domingo, 30 de dezembro de 2012

Quase 40 anos após independência Moçambique ainda enfrenta pobreza e falta de liberdade


Moçambique: Governo é dominado pelo mesmo partido há 37 anos e chegada de grandes projetos aumenta contradições no país.

Gleyma Lima
Trinta e sete anos depois de sua declaração de independência, os moçambicanos ainda buscam o direito de ser verdadeiramente livres e exercer aquela que é uma das principais liberdades, a de expressão. Hoje, a nação que se livrou da colonização de Portugal e logo após passou por uma longa guerra civil ainda luta por seus direitos.
Nesta data, o partido que tem dominado a política local nas ultimas três décadas, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), coloca faixa nas ruas com frases como “Mocambique livre da pobreza”. Porém, nas ruas a mensagem que circulou dentro do transporte público e nas mãos de trabalhadores foi sobre a forma com o presidente do país, Armando Guebuza, trata as riquezas da nação.
A carta diz: “Guebuza está dentro de quase todos os negócios multimilionários dos ‘mega-projects’, tocados pelo setor privado de Moçambique. Um exemplo é o envolvimento de Guebuza na construção da Barragem hidroelétrica de Cahora Bassa (HCB) financiada pelos portugueses por 950 milhões de dólares. Deste montante, 700 milhões de dólares foram pagos por bancos privados, dos quais Guebuza recebeu uma comissão estimada entre 35 e 50 milhões de dólares”.
Segundo fontes locais, a carta foi proibida de ser divulgada nos meios de comunicação.  A falta de liberdade segue como um dos principais desafios em Moçambique, o que faz boa parte da população acreditar que falta muito para a independência.
“Os votos que a Frelimo conseguiu até hoje foram comprados. Além disso, as urnas de locais onde o partido não conseguiu comprar votos foram trocadas. Isso aqui é uma falsa democracia”, opina Eduardo Carvalho, 23 anos, fotógrafo.
Quem já esteve do lado do governo afirma que hoje não está mais porque os valores mudaram e limitaram a  liberdade.  “A luta inicial foi unicamente política porque o colonialismo era extremamente terrível. Havia coisas aqui que lembravam a escravidão. Existia um sistema que as pessoas eram presas sem motivo algum. Queríamos direitos iguais, uma nação melhor, porém o que temos hoje é um governo altamente corrupto que vende nosso petróleo e gás às empresas estrangeiras, e, além disso, o dinheiro que entra não beneficia a nação”, explica o ex-sargento das Forças Armadas da Frelimo,  Calane da Silva, 68 anos, que atualmente é professor de literatura na Universidade de Pedagogia de Moçambique.
De acordo com fontes ouvidas pelo Opera Mundi, hoje para acelerar o visto de trabalho em Moçambique o governo cobra 1.000 dólares
Em relação aos problemas sociais do país, a situação apenas se agrava. Segundo dados dos jornais locais, hoje cerca de 40% da população moçambicana tem HIV, não fala português (apenas dialetos) e possui um salário mínimo inferior a 70 doláres.
Após quase 40 anos da saída de Portugal só agora começam a ser levantados os primeiros prédios de nacionalidade moçambicana, que mesmo assim ainda são construídos por estrangeiros.“ Quando Portugal saiu dessas terras e a Frelimo ganhou o poder, foi necessário se pagar pelos favores de quem ajudou em combates, e com isso,  o país voltou a ficar sem dinheiro. Após isso, veio o Apartheid da Africa do Sul onde Moçambique teve que entrar em ação novamente e ajudar com armamento e soldados. Isso levou o país a falência”, explica o ex-combatente.

Oposição
Hoje quem canta a liberdade ainda é o músico e compositor Edson da Luz, 28 anos, mais conhecido como Azagaia, atualmente considerado o maior opositor do governo moçambicano. Com a música “Geração”, Azagaia fez duras críticas ao governo e ganhou a atenção da população.
“Estamos vivendo uma ditadura do capital, onde o dinheiro do governo está presente em todos os aspectos da vida dos moradores até no emprego que ele possui. Para se ter uma ideia, hoje um empregado quando é registrado em uma empresa para trabalhar, automaticamente é obrigado a descontar um valor do salário para contribuir com a Frelimo. O cidadão não tem o direito de escolher se deseja ou não fazer isso”, explica Azagaia.
Quando questionado se acredita em uma nova realidade para o país, Azagaia mostra otimismo: “Sim. É possível, pois hoje a minha geração que vem do pós-guerra se reúne e fala sobre política e quando os que estão no poder caírem será essa geração, que hoje tem 30 anos, que irá comandar este país e realizar a democracia”, disse.

Conflito armado
O músico acredita que é o momento de se lutar pela paz e o progresso do povo apesar dos problemas que e a nação possui. “Hoje temos questões como o custo dos alimentos, o preço do transporte público e a briga pelo gás e petróleo que o governo continua a distribuir para as multinacionais sem que isso traga nenhum benefício para o povo.  Porém, isso pode mudar nas próximas eleições por meio da conscientização, pois ninguém aqui precisa mais de conflitos”, explica o cantor.
Nos últimos três anos, Moçambique enfrentou greves gerais consecutivas que duraram em média uma semana. Nessas ocasiões, supermercados foram saqueados, pessoas foram proibidas de transitar nas ruas e a polícia usou força bruta contra os grevistas, que protestavam contra a alta dos preços de alimentos e transporte público.


Gleyma Lima  – 25.06.2012

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Novos rumos na política de drogas alemã


A constatação é de que os danos à saúde decorrem mais das condições de marginalidade social e econômica impostas pela criminalização do que da droga em si. Basta ver o impacto da política liberal de Frankfurt no número de mortes por drogas: 147 em 1991 e 58 em 1994. Outros países europeus registram tal tendência (sem contar o êxito no controle da Aids).

