, em alguns casos, a segurança nacional justificasse atos
extremos como tortura de presos e de suspeitos. Até pela influência geopolítica
dos EUA no Ocidente, o medo de novos ataques terroristas criou um ambiente
sociopolítico e cultural que, na última década, relativizou conquistas
históricas no campo dos direitos humanos e enfraqueceu o discurso daqueles que
defendem que segurança pública seja uma prioridade, mas executada a partir de
rigorosos mecanismos de controle e transparência.
Em
países como o Brasil, de resiliente tradição autoritária, instituições como as
polícias foram historicamente estimuladas a garantir a "ordem", mesmo
que isso signifique fazer "aquilo que ninguém tem coragem de fazer".
Ou seja, às polícias caberia definir a fronteira cotidiana entre o legal e o
ilegal, que é cambiante e que, para a opinião pública, será mais ou menos
rigorosa, a depender de essas corporações se dedicarem mais ou menos ao
controle dos "bandidos".
Há um
pacto de silêncio e um comportamento dúbio por parte da sociedade que, quando
interessa, exige da polícia um comportamento republicano e democrático, mas,
quando atingida por situações de violência ou desordem, "compreende"
e aceita que essa mesma polícia faça acordos, adote medidas extralegais para
conter o medo e a criminalidade ou que funcione como reguladora moral de
comportamentos e pessoas tidas como perigosas.
E é em
torno desse ambiente que temos que analisar os dados publicados pelo Núcleo de
Estudos da Violência da USP. Segundo a USP, o porcentual de entrevistados que
discordavam totalmente do uso da tortura como ferramenta de trabalho das
polícias caiu de 71,2%, em 1999, para 52,5% em 2010. De igual modo, quase um
terço da população aceita medidas "extralegais" como coação e choques
como técnicas de investigação.
Parcela
significativa da população brasileira parece conceder às polícias autorização
para matar, numa analogia ao James Bond de Ian Fleming. E ações de controle do
uso da força pelas polícias adotadas no contexto da redemocratização perderam
nos anos 2000, de acordo com Samira Bueno, da FGV, centralidade nas políticas
de segurança pública.
É
verdade que tais ações não foram extintas, mas foram absorvidas pela
burocrática lógica do Estado brasileiro, que transforma temas da agenda de
direitos humanos em assuntos opacos e os relega a diretrizes que servem, quando
necessário, aos discursos dos níveis político e estratégico da segurança
pública. Não há procedimentos operacionais que efetivamente se traduzam em
mecanismos de controle e valorização profissional, tais como redução do nível
de vitimização nas ações policiais e diminuição das taxas de violência letal no
Brasil. E, dramaticamente, os esforços para melhorar a gestão por meio da
estruturação de sistemas de informação não contemplam tais temas entre aqueles
previstos de ser monitorados.
Exceto
São Paulo e Rio de Janeiro, que publicam dados sobre o assunto, poucas são as
unidades da federação que reúnem condições de informar quantos, dos cerca de 50
mil homicídios anuais cometidos no País, correspondem a ocorrências envolvendo
policiais. Sem tais informações o tema continuará sendo tratado como uma
disputa de dois times antagônicos para saber quem tem razão e não como
oportunidade para aproximar polícia e sociedade. Se tomarmos o caso paulista,
pelo qual cerca de 20% dos homicídios foram cometidos por policiais, fica claro
que a questão não pode ser vista como secundária.
O fato
é que as polícias são acionadas para resolverem problemas das mais diferentes
naturezas e, numa democracia, pressupõem balizas e mandatos claros sobre
competências e atribuições. Se não estiverem sujeitas a mecanismos de controle
e de prestação de contas efetivos, elas correm o risco do insulamento e do
excesso de autonomia, tão perverso para elas próprias quanto para a sociedade. Por
essa razão, a proposta de extinção das Polícias Militares no Brasil, feita pela
ONU no seu relatório de direitos humanos, tem o mérito de recolocar o tema do
uso da força em pauta, mas peca por circunscrever o problema ao modelo de
funcionamento de apenas uma das nossas polícias.
Não é
unicamente extinguindo as PMs, por mais que seus padrões operacionais gerem um
inadmissível número de mortes, que a tortura e a violência diminuirão. Sem uma
ampla revisão do nosso sistema de justiça e segurança, estamos minando a
legitimidade da democracia brasileira e adiando a conquista de novos padrões de
desenvolvimento cidadão.
Renato Sérgio de Lima –
Sociólogo, Secretário Executivo do Forum Brasileiro de Segurança Pública – 10.06.2012
IN “O Estado de São
Paulo”, caderno "Aliás" – http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,o-119-brasileiro,884512,0.htm