Theodomiro Dias Neto
Marginalização, Aids, Justiça saturada. Com este saldo nada animador, afirma-se, na Europa, a visão de que as drogas não podem seguir sendo uma questão bélica. Determinante neste processo tem sido a atuação de vanguarda dos operadores do direito, que impuseram a discussão na agenda política.
O exemplo alemão é revelador. A última grande revisão da Lei de Entorpecentes data de 1981. Foi, em termos gerais, de orientação criminalizante, fruto de um contexto de ascensão do discurso conservador e supremacia da filosofia norte-americana "war on drugs". Desde então, no papel nada mudou.
É na práxis policial e judicial que surge uma nova tendência. Juízes questionam a constitucionalidade da proibição ao consumo, promotores avalizam inovações desenvolvidas fora da órbita penal e policiais, frustrados com uma guerra sem fim, mudam o alvo, toleram o consumo e dirigem seu poder de fogo contra os cartéis.
Em 1994, a conservadora Corte Constitucional, pressionada por este movimento, decide pela não-punibilidade da posse para consumo de "pequena quantidade" de Cannabis. A decisão não afirma, como na Colômbia, a inconstitucionalidade da proibição. Tampouco aceita o controvertido "direito às drogas", imanente da garantia constitucional ao livre desenvolvimento da personalidade, defendido, em 1991, por um juiz de Lubeck em sentença de impacto nacional.
Os juízes limitam-se a afirmar a falta de interesse estatal na sanção. É uma construção jurídica que, em bom português, significa: é proibido, mas não punido. O fundamento está na falta de elementos a comprovar o dano à saúde e o "efeito-degrau" da Cannabis (somente 5% dos usuários consomem outras drogas). Não há, entende a Corte, bem jurídico a justificar restrição à liberdade.
A discussão apenas começou. Caberá aos Estados decidirem o que é "pequena quantidade". Diferenças regionais terão impacto. Enquanto a conservadora Bavária se mantém inflexível, os Estados de Schleswig-Holstein e Hessen adotam o padrão holandês de 30 g e estendem a tolerância a até 1 g de heroína.
Embora limitada, a sentença tem o mérito de estar afinada com a realidade. É um marco que dá base jurídica e alento político a inovações. Em Frankfurt, funcionam, há meses, com apoio do MP, "salas de saúde", onde seringas são distribuídas e a aplicação da droga pode se dar higienicamente.
Várias cidades possuem programas de aplicação de metadona em heroinômanos. Hamburgo pressiona por alteração legal para iniciar administração de heroína, a exemplo de Inglaterra e Suíça (em Zurique, fecharam-se os espaços abertos, mas mantiveram-se as salas).
A constatação é de que os danos à saúde decorrem mais das condições de marginalidade social e econômica impostas pela criminalização do que da droga em si. Basta ver o impacto da política liberal de Frankfurt no número de mortes por drogas: 147 em 1991 e 58 em 1994. Outros países europeus registram tal tendência (sem contar o êxito no controle da Aids).
Os conservadores denunciam uma capitulação em que o Estado assume papel de traficante. "Não se trata de capitulação, mas condição para enfrentar o problema", contesta o deputado verde Daniel Cohn-Bendit, autor de projetos descriminalizantes no Parlamento europeu.
Considerando que só parte dos viciados supera a dependência, tal caminho pode ser a única possibilidade de quebra do ciclo vício-crime-prisão. Trata-se de dar ao indivíduo a chance de conciliar a droga com uma vida em sociedade.
Mas, acima de tudo, representa o respeito à decisão individual sobre a vida e a morte. Salvo quando tal decisão envolva dano a terceiro, a tutela penal é autoritária, ou, em versão "democrática", paternalista.


Theodomiro Dias Neto – Advogado criminal e professor da FGV – 09.04.2005
IN “Folha de São Paulo” – http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/4/09/cotidiano/2.html






Crack e guerra às drogas: entrevista com o 


psicólogo Rodrigo Alencar




RODRIGO ALENCAR: SEGUNDO LACAN, O GOZO SE SITUA NUMA POSIÇÃO ANÁLOGA AO DESEJO. O DESEJO ESTÁ INTIMAMENTE LIGADO A INSATISFAÇÃO, AO ENGANO, AO DESENCONTRO, ISSO IMPLICA UM MOVIMENTO. JÁ O GOZO ESTÁ PARA A SATISFAÇÃO, O PRAZER, A REPETIÇÃO. OS DOIS SÃO ESSENCIAIS PARA SE EXISTIR E CERTAMENTE NÃO HÁ UM SEM OUTRO. ATÉ PORQUE GOZAR DE SEU INCONSCIENTE, OU SEJA, REPETI-LO NAS MAIS DIFERENTES FORMAS É A PRINCIPAL VIA DE ACESSO PARA DESEJAR. NO ENTANTO HÁ UM TRABALHO QUE É FEITO PELO GOZO, QUE É JUSTAMENTE DE LUDIBRIAR O DESEJO.

Coletivo Dar 
Rodrigo Alencar é psicólogo, e acaba de defender a dissertação de mestrado Por que a guerra às drogas? Do crack na política ao crack do sujeito, pela PUC de São Paulo. Aprovado com tranquilidade, conferindo ao autor o título de mestre em Psicologia Social, o trabalho de Alencar não pode ficar restrito às estantes empoeiradas de alguma biblioteca, esperando algum que algum pesquisador lhe dê a devida atenção. Em sua busca por retirar as “teias de aranha do costume”, como escreveu Julio Cortázar a respeito da obra do poeta argentino Juan Gelman, o texto nos interroga a todo tempo se precisamos realmente fazer tudo como tradicionalmente vem sendo feito somente porque assim temos feito há muito tempo.


O que há por trás dos discursos em torno do crack? Por que esta substância tem ocupado tamanho espaço e importância no debate político brasileiro? O que uso e abuso de crack têm a dizer sobre nossa sociedade e sobre nossa incapacidade de lidar com problemas complexos de formas minimamente consequentes e respeitáveis? Quem e o que estão movendo este moinho de moer gente chamado “guerra às drogas”?
Quando se fala sobre crack, ou você o ataca ou você será acusado de negligente, testemunha Alencar. Diante disso, ou talvez exatamente por isso, a saída encontrada por este pesquisador foi ir além do senso comum, aprofundar-se, abrir a cabeça. Esperamos que esta conversa também caminhe neste sentido, porque  as aranhas do “deixa disso” nos esperam a cada esquina, e se alimentam de nossos preconceitos e de nossa preguiça em pensar o novo. Não graças a trabalhos como este, certamente.

Coletivo Dar – Pra começar, por que estudar justo o crack?
Rodrigo Alencar – No início, meu projeto de pesquisa tinha por objeto a dimensão do desejo nos manuais de saúde pública. Queria investigar o quanto as elaborações de políticas de atenção às drogas contemplavam seus interlocutores como sujeitos desejantes. No entanto duas problemáticas me fizeram mudar o curso: a primeira é que entre a formulação de política pública, suas atas e manuais estão severamente distantes de sua aplicação, ainda que haja um esforço de práxis, a prática do serviço público sofre inúmeros atravessamentos políticos e ainda que muitas diretrizes cheguem a ser aplicadas, cada profissional busca meios para fazer as coisas do seu jeito, o que pode ser bom, mas muito distante do que se preconiza. A outra problemática é que comecei a achar este propósito um pouco cínico, eu estudei bastante alguns manuais de saúde pública na graduação e sei que não há qualquer contemplação de desejo nestes materiais, o que há é um reconhecimento da possibilidade do uso de drogas e suas variáveis sociais como fatores de vulnerabilização ou fortalecimento de prevenção, ou seja, distanciamento das drogas.
Desejar é assumir riscos e admito que isso não é nada simples de se pensar na hora de formular política pública. Visto que as políticas públicas de saúde  e seguridade social visam uma diminuição de qualquer risco que seja. Acho alguns manuais de saúde mental realmente maravilhosos, mas não há a consideração da condição inconsciente do sujeito e esta inclusão não é algo simples, mas sem dúvidas necessária. Digo isso porque esta condição inconsciente é amplamente explorada pela publicidade, principalmente a publicidade eleitoral. Então, o inconsciente é trabalhado na política institucional, mas prioritariamente na propaganda política, o que é preocupante.
Aqui, já desembocamos na escolha do crack como tema de pesquisa. As campanhas políticas em período eleitoral não operam pela racionalidade. Elas recorrem justamente aos medos e anseios mais irracionais. Foi justamente isso que me chamou na eleição de 2010. Todos os candidatos incluíram a prioridade de combate ao crack em suas promessas de gestão. Isso porque assessores e candidatos sabiam que mesmo que o crack tenha causado danos estatiscamente bem menores que o álcool, era o crack que estava na pauta dos telejornais. Também me impressionou a homogeneização do debate, não importa qual partido, qual plataforma. Todos declararam combate ao crack, esquerda e direita, mais votados e menos votados. Também fiquei muito impressionado com a exploração do drama familiar em torno do crack, candidatos faziam entrevistas com mulheres que perderam os familiares para o crack. E nisso, fica claro que a campanha está recorrendo a uma construção de uma personagem com a qual o eleitor se vincule, deposite expectativas. Essa proposta é muito próxima da publicidade do setor comercial. A ideia não é oferecer o que você quer, mas apresentar um candidato que advinhe o que você quer antes que você possa se interrogar se é isso mesmo o que quer. Por isso quando se falava de drogas, só se respondia combate ao crack, ainda que partidos que detinham menor espaço midiático falassem em legalização da cannabis. Isso pouco interessava a maior parte do eleitorado. As pessoas têm medo do crack e se um pai de família acredita que alguém pode acabar com o crack, ele se vê como um pai melhor livrando o filho dele desta possibilidade. Aí está, as campanhas ofertavam as pessoas a promessa de que o crack tenha um fim pela via do combate ao tráfico e do tratamento compulsório, ninguém se pergunta se isso é realmente possível. Essa é uma das funções do medo, convocar a uma precipitação para que este medo que está gerando desconforto não exista mais.
Se você perguntar as pessoas se acreditam que o crack vai acabar, a maioria te responderá que não. Mas se você perguntar se elas gostariam que alguém implicasse todas as forças e meios possíveis para acabar com o crack no Brasil, elas irão responder que sim e que é isso que deve ser feito. O que revela que inconscientemente elas acreditam sim que o crack pode ser eliminado, caso contrário não haveria porque combatê-lo com todas as forças. Ainda que se diga que ao menos combatendo ele diminui, a expectativa é que não se tenha de lidar com isso. Que não se vislumbre mais a possibilidade de uma pessoa querida, ou mesmo o próprio eleitor, morrer usando crack. Ou seja, que caso ele ainda exista para alguém, que ele não exista para você, sem te causar medo, nem tentação.
A psicanálise trata o medo como uma manifestação às avessas do desejo. E no caso do crack, me impressionou muito como esta pedra se converteu em insígnia do medo e consequentemente em uma arma política.

Coletivo Dar – O que sustenta a proibição das drogas ainda hoje, mesmo sendo cada vez mais evidente seu fracasso?
Rodrigo Alencar – Acho que esta questão nos possibilita desenvolver uma continuidade da primeira resposta. Alguns pesquisadores afirmam que com a imensa produção bélica da guerra fria foi necessário o escoamento da produção de armas para algum conflito, que por sinal, serviu de um empurrãozinho para encabeçar uma guerra às drogas, combater as drogas é combater algo inerente à existência humana. Ou seja, é um combate que termina só com a extinção da própria espécie, o que pode garantir lucros que rendam até o final de nossa existência.
Para além de questões geopolíticas, Freud deixou algo valioso para explicar o funcionamento grupal. Para que um grupo funcione, ele necessita de alguns elementos imprescindíveis. Dentre eles, podemos destacar: um líder, um inimigo e um ideal no qual eu possa confiar e abrir mão de uma razão crítica. Assim, ao trabalharmos nos detalhes chegamos no seguinte: as drogas entram no lugar do inimigo, ao situarmos como substâncias perigosas mobilizamos o medo no grupo, assim podemos realizar uma operação dupla, precisamos nos unir e combater este inimigo, antes que ele acabe conosco e, principalmente, precisamos de um líder no qual confiemos e nos apoiemos ao longo deste combate. Este líder nos servirá de exemplo e nos mostrará o quanto somos mais fortes e superiores para encarar este inimigo e, mesmo que eu tenha de fazer coisas que eu não concorde (bater em usuários de drogas e moradores de rua por exemplo), isso pode dar certo no final pois eu confio neste líder e ao menos estou fazendo alguma coisa. Óbvio que estamos falando de um funcionamento de massa. Neste inimigo, projetamos todas as nossas inseguranças, e ilusoriamente, acreditamos que acabando com ele, eliminamos nossos medos e incertezas e ainda como um bônus garantimos que seremos amados e amparados por este líder.
Ainda existe uma moralidade muito forte que sustenta esta diferenciação grupal. Há aqueles que acreditam que as pessoas que usam drogas ilícitas não estejam se dando o respeito e portanto seja natural que lhe ocorram inúmeros infortúnios, isto opera de modo que aquele se vê como cidadão de bem pense que, ao contrário dos que usam drogas ilícitas, é maior merecedor do amor de seus próximos e superiores e também de que está mais seguro em não transgredir nenhuma lei. A proibição não alimenta somente a ilusão do que é proibido é mais gostoso, isso pode ser para alguns, mas para outros não transgredir é sinônimo de estar em maior segurança. Ainda que os dois movimentos sejam ilusórios, esta linha serve como recurso identificatório para se situar no mundo.
Coletivo Dar – Há alguma especificidade na forma com que o crack é tratado socialmente em relação às outras drogas?
Rodrigo Alencar – Sim. Saiba de algo curioso, quando comecei a pesquisar o crack e comecei a apresentar críticas à forma como as campanhas apelavam ao medo e à demonização, as pessoas vinham até mim, com um tom muito preocupado e diziam “mas você não vai defender o crack né?”. Foi aí que percebi que quando se fala do crack, ou você o ataca ou você será acusado de negligente.  Eu concordo que é uma substância de péssima qualidade. Mas não me sinto obrigado a adotar ares de horror quando abordo este assunto. Isso foi muito produtivo para pesquisa, pois esta foi uma indagação que me impulsionou em aprofundar no tema.
Por que as pessoas se sentem obrigadas a serem agressivas ao falar do crack? Por que isso seria um sinônimo de responsabilidade? Simplesmente dizer que o crack mata pode ter consequências muito ruins e contrárias ao que se espera. Por que as pessoas acreditam que todos que estão vivos só se preocupem em estarem vivos daqui a um ano? Se isso fosse verdade ninguém dirigiria bêbado ou reagiria a um assalto. Isso também não significa que estas pessoas queiram morrer, apenas indica que longevidade não é uma preocupação que seja prioritária em tempo integral para muitas pessoas. Será que não podemos falar de crack sem recorrer a uma moral prescritiva? Toda essa áurea de horror em torno do crack pode suscitar consequências nefastas. O horror facilmente encobre certo fascínio, pois você só se horroriza com aquilo que toca suas convicções mais íntimas. Talvez por isso exista essa operação de conversão do usuário de crack em uma figura monstruosa, geralmente o crackeiro é assimilado como um zumbi que só se importa em fumar mais uma pedra, isso é um reducionismo que limita muito nossa visão.
O crack não é só algo proibido como outras drogas, maconha é proibida, o crack é maldito mesmo. Acho que é justamente isso que pode causar o efeito contrário do que se pretende, principalmente ao se associar crack e morte. Quem garante que não há um gosto de aventura em acreditar que se está desafiando os limites da vida a cada pipada? Ainda que tratem o crackeiro como um zumbi, as pessoas não percebem que uma imagem que pode estar sob recalque é aquela do anti-herói, esta imagem pode ser sedutora a muitos adolescentes que recém saídos da infância já estão  entediados com a figura do herói todo certinho.
Talvez seja necessário pensarmos que só se preocupar em se drogar pode ser algo muito monótono, tedioso. Assim como só se preocupar em estudar ou só se preocupar em trabalhar. Por exemplo, acho muito interessante toda a cultura e debate que existe em torno da cannabis. Mas acho um saco quando o único assunto que uma pessoa tem é maconha. O desejo opera por vias singulares e, pode ter certeza, está bem pouco presente em reproduzir clichês em um esforço de se mostrar autêntico.
Talvez por isso tenha aberto mão da pesquisa de campo, me desanima muito ir atrás de dezenas de pessoas só porque usam crack. Leio pesquisas que lançam mão deste recurso, vejo que sua existência se justifica mais como resposta política. Mas infelizmente, cito estas pesquisas mais para combater um possível preconceito no leitor do que especificamente para desenvolver algo que me interesse.
Na psicanálise tem autores que justificam tudo no Édipo, alegam que pessoas usam drogas porque o papel dos pais não tem mais o mesmo valor  ou porque a mãe não deu carinho suficiente. Isso me preocupa muito porque é uma correspondência barata ao senso comum de que tudo o que gera sofrimento é culpa dos pais. Felizmente, o volume de trabalhos com este tipo de argumentação me parece cada vez menor e há cada vez mais trabalhos criativos e interessantes sobre o tema.

Coletivo Dar – Por que você aponta a proibição como um esforço para administração das formas de gozo e instrumentalização da vida?
Rodrigo Alencar – Acho que o pesquisador Eduardo Vargas, bem como o Henrique Carneiro, mostram bem esta instrumentalização da vida pela via da regulamentação das drogas. Devemos considerar que o processo histórico no qual ocorre a proibição se dá num momento em que a utilização de mão de obra fabril se encontrava a todo vapor. Assim, estes autores falam de como se passa a priorizar a extensão da vida ao invés da intensificação da experiência. Ainda que os modos de utilização de mão de obra estejam diversificados isso permanece até hoje. Falo de instrumentalização da vida, pois é por meio das drogas que potencializamos essa vida para render melhor no trabalho. Muitas vezes um trabalho que nos é estranho, no sentido em que Marx fala do estranhamento do trabalhador diante da mercadoria. Ele a produz por meio de seu trabalho, mas ao invés de isso ser algo que enriqueça seu mundo, acaba por embrutecê-lo e as drogas legais, entram em cheio neste embrutecimento.
Hoje, há diversas vilas operárias com problemas de alcoolismo. Boa parte dos casos, são trabalhadores que beberam diariamente ao longo da vida e com a aposentadoria a situação se agrava. Considero as drogas um recurso legítimo para lidar com o sofrimento. Acho importante que uma pessoa possa receber morfina durante um tratamento médico, assim como fazer uso recreativo de álcool ou cannabis para desfrutar de um momento. Mas o que me preocupa é recorrer às drogas para calar a mensagem que muitas vezes é emitida por um sofrimento que interroga a posição de um sujeito diante de sua vida.
Imaginemos uma secretária que seja constantemente humilhada por seu patrão. Ao chegar em casa, todos os dias, bebe algumas doses de whisky para conseguir “relaxar” e dormir para enfrentar o próximo dia de trabalho. Quantas vezes a bebida, ou o calmante não é um meio de calar essa voz que a interroga se ela realmente é obrigada a passar por isso. Ou então uma prostitua que a partir de um certo momento passa a sentir um asco insuportável em fazer programas e recorre a determinadas drogas para suportar estes momentos?  Quais outros meios ela poderia recorrer para enfrentar estes impasses? Há diversas denúncias de cortadores de cana que recebem litros pinga junto das ferramentas, para suportar a árdua jornada de trabalho. No próprio blog do coletivo DAR há algumas notícias como essas denúncias linkadas de outros meios de comunicação. No entanto é uma questão complexa, os problemas decorrentes do uso de drogas não são exclusividade de uma relação de opressão no trabalho. Ainda assim, devemos considerar sua presença maciça no protagonismo das drogas do ideal de produtividade que reina atualmente. Já imaginou a USP ou a UNICAMP sem café?
Até mesmo o charuto e a cocaína de Freud já foram alvos de polêmica. E este não hesitou em reconhecer a importância e a eficácia das drogas para nossa sociedade. Portanto, uma coisa é falarmos da utilidade das drogas para as pessoas que fazem seu uso, outra é falar do uso das pessoas que é instrumentalizado por meio das drogas. O álcool foi um dos principais recursos para amansar escravos no Brasil colonial, isso não é qualquer coisa.
Já para falarmos da administração do gozo, precisamos abordar um trabalho conceitual de Lacan. Segundo Lacan, o gozo se situa numa posição análogo ao desejo. O desejo está intimamente ligado a insatisfação, ao engano, ao desencontro, isso implica um movimento. Já o gozo está para a satisfação, o prazer, a repetição. Os dois são essenciais para se existir e certamente não há um sem outro. Até porque gozar de seu inconsciente, ou seja, repeti-lo nas mais diferentes formas é a principal via de acesso para desejar. No entanto há um trabalho que é feito pelo gozo, que é justamente de ludibriar o desejo. Assim como no exemplo citado, oferta-se um modo de gozo para que não se insista em algo. Um psicanalista chamado Conrado Ramos tem uma ótima ilustração para este trabalho no caso das drogas. A princípio uma propaganda de cerveja associa a sua marca belas mulheres, passando uma mensagem de que se você beber a cerveja desta marca, poderá possuir todas estas mulheres que são apresentadas. Entretanto, há uma outra mensagem, mais implícita que diz: olha só, nós sabemos que você não ficará com estas mulheres só por beber nossa cerveja, ainda assim, já que não pode ter essas mulheres, porque não se consolar com a nossa cerveja? Isso é administração das formas de gozo.
Se pegarmos o livro de Huxley, Admirável Mundo Novo, temos como principal ferramenta política para manutenção da organização social uma droga chamada soma. Toda frustração ou tristeza é tratada com cápsulas de soma. Acho que Huxley teceu um bom questionamento para o movimento antiproibicionista. As drogas podem ser facilmente utilizadas para o tamponamento de conflitos políticos. Não seria o fim da proibição, ainda que essencial, um objetivo muito breve e fácil de ser usurpado para fins questionáveis? Talvez o fim da proibição seja algo que deva entrar dentro de outras bandeiras políticas mais ousadas.
Coletivo Dar – E quanto à formulação do “contágio de pânico” que dizia Freud, como isso se aplica a questão do crack?
Rodrigo Alencar – Freud, no texto Psicologia das massas e análise do eu, cita um exemplo de um conto literário onde um grupo de soldados ao se dar conta que o general perdeu a cabeça entra em pânico, isto para mostrar que a confiança estava alicerçada em uma figura de ideal. No caso do crack o jogo é mais refinado. Primeiro apresenta-se o inimigo, para depois iniciar um processo de massificação. É importante frisar, para que surja este inimigo, basta repetir com muita convicção e muitas vezes o quanto ele é perigoso e ameaçador, hoje em dia, temos diversos setores que podem repetir isso, médicos, igrejas, psicólogos…  Pautados neste trabalho, podemos afirmar que o grupo pode se unir como um enfrentamento ao medo. Seria até mais preciso dizer que este é um dos meios de se obter consentimento. Semeia-se medo, para colher clamor por ordem e segurança mais adiante.
Coletivo Dar – Você cita também a culpabilização em torno da figura do usuário de drogas. De que forma isto se articula com o que você descreve como uma percepção de “gozo a mais” para estas formas de uso?

Rodrigo Alencar – Algumas campanhas antidrogas dizem que no começo é muito prazeroso e depois fica muito perigoso. Você já viu quando uma pessoa experimenta uma droga e fica frustrada? Diz que não deu nada, etc, etc, etc. É justamente disso que estou falando, este prazer, a princípio, é um prazer suposto. Desfrutar de uma substância envolve um aprendizado, às vezes passar por experi
ncias ruins, O Howard Becker apontou isso muito bem na sua pesquisa chamada Outsiders. Faço esta afirmação por uma leitura de que muitas pessoas odeiam usuários de drogas por achar que estes desfrutam mais da vida. É uma experiência comum na neurose atribuir vantagem ao outro. É como o xenófobo que diz que o imigrante rouba seu emprego, sua vaga no posto de saúde, seu lugar no ônibus, etc.
Este incômodo não é pelo outro ser imigrante, é pelo outro ser o outro. Se não fosse imigrante seria o negro e por aí vai… Ou seja,” o outro sempre aproveita mais as coisas do que eu”. Porém, isso não aparece dessa forma, mas em sentenças como “olha o centro de São Paulo cheio de nóia, por isso esse país não vai pra frente, ficam aí usando droga e ninguém faz nada, depois vão pegar o dinheiro do meu imposto e gastar com essa gente”, o que se está dizendo é “eu tenho que trabalhar e viver uma vida comum enquanto estes daí ficam só curtindo uma brisa, morando de graça..”. O raciocínio é esse, mesmo que o usuário de drogas viva em meio ao lixo, ele é visto como aquele que não precisa arcar com os incômodos que na maioria das vezes as pessoas arcam, como ter horários, ter responsabilidades com outras pessoas e etc. Óbvio que isso é completamente ilusório.
Quando trabalhei em um abrigo, tinham profissionais que diziam, “criança que morou na rua é mais difícil, porque na rua tem liberdade, faz o que quer, ganha dinheiro de adultos, cheira cola”. Isto é praticamente uma piada de mal gosto, mas muito presente na assistência. É uma forma de ignorar o elemento de angústia presente na cena onde o que você valoriza pode estar sendo contemplado pelo avesso.
Coletivo Dar – Por que você qualifica a droga como “produto discursivo”?
Rodrigo Alencar – Porque droga é algo popular há praticamente dois séculos, antes tinha vinho, ópio, etc… Hoje nos referimos às drogas. Segundo um psicanalista chamado Jésus Santiago, o que hoje chamamos de drogas é produto de um desenvolvimento científico que ocorreu na era moderna. Desde os gregos temos o vício e a virtude, o phármakon como remédio ou veneno dependendo dos efeitos colaterais. No entanto, só com o desenvolvimento farmacêutico temos substâncias que supostamente resolvem praticamente todos os problemas. O discurso da ciência, trabalhado por Lacan, é caracterizado como aquele que tirou o sujeito da jogada. O xamã, ainda que recebendo espíritos, é dotado de características particulares para que exerça a cura. Na ciência, principalmente quando se trata das drogas, quem tem poder é o comprimido, muitas vezes, o médico, quando em um exercício questionável da profissão, faz o papel de burocrata de ficar emitindo papéis para que você acesse os comprimidos. Este lugar, que é ocupado pelas drogas, é um produto discursivo, fruto do sonho moderno que é viver sem sofrimento, sem oscilações de humor, sem deslizes. Isto tem sua outra face na ilegalidade, na qual toda droga é tratada como uma dose de cianureto que apresentará seus efeitos de modo retardatário. Conferimos um poder extraordinário às drogas e no entanto as usamos de qualquer jeito. A Miriam Debieux Rosa fala da toxicomania como uma produção que ocorre em um desenvolvimento histórico e hoje é cristalizada como uma identidade. Acredito que a questão passa por aí.
Charles Melman trata o toxicômano como um efeito de discurso. Acho isso interessante, é muito comum um usuário quando procura tratamento chegar com uma fala que é semelhante a scripts de telemarketing. É quase uma fala decorada, diz que faz tantos anos que só quer saber de usar, que nesse meio tempo não viu sua vida passar, que usa isso, isso e aquilo, que faz assim e assado pra conseguir, que quer parar, ficar limpo. Isto é a reprodução de um encadeamento discursivo, neste momento o sujeito está falando somente como um usuário, nada mais. Esse tipo de discurso, só diz do quanto essa identidade estereotipada na qual o reconhecem tem sido importante como referência para ocultar tantas outras coisas que ainda não se permitem serem ditas. Deve se considerar a possibilidade de que, às vezes, o sujeito em seu cálculo, pode achar melhor ser reconhecido como resto a não se perceber reconhecido de modo algum, ou se perceber reconhecido em qualquer outra posição que seja insuportável.
Coletivo Dar – O que é e como se dá a “administração do desamparo” que você aborda?

Rodrigo Alencar – Na psicanálise trabalhamos com uma ideia de um desamparo que é constitutivo do sujeito. Quando nascemos nossa sobrevivência depende completamente do cuidado de um outro para depois articularmos maneiras de se manter, se alimentar, morar, etc… Não é possível viver sem contar com a interlocução de alguém, com sua resposta, seu olhar, sua voz. Ainda que haja alternância de presença e ausência é comum a necessidade, as vezes mais constante do que se gostaria de se sentir amparado ou mesmo correspondido em nossas decisões e ações, de que esta presença do outro nos transmita alguma segurança. Isso no âmbito político comumente acaba por ser utilizado, como no caso do combate ao crack. É absolutamente plausível um aturdimento diante de uma questão como o crack. As cenas de uso que aparecem nos lugares públicos da forma que aparecem é algo que surgiu nos últimos vinte anos, ainda que a notoriedade midiática seja mais recente.
Diante deste aturdimento é conveniente aqueles que se engajam em um projeto de poder, se precipitar nas respostas para esse problema, justificar o injustificável sob a rubrica da urgência e assim dar contornos a este aturdimento. Isso é funcional, apazigua os ânimos momentaneamente, mas cobra seu preço justamente naqueles que supostamente seriam cuidados, quando estes vivenciam justamente o contrário, um embrutecimento ainda mais forte do desamparo, que será especulado dentro destas técnicas administrativas.
Coletivo Dar – Por fim, sua pesquisa se insere num cenário alternativo ao discurso do senso comum. Você acredita que este senso comum também pauta a produção acadêmica de conhecimento? Visões como a sua, que não partem das premissas proibicionistas típicas, têm seu espaço na academia ou ainda são muito marginais em sua opinião?
Rodrigo Alencar – Acho que existem muitas pesquisas que buscam responder este senso comum. Ainda que eu ache necessário, penso que temos de tomar muito cuidado na hora de formular uma pergunta a ser respondida numa pesquisa. Faz parte do senso comum a resposta breve e a tentativa de acomodação das transformações. E acho importante a academia operar  sobre isso, não perder canais de diálogo e fazer com que suas produções fiquem cada vez mais acessíveis, bem como sua prática. Mas sem se acomodar ao senso comum.
Durante esta pesquisa tive de sustentar um duplo desconforto. Um é o lugar da psicanálise na academia, o esforço de fazer pesquisa sem uma perspectiva que seja positivista exige uma série de cuidados no modo como você apresenta seu material. É como tentar abrir buracos em um muro ao mesmo tempo em que tentam aumentá-lo com tijolos. Outro é de sustentar uma posição que não é a majoritária, que no caso seria reforçar os perigos e o contágio do medo em relação ao crack. A posição de crítica ao que está posto na questão das drogas, é uma posição que ainda encontra pouco espaço institucional para construção de uma práxis. Estas vias se dão pela militância, que ainda que sejam cruciais, são extremamente vulneráveis para que as mudanças efetivas ocorram. Ainda são majoritárias as abordagens de metodologia policial por parte das instituições de saúde que insistem em ouvir as substâncias e calar as pessoas.
As fontes de maior financiamento acadêmico estão bem longe dos institutos de humanas, e nos institutos de saúde ocupam departamentos muito seletos. Há uma condição marginal, não tem como negar. Penso que ainda precisamos encontrar meios de fortalecer a crítica, sem nos prendermos a redutos narcísicos que nos aprisionem a uma falsa dignidade desta condição.

Coletivo Dar – Coletivo antiproibicionista de São Paulo - 02.07.2012
  


terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Livro atualiza questão regulatória das comunicações na América Latina


Em sua mais recente publicação, “Vozes abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratização da comunicação”, (Editora Mauad/Faperj, Rio de Janeiro, 2011), Dênis de Moraes analisa as ações governamentais em países latino-americanos para tentar reverter a concentração monopolista da mídia. Resultado de estudos desenvolvidos pelo autor nos últimos quatro anos, o livro mostra mudanças em legislações e marcos regulatórios que, durante décadas, favoreceram as dinastias familiares que controlam os meios de comunicação em grande parte do Continente.

Forum Nacional de Democratização da Comunicação
A obra propõe um questionamento frente a atual situação dos meios de comunicação e caminhos para seguir em um ideal democrático, condizente com o contexto de reordenamentos políticos, econômicos e socioculturais na A.L.
Nesta entrevista ao e-Fórum, o autor resume o conteúdo tratado na publicação.

FNDC – Que avanços são mostrados neste livro com relação as suas pesquisas anteriores?
Dênis de Moraes – Vozes abertas da América Latina é um livro dedicado à análise das transformações em curso nos sistemas de comunicação de países latino-americanos com governos progressistas, avaliando suas perspectivas e dificuldades. Não me limito a um diagnóstico sobre mudanças que começam a colocar em xeque o peso desproporcional da mídia comercial na vida cotidiana e na fixação de valores e mentalidades.
Além de evidenciar as providências governamentais para tentar barrar a concentração monopólica da mídia e descentralizar os meios de informação e difusão cultural, reflito sobre questões análogas, que me parecem decisivas para a longa luta pela democratização da comunicação na América Latina.
A primeira questão é a importância estratégica das políticas públicas de comunicação para redefinir o setor de mídia em bases mais equitativas, combatendo assimetrias que têm favorecido a iniciativa privada (hoje, predominantemente nas mãos de dinastias familiares, muitas delas associadas a corporações transnacionais). Está em questão proteger e valorizar as demandas coletivas frente à voracidade mercantil que prospera à sombra da convergência entre as áreas de informática, telecomunicações e mídia, tornada possível pela digitalização. Isso deve ser feito para em benefício do pluralismo, levando em conta as transformações da era digital e a necessidade de definir o que deve ser público e o que pode ser privado.
A segunda questão abordada é a necessidade de desmistificarmos as campanhas opositoras movidas por elites empresariais, midiáticas e políticas contra as medidas governamentais que visam diversificar a radiodifusão sob concessão pública, impedindo que conglomerados e dinastias familiares continuem acumulando uma quantidade alarmante de outorgas de canais de rádio e televisão, além de controlarem a televisão por assinatura e serviços de internet. Os ataques patrocinados pelas corporações midiáticas têm o objetivo, deliberado mas não assumido publicamente, de impedir um convencimento mais amplo da sociedade em torno das mudanças em curso em determinados países.
As campanhas denunciam “ameaças à liberdade de expressão” que estariam sendo praticadas por governos progressistas. Trata-se de um falseamento claro da questão. O direito de informar e ser informado absolutamente não está ameaçado por legislações democratizadoras, e sim pelos grupos que confundem e reduzem a liberdade de imprensa à liberdade de empresa. O jurista Fábio Konder Comparato, lucidamente, tem enfatizado que o conceito de liberdade de expressão está indissociavelmente vinculado aos direitos públicos e às aspirações coletivas, sem qualquer subordinação a interesses privados ou ambições particulares. Na verdade, qualquer modificação que possa afetar as suas receitas com as joias da coroa – as licenças de canais de rádio e televisão – é rechaçada pela violência discursiva dos grupos midiáticos. Como se as outorgas de radiodifusão fossem propriedades exclusivas, quando, apenas, são concessões do poder público, com prazo de validade fixado em lei, sendo renováveis ou não.

FNDC – De que forma a comunicação se relaciona com as constantes mudanças no governo e as crises políticas na América Latina e como ela afeta a democracia? 
Dênis de Moraes: Mais do que nunca, a comunicação desempenha um papel decisivo nas disputas de sentido que conformam ou modificam a opinião pública e valores sociais. Os processos comunicacionais estão entranhados na batalha das ideias pela hegemonia – aqui entendida no sentido proposto pelo filósofo marxista italiano Antonio Gramsci: a conquista do consenso e da liderança cultural e política por uma classe ou bloco de classes em torno de determinadas concepções de vida e valores. Daí a importância de evoluirmos para um sistema de mídia que permita múltiplas vozes de se expressarem livremente, sem sujeição aos impérios empresariais. Um sistema de míidia que, incorporando usos e benefícios tecnológicos, favoreça a diversidade informativa, a criatividade, o trabalho cooperativo, a participação social e os direitos da cidadania.

FNDC – As atuais revoltas pelo mundo evidenciaram a abrangência da internet e das redes sociais na disseminação da informação. Isso já vem sendo considerado na América Latina?
Dênis de Moraes: Sem dúvida. O valor da Internet para a pluralização informativa e cultural e para o ativismo sociopolítico vem se acentuando tanto no plano governamental, quanto no seio da sociedade civil. Trata-se de um ecossistema descentralizado e interativo, não sujeito aos crivos e idiossincrasias da mídia comercial, portanto tendencialmente propício à multiplicação das fontes e à disseminação de pontos de vistas e valores que escapam aos mecanismos de controle de informação e opinião dos meios, classes e instituições hegemônicos.
Cada vez mais governos progressistas percebem a necessidade de expandir seus espaços de divulgação e de interlocução com a sociedade civil, o que tem se traduzido na expansão e no aprimoramento de portais de órgãos estatais (agências de notícias, emissoras de rádio e televisão, jornais e boletins eletrônicos) e na utilização das redes sociais (Twitter, Facebook, Youtube) para veicular conteúdos de interesse coletivo geralmente minimizados ou ignorados nos noticiários midiáticos. No Twitter, podemos acompanhar os pontos de vista dos presidentes da Venezuela, Hugo Chávez, e da Argentina, Cristina Kirchner. Eles diariamente interagem com uma quantidade impressionante de internautas (Chávez com dois milhões de seguidores; Cristina, com 600 mil). Do mesmo modo que, no Youtube, são disponibilizados vídeos sobre atos públicos que dificilmente seriam transmitidos por emissoras de TV ou por portais midiáticos.
Devemos salientar que os usos promissores da Internet estão longe de se esgotar em intervenções governamentais. O ambiente autônomo e interativo do ciberespaço tem proporcionado a entidades e organismos da sociedade civil formas diferenciadas e promissoras de transmissão informativa, burlando a crônica desconfiança dos meios tradicionais em relação às reivindicações comunitárias e aos movimentos sociais.
As fontes alternativas incluem agências de notícias autônomas, portais, jornais estatais e redes sociais, em que os conteúdos são escolhidos e veiculados não em função de ambições concorrenciais e propósitos mercantis, e sim para dar visibilidade de um conjunto de temas e anseios da coletividade, englobando direitos humanos, ecologia, meio ambiente, reivindicações trabalhistas, educação e cultura populares, inclusão social, democratização das tecnologias e do conhecimento, questões de gênero, reforma agrária, reforma urbana, segurança pública, desenvolvimento sustentável, etc. Essa diversificação temática rompe com as agendas noticiosas fixadas unilateralmente pela mídia, de acordo com suas visões, não raro, excludentes e discriminatórias. Há um crescente sentido público na utilização das redes virtuais, que se combina com novos padrões de sociabilidade, criatividade e inovação. Sem contar as ferramentas digitais que são crescentemente apropriadas pelo ativismo sociopolítico, como o atestam as mobilizações virtuais nos protestos populares recentes na Espanha e no Chile, e para a divulgação independente de conteúdos políticos e diplomáticos antes mantidos em sigilo, como ocorre graças ao site Wikileaks.
Porém, não devemos cair na tentação de acreditar que a solução dos problemas comunicacionais tende a se resolver com a virtualização. Sabemos que as tecnologias não desfazem desigualdades sociais graves; pelo contrário, a despeito dos progressos verificados nos últimos anos, parcela muito significativa das populações mundial, latino-americana e brasileira continua excluída dos acessos e benefícios tecnológicos, bem como segue alijada das condições socioculturais e educacionais adequadas para uma utilização consistente e proveitosa das tecnologias. Indispensável sublinhar que o virtual não substitui métodos e ambientes clássicos de mobilização, participação e luta social.
Continua sendo no território físico, socialmente vivenciado, que se travam as lutas cruciais pela emancipação e pela democratização da sociedade, cultura, da riqueza e da renda. O que existe, sim, é uma interessante relação de complementariedade entre real e virtual, em que novas metodologias de produção, difusão, transmissão, recepção, consumo, interação e sociabilidade se afirmam no universo das redes virtuais, realçando identidades e afinidades eletivas, o que pode representar, dependendo de cada caso, mais colaborações, permutas, intercâmbios e até coesões.
Por fim, percebo, com bastante preocupação, que, ao lado das utilizações sociais da Internet, cresce a mercantilização do ciberespacio, promovida por corporações com poderio financeiro, mercadológico e logístico. O mundo virtual não escapa da obsessão dos agentes do capital de extrair o maior lucro ao menor custo possível. Seus tentáculos estendem-se ao comércio, à publicidade e aos serviços on line. Sem falar que as publicações eletrônicas de grupos midiáticos reproduzem, via de regra, mecanismos de controle monopólico da informação empregados pelos veículos de massa, o que lhes permite ampliar, também no âmbito virtual, sua influência na formação da opinião pública.
Portanto, uma análise do fenômeno Internet precisa ser abrangente, para dar conta da complexidade envolvida. Trata-se de um ambiente tecnológico de usos múltiplos, que, a um só tempo, alarga as fonteiras de expressão, difusão e interação, a baixo custo e sem submissão às estruturas midiáticas, e favorece a comercialização indiscriminada. Não se pode isolar um elemento de análise do outro; devemos problematizá-los, pois ambos se manifestam no cenário virtual, gerando ambivalências, dilemas e contradições.

FNDC – Existe algum país com uma política pública efetiva a fim de desmantelar o cartel midiático?
Dênis de Moraes: O bloco mais ativo é formado por Venezuela, Bolívia, Equador e Argentina, cujos governos são ostensivos na rejeição ao monopólio privado da mídia e ao seu desmedido predomínio na vida social. Entre as medidas que vêm sendo tomadas, devemos destacar as novas legislações para a radiodifusão sob concessão pública, a fim de coibir a concentração dos setores de radio e televisão nas mãos de poucos grupos privados.
Como aponto no livro, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual da Argentina já é um paradigma internacional de legislação antimonopólica. Os governos do Uruguai e do Equador nela se baseiam para elaborar, neste momento, anteprojetos que visam estabelecer regras democráticas para a radiodifusão, garantindo espaços aos setores públicos, sociais e comunitários. Importante realçar que as providências antimonopólicas variam de país para país, refletindo peculiaridades socioculturais e correlações de força específicas de cada cenário politico. Mas há consenso de que as disposições legais precisam assegurar condições equânimes em termos de acesso, participação e representatividade nos sistemas de radiodifusão, para que haja equilíbrio nas prerrogativas de atuação entre três instâncias envolvidas: o próprio Estado (com serviço público de qualidade e diversificado), o setor privado (com fins lucrativos e responsabilidades sociais bem definidas) e a sociedade civil (movimentos sociais, comunitários e étnicos, universidades, associações profissionais, produtores independentes, etc.).

FNDC – No livro são citados os quatro países onde estão ocorrendo mudanças nos marcos regulatórios da radiodifusão. Por que o Brasil ainda não avançou nesse sentido?
Dênis de Moraes: Esta é uma pergunta que se impõe, já que, depois dos dois mandatos de Luiz Inácio Lula da Silva e dos primeiros nove meses do de Dilma Rousseff, continuamos com um dos sistemas de comunicação mais atrasados e anacrônicos da América do Sul. Espero que Dilma venha a propor ao Congresso ou apoiar um projeto de lei que, tomando em consideração as singularidades do caso brasileiro, se inspire nas disposições antimonopólicas da lei em vigor na Argentina, cuja metodologia de elaboração foi participativa e inclusiva.
A presidenta Cristina Kirchner reuniu-se, por diversas vezes, com os setores da sociedade civil envolvidos na matéria, inclusive o empresariado da mídia, a fim de ouvir suas reivindicações. Meu livro defende a tese de que avanços convincentes na luta pela democratização dependerão de vontade política, pressão social organizada e respaldo popular. Não adianta ter apenas boas intenções. É preciso um compromisso político permanente com a diversidade para fazer frente às campanhas midiáticas que desejam preservar privilégios acumulados durantes décadas. A verdade é que uma sociedade complexa, diversificada e desigual como a nossa não pode permanecer, por mais tempo, refém das visões de mundo, das idiossincrasias e dos interesses corporativos da mídia hegemônica.


Forum Nacional de Democratização da Comunicação – 23.09.2011
Dênis de Moraes – Professor do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), pós-doutor em Comunicação pelo Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO-Argentina) e professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense.
Colaboração Miriã Isquierdo
IN FNDC.org – http://fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=729637

domingo, 23 de dezembro de 2012

Do mensalão à reforma política


Um pacto que acabe com um sistema eleitoral baseado em doações nada transparentes de empresas, que terminam por ter poder de controle sobre a ação de políticos; que enfrente as profundas distorções que o sistema de lista aberta, vigente hoje no Brasil, causa entre a vontade do eleitor e o resultado das eleições; que acabe com a mercantilização do tempo de televisão dos partidos, provocando alianças de conveniência que nada têm de programáticas.

Pedro Abramoway
O Brasil não é um país simples. O processo do mensalão, como esperado, criou uma pesada polarização política. E não é surpresa o fato de o relator do caso no Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, que vem sendo implacável nas condenações, estar sendo, por isso, idolatrado por parte expressiva da opinião pública.
Natural que a oposição ao governo, portanto, queira se apropriar dessa figura como um herói antipetista. Mas, no auge desse processo, o ministro Joaquim Barbosa declara — em recente entrevista — que votou em Lula e Dilma e não se arrepende. "As mudanças e avanços no Brasil nos últimos 10 anos são inegáveis", afirma ele.
A declaração do ministro pode ajudar muito o país. Não por favorecer um lado ou outro da disputa política. Mas ela pode nos ajudar a colocar óculos na miopia causada pela disputa eleitoral.
Imaginar, como fazem alguns, que o governo petista se resume ao mensalão é, como aponta o ministro, desconsiderar o que aconteceu no país nos últimos anos. Não perceber, como insistem outros, a gravidade dos fatos que o Supremo agora julga e tratá-los como naturais é se postar do lado do atraso.
O julgamento do mensalão coloca o tema da ética na política no centro do debate público. Mas será que apenas as punições, por mais graves que sejam, terão o condão de mudar a vida política do país?
Dificilmente. A punição pode até criar a ilusão da resolução do conflito. Mas ela está longe disso. Punir muitas vezes pode até ter o efeito contrário. A sede por justiça fica satisfeita e a energia de mobilização gerada pela indignação com a corrupção é aplacada pela pena. As pessoas imaginam que o problema acabou porque os réus foram punidos. Mas o enfrentamento do problema passa por ações mais profundas e complexas do que a pena.
Punir os réus do mensalão e não discutir uma profunda reforma política que repense nosso sistema de financiamento de campanhas e a relação entre parlamentares e os eleitores não parece promissor para mudar o Brasil.
A tendência natural, mantida a atual polarização, é que alguns governistas exaltados afirmem que o mensalão é uma conspiração da direita e oposicionistas afirmem, sem muita convicção, que esse é um fenômeno unicamente petista.
Essa cegueira mútua não ajuda o país e nos afasta da possibilidade da construção de um consenso sobre as mudanças necessárias em nosso sistema político para torná-lo mais democrático e menos permeável à corrupção.
A declaração do ministro Barbosa, mostrando que ele não será — até porque não combina com sua biografia — instrumento político de ninguém, às vésperas dele se tornar presidente do STF, pode ser um sinal para uma aliança que queira realmente mudar as práticas políticas no Brasil.
É a oportunidade para que a presidente Dilma, que afirmou em seu discurso de posse que "é tarefa indeclinável e urgente uma reforma política", transforme a intenção em gesto.
Está montado o cenário para que o primeiro negro a presidir o STF e a primeira mulher a presidir o Brasil, ambos com altíssima popularidade, proponham ao país um pacto republicano que transforme realmente o sistema político.
Um pacto que acabe com um sistema eleitoral baseado em doações nada transparentes de empresas, que terminam por ter poder de controle sobre a ação de políticos; que enfrente as profundas distorções que o sistema de lista aberta, vigente hoje no Brasil, causa entre a vontade do eleitor e o resultado das eleições; que acabe com a mercantilização do tempo de televisão dos partidos, provocando alianças de conveniência que nada têm de programáticas.
O período de 20 anos marcado pelos governos do PSDB e do PT mudou seguramente o país para melhor. Desafios econômicos e sociais que pareciam insuperáveis foram enfrentados com ousadia e os frutos foram colhidos. Infelizmente, do ponto de vista da melhoria do sistema político, os avanços são muito tímidos.
Joaquim Barbosa deixou claro que não está disposto a cair na armadilha da polarização entre governo e oposição. Essa pode ser a grande oportunidade para que os líderes, em todos os poderes, aceitem superar as rixas menores para aprofundar a construção de um Brasil claramente republicano.


Pedro Abramoway – Professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), foi secretário nacional de Justiça – 22.10.2012
IN “Plataforma pela reforma do sistema político” – http://www.reformapolitica.org.br/artigos-e-colunas.